Gigi, a gravidez e as cidades

Sou rodeada de militantes do parto natural. Volta e meia sou convidada a rituais como enterro de placenta e fico lá, lacrimejando enquanto a dita é enterrada com solenidade debaixo de alguma árvore raquítica da rua ou em algum vaso da sala. Tive uma amiga, inclusive, que comeu a própria placenta. Bateu no liquidificador com morangos e comeu de colher. Nunca mais aceitei nenhum convite para almoçar na casa dela. E quando passo lá recuso até o cafezinho com uma desculpa de gastrite. Copo d’água só se eu mesma abrir a torneira. Não, não. Eu sou praticamente uma avestruz. Engulo sementes de melancia porque tenho preguiça de tirar, sou louca por dobradinha, rabada, mocotó e meu estômago fez ola quando vi pela primeira vez uma buchada de bode no bodódromo de Petrolina. Em caso de sobreviver a um acidente aéreo nos Andes tenho certeza de que não teria problemas com uma boa coxa. Mas placenta é demais até para mim.

Minha amiga Gigi, porém, é do contra. Anunciou com a maior desfaçatez que vai marcar hora e dia para a cesariana de seu bebê. Ohhhhhhhh, abrimos nossa bocona, eu e todas as outras amigas da natureza. Não faço nenhuma questão, acrescentou. Como assim?, pergunto. De dor, não vejo nenhuma razão para ter dor se posso simplesmente receber uma anestesia e pronto, o bebê sai de lá sem nenhum trauma. Sim, para nos confundir ela defende a ideia de que é ótimo também para a criança, que não precisará sofrer, empurrar, se apertar ou até se esgoelar no cordão umbilical. Imagina, ela diz, nascer já é tão complicado. Ela (sim, é uma menina) já vai ser obrigada a deixar o luxo da minha deliciosa barriga onde está com todo o conforto degustando boa gastronomia e relaxando durante nove meses, praticamente num SPA, e você ainda quer que eu faça minha filha ter de arrombar a porta?! Não, não, muito obrigada. É deselegante.

Diante da argumentação, eu apelo para técnicas terroristas. Você é quem sabe, começo, fingindo distração. Mas lembre-se de que o corpo volta muiiiiiiiito mais rápido à boa forma se o parto for natural. Se for cesariana, um ano. Mas, parto natural, três meses e você já está com a barriga que a Claudia Leitte tinha 15 segundos depois. Cirurgia é cirurgia, apelo, malvada. Nunca se sabe o que pode acontecer.

Gigi arregala por um momento seus olhos de cartum. E, esperta, não se entrega. Imagina, vai ser ótimo ter uma filha sem nenhum trauma de origem. Vou economizar horrores na conta do psicanalista. Ela não vai ter um motivozinho que seja para culpar a mãe por sofrer à toa. É por amor, entende?, diz ela, cínica, enquanto dobra um tip-top de oncinha cor-de-rosa.
Gigi é assim, incorrigível. Não tenho a menor dúvida de que, antes de ir ao hospital, ela vai fazer depilação, unhas e cabelo. E depois, vai calmamente dirigir até a maternidade na data marcada, de salto alto e pretinho básico, com ares de Audrey Hepburn. Eu, que sou uma defensora do parto natural e faço discursos veementes contra a indústria da cesariana e os obstetras preguiçosos, vou ter de engolir. Já sei que minha afilhada vai pedir um espumante quando nascer em vez de leite. No formato de peito, no máximo a taça que, diz a lenda, foi esculpida no formato dos belos seios de Madame de Pompadour.

Em represália por ignorar totalmente meus bons conselhos e melhores intenções, eu, que sou vingativa, descobri um ponto fraco na originalidade de minha amiga Gigi. Obviamente, ela não enjoaria com coisas prosaicas. Nada de feijão com arroz ou banana prata. Nos primeiros três meses, enjoou de queijo mascarpone, vejam só. Roquefort, brie e pecorino, também, não podia nem pensar. Por fim, superou sua rejeição a queijos de três dígitos o quilo. E no quarto mês ela anunciou que estava enjoando de cidades. Sim, eu também fiz esta cara.

Em se tratando da pessoa em questão, achei que não poderia ouvir falar em Paris ou Nova York. Mas não. Seu problema era com o Planalto Central. Cite as cidades-satélites da capital federal na sequência e ela desmaia. A bucólica Pirenópolis obriga Gigi a correr para o banheiro. Mas nada se compara a Brasília. Basta ouvir o nome que não tem tempo para nada. Vomita onde está.

Eu adorei. Comecei pronunciando lentamente: Bra-sí-lia. Agora, virou um jogo. Você viu a última cena do Tropa de Elite 2? Quaquaquaquaquá. Sabe quanto vai custar a festa da posse da Dilma em….? Quiquiquiquiqui. Em seguida, depois que ela vomita no colo, peço desculpas, compungida. Desde ontem passei a ligar em horários diferentes do dia. Não dou nem oi. Só falo, numa voz cavernosa. Brasíííííííília. E ouço o baque do aifone ao atingir o chão.

Lucidez

Aos 4 anos, quando o pai lhe perguntou o que tinha feito na escolinha, ele disse que havia ido ao país das fadas e cavalgara um dragão que era bom. O pai achou sensacional e contou para os amigos da firma e também os do futebol. A mãe registrou no livro do bebê com uma caneta de tinta dourada e chegou a enviar a frase para a revista Crescer. Aos 7 anos, quando o pai lhe perguntou como tinha sido seu dia na escola, ele contou que penetrara na floresta amazônica e, depois de lutar com um tigre e vencer, descobrira uma caverna cheia de ouro e pedras preciosas. Só não conseguira trazer as riquezas para casa porque ao tirar um diamante de uma das paredes tudo ruíra. Escapara por um triz e apenas porque um unicórnio voara com ele para longe. O pai explicou que não havia tigres na floresta amazônica nem unicórnios em parte alguma, mas achou divertido. É um menino muito imaginativo diria à mãe quando se recolheram para dormir, antes de apagar a luz e virarem para o lado.

Quando ele tinha 10 anos, a professora mandou que seus alunos escrevessem uma redação sobre as férias. Ele descreveu em cinco páginas sua extraordinária escalada rumo ao pico de uma montanha coberta de neves eternas. Extraordinária porque ao chegar lá se tornou o rei de um povo que nunca morria. A professora chamou os pais à escola e sugeriu que procurassem um psiquiatra. Ele não distingue a realidade da fantasia, afirmou. Os pais ficaram muito preocupados e o levaram ao médico que receitou um antidepressivo. Depois de algumas semanas, o menino começou a falar de elefantes azuis e então o médico lhe deu também Rivotril. Agora, sempre que os pais olhavam para ele, traziam uma sombra na íris.

Aos 14 anos, mesmo tratado a Prozac e Rivotril, quando a avó lhe perguntou como estava a sua vida, porque os pais já não perguntavam mais nada, ele segredou que tinha se apaixonado por uma criatura linda, de cabelos flamejantes que lhe caíam até as patas. Metade mulher e metade leoa, explicou. A avó encheu os olhos de lágrimas e correu a contar aos pais. Foi feita uma reunião da família com a junta médica e decidiram interná-lo numa clínica psiquiátrica privada. Lá ele se tornou muito popular porque os pacientes e depois os funcionários e até os médicos, estes mais interessados em apresentar o caso num congresso financiado por alguma multinacional farmacêutica, se reuniam ao redor dele para ouvi-lo contar seu dia. E até os pacientes mais agitados se acalmavam sem que fosse preciso amarrá-los ou mesmo dopá-los porque não queriam perder nem um minuto de narrativa.

Quando ele completou 18 anos, os médicos disseram que não fazia sentido deixá-lo ali, o prolongamento da estadia poderia render à instituição uma fama politicamente incorreta de depósito de lunáticos. Ainda que o caso dele estivesse além da possibilidade de cura, ele não fazia mal para ninguém nem suas maluquices constituíam uma ameaça à sociedade. O garoto voltou para a casa da família onde todos já tomavam antidepressivos por causa dele e quando lhe perguntaram como havia sido viver trancafiado nos últimos quatro anos, ele os olhou com a expressão aparvalhada de quem não compreendia a pergunta. Garantiu que nunca havia ficado preso em lugar algum. Pelo contrário. Estava até um pouco necessitado de descanso tão agitados tinham sido aqueles últimos anos. Contou então de suas viagens interplanetárias e seu aprendizado com outras culturas, descrevendo minuciosamente tecnologias alienígenas acachapantes.

Ao ouvir o relato a mãe se jogou no chão e disse que era melhor matá-la porque não poderia mais conviver com a dor de um filho assim. O garoto, que agora já era quase um homem, ficou muito triste com o desespero da mãe e só então compreendeu do que se tratava. Por que não tinham dito logo? Eles só queriam saber da parte da vida que não tinha graça.

No dia seguinte, quando lhe perguntaram se estava bem, ele contou que a nova marca de cereal era melhor que a antiga, que lera no jornal que haviam queimado dezenas de carros no Rio de Janeiro, que havia ido ao banco pagar o IPTU para o pai e tinha entrado numa fila indecente, que o vizinho do lado havia brigado com o síndico por causa do vazamento da garagem e que descobrira que os preços do supermercado estavam impossíveis. Como era muito dedicado e amava muito a mãe, disse ainda que a meteorologia previa um final de semana chuvoso. E acrescentou: “É sempre assim, quando a gente precisa trabalhar faz um tempo lindo. E, na folga, chove”.

A família toda o olhou maravilhada e desde aquele dia foram felizes para sempre.

Princesa

Olha estes ingleses, que otários!, esbraveja minha amiga no balcão da padaria, onde tomamos nosso café da manhã. O que eles fizeram agora, forjaram armas químicas no Irã?, pergunto eu, abocanhando um pão na chapa. Não, este casamento do príncipe William com a tal da Kate Middleton. Em pleno século XXI e os britânicos param tudo para acompanhar o noivado do príncipe. Que bulchite!

Eu foco na foto do príncipe William estampada na capa do jornal de quarta, reparo que ele começa a ficar careca, divago um pouco sobre o vestido da Kate e… irrito minha amiga. Não acredito que você se interesse por este tipo de notícia! Uai, digo eu, em versão mineira, mas foi você que me mostrou! O bom de viver em São Paulo é que a gente pode ser qualquer coisa.

Minha amiga está revoltada. É sério, agora percebo, o noivado do príncipe a incomoda de verdade. Ela é a imagem da paulistana cool. Já lavou pratos em Londres, fez curso de cinema em Nova York, andou meditando na Índia muito antes da Elizabeth Gilbert e agora alterna o trabalho de produtora de moda numa revista modernete com um interminável mestrado sobre o feminino em Virginia Woolf e Katherine Mansfield. Tem uma vida amorosa mais movimentada do que consigo acompanhar e nosso café periódico tem em parte a função de me atualizar nesta área. Minha amiga também tem razoável senso de humor e, a esta altura, ela já deveria ter feito alguma piada com absorventes íntimos.

Você está realmente incomodada, digo eu, quase engasgando com o capuccino. Estou, claro que estou. Mas por que, criatura?, digo eu. Eu achava que o Príncipe Charles tinha feito um ótimo serviço ao acabar com a hipocrisia dos contos de fadas quando preferiu a mocreia em vez da princesa e agora isso. Mais um casamento do século. Você não achava que um príncipe tampax acabaria com os contos de fadas, achava?, tento eu. Achava, claro que eu achava, diz ela. A princesa do bem estragando a maquiagem na TV porque o príncipe consorte a chifrava com a irmã baranga da Cinderela e não deveria ser o suficiente? Não deveria ter ensinado alguma coisa àquele povo? Cristina! (Quando ela me chama pelo nome é porque as tropas estão se preparando para desembarcar na Normandia.) Eles estudam em bons colégios, comem bem, têm acesso a museus e bibliotecas, eles não têm o direito de ser tão estúpidos! Quase engasgo. E o que a inteligência e a boa alimentação têm a ver com isso?, protesto.

Situações como esta, na minha opinião, exigem medidas drásticas. Peço uma coxa-creme e uma coca normal. Hello!, agarro o rosto dela entre as mãos e descubro que tenho açúcar na ponta dos dedos. Nem você quer que a monarquia britânica acabe! E quando o casamento de contos de fadas entrar em crise como todo casamento, você pode imaginar que gozo o inglês médio terá? Você quer que eles percam tudo isso – e nós também? E nem é tão ruim assim, já que a tal da Kate não tem nem uma única hemaciazinha azul. Imagina, os pais têm uma empresa de lembrancinhas de aniversário. A mãe era aeromoça, o pai controlador de vôo. E agora ela vai caçar veados com o príncipe Phillip. Não é quase genial de tão prosaico?

Minha amiga faz uma cara esquisita. Meu deus, ela vai chorar. Uma lágrima faz uma curva no piercing do nariz. O que você tem? É TPM? Ela me dá um safanão. Ah, não, você é mulher, não tem direito de vir com esta história de TPM só porque estou chorando. Não, claro que não, digo eu. É perfeitamente normal você estar soluçando às nove horas da manhã no balcão da padaria por causa do casamento do Príncipe William. Do Príncipe William!!!

Agora ela se abraça em mim e baba toda minha camiseta da Branca de Neve. Me diz o que você tem, por favor. Eu tenho vergonha, ela quase assoa o nariz na gravata do cara ao lado. A padaria inteira olha para nós. Ainda bem que me lembrei de colocar óculos escuros. O Adão, que sempre nos serve, pergunta se queremos água com açúcar. Acho lindo ele perguntar isso. Imagina, água com açúcar. Quase choro por amor ao Adão.

Você precisa me dizer o que você tem, eu insisto. Eu estou preocupada. Até o taxista ali na porta está preocupado. Por favor! Ela me olha, fungando. Eu tenho vergonha. Você vai me crucificar. Você nem vai querer mais tomar café comigo. Nunca mais vai me convidar para a mostra de cinema. E vai vender o meu ingresso para o show do Paul McCartney. Juro que não. Eu te amo, você sabe. Pode me dizer qualquer coisa que eu vou escutar. Até a mosca que mora na torta de limão parou de zumbir para ouvir melhor.

Minha amiga diz, voz embargada: Eu acho que eu queria ser princesa. E desanda a soluçar mais uma vez. Você queria o quê?, eu realmente escuto mas não escuto. EU QUERIA SER PRINCESA! EU QUERIA SER A KATE MIDDLETON!! ENTENDE?! SE UMA PLEBEIA PODE SER PRINCESA, ERA EU QUE QUERIA TER AQUELA SAFIRA COM 14 DIAMANTES NO DEDO!!!!

Eu não sabia bem o que fazer. O que eu digo agora? Duas garotas de uns 17 anos, cabelos escorridos, se aproximam e botam a mão no ombro da minha amiga: Tia, não chora. É normal. A gente também quer ser vampira e casar com o Robert Pattinson.

Adão!!!!! , eu grito. Mais uma coxa-creme e dois pastel! E um sapo, por favor, um sapo.

A vida dos outros

Quando viajo tento descobrir os restaurantes e botecos que as pessoas do lugar frequentam. Sento a uma mesa de costas para a janela e de frente para a paisagem que mais me interessa, a interior. Fico observando a vida dos outros se desenrolando nas mesas. Começo estrangeira e termino pertencendo. Não se entra na vida dos outros, mesmo que seja apenas com nosso olhar, impunemente. A vida dos outros se agarra à nossa alma e se torna nossa. Foi assim no meu primeiro e único dia em Lisboa, duas semanas atrás. Sentei numa pastelaria de esquina. Era um domingo e o domingo é um dia que crava suas unhas na gente mesmo quando estamos bem.

Pedi meu bacalhau e fiquei olhando a cena da mesa mais próxima. Uma mulher de uns 60 anos conversava com uma amiga da mesma idade, uma diante da outra. E do lado sua filha, uma adolescente com síndrome de Down. A menina apenas observava a conversa, seus olhos passeando pelas mesas como os meus, mas com mais ansiedade que os meus. O único garçom me atendia de cara sisuda porque eu era um corpo estranho num domingo que era deles. Seu olhar me acusava por não ter escolhido um dos restaurantes da outra ponta da rua, que exibiam menus em inglês. Culpava-me pela intromissão. Mas a menina com Down ele chamava pelo nome e todo ele virava um pastel de nata. E por isso eu gostava dele mesmo quando atirou o prato de bacalhau na minha frente.

Diante de mim, num canto, havia um homem de seus 50 e poucos anos. Enfiado numa roupa domingueira ele falava o tempo todo ao celular enquanto comia sozinho. Modulava a voz num tom sedutor e por isso eu adivinhava que falava com uma mulher. Aos poucos as palavras foram chegando e percebi que não era apenas uma, mas uma após a outra. Ele procurava companhia para não naufragar no domingo, mas não havia sins para ele. E a sobremesa chegou e depois o café e seus olhos vagavam cada vez mais velozes pelo quadrilátero da pastelaria, batendo pelas paredes enquanto a voz já perdia a força. E tanto eu quanto ele, ainda que ele não soubesse de mim, sabíamos que a mulher do outro lado já adivinhava seu desespero. E não há nada que as pessoas temam mais que a solidão alheia. Eu não podia ouvir o que elas diziam, mas conhecia o que pensavam: Tire suas mão pegajosas de cima de mim. Minha boia só tem lugar para um.

Do meu canto eu fingi não vê-lo quando o vi levantar ajeitando com mãos nervosas sobre o próprio corpo franzino os últimos fiapos de uma dignidade antiquada. E depois caminhar até a porta do bar mais ou menos ereto. Quase podia imaginar o oceano lá fora, o de Cabral e Vasco da Gama, arrastando-o pelas pernas e afogando-o no mosaico português onde o sol refletia o vazio sem terra à vista do domingo. Mas não o vi porque estava de costas para a janela. E meu olhar era como uma pintura de Edward Hopper, onde mesmo o lado de fora era dentro.

Então a voz da menina com Down se ergueu e tornou-se mais aguda. Mas eu não pude entender o que ela dizia. A mãe estancou a conversa animada com a amiga no mesmo segundo, enquanto a espinha do bacalhau entalava na minha garganta. A mulher então rasgou o silêncio com a mão que estendeu sobre a mão da filha. Olhou bem para a menina e disse. “Filha, a vida dói”. E os olhos de ambas se encheram de lágrimas sem que nada mais fosse dito. E todos nós ali mergulhamos no abismo.

Quando elas partiram eu pedi um café porque não seria capaz de enfrentar o oceano que tragara agora também a elas. Eu tentava imaginar o que a menina disse para que a mãe precisasse dizer aquilo. Queria correr atrás delas e perguntar. Mas era domingo e no domingo a gente não corre. Apenas fica ali, fingindo-se de estátua como na brincadeira de infância, para que a máquina do mundo não nos triture com seus dentes amarelos.

Estávamos sozinhos agora, os únicos clientes. No balcão o homem do caixa se esmerava em arrumar um vaso com flores de plástico porque ele também entendia que às vezes era isso tudo o que restava. Todo o controle que tínhamos sobre a vida eram estas flores que não morriam porque jamais tinham nascido. Ele sabia, o homem sábio, que ajeitando flores de plástico no velho vaso conseguiria ancorar na segunda-feira.

Eu adoçava meu café com o sal do meu próprio mar quando a família entrou. Um casal mais velho, de cabelos brancos, e um mais jovem. Pela mão um bebê que tentava dar seus primeiros passos. Mas só enxerguei a garotinha depois. Eu passeava meus olhos pelo rosto do velho quando ele me abriu um sorriso tão orgulhoso porque ele tinha certeza de que eu, como todos ali, só podia estar olhando para a coisa mais linda do mundo. Então rapidamente eu me refiz do meu enleio e abri o meu próprio sorriso confirmando que sim, não havia nada mais lindo que sua neta nem nunca haveria. Eles estavam pobremente vestidos, mas enfeitados para o domingo. Era sua melhor pobre roupa e a avó até tinha arrumado o cabelo. Possivelmente não tinham dinheiro para comer o prato do dia, então almoçaram em casa e pediam agora apenas um café de domingo.

A pequena portuguesa bamboleou suas perninhas gorduchas até a minha cadeira onde eu a amparei com as mãos. E tive certeza de que acabara de fazer parte de um grande descobrimento. O velho abriu de novo seu largo sorriso onde faltava a maioria dos dentes. Mas era um sorriso tão rico. Então compreendi. Ao compreender, quis sair correndo atrás da mãe e da filha com síndrome de Down para dizer que sim, a vida dói. Mas às vezes não.

Então o garçom sorriu para mim. Um sorriso de boca fechada, rápido o suficiente para que pudesse fingir que não tinha dado um sorriso. Mas eu sabia que agora pertencia àquele domingo que nunca mais sairia de mim. Era apenas uma janela para dentro, mas agora quando eu olhava também me via.

Meu marido e o polvo Paul

Estou ali, tomando meu chimarrão e admirando a vista de São Paulo pela janela. Três prédios cinzentos e um viaduto engarrafado. Lindo. Ouço os passos dele atrás de mim. Me viro com um bom-dia pendurado nas cordas vocais. E estanco. Ele tem cara de enterro. Será que fiz algo condenável durante a madrugada? A noite passa inteira em um segundo pela minha mente. Nada que eu lembre. Alguma má notícia pelo celular que eu não ouvi? Melhor perguntar. O que aconteceu? E ele diz, um travo de choro na voz. “O polvo morreu.”

Fiquei olhando para ele com um ponto de interrogação na testa enquanto tentava lembrar quem era o polvo. Não, não havia nenhum amigo com apelido “Polvo” no meu disco rígido. Quem era o polvo? Percebo agora a complexidade quase irrespondível da minha pergunta. “O polvo!”, ele diz, ofendido. Não bastava ter morrido, já era esquecido. Que polvo?, agora estou nervosa. “O povo Paul, ora!”. Caralho, quem é este tal de polvo Paul? Eu falo mais palavrões que um caminhoneiro. Então pesco uma fagulha de memória num canto do cérebro. O da Copa do Mundo? “Que outro seria?”, ele responde indignado.

Fico muda. Tínhamos acabado de voltar de viagem e ele pedira salada de polvo em todas as oportunidades. Se perguntarem para ele qual é o seu prato preferido, polvo assado, frito, refogado, empanado, no espeto, recheado… estará em seu top five. É exatamente o que lembro a ele. Ele faz cara de culpado. Mas recupera-se rapidamente. “Mas não é o Paul.” Sim, eu entendo. Paul, o polvo vidente, se particularizou, ganhou nome, personalidade, atributos humanos e até divinos. É como no caso dos mineiros do Chile. Milhares de mineiros no mundo inteiro padecem em condições indignas em minas insalubres e morrem mais cedo das doenças causadas por elas — e ninguém liga. Mas os do Chile levaram multidões às lágrimas. Viraram heróis enquanto os colegas continuam e continuarão morrendo no anonimato.

Eu começo a fazer este discurso, mas ele me interrompe. “Por favor, será que eu posso sofrer em paz pela morte do Polvo Paul?” Sim, agora é “Polvo Paul”, praticamente nome e sobrenome. Percebo então que ele realmente está sofrendo com a morte do Polvo Paul. Por amor, esqueço minhas convicções e arrisco um ele-morreu-de-que (?) bem compungido. “Tudo indica que de morte natural.” Ah… eu digo, por absoluta falta do que dizer. E ele volta para o quarto. Para chorar, provavelmente. Eu retorno ao chimarrão e à paisagem paradisíaca.

Para minha surpresa, começo a pensar no Polvo Paul. Sinto até um beliscão no peito pelo Polvo Paul. Tão jovem, penso eu. Será que era jovem? Ligo o computador e começo a gugar. Polvo Paul tinha dois anos e meio. Me parece pouco, mas entro num site sobre cefalópodes. Sim, dois anos e meio parece ser uma idade em que os polvos morrem de velhos. Que horror! Pobre Paul! Assim sendo, faço um cálculo rápido, ele gastou quase 5% da vida dele adivinhando o placar da Copa do Mundo. Pode parecer pouco, mas não é de jeito nenhum. Imagine alguém que viva até os 70 anos, um pouco menos que a expectativa de vida dos brasileiros. Cinco por cento são três anos e meio. Pense no que fazemos e no que acontece em três anos e meio! Sim, Polvo Paul teve a vida roubada. Ainda que pop star, uma vítima do capitalismo. E da cartolagem internacional. E num aquário! Tenha dó.

Tornei-me uma obcecada pelo Polvo Paul. Rastreio notícias sobre ele na internet noite e dia. Tenho certeza de que algumas são cifradas. Há muito mistério em torno da sua vida. A começar por uma disputa em torno do local de seu nascimento. A comunidade italiana Marina Di Campo, da Ilha de Elba, garante que ele foi pescado lá, em suas águas azuladas, quando ainda era um bebê. E já lavrou um registro de nascimento em bom italiano. (E tanta gente implorando por uma cidadania italiana!)

Polvo Paul será nome de rua, garantiu o prefeito. “Ainda não se sabe o que escrever na placa: ‘Rua polvo Paul, adivinhador’ ou ‘Travessa polvo Paul, infalível adivinho de eventos esportivos’”, relatou a administração em uma nota à imprensa. Já está decidido que a placa será bilíngue — inglês e italiano — e que será colocada na rua que liga a praia de Marina Di Campo com a de Porto Caccamo. Segundo algumas investigações iniciais, seria lá que Polvo Paul teria passado os primeiros dias de sua mais tenra infância. No caso dele, tão tenra que dá água na boca.

Entre seus despojos foram encontrados uma camisa da seleção espanhola e uma placa de “Amigo Predileto” da cidade espanhola de Carballino, na Galícia. O prócer municipal, Carlos Montes, acompanhado por autoridades locais da referida comunidade, havia entregado pessoalmente a homenagem ao Polvo Paul logo depois de a Espanha ter se tornado campeã com acertadíssima previsão do ilustre vidente. Agora, Montes reivindica os restos mortais do “Oráculo da Copa do Mundo” para construir o “Museu do Polvo”. Sim, o polvo também é espanhol. Na verdade, um cidadão europeu, quiçá do mundo. Uma mente oracular e cosmopolita, ninguém duvida. Muito menos eu.

Que homenagem edificante e merecida, penso eu, com lágrimas nos olhos. Então… bingo. Eu sabia! Começam agora as primeiras incertezas sobre a sua morte. A cineasta chinesa Jiang Xiao, que faz um filme sobre a vida do mais ilustre molusco da história, garante que ele morreu dois dias antes do final da Copa. “Eu investiguei muito e sei do que estou falando”, ela afirma. E continua, implacável como só as filhas da China conseguem ser: “Eu estou 60% a 70% convicta de que Paul morreu em 9 de julho e os alemães estão encobrindo isso desde então”. Sempre fico confusa com o raciocínio que levou a estes precisos “60% a 70%…”, mas relevo. Pelo Polvo Paul. Senhorita Xiao já tem título para o seu filme: “Quem matou o Polvo Paul?”.

Quem? Who? Wer?

Quem então adivinhou a vitória da Espanha sobre a Holanda? Mais um mistério. O que teria sido feito do dublê naquele aquário de Oberhausen, nas mãos daqueles assassinos de invertebrados? “Meu deus, será que eu comi?”, diz meu marido, quase vomitando o Toddy. Não, não, estávamos longe. Mas alguém comeu. Meu marido vomita o Toddy.

Viu como este mundo é, eu digo. O Polvo Paul vai ter até um filme porque virou celebridade instantânea e ninguém liga para o destino do coitado do dublê, para o mundo tanto faz se virou salada ou picadinho. Sou muito preocupada com os pobres e oprimidos de qualquer espécie, não faço distinção. Anuncio então para meu marido. Tinha passado parte da noite de insônia pensando nisso. Vamos batizar o corredor do nosso apartamento, que liga o quarto à sala, de “Corredor Polvo Paul”. E com um adendo: “Homenagem ao dublê desconhecido”. Pensei que ele ia adorar. Mas meu marido me olha de um jeito estranho.

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