Sorrindo pelas costas

Ilustração: Carolina Vigna-Marú

Enfiou uma mão por dentro da blusa para puxar o sutiã, cuja alça direita tinha dobrado. No gesto, sentiu seu indicador roçar alguma coisa. Uma pedra no meio do seu caminho? Retrocedeu com os cinco dedos. Sentiu de novo. Apalpou. Parecia uma bola entre as suas costelas. Apertou. Não doía. Coçou. Não coçava. O que era aquilo? Correu até o banheiro da firma. Tirou a blusa, torcendo para que ninguém entrasse e a visse seminua. Torceu-se toda para olhar no espelho. Havia uma bolota vermelha e perfeitamente redonda ali. Não perfeitamente, olhando melhor. Apalpou de novo. Não sentia nada. Coçou. Não coçava nada. Como não tinha visto aquela bolota antes?

Ligou para o consultório médico. Há uma bolota nas minhas costas, anunciou à secretária. Não posso esperar um mês por uma consulta. Maldito plano de saúde vagabundo. Você sabe, uma bolota nem sempre é uma bolota, insistiu. Vou falar com o doutor para marcar um encaixe, a moça prometeu.

Naquela noite sonhou que a bolota tinha um rosto. Como a carinha do smiles. Mas era uma carinha má. A bolota ria dela. Antes de lhe cravar os dentes. Agora ela tinha certeza de que aquela bolota não era inofensiva. Nas noites seguintes teve medo de dormir. Era como se uma estranha estivesse acordada sem que ela pudesse enxergar seus olhos abertos. Uma estranha íntima dando dentadas na sua carne. E rindo, rindo muito. Rindo pelas suas costas.

Hum, disse o médico. Hum o quê? Não estou gostando do aspecto dela, mas não posso confirmar nada antes da biópsia. Pode não ser nada. Quando apareceu? Não sei, só vi na semana passada. Deve estar aí há algum tempo. Como você não viu? A pergunta a deixava nervosa. Eu não sei, não sei como eu não a vi antes. Eu deveria tê-la apalpado no banho, pelo menos, mas não senti. Simplesmente não senti. Não se preocupe, faremos a biópsia e tudo ficará esclarecido. Ela nem sabia se queria esclarecer alguma coisa. Eu não tenho material para fazer aqui, mas basta ir ao laboratório, seu plano cobre esse exame. É um procedimento de rotina. Da rotina de quem, ela gostaria de ter perguntado. Mas se calou.

Sentada na sala de espera do laboratório em que arrancariam um dente do sorriso das costas dela, ela estava longe. Não só de suas costas, mas dela inteira. Fora. Estava fora. Nem registrou a dor. Sentiu algum desconforto?, perguntou a moça. Desconforto, que palavra era esta? Doeu menos do que depilar a virilha com cera, ela disse.

Cinco dias depois, a secretária do médico ligou porque ele queria vê-la. Ela foi, mas permaneceu onde estava. Longe. Nem ouviu a palavra quando o médico a pronunciou. Simplesmente não a interessava. Tudo o que ela conseguia pensar é que ninguém a amava o suficiente para acariciar as suas costas. Ninguém a amava o suficiente para descobrir que havia uma bolota ali antes que fosse tarde demais.

Perdida

Ilustração: Carolina Vigna-Marú

Ilustração: Carolina Vigna-Marú

Meu deus!, viu-se dizendo em voz alta. Ela não era religiosa, mas a frase alojara-se na sua boca desde que as tias solteiras a repetiam pela casa da sua infância, diante de cada pequena catástrofe doméstica. Da polenta queimada a um fio puxado na meia de náilon.

Desta vez, a catástrofe era dela. Lembrou-se de súbito que deixara o filho pequeno dormindo, trancado no apartamento, para fazer uma compra rápida no supermercado. E o esquecera por completo. Pensando bem, ela nem fora ao supermercado.

Onde estou agora?, olhou para os lados. Estava num café de shopping, daqueles de rede americana, tomando um cappuccino e comendo um croissant borrachento. Como eu vim parar aqui? Duas vistosas sacolas de loja estavam acomodadas na cadeira vaga da sua mesa. De quem é isso? Olhou para os lados, de novo. Só um casal e uma moça abduzida diante do computador. Nenhum deles parecia notar a sua confusão. Espiou dentro das sacolas, constrangida, como se elas não lhe pertencessem. Mas pertencem? Dentro, um vestido, um jeans e um sapato de salto. Quem comprou tem bom gosto, pensou. E eram do seu número, constatou.

Estou ficando louca, e um soluço estrangulado saiu dela. Meu deus, eu preciso correr. Meu deus, eu saí de manhã de casa. O Pedro acordou, deve ter chorado até se afogar. Morreu de asfixia. O Pedro acordou, está morrendo de fome e de sede no berço. Será que os vizinhos ouviram os gritos e chamaram os bombeiros? Meu deus, eu sou uma péssima mãe, uma mãe doida, do tipo que vira manchete de jornal. Vão me apedrejar como fizeram com os Nardoni. Como eu pude?

A enormidade do seu ato, do seu esquecimento, do seu desvario desabaram sobre ela. Seu bebê agora poderia estar morto. Ela já queria se matar também. Mas antes precisava ter certeza. Se ele ainda estivesse vivo, ela seria a melhor mãe do mundo, ela acreditaria no deus que invocava, ela seria outra.

Saiu da paralisia e correu a pegar um táxi na frente do shopping. Com as bolsas das lojas. Por que eu estou carregando essas bolsas? Obrigou o motorista a correr, a ultrapassar, a ignorar sinais vermelhos. Meu filho está morrendo, ela dizia, os olhos vermelhos, o rosto vermelho, o suor porejando desespero.

Atirou uma nota de 50 reais, a primeira que achou, e entrou correndo no prédio. Não se ouvia nada, só um funk. Quem é esse doido que escuta som nesse volume? Se eu não tiver matado o meu bebê, eu vou reclamar pro síndico. Socou o botão do elevador. Fora o funk, tudo parecia normal no prédio. Nenhum sinal de polícia ou bombeiros. Nenhum som de bebê, também. Mas como ouviria, com este funk?

Entrou no elevador e descobriu que não tinha luz lá dentro. Se não tiver matado o seu filho, ela reclamaria do zelador relapso. Por sorte, ela lembrava de sempre carregar uma lanterna na bolsa. Derrubou tudo no chão para achar, tateando, mas não fazia mal. Ela precisava subir sete andares. Sete? Percebeu que tinha esquecido o número do seu apartamento. Onde é que eu deixei meu bebê, onde é que eu vivo? Agora o elevador subia para o sete, mas não era no sete. Ela tinha quase certeza de que não era. No quinto, o elevador parou, abrupto. Entrou um morador que ela não conhecia. Poderia também ser uma visita, como saber? Não era uma visita. A senhora está bem? Acho que não, eu esqueci onde eu moro, confessou, encolhida de vexame. A senhora mora no 402. Quer que eu ligue para alguém? A senhora não parece mesmo bem, talvez esteja tendo um AVC. Não, não, eu estou bem. Estou meio atrapalhada, por causa dessa escuridão. Queimou a lâmpada de novo, e o zelador não trocou. Escuro?, o homem perguntou, parecendo perplexo. É, o senhor está enxergando por causa da minha lanterna. Ele abriu a boca para falar, mas fechou. Tem certeza de que a senhora não precisa de ajuda? Estou bem, é só uma enxaqueca. Só preciso chegar em casa e tomar um comprimido. Ela não queria contar que tinha esquecido seu bebê. Antes de ser presa, ela se mataria, abraçada ao corpo do seu bebê. O vizinho desconhecido apertou o quarto andar, e ela desembarcou do elevador tentando aparentar normalidade. Já me sinto melhor, obrigada. Ela não queria que descobrissem logo que era uma assassina. De repente, já começava a pensar que poderia talvez fugir. E imediatamente sentiu a culpa escalar o esôfago com a bílis. Não, ela não viveria com a morte do seu filho. Mesmo querendo, mesmo querendo. Que horror, ela queria. Era uma mãe horrível, mesmo, além de uma assassina.

Vasculhou a bolsa, mas não encontrava as chaves. Deixei no elevador, no chão. Não vi no escuro. Estava parada na frente da porta e só então percebeu que o funk vinha de lá. Da sua casa. Mas como? Suas mãos tocaram o molho de chaves, afinal. Mas qual chave seria? Havia umas dez ali. Ela foi tentando uma por uma, e nenhuma parecia servir. Então, a porta se escancarou. E ela estava diante de um adolescente de cabelos compridos, calça larga, caída até abaixo do ossinho do quadril, tatuagens por todo o corpo e um piercing na sobrancelha direita. Quem é você? O que você fez com o meu bebê?, gritou.

Ele olhou para ela, por um segundo, antes de agarrá-la pelos ombros:

— Mãe, a senhora está bem?

Seu J, o único homem que faz de mim o que quer

Ilustração: Carolina Vigna-Marú

Ilustração: Carolina Vigna-Marú

— Quanto tempo vai durar? — perguntei.

— Um mês — afirmou Seu J, categórico como se expressasse uma verdade tão óbvia quanto absoluta.

— Mas eu quero saber o prazo real, não aquele prazo que depois vira o dobro. Ou o triplo! Eu trabalho bem com a realidade, então preciso que o senhor me diga de verdade quanto tempo vai durar, para que eu possa me programar.

— Um mês dá tranquilo — e explicitou o cronograma como se recitasse uma Ave Maria.

— Vamos precisar sair do quarto?

— Não, imagina, não precisa. Pode continuar a vida normal.

E assim começou a obra do banheiro. No primeiro dia, a banheira aterrissou sobre a cama, de onde nunca mais decolou. No segundo, ele e os ajudantes já deixavam as roupas de trabalho penduradas no cabide. Ao final da primeira semana, não havia nenhuma camiseta, calça ou vestido de dentro do armário que não estivesse coberto por uma larga camada de pó. Para que eu não entrasse muito para espiar o andamento da obra, passaram a trancar-se à chave por dentro.

— Por que estão trancados? — perguntava eu.

— Para que a porta não abra com o vento — dizia-me ele, sorriso de orelha a orelha.

— Ah tá.

Na segunda semana, descobri que Seu J só trabalhava de terça a quinta. Perguntei a razão, e a explicação foi muito racional:

— Na segunda tem rodízio. Não teria cabimento eu vir lá de Francisco Morato depois das dez e ter de sair um tempão antes das cinco.

— Mas o senhor nunca chega antes das 11h…. E sempre vai embora antes das cinco.

— Então, pra você ver como o trânsito é ruim. Imagina com rodízio…

— E na sexta, por que não?

— Não gosto de trabalhar na sexta, nunca gostei. Por isso não sirvo pra ser empregado.

Rendi-me à lógica esmagadora.

Ao final do prazo, perguntei:

— Mas quanto tempo vai demorar ainda?

— A senhora não pode ser impaciente. Cada obra tem o tempo dela. A gente precisa deixar secar cada coisa.

— Mas eu perguntei ao senhor quanto tempo levava…

— Pois não é que eu também fiquei surpreso? Choveu muito, por isso demorou a secar.

— Mas faz mais de mês que não chove em São Paulo, os reservatórios de água estão baixando, a qualidade do ar está péssima…

— Sério? Rapaz, não ouvi nada sobre isso!

Quando completou mês e meio de obra, um estouro anunciou o curto circuito. A obra era de encanamento.

— O que aconteceu? — perguntei pela manhã.

— Pois não é que não sei? Eita trem mais estranho…

— Acho que deve ter sido naquela hora que o senhor puxou eletricidade direto da caixa para aquela máquina barulhenta, aquela que provocou um protesto do condomínio.

— Imagina, não tem nada a ver. Aquela máquina é perfeitamente normal, dá para puxar tranquilo a energia da caixa. Talvez tenha sido quando a senhora usou o secador de cabelo.

— Mas faz sete anos, desde que eu vim morar aqui, que eu uso o secador de cabelo. Mas a sua máquina foi a primeira vez.

— Ah, mas é assim mesmo. Sete anos já é bastante tempo, uma hora a coisa dá problema.

— Não é melhor chamar um eletricista?

— Eu sou eletricista de formação. Faço encanamento porque as pessoas pedem, mas o que eu entendo mesmo é de eletricidade.

— Fiquei muito mais tranquila agora.

— Que bom, fico feliz.

Ele passou o dia mexendo aqui e ali, tirando lâmpada, testando fio. De vez em quando pegava um pedaço de bolo de chocolate, já bem de casa, e ficava matutando, o olhar preso no horizonte, embora não exista isso em São Paulo. No meio da tarde reclamou da qualidade da bergamota (mexerica, para paulistas; tangerina, para cariocas). Expliquei que não tinha achado a que ele gostava, mas que procuraria mais. A noite chegou, e a casa começou a ficar escura.

— O senhor já conseguiu descobrir o que aconteceu? – perguntei de novo.

— Não tenho a menor ideia.

— Mas o senhor não é eletricista?

— Sou, mas tem coisa que acontece e a gente não sabe explicar. A senhora não lembra do ET de Varginha?

Dois meses no calendário. Chamei-o para uma D.R. na mesa da cozinha.

— Seu J, a gente precisa discutir a relação.

— Claro — disse ele. Posso pegar uma banana?

— Sim, sim. Mas, seu J, é o seguinte. Eu moro aqui e também trabalho aqui. Tudo o que eu faço é aqui dentro. E, o senhor sabe, eu ganho a vida escrevendo. Sem contar que estou com rinite alérgica há dois meses! Eu gosto do senhor, gosto do C e do T, sei que são gente boa, fiz até feijão pra eles, o senhor lembra?

— Ah, eles gostaram muito. Quando não tiver mais inspiração pra escrever, a senhora pode começar a cozinhar pra fora.

— Boa ideia, seu J, mas o que eu quero dizer ao senhor é que está muito difícil de escrever e todo o resto com a casa em obra há dois meses! Eu não tenho quarto, eu não tenho escritório, eu não tenho roupa limpa, às vezes eu não tenho nem luz! O senhor precisa botar um fim nisso. Não dá mais pra continuarmos assim. Seu J, eu não aguento mais! — terminei o ponto de exclamação num meio soluço patético.

— Você sabe que eu também escrevo?

— Escreve?

— Já tenho mais de 400 poesias.

— Verdade?

— Eu mexia com arte lá na Paraíba. Aí vim pra São Paulo, casei, vieram os filhos e tive de fazer obra. Mas hoje mesmo me inspirei e escrevi mais uma.

— Que bacana, seu J.

— E já fui Cristo, também, na Paixão de Cristo.

— Nossa, seu J, mas que interessante, um Cristo aqui na minha casa. Um privilégio, mesmo.

— Quer ouvir minha poesia preferida?

— Quero, claro.

E declamou “Versos Íntimos”, de Augusto dos Anjos.

— Acostuma-te à lama que te espera! O homem que, nesta terra miserável, mora entre feras, sente inevitável necessidade de também ser fera…

E sacudia a banana pela metade, quase em êxtase na minha cozinha amarela.

Senti-me vil. Que importância tinha uma reles obra diante dessa cena? Como pude eu me apequenar tanto ao comezinho da vida a ponto de choramingar por toneladas de pó, um banheiro perdido, eletricidade?!

Juntei-me a ele, alteando a voz e subindo numa das cadeira ao redor da mesa.

— Toma um fósforo, acende teu cigarro! O beijo, amigo, é a véspera do escarro.

A mão que afaga é a mesma que apedreja…

No dia seguinte, Seu J não apareceu para trabalhar. Ligou por volta de cinco da tarde.

—Tive um problema… Tô fazendo uma outra obra na Paulista pra uma mulher bem nervosa e ela me obrigou a ficar aqui. Mas, amanhã, oito da matina, eu tô aí….

A manhã chegou. São 10h neste momento. Toca o telefone. Eu sei que é ele. Eu sei!

Pelo menos aqui eu posso botar um ponto final.

Romualdo, o cachorro que envelhece

Ilustração: Carolina Vigna-Marú

Ilustração: Carolina Vigna-Marú

Eu soube que a infância dela tinha acabado quando escrevia no meu escritório e ouvi um ruído atrás de mim. Ela passava com seus novos cabelos cor de laranja pelo corredor, arrastando um saco de lixo. O que você tem aí?, eu perguntei, incauta. Meus bichos de pelúcia, ela disse. Saltei da cadeira de rodinhas, ainda era o tempo em que eu conseguia saltar, e impedi a chacina quando ela já se preparava para descer as escadas do edifício, rumo ao latão de lixo reciclável do térreo, onde desovaria os corpos. Ela se livraria de todos, menos de um.

Menos de um porque ele não era um bicho de pelúcia. Ou era quando foi comprado pelo meu irmão mais velho num supermercado para acompanhá-la em sua primeira viagem além das fronteiras da casa, do país. Mas isso foi antes de descobrirmos que estava vivo. Ela deu a esse cachorro — sim, era um cachorro — um nome tão comprido e composto quanto o de Dom Pedro II. Para os íntimos, porém, e eu me incluo nesse grupo seleto, ele foi sempre Romualdo.

Por que você faria uma coisa dessas?, eu perguntei, chocada, diante do saco de corpos de pelúcia. Porque eu cresci, ela poderia ter me dito. Mas não disse. Eu não gosto de bichinhos de pelúcia, ela falou. É tu que gostas. Eu?

Era eu mesma. Quando ela nasceu, meu irmão mais novo deu a ela um urso peludo. Eu era tão criança que a larguei no berço e fiquei penteando o urso que nunca tive. Naquela época, o urso tinha mais cabelo do que ela, que se limitava a um par de olhos bem azuis entre duas bochechas que fariam inveja ao pão de açúcar. Depois, ela ganhou um cabelo loiro em que eu fazia penteados dos anos 80 que até hoje a constrangem nas fotos.

Ela não reparava que eu era criança. Contra todos os prognósticos, sempre teve certeza de que eu era a mãe dela. E me amou com um amor incondicional. Era a única a aprovar meus cabelos azuis, amarelos, rosas, verdes, com penas de pavão ou mesmo quando eu raspei a maior parte deles. Eu olhava para ela e sabia que ela me achava linda. Eu era a mãe dela. E, aos poucos, ela me provou que não havia nada melhor para ser na vida do que mãe dela.

Não sei o que ela fez com os bichos de pelúcia que eu salvara tantos anos atrás. Acho que se livrou deles em algum momento dos muitos em que eu não estava olhando. Livrou-se de todos, menos de um.

Tampouco sei precisar quando descobrimos que Romualdo era vivo. Mas não chegou a nos causar maior espanto. Tínhamos essa naturalidade com o mistério e uma série de gestos em comum, eu e ela. Achávamos normal quase tudo. Romualdo era tão amoroso que sabíamos que jamais se transformaria em Chuck, o boneco assassino. Bastava olhar para ele para que, de imediato, o mundo voltasse a ser um lugar que ambas podíamos habitar. Muitas vezes, foi ele que a protegeu quando eu não o fiz. Em outras, quando eu me esfarinhava por aí, ela me emprestava-o por alguns dias, para que ele pudesse cuidar de mim. Depois, resgatava-o de repente, sem nenhuma explicação.

Romualdo testemunhou toda a vida dela, dos 8 aos 30.  Sabe mais dela do que eu. Jamais a decepcionou, como eu. Esteve sempre lá, eu não. Uns dois anos atrás percebemos que Romualdo envelhecia. Seu pelo marrom perdera o viço e começara a ficar grisalho. As sobrancelhas, assim como os cílios, tornaram-se finas e brancas. Seu topete rareava. Nem tentamos uma explicação mágica, nós sempre soubemos que a velhice também chegaria para ele. Ao nosso redor, as pessoas se assombravam, desfiando justificativas lógicas. Nós não.

Hoje, ela me entregou Romualdo para que eu cuide dele — ou ele de mim — por um ano. Ela vai para longe, viver aventuras de adulta. Eu fico, sem saber como foi que ontem ela nem tinha cabelo para pentear e agora me olha com sua primeira ruga quase invisível embaixo do olho esquerdo. Ela ainda tem bochechas, mas não gosta que eu mencione o fato. Sei que ela vive sem mim, não sei se consegue viver sem Romualdo. Ela está insegura, eu sinto. O que significa deixar Romualdo? Entendo por que ela me deixa, mas o Romualdo?

Restamos eu e ele, vendo nossa menina partir com pose de mulher, com um outro que chegou ontem e já a carrega embora. Romualdo, eu ralho, como você permitiu isso? Ele me olha, ternurento e cheio de paciência, me conhece bem e sabe que em algum momento a razão haverá de retornar. Mas logo em seguida se distrai e esquece que eu o observo. Vejo então uma pequena lágrima suicidando-se ao lançar-se da ponta de um cílio do seu olho esquerdo. Ele jamais tinha sido deixado para trás antes e sabe que isso significa algo.

Restamos eu e ele, sem saber como se pode amar tanto alguém, sem saber o que foi que aconteceu nesses anos todos, como foi que de repente ela partiu sem nós. Eu penteio os cabelos ralos de Romualdo, mas ela não está mais nem no berço, nem em parte alguma que possamos ver. Perdidos de tudo, porque quase tudo era ela, dormimos abraçados para que ela possa nos encontrar na volta e nos contar de um mundo aonde jamais iremos. De agora em diante, será assim. E é assim que tem de ser. É o que digo a Romualdo quando peço a ele que arranque um fio branco que aponta na minha cabeça marrom.

Ela que me sabe azul

Ilustração: Carolina Vigna-Marú

Ilustração: Carolina Vigna-Marú

Às 7h ela abre a janela. Seu apartamento, no prédio em frente, fica no mesmo nível que o meu. Eu paro de escrever para vê-la abrir a janela. Estou no meu sofá, com o computador no colo. Ela apenas olha sem arriscar o pescoço. Seu limite é a moldura da janela. Parece fazer questão de manter o teto sobre si. Arrisque-se, às vezes eu torço, mas ela nunca avança um centímetro além. Tem um rosto redondo e lembra uma daquelas bolachas brancas de tia do interior. Permanece ali, imóvel, durante longos minutos, olhando só para frente. Nem para cima, nem para baixo. Nem para a esquerda, nem para a direita. Só para frente. Depois, fecha a janela, cerra a cortina e só volta no dia seguinte. A velha na janela é meu original de Edward Hopper que se pinta todo dia no mesmo horário.

Nunca apareceu ninguém atrás dela, nenhum outro rosto além do seu. Já ensaiei algumas vezes o gesto de me dirigir à minha janela e fazer um sinal qualquer. Como num filme de alienígenas do Spielberg. Eu estenderia o meu dedo, ela estenderia o dela, e um raio de luz nos ligaria. Subiria uma música instrumental, e a humanidade estaria salva.

Temia assustá-la, porém. Ou intrometer-me num ritual vital cujo alcance eu não poderia compreender por inteiro. Não sabia o que ela via de mim, já que meu sofá fica de frente para a janela. Possivelmente, ela só enxergava um borrão azul em outro borrão azul. Eu quase sempre sou azul.

O que ela via? O que ela olhava além do meu azul, já que diante dela há apenas um edifício bege e sem imaginação, o meu? Para o quê? Para onde? Por quê? O que ela via quando não estava vendo?

Depois de cada uma de minhas viagens, eu só tinha certeza de ter voltado para casa e que o mundo ainda era o meu quando ela abria a janela. Será que ela tinha notado que o azul sumira por uns dias? Sentira falta? Sofrera?

Com o tempo, percebi que as manhãs só eram reais se ela estivesse ali naquele instante preciso. No momento em que as cortinas se abriam e seu rosto assomava à janela, a vida ganhava materialidade, e eu deixava de vagar a esmo em passos de astronauta. A velha na janela me dava gravidade, e eu desabava do teto para o sofá. Tornamo-nos estranhas íntimas, mas esta era só a minha opinião.

Hoje, as cortinas não se abriram. Ela não veio. Restei eu ali, no sofá, esperando-a, mas o seu mundo permaneceu fechado. Compreendi de repente a sirene da ambulância que havia soado no que eu pensava ser um sonho ruim. E quando entendi, vomitei. Eu não sabia até então como é que o mundo da gente morre. Agora ninguém mais sabe que de manhã sou azul. Então não sou. Em azul não há mais eu.

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