Maracutaia Filmes S.A.

Ilustração: Carolina Vigna-Marú

Ilustração: Carolina Vigna-Marú

Eu confesso: comprei um filme pirata. Sim, sim, eu sei. É como contribuir com o tráfico, botar uma AK-47 na mão de uma criança inocente, afundar Hollywood em tempos em que os Estados Unidos já estão tão por baixo, tadinhos. Mas, compreenda. Eu estava numa cidade sem cinema, trabalhando duro de sol a sol, fazia mais de 40 graus lá fora do quarto de hotel com ventilador de teto que espalhava mais poeira do que vento, e o cara anunciou 3 filmes por 10 real. Eu resisti, mas estaqueei na esquina. Voltei. Recuei. Comprei e enfiei na bolsa sem olhar pra trás. Sim, sim, me corrompi miseravelmente.

Mas fui punida. Acreditem. Castigada mesmo. Um filme pirata é um mergulho no processo anticivilizatório para o qual caminha a humanidade a passos largos de boçalidade. Comecei achando fascinante. Ao ler o nome do empreendimento cinematográfico em letras garrafais na tela — “Maracutaia Filmes S.A.” — fiquei com cara de conteúdo, tipo estudante de Ciências Sociais. Não é sensacional? A cara de pau, o senso de humor, o deboche. Nenhum disfarce, nenhum verniz, nem mesmo uma tentativa. Só aquilo que é: “Maracutaia Filmes”. E o S.A. para dar o toque de gênio. Depois dizem que brasileiro não é empreendedor.

Então, o filme começou. Mas não pude assisti-lo. Porque havia outro — aquele que se desenrola na plateia. Sim, porque o Pirata S.A. foi gravado da primeira fila do cinema, em plena sessão. Que já começou com um celular tocando. “Desliga o celular!”, alguém grita. E o fulano não desliga. De vez em quando a tela inteira fica preta, numa sombra que a cobre progressivamente. Efeito interessante, comentei com minhas orelhas. Só depois entendi que era alguém passando na frente da câmera para ir ao banheiro. E era só o primeiro.

A mãe judia foi morta pelo nazista em frente ao filho ainda criança. No filme oficial. No meu filme, a plateia riu. Assim mesmo. Não ouvi o tiro, só as gargalhadas. Eles achavam hilariante um nazista matar uma mulher esquálida diante do filho. E assim seguiram até o fim em cascos de rebanho. Toda vez que aparecia alguém deformado, eles riam. Quando alguém chorava, eles riam. Se alguém sangrava, eles riam. Finalmente, quando alguém se beijava ou havia alguma insinuação sexual, eles gritavam e batiam os pés. Ainda bem que Barba Negra não viveu para testemunhar essa barbárie. Ele não suportaria ser pirata num mundo assim.

Quem são eles?, pensei. A resposta veio célere e aterrorizante: somos nós. Não, eu não. Mas nós. Me lembrei de um domingo, meses atrás, em que fiquei zapeando a TV aberta no final da tarde. E fui me deprimindo, me deprimindo, até virar uma pocinha no chão da sala, mais amarga que um chá de losna. Percebi ali que era tudo em vão. Não havia esperança. Era me iludir ou morrer. Então fiz minha opção pela vida. E me iludi.

E vivia razoavelmente contente até aquele maldito camelô me atentar com aquela droga do Matrix. Sim, um filme pirata é como a pílula vermelha que Morpheus oferece a Neo. Você quer enxergar ou seguir vivendo na ilusão? Mas o camelô não me deu escolha, ele me enganou. Não, não é verdade. Não posso me absolver. Eu sabia o que estava fazendo. É pior que uma Ak-47 nas mãos de uma criança, é mais devastador do que uma pedra de crack. A realidade é sempre muito mais violenta. Eu não sabia que assistiria ao filme mais pesado da minha vida. Não o da tela, mas o da plateia assistindo ao filme da tela.

Quando o filme acabou, e a plateia urrava diante dos créditos que deslizavam sobre corpos humanos despedaçados pelo Holocausto, eu descobri o segredo de Lars Von Trier. Ele tinha assistido ao mesmo filme que eu. E então o filmou. E é o que vem fazendo desde então.

“Pega no Jobim!” — e outras histórias de falo numa mesa de meninas

Ilustração: Carolina Vigna-Marú

Ilustração: Carolina Vigna-Marú

Ana Maria não sabe se acontece só com os homens que ela conhece. Mas, dado o fato de que está com 38 anos e já teve mais namorados do que sua mãe gostaria, dois maridos e dúzias de amigos, acredita que o fenômeno é um pouco geral. Refere-se à fixação no pinto. Você pensa que os homens só falam de mulher?, ela discursa numa mesa de bar com as amigas. Errado. Eles só falam de pinto. Seja ele um pedreiro, que ganhe a vida com as mãos, ou um intelectual daqueles que pontifica até sobre a marca da comida do seu cachorro, a preocupação de fato é com o falo. E continua, cada vez mais inflamada: por amor, por solidariedade, porque você sabe que não faz tanta diferença assim, seja lá o que se apresente diante dos seus olhos, uma mulher de verdade faz Óóóóóóóóóóóóóó da primeira à última transa. E deixa seu homem feliz e agradecido e disposto a amá-la melhor.

Nenhum homem sobrevive ao próprio pinto ser chamado de góli-góli ou bilu-bilu, ela ainda segue, agora já um pouco vermelha. Eles gostam de nomes como King Kong ou Godzilla. Então, finalmente as amigas entendem o porquê desse súbito discurso antropológico. Ana Maria desabafa. Ela está com um problema sério desde a semana passada. Ana Maria e o namorado assistiram ao Roda Viva com o Nelson Jobim e, contra todas as probabilidades, o programa afetou a vida sexual dos dois.

Impressionado com o tamanho do ego do ministro (que depois virou ex), o namorado da Ana Maria fez uma estranha relação e, naquela noite, pediu a ela que chamasse seu pinto de “Jobim”. Ana Maria não conseguiu — claro. “Pega no Jobim”, ele dizia. Ela bem que tentou, mas quando já estava a um milímetro, recuava. Resultado: há uma semana Ana Maria sofre de enxaqueca.

O tema empolgou a plateia. Em solidariedade à Ana Maria, Marlene resolveu contar a história de seu amigo Paulão. Ah, sim, elas conheciam Paulão muito bem. Paulão é aquele tipo de homem que habita o imaginário de todas as mulheres, independentemente de cor, origem geográfica ou classe social. Paulão é aquele tipo de homem que iguala o sexo feminino num suspiro uníssono. Ele é negro, grande e largo. Um metro e 97 centímetros de altura, um metro de ombros na largura, menos gordura no corpo do que um leite desnatado. Quando Paulão sorri, dá vontade de saber tocar piano. Para arrematar o que já era perfeito, por herança de um avô italiano safado e desaparecido, Paulão tem uns olhos verdes de gato.

E, o melhor de tudo, ele existe. Vocês sabem por que eu não vejo mais o Paulão?, diz Marlene, numa pergunta retórica. Vou contar. Lembram que Paulão era triste. Ele disfarçava, mas era triste. E nunca namorava ninguém. Sim, sim!, todas gritam. Paulão driblava as mulheres mais interessantes como se estivesse numa quadra de basquete. E, quando estava numa quadra de basquete, ele tinha sempre uma desculpa para não trocar de roupa no vestiário. Fato que, por si só, eliminava a hipótese de ele ser um gay escondido entre as camisas brancas impecáveis do seu armário.

Por que ele não namorava ninguém? Por quê? Por quê?, todas perguntavam ao mesmo tempo, e várias cabeças masculinas de outras mesas se viraram para prestar atenção. Então, eu só descobri a razão noites atrás. Lembram daquela madrugada que foi a noite mais fria do ano em São Paulo? Pois é. Eu e o Paulão tomávamos um vinho no tapete da minha sala, depois de termos assistido pela sexta vez ao Alien IV, aquele em que a Sigourney Weaver vira um clone. Ninguém lembrava, mas ela continuou mesmo assim. Pois ele me disse ali, talvez impressionado pelo monstro: “Eu tenho pinto pequeno”. Não!!!!! Sim, sim, eu também tentei disfarçar meu espanto, mas não consegui. “Viu só?”, ele me disse. “Isso que você nem viu. E nem está interessada em ver. E já fez essa cara de decepção.”

Sim, Paulão tinha seu pequeno falo entalado na garganta. Nestas horas, quando a ocasião é grave, vocês sabem que minha mente se desanuvia e eu me torno um modelo de racionalidade. Imediatamente comecei a seguir um método lógico. Deixa eu entender melhor, Paulão. Você sofre e evita se envolver com uma mulher porque acredita que seu pinto é pequeno. “Não acredito, ele é pequeno. Se eu fosse um homem de estatura normal, até que lidaria melhor com isso. Mas as mulheres olham para mim e esperam o Long Dong Silver, entende? Imagina, eu sou o clichê da potência sexual masculina do Ocidente. Negro e grande. (E lindo!, todas gritaram.) E aí, um pintinho de nada.”

Sim, Paulão era vítima do mito da raça. Ao desabafar, lágrimas cascateavam de seus olhos felinos. Tive de me concentrar muito para não fazer óin-óin na sua grande e bela cabeça de ébano. Não, pelo amor de deus, óin-óin não!, grita Carol. Se acalma, mulher, eu me segurei. Mas para de me interromper. E agora já dava para ouvir as moscas no bar. Mas, Paulão, vamos ser objetivos e trabalhar com fatos. Qual é o tamanho do seu pinto? “Quinze centímetros.” Mole? “Não! Duro. Viu, só? É disso que eu estou falando.” E desandou num tsunami.

Ah, meninas, eu respirei aliviada. Era uma bobagem. E eu sabia exatamente o que dizer.

Paulão, você está deixando a sociedade de consumo iludir você com sua propaganda enganosa. Eu posso garantir que seu pinto está acima da média do pênis… dos gaúchos, por exemplo. Não, não, não me olhe assim. Não estou falando de experiência prática, tenho comprovação científica. Eu li uma matéria sobre isso na Zero Hora quando passei um tempo casada com aquele gaúcho lá em Santa Maria. Um urologista fez essa pesquisa, cientificamente, acho até que tinha verba do CNPq. E, não posso lembrar os números exatos, mas era menos de 15 centímetros com toda certeza. Acho que em torno de 14, no máximo. Talvez 13 ou até 12. Duro.

“Você está dizendo isso só para me agradar”, fungou Paulão, ainda piscando lágrimas, mas já com um brilho no olhar.

Eu juro. Eu posso pedir para uma amiga localizar a matéria nos arquivos se você quiser. E você sabe muito bem como são os gaúchos. O mais belo pôr-do-sol do mundo, o povo mais politizado ao sul do Equador, o estado mais endividado da federação, os homens mais machos do Brasil… e o bigulino bem médio. O cara mediu. Está lá. Publicado.

“Não!”.

Nesta hora, contou Marlene, eu até me empolguei e me arrisquei na antropologia. Para que você acha que servem aquelas bombachas? Para criar o bicho solto? Nada disso. É para disfarçar a medianidade. Um pinto honesto, funcional. Esforçado. Nem mais nem menos que o de um baiano ou de um paraguaio, talvez menor que o de um argentino. Um pinto como outro qualquer, milhares de combinações genéticas depois, feito para procriar ou até brincar, mas não para impressionar.

Paulão se tornava um novo homem diante de mim. Autoconfiante. Pintudo. Até deu uma ajeitadinha no saco sobre a calça.

Paulão! Você está coçando o saco! É melhor ter pinto pequeno do que coçar o saco!

“Desculpa, desculpa, Marlene. Me empolguei.”

Pronto. Uma estatística idiota e o drama de uma vida inteira resolvido.

Quem entende os homens?, meteu-se Juliana. Calma, calma, o melhor vem agora, anunciou Marlene. Paulão saiu lá de casa andando diferente. Pernas afastadas. Queixo de espartano. E, desde então, não me liga. Está ocupado demais com seu novo olhar sobre o mesmo pinto.

Abandonada por um dos meus melhores amigos, fui possuída pelo mal. Depois de ouvir pela quinta vez sua voz de locutor de rádio na secretária eletrônica do celular, deixei um recado. Bem fofa a minha voz. E agora até o garçom está paralisado com a bandeja carregada de canecos de chope nas mãos, esperando o desfecho:

“Paulão, sabe aquela matéria que eu li lá na Zero Hora? Pois é. Pedi para minha amiga conferir no arquivo. Na verdade, a média do pinto dos gaúchos é de 20 centímetros. Mas não te preocupa, você é um cara muito bonzinho e as mulheres não se importam com o tamanho do pênis. O que importa, você sabe, é a inteligência.”

Não! Você não fez isso!, disseram todas elas e também o resto do bar.

Fiz. Faz cinco dias, já. E Paulão desapareceu. Será que se matou?

No resto da noite, o chope chegou quente na mesa das meninas.

O alho-elefante

Ilustração: Carolina Vigna-Marú

Ilustração: Carolina Vigna-Marú

Ele despontou em casa eufórico vindo do supermercado. Sim, ele ama supermercados e ama mais ainda descobrir novidades no supermercado. Acho que o supermercado, para um homem, cumpre o papel das guerras no passado. Naquele campo de batalha, entre tantas marcas para escolher nas prateleiras, tantas pesquisas de preço a fazer, tantas pessoas conduzindo perigosamente seus carrinhos pelos corredores estreitos, um homem se sente um guerreiro. Mas divago. O que interessa é que ele interrompe a minha leitura no sofá azul para sacudir uma coisa quase do tamanho de uma maçã, só que branca, bem no meu nariz. O que é isso?, eu pergunto, aterrorizada.  “Um alho-elefante”, ele responde, orgulhoso.

Dou uma cafungada cautelosa. Adoro alho. Sou uma comedora compulsiva de alho. Mas detesto cortá-lo. Foi ele também quem aprendeu uma técnica infalível para tirar a casca do alho num programa de culinária na TV. É um marido sempre aberto para a eterna novidade do mundo: o meu.

O alho-elefante, ou seja lá o que for aquela coisa, é enorme. Por exemplo. Eu costumo usar cinco dentes de alho para temperar o feijão. Já com o alho-elefante, basta um dentão. Mas eu sou desconfiada. É chinês, eu digo. De uns tempos para cá fui acometida pela paranoia do meidinchina. Tudo é chinês, de fato. Mas eu não sei como lidar com isso. Para mim, este é o dilema da pós-modernidade.

Desenvolvi uma fobia desde que vi chineses amontoados num contêiner no meio do deserto do Saara quando por lá passava com um cara que puxava um riquixá (outra história, outra história…). Eles eram trabalhadores na construção de estradas na Mauritânia e em outros países da África, mas pareciam escravos. Desde então, não sei como lidar com o fato de que tudo é da China. Neste último inverno comprei cobertores e edredons baratíssimos — da China. Mas toda vez que me cubro com eles, minha alegria de estar enrolada no frio fazendo vzzzzzzzzzz é contaminada pela lembrança da origem. Fiquei paranoica: acho que meus cobertores têm chumbo, mercúrio ou, no mínimo, trabalho escravo. Tudo o que vem da China — ou seja, tudo — eu acho que está contaminado por chumbo, mercúrio e trabalho escravo.

Afasta de mim esse alho-elefante, eu digo, com um safanão. Eu não vou botar no meu feijão essa coisa transgênica feita na China. Ele suspira longamente. Tem uma paciência… “Mas não tem nada aqui dizendo que é da China.” Pior. Estão escondendo. Eles sabem que a gente não quer nada chinês. Lembra das lojinhas lá de Roma? Em Roma era assim. Na frente das lojinhas de bugigangas turísticas, havia um carcamano gritando (claro): “Não é chinês! Não é chinês!”. Só por isso eu comprei um terço de João Paulo II. Eu!

Por fim, ele me convence a pelo menos experimentar. Pego o troço como se fosse um fígado de gente. A coisa não tem cheiro. Onde já se viu um alho sem cheiro? Ele me desfere um olhar pidão lá da ponta da mesa. Por amor, só por amor, boto a coisa no meu feijão. Profano o meu feijão! Um dentão inteiro. E, como eu previa, estraga o meu feijão. Não por algum gosto suspeito, mas porque não tem gosto algum. “Chinês 171!!!”, eu grito pela casa. E ele correndo atrás de mim.

No meio da cozinha, chegamos ao embate final. Eu bufo. Ele espuma. Entre nós o alho-elefante. “Não é que não tem gosto, é só que é mais suave”, diz ele, sem muita convicção. Ora, quem quer um alho suave? Piiiiiiiiiii, faço a buzina do Sílvio Santos. Ou era do Chacrinha?

Você está com bafo? Ele sopra na minha cara. Nenhum bafinho. Nem mesmo uma brisa nefasta. Você acha que dá para respeitar um alho que não deixa bafo?, espeto, precisa como um arqueiro galês.

Meu argumento é irrefutável. E a vitória, acachapante. O alho-elefante é despachado triunfalmente para o lixo tóxico.

E perigoso.

Meditando em São Paulo

Ilustração: Carolina Vigna-Marú

Ilustração: Carolina Vigna-Marú

“Você precisa silenciar a mente”, ela me diz. Minha amiga não anda, levita. Filha de iogananda, fica de cabeça para baixo desde os 5 anos e às vezes parece nem saber a diferença. Eu sei, digo. Tem muito barulho dentro de mim. Ela me olha com os olhos esgazeados de quem contempla seu lago interior. “Você nem precisa ficar na posição clássica da meditação. Basta se deitar e se concentrar na sua respiração. Não briga com os pensamentos, mas também não dialoga com eles. Deixa eles irem embora e volta para a respiração.” Mas eles não vão embora!, eu quase choro.

Ela me toca com mãos de reiqui. “Vão, sim. Se você tentar todo dia, você acaba treinando a sua mente.” Não, não, você não sabe o que anda pela minha mente. Aliás, é melhor você nem saber. Estes meus pensamentos só vão embora levando a minha cabeça junto. Se eu me descuidar, viro uma Maria Antonieta! Ela ri. Acha que eu sou engraçada.

“O prana que está no ar que você respira vai curar a sua mente. Confia, e apenas se concentre.” Com todo o respeito, você sabe que eu te adoro, mas olha em volta, a gente mora em São Paulo. Não tem prana no ar, só ozônio e monóxido de carbono. Se eu respirar muito fundo vou ter uma crise de bronquite. Ela permanece superiormente impassível. “Vai para casa agora, andando bem devagar, com a mente focada na sua respiração. Você vai ver que já vai chegar ao final da Teodoro Sampaio mais leve.”

Eu fui. Me alonguei toda e andei bem devagar. Caminhei até a esquina da Lisboa com a Teodoro. Ar que entra, ar que sai. Vou me atirar na faixa de segurança para ver se os motoristas estão cumprindo a lei. Não. Mudei. Sou uma nova mulher. Ar que entra, ar que sai. Sou uma buda esperando o farol fechar enquanto todo mundo se atira e chega do outro lado bem antes de mim. Pobres coitados. Para que tanta pressa? Sou superior agora. Vivo o presente. Ar que entra, ar que sai.

Quando estou subindo a Teodoro já me sinto a um passo do nirvana. Um passo harmonioso atrás de outro passo harmonioso. O pescoço tão alongado que poderiam me confundir com a Audrey Hepburn. Deixei para trás as pequenezas do mundo. Sou um ser conectado ao universo. O prana entra pelas minhas narinas e cobre o meu pulmão de fumante com uma poeira brilhante. O monstro do lago ness que dorme no meu oceano interior agora é um peixinho de aquário.

Nada mais me afeta. Ar que entra, ar que sai. Sorrio o meu sorriso do quem atingiu a luz para a velhinha que espera o farol fechar ao meu lado na esquina da Teodoro com a João Moura. Sim, o deus que mora em mim saúda o deus que mora em você.

Hum, o que está acontecendo? Não, não é nada de dentro. É de fora mesmo. Quem ousa interromper o encontro com meu eu interior? Tiro meus olhos que afagavam as pétalas do meu coração, e ele está bem ali atrás de mim. Com um riso desafiador escorrendo da boca e a mão espalmada na minha bunda. Eu olho pro riso, olho pra mão. E me esqueço que não pertenço mais a este mundo. Meu joelho levanta em posição de ioga, mas em vez de saudar o sol, eu acerto os testículos do homem. Ele agora não ri mais. Mas eu sim.

Subo o quarteirão que falta numa velocidade feliz. E só quando chego ao portão percebo que minha mente esvaziou. Não é que funciona?

O casal sem palavras

Ilustração: Carolina Vigna-Marú

Ilustração: Carolina Vigna-Marú

Eles se sentaram à mesa do café da pousada sem dar bom-dia para ninguém. Não se falavam. Apurei os ouvidos, porque tenho orelhas intrometidas. Olhos, também. Não, eles nem mesmo pediam para passar a manteiga. Ela comeu uma fatia de pão sete grãos com queijo meia-cura, dois bolinhos de chuva e um pedaço de bolo de milho. Depois, tomou uma xícara de chocolate quente com duas colheres de açúcar. O homem fez um sanduíche de dois andares e colocou na chapa para o queijo derreter. Depois, ele ainda pegaria uma fatia de melão e outra de mamão e tomaria dois copos enormes de suco de melancia. Não tinham nada a dizer um ao outro. E precisavam encher a boca vazia de palavras.

Casais que não falam entre si durante a refeição me soterram em camadas de melancolia. Quero cortar o silêncio deles com a faca do pão, mas não posso. São corpos retesados como cordas de um violino de quem ninguém mais tira acordes. E o ritual de comer juntos parece demais para eles que não podem nem querem mais fingir, mas não têm forças para mudar.

Era assim aquele casal diante de mim. Eles comiam e comiam e comiam, mas não tinham nada a compartilhar que não fosse gordura saturada. E quando não aguentaram mais comer, levantaram-se com pés cortados por varizes de chumbo, ele de bermuda e meias, ela de calça de moletom e tênis. Escaparam pela porta em passos a esmo, esmagados pela obrigação de serem felizes no clichê de paraíso que era aquela pousada.

Eu enveredei por uma trilha no meio do mato em busca de uma família de socós que tinha vislumbrado e de repente, juro que não foi de propósito, estava nos fundos da cabana deles. Pela varanda envidraçada eu os vi em território mudo. E fiquei ali, incapaz de resistir, porque agora eles estavam nus, e ela o algemava na cama king size. E se esfregava toda no corpo imobilizado dele. Será que não vai dar uma congestão, assim, logo depois do café da manhã?, foi meu pensamento prosaico.

Agora ela enfiava um vibrador verde no ânus dele enquanto o mordia com uma vagina cheia de dentes. E eu podia ouvir os gemidos e também os gritos. Sim, eles falavam muito um com o outro. A família inteira de socós desfilou diante de mim, e eu os afugentei com um safanão, ocupada com o discurso amoroso que se dizia diante de mim. Descobri que eles sabiam que eu estava olhando e ouvindo, e gostavam.

Virei as costas quando a mulher enfiou um peito na boca do homem até sufocá-lo, possuída agora por um pudor que não tenho. E por algum tempo fiquei contemplando as vacas que ruminavam logo adiante. Quando me virei, já não havia nada nem ninguém na cabana. O casal apenas descia as escadas vindos do café da manhã, em sua desistência sem palavras, atrasando os passos porque sabiam ir para onde não queriam. E eu já não sabia se tinha visto ou desejado ver.

Corri para a minha própria cabana, atropelando a família de socós na minha fuga. Enfiei tudo dentro da mala de qualquer jeito e voltei para São Paulo dois dias antes do programado.

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