Não fale com as plantas! (ela gostaria de ter escrito, em sua lápide)

Ilustração: Carolina Vigna-Marú

Ilustração: Carolina Vigna-Marú

Tudo ia muito bem, tudo ia muito bom. Eu acordava pela manhã, espichava meus braços sedosos ao sol em movimentos lentos. Devotava meus dias a essa carícia repetitiva e sem pressa. E, menina de apartamento, sem saber de florestas, eu não me incomodava em vez por outra bater o rosto na janela. A água chegava em dias certos, duas vezes por semana, suficiente porque eu nunca fui desperdicenta. Limitava-me a sugar o suco da terra com deleite e me distraía com uma ou outra abelha se estatelando no vidro sem poder entrar na minha concha de donzela. Ignorante dos prazeres do sexo, eu apenas me divertia com a ansiedade rústica de meus pretendentes. Uma vez por ano, ou até duas, dependendo do meu humor, eu fazia uma flor rosada que enlouquecia a vizinhança por algumas semanas. E, depois, voltava à nudez habitual em meu reino pequeno e circular, mas todo meu.

Assim foram passando os dias, ao que parecia para sempre, quando dei um salto. Em pensamento, porque meus movimentos são tão lentos que alguns acreditam que nem me movo. Estava eu fazendo uma fotossíntese relaxante quando ouvi um som que congelou minha seiva. “Queriiiiiiiiiida, como está você neste dia ensolarado?”

Olhei para um lado, olhei para o outro. Meus vizinhos se faziam de mortos. Uma violeta, que parecia uma viúva de velório, e uma comigo-ninguém-pode com complexo de capitão Nascimento. De novo olhei para um lado, olhei para o outro. Era comigo.

E a voz de serra elétrica continuava. Foquei meus olhos estrábicos num ângulo totalmente novo, já que eu sempre olhava para fora, jamais para dentro. E lá estava um ser estranhíssimo, com um chumaço de um vermelho berrante no topo, parecendo uma flor de cardo, e dois galhos compridos que se mexiam sem parar e terminavam em pontas de um cor-de-rosa que eu nunca havia visto nas redondezas. Mas o mais assustador era um buraco cheio de espinhos brancos pelo qual saía uma voz que agora me dizia: “Óin óin óin como a minha queridinha está linda toda florida”.

Oi?

E foi assim, senhoras e senhores, que minha vida começou a murchar. A tudo a gente se acostuma quando não dispõe de muita mobilidade. Mas vocês não queiram saber o que é uma voz falando e falando e falando sem que você possa empreender uma retirada leão da montanha. Ou simplesmente sair sapateando para a esquerda até estar a uns 100 quilômetros de distância. Mentalmente eu imaginava torturas terríveis para calar aquela voz. Desejava enfiar um saco de minhocas frescas naquela boca até que ela se engasgasse e morresse. Mas, impotente, eu nada podia fazer.

“É a nossa dona”, sussurrou a comigo-ninguém-pode uma manhã, em que eu estava particularmente desesperada. Que dona, meu amigo? Pirou? Eu só sou uma flor num vaso. Quem tem dono é cachorro!

O ser aparentemente concordava comigo, já que dizia: “Dá um sorriso pra mamãe, sua fofolete!”. Mas eu não poderia compreender o conceito de mãe. Mesmo assim, descobri depois, era bastante precoce neste aspecto, porque imediatamente eu quis matá-la. Mas, pobre de mim, com que braços? Eu havia sido feita para beber água, fazer a minha fotossíntese, abrir uma flor de tempos em tempos. Tinha vindo ao mundo que nem o poeta, distraída.

Logo, ela não apenas falava comigo, como começou a me contar a sua vida. Lembro bem. Era um dia chuvoso, e eu não gosto muito de dias chuvosos, porque quando você mora dentro de um apartamento, é possível sentir o sol, mas não a chuva. Então, dias chuvosos podem ser tediosos. Aquele não foi, e eu desejei que tivesse sido. A vida é assim, a gente nunca sabe que era feliz até ela piorar. Ops, tô repetindo uma das frases dela. Ahhhhhhhhh!

O fato é que lá estava eu, curtindo uma melancolia básica, quando, não mais que de repente, estremeci:

— Meu amor, eu vou te contar que tipo de pessoa eu sou…

De novo, olho para um lado, olho para o outro, a violeta de defunto até tinha virado de costas. Era comigo. Por que eu, meu deus do céu? Eu por acaso tinha sido um gafanhoto em outra vida pra merecer esse carma? A voz continuava…. estridente.

— Eu sou uma pessoa…

E assim foi, dia após dia. O ser me contava seus almoços na firma, como a vagabunda que trabalhava ao lado dela mostrava os peitos pro chefe pra sair mais cedo, o que o fulano-disse-e-ela-que-não-levava-desaforo-pra-casa-retrucou, e até, não sou capaz de reproduzir aqui, a não vida sexual dela. Nunca mais pude olhar para aquela abelha operária que batia no vidro do mesmo jeito. Então é isso que você quer de mim, sua pervertida?

O fato é que meu mundo caiu, mas eu não conseguia me derrubar da janela por mais esforço que fizesse. Bem que tentei me jogar lá do oitavo andar, me deslocando toda para fora de modo a desequilibrar o vaso, que agora tinha se transformado em prisão. Mas acabei descobrindo que levaria um milhão de anos. Então, tentei o sentido contrário. Passei a fugir do sol, na esperança de não conseguir mais fazer a fotossíntese.

O imprestável do meu organismo, porém, foi treinado ao longo de milhões de anos de evolução para funcionar contra a minha vontade. Bastava eu dormitar um pouco e quando despertava, de susto, lá estava eu sugando a terra e o sol à revelia de mim. Um paradoxo filosófico, você poderia pensar, mas de nada vale a filosofia quando você não tem nenhuma dúvida, nada, apenas a certeza de que a única saída é o suicídio. Mas como?

E assim foi se arrastando o tempo, com a coisa me torturando dia após dia.

— Olha, só, pitoquinha, troquei o esmalte! Esse aqui se chama Paixão Selvagem.

Grata pela informação.

Me enche de bala, seu capitão Nascimento de araque, eu gritava para a comigo-ninguém-pode. Em vão. Xingava a coisa, mas ela não me enxergava. Vá comprar o dicionário do Werneck, sua clichê ambulante!, eu gritava. Mas tudo o que interessava a ela era a minha imobilidade.

Uma tarde a ouvi dizer para uma outra coisa, fora do meu campo de visão.

— Não vê como ela está bonita? Eu comecei a conversar com ela, e ela desabrochou. Essa aqui, se você quer saber, é a minha melhor amiga. Não tem inveja, não trai, não cheira mal, não exige nada a não ser esse carinho que eu dou pra ela. Comece a falar com as suas plantas, você vai ver… é uma terapia.

Não!!!!! Eu gritei de novo, mas ninguém me ouviu. Ninguém nunca me ouviu. Eu estou péssima, dona coisa, mal paro em pé. Sou só caule e olheiras. Perdi todas as folhas e faz meses que não abro uma flor, você não vê? Tudo o que eu espero é que um fungo acabe de vez com minha existência miserável.

Mas a morte pode levar tempo demais se você continua sendo alimentada — e suas raízes o traem. Então, um dia, quando ela abriu a boca para me contar sobre o joanete da vizinha, aconteceu. Alho, ela comeu uma pizza de alho.

Foi meu último pensamento neste mundo.

Gauchês: a única língua sustentável

Ilustração: Carolina Vigna-Marú

Ilustração: Carolina Vigna-Marú

Dedicado à minha amiga Giovana Villanova Maciel, especialista em gauchês que me ensinou a enxergar a beleza da gramática riograndense, numa longa conversa em que nenhuma de nós desperdiçou um único “s”

— Vou escovar os dente!

Digo eu toda noite. Escovo os dente em outros horário do dia, também. Assim como lavo os pé, em vários momento. E mais ainda as mão. Mas é à noite que gosto de anunciar. Não sei por quê. E não passa uma noite sem que o infeliz rebata:

— Um dente só?

Parece um mero diálogo doméstico. Não é. Nestas duas frase mora o paradoxo contemporâneo.

Eu, gaúcha, muito à frente do meu tempo, como todos os gaúcho. O infeliz, carioca-paulista, ainda no século XX. Eu, consciente da exaustão dos recurso do planeta, o infeliz consumindo os recurso do planeta como se houvesse amanhã. Eu economizando esse. O infeliz desperdiçando esse.

Esta é a sina do gaúcho. Ser um visionário — e pagar o preço no olhar invejoso dos que não tiveram a sorte de nascer abaixo do Mampituba. Maior é a desgraça se tu precisar dividir não só o país, mas a casa com um não gaúcho, como é a minha desventura. Eu, anos-luz além, e o pedrobó resmungando: “Esqueceu do plural”. Mimimimimimi.

O mundo acima de nossas praia de Santa Catarina fazendo estardalhaço com a Rio +20, e depois chorando as pitanga que deram com os burro nágua. Nós, gaúcho, nem as hora. Em vez de propor, a gente pratica a única língua sustentável do planeta — quiçá da Via Láctea e além — no dia a dia. Elegantes, sem alarde, sem precisar mostrar os peito na rua.

Como eu sei o quão duro é não ser gaúcho, vou tentar simplificar para até mesmo um paulista ou um carioca entenderem. A pesquisa é de Harvard, desenvolvida, claro, por um gaúcho que botou uns gado e plantou umas soja lá nos campo da Ivy League pra dar uma racionalizada no Primeiro Mundo. Teve uns problema, especialmente quando tentava derrubar um daqueles prédio véio pra fazer uma coisa vistosa, com bastante cimento. Mas não esmoreceu, que o bicho era bagual.

Como até meu guaipeca sabe, um esse não pronunciado é um esse a menos na atmosfera, é um esse a menos a esburacar a camada de ozônio, é um esse a menos a piorar o efeito estufa. Segundo o gaúcho de Harvard, um neto do gaúcho de Bagé, um gaúcho comum economiza cerca de 5 esse por minuto, 300 esse por hora, 7.200 esse por dia, 216 mil esse por mês, 2,6 milhão de esse por ano. Contando apenas a população do estado, seriam bilhões de esse a menos por ano.

Entendeu? Já vi que não. Como acabei de voltar de uma temporada de ilustração no Rio Grande, coisa que todo gaúcho expatriado precisa fazer de três em três mês, no mínimo, pra não embotar, estou magnânima. É o efeito de terminar o dia admirando o pôr-do-sol mais bonito do mundo. Vou explicar as regra melhor enquanto minha magnanimidade não passa. Mas, atenção, percebam a beleza, a harmonia, o equilíbrio contido nessa fórmula simples. É quase uma Mona Lisa. Ou um poema do Jaime Caetano Braun, o que dá no mesmo.

Pra ficar em um exemplo familiar ao leitor, vamo usar a conjugação com a palavra “dente”.

Se for um dente, é como entre os não gaúcho. Tu diz “um dente”. Pronto, todo mundo sabe que é um.

Já se forem dois dente, tu diz exatamente assim: “dois dente”. Teu interlocutor já sabe que se trata de mais de um, menos de três dente.

Agora, se forem mais de dois dente, pra facilitar — e esta, na minha opinião, é a parte mais sofisticada do raciocínio —, tu diz: “os dente tudo”.

Recapitulando.

Um dente = 1.

Os dente = mais de 1, menos de 3.

Os dente tudo = entre 3 e zilhão.

Agora, aqui em casa, acabei de dizer, elegante, proativa e sustentável:

— Vou escovar os dente tudo.

O imundícia, com a prepotência que só a ignorância permite, não alcançou. Tascou:

— Aproveita e vê se encontra em algum lugar da língua os plural tudo.

O azar do vivente era que o efeito do pôr-do-sol já tinha passado. Puxei meu canivete suíço (ando meio fresca depois que me mudei pra Sumpaulo), botei no pescoço do abostado e indaguei uma vez só: “Pode escolher. Quer que eu arranque a guampa, as guampa ou as guampa tudo?”.

Que guampa?, o estropício teve a incautidão de perguntar.

Guardei o canivete. Mais vale um corno manso na mão do que os corno tudo avoando.

Os olhos de Marie

Ilustração: Carolina Vigna-Marú

Marie era um daqueles bebês que já nasceram bonitos. Aqueles que as pessoas dizem: “Nossa, parece que já tem um mês”. Marie não tinha cara de joelho, não tinha cabeça de ovo. Marie tinha cara de Marie. Parecia uma francesinha, porque já nasceu de cabelo Chanel. E por isso a mãe não pôde colocar Maria, simplesmente Maria, porque ela nasceu Marie. Ridículo, nome francês, dizia o pai. As pessoas aqui no Brasil não vão saber pronunciar. Mas a mãe olhou para ela e sabia que aquela ali já nascera com nome próprio. Em Botucatu, mas parisiense. E assim foi registrada Marie da Silva Santos.

Não era um bebê como os outros em mais de um sentido. Para começar, Marie não chorava. Nunca. Em vez disso, abria uns olhos de bolinha de gude e observava o mundo. De uma forma tão adulta, com um olhar tão conhecedor, que começou a perturbar a mãe. Marie mamava olhando fundo nos olhos da mãe. “Olha como ela me olha”, disse a mãe na primeira vez. E nisso também Marie era diferente, porque não teve nenhuma hesitação. Simplesmente pegou o peito e mamou. Olhando.

A mãe se extasiou com aquela filha especial. Mas depois o olhar de Marie começou a incomodá-la. “Essa criança não é normal”, dizia ao marido. O pai, ao contrário, estava muito satisfeito porque não tinha noites em claro, não era incomodado por choros esganiçados e chegava ao trabalho com pele de pêssego. Em casa, a mãe não via a hora de acabar a licença-maternidade, porque não tinha nada a fazer com aquela filha que não chorava, mas ficava olhando-a dia após dia. “Você está pensando que é a Mona Lisa para ficar me seguindo com os olhos pela casa?” E sentia um tremendo alívio quando os olhos de Marie finalmente se fechavam para as oito horas ininterruptas de sono, nas quais ela nem mesmo sujava as fraldas.

A mulher começou a deixar Marie trancada no quarto, tentando ignorar seu olhar. Mas quando finamente abria a porta, Marie apenas a olhava. E a mãe chorava, primeiro de arrependimento, depois de raiva. Tentou deixá-la com fome, para ver se ela esboçava alguma reação de bebê normal, como gritar por três horas seguidas. Marie apenas olhava. “Esta menina não é normal”, repetiu ao pai quando ele chegou do trabalho. “Você tem um bebê perfeito, que não chora nem acorda à noite, e você está achando ruim. Quem não é normal é você”, ele respondeu. “Você não entende. Esta menina me olha o dia inteiro.” Mas ele, que não olhava, também não escutou. “E isso é ruim?”

Era ruim. A mãe não sabia por que, mas era muito ruim. Ela só queria um bebê que chorasse e que permitisse a ela comentar com as amigas que tinha passado noites em claro e precisava com urgência de receitas caseiras para cólicas. Mas Marie mamava por conta própria de três em três horas, com a delicadeza de não morder o bico com as gengivas e nem mesmo se lambuzava. Marie não era deste mundo. E foi com essa ideia que a mãe achou que aquela menina exemplar não era sua filha, mas algum tipo de bebê de Rosemary.

Interrompeu a licença-maternidade, tomou remédio para secar o leite e entregou Marie nas mãos de uma babá, que ficou feliz da vida por arranjar um emprego em que não precisava fazer nada. Marie não reclamou da mamadeira e seguiu sua vida de olhadeira. Quando chegava do trabalho, meio a contragosto, a mãe dava uma espiada na filha e só via aqueles grandes olhos seguindo-a pela casa. Dizia então para a babá botá-la no berço e fechar a porta antes de sair do serviço.

E assim os dias e depois os meses foram passando. E, quando Marie completou nove meses, a mãe ouviu um barulho na porta do quarto da filha ao acordar numa manhã. Quase imperceptível, mas um barulho. Abriu a porta temerosa de que Marie finalmente tivesse se transformado num daqueles demônios alados, com rabo e chifres, além de asas. Deparou-se com Marie perfeitamente em pé, um longo pescoço de bailarina e uma postura de Audrey Hepburn. Teve um ataque de choro porque agora, sobre as próprias pernas, aqueles olhos a perseguiriam pela casa. Começou então a voltar cada vez mais tarde do trabalho, o que levou a um protesto do pai, que pela primeira vez sentia uma mudança na vida familiar.

Então, numa noite, Marie bateu na porta do próprio quarto com suas mãozinhas. Toc toc toc. O coração da mãe gelou, porque era a primeira reação fora de horário de Marie. Sacudiu o pai dizendo que fosse lá ver o que era, mas ele apenas resmungou e continuou dormindo. A mãe levantou com os pelos do braço eriçados de pavor. Ficou parada diante da porta do quarto de Marie. Toc Toc Toc. Acendeu a luz do corredor. E abriu a porta tremendo, bem devagar. Marie estava bem atrás, com os dois olhos ainda mais escancarados, olhando para dentro dos olhos da mãe. Ficaram assim, olhando uma para a outra. Até que Marie abriu a boca e disse:

— Mamãe.

A mãe deu um grito de pavor, que também não acordou o pai. Agarrou Marie com violência, arrastou-a até a geladeira, de onde pegou uma superbonder, e colou os olhos de Marie.

Foi esta a história que o professor de Braille ouviu da menina cega.

O dilema da “batatinha”

Ilustração: Carolina Vigna-Marú

Ilustração: Carolina Vigna-Marú

Da plateia, alguém me faz uma pergunta. Não sei se ela ou ele, porque vem num pedaço de papel não assinado. Quer saber como eu lido com as histórias reais que conto, muitas delas brutais, na minha vida pessoal. Explico que ser repórter é se confrontar dia após dia com a impotência. Contar uma história real é algo grande, enorme até, mas, ao mesmo tempo, sempre aquém. E, como sou uma contadora de histórias, exemplifico com o testemunho recente da fome de uma menina e sua família em uma das regiões mais pobres da já bem pobre Bolívia. Aquela fome que não mata, mas tortura, dia após dia. Aquela fome em que sua vítima nunca teve a sensação, tão comum para a maioria de nós, de estar saciada. Aquela fome que não é nem mais uma fome, mas uma vida.

Aquela fome que eu testemunhei era assim: as pessoas só comiam batatas cozidas na água, às vezes sem sal, dia após dia. E havia os dias piores, que eram os dias sem batata.

A história é densa — e não cabe aqui. O fato é que eu contei esta e outras histórias da vida de repórter e depois fui para a sessão de autógrafos dos meus livros. Lá da mesa, reparei naquela mulher pequena, levemente roliça, com uns olhos que tentavam fazer contatos de terceiro grau com os meus. Percebi que ela deixava as outras pessoas passarem na sua frente. E, quando a fila ficou menor, pude ouvi-la:

— Pode passar. Eu preciso falar com a autora em particular.

Gelei. Eu já estava um pano de chão depois de falar durante horas. Mas leitor é leitor. Se ela precisava ter um particular comigo, deveria ser coisa muito séria. Talvez alguma história escabrosa que ela queria me pedir para investigar. Alguma seita nazista nos fundos do Rio Grande ou uma célula da Al-Qaeda em Carazinho. Ou algo mais íntimo, mas não menos apavorante, como o abuso sexual de meninas no colégio de freiras em que dá aulas. Não sei por que, mas tinha certeza de que ela era professora.

Não conseguia mais me concentrar no texto dos autógrafos — justo eu, que faço questão de caprichar. Mas já estava reduzida a algo como “um abraço da….”, porque estava paralisada pelo olhar angustiado da mulher que ia ficando para trás. Olhando mais de perto, eu já sentia que ela esperava que o particular comigo pudesse salvar a vida dela. E talvez a minha. E se eu não pudesse corresponder a tanta expectativa? Uma expectativa tão oceânica não poderia jamais ser satisfeita, eu já me deprimia, impotente como um espermatozóide manco. E o pior: ela não tinha nenhum livro na mão.

Pensei em escalar a parede de compensado e sair correndo pelos fundos, mas leitor é leitor. Eu não poderia decepcioná-la. Passaria o resto da minha vida com aqueles olhos suspirosos me assombrando à noite. E eu já tenho insônia o suficiente. Mas, pior, muito pior, nunca saberia, afinal, do que se tratava aquele particular. Nem vocês.

Então, finalmente, a fila acabou. E lá estava ela me pegando pelo braço e me levando para um canto. Eu cada vez mais tensa já sentia o suor porejando entre as sobrancelhas. E precisava desesperadamente fazer xixi. Cinco horas tomando água e café e nenhum xixizinho. Ninguém pensa nessas coisas, mas não poder fazer xixi em qualquer canto é uma tortura que nós mulheres vivemos no cotidiano. Pensei no deserto do Saara e resisti. Abri então um sorriso pampeano e tasquei:

— Pode perguntar.

E ela, toda segredosa:

— Eu queria saber por que você ficou tão chocada com a batatinha.

Não entendi a princípio. Claro que eu não entendi.

— Que batatinha?

Vasculhei o cérebro em busca de alguma referência. Mas ela era uma mulher objetiva:

— A batatinha que a menina comia todos os dias. Não é da cultura deles comer batatinha? Não entendo por que você ficou tão chocada. Os nordestinos não comem farinha? Pois ela comia batatinha.

Preciso admitir. Não sou nenhuma santa. Me esmero para ser uma pessoa melhor, mas tenho uma coleção de defeitos. Se o céu existe, porém — e tenho escassas esperanças nesse sentido —, eu começava a somar alguns pontos.
Depois de horas de exposição, eu, que sou praticamente um tatu-bola, precisava muito entrar para os meus interiores e ficar enrolada num cantinho. E a bexiga ali, fazendo ola. Mas senti que, para ela, a “batatinha” era mesmo uma questão. E ela queria com sinceridade compreender meu dilema.

Expliquei então que, sim, batata era ótimo, eu mesma adorava. Batata frita, suíça, na manteiga, sauté, com maionese, purê e, principalmente, ensopada. Infelizmente, porém, batata não é o suficiente para manter uma vida sem fome. (E secretamente desejei a ela uma vida de batatas na água e com dias sem batata. E perdi meus pontos para o céu).

— Hum —, ela fez.

E eu já ia pegando a minha bolsinha…

— É que eu não entendo, sabe. Com tanta fome no Brasil, por que se preocupar com a fome da Bolívia? Ou daquele país da África em que as crianças estão morrendo, como é mesmo o nome… Somália!

Escalei o compensado. Decidi entrar no céu na marra. Nem que fosse para fazer xixi.

Todo cuidado é pouco para não virar PopBobo

Ilustração: Carolina Vigna-Marú

Ilustração: Carolina Vigna-Marú

Escritor virou um tipo de celebrity. Saiu dos seus abismos e quartinhos insalubres, possivelmente mais míticos do que reais, e subiu aos palcos dos eventos literários. O que pode ser muitíssimo bacana — e muitas vezes é. O problema às vezes é quando descobrimos que parte de nossos ídolos não difere das celebridades que frequentam a Ilha de Caras. E quanto maior e mais badalado o happening da literatura, maior é a fofoca no dia seguinte sobre quem comeu quem, a fulana que estava com uma saia-cinto se esfregando com alguém que não era seu marido ou o cara que todo mundo jurava que era MPC (machopracaralho) e apareceu com um menino que não era seu sobrinho. Questões humanas da mais alta relevância, como se pode ver. Do mesmo modo que logo surgem as musas e os darlings e as frases-para-virar-manchete de um e de outro. Ou quem chorou ou não chorou escondido no quarto e por quê. Enfim, o pirão humano de sempre. Só um ingênuo — coisa que às vezes me sucede de ser — imaginaria que quem escreve sobre o humano não seria demasiado e às vezes decepcionantemente humano.

Na condição de foca deste meio literário, logo me deparei com minha insignificância. Estava eu num evento badaladíssimo tempos atrás, quando fui engolfada por um grupo eclético me pedindo autógrafos e fotos. Me descobriram, pensei, já inflando um peito de chéster, termo cunhado pela minha amiga Bia Lopes. Fiz diante da câmera uns sorrisos que renderiam uns dois clientes para a minha dentista. Caprichei na letra. O “m” do Brum ganhou uma quarta perna que mais parecia a Via Láctea.

Ao final de tudo, eu quase que me achando loucamente, fui abatida dos píncaros da glória por petardos de realidade. Felicíssimos com minha performance, uma “fã” mais afoita me deu um beijo melado e me perguntou, com um sorriso completo de dentes: “Muito obrigada, a foto ficou ótima! Como é o seu nome mesmo?”. Respondi. E na minha resposta o Brum, pobre-coitado, estava manco de uma perna e com problemas de menisco no joelho da outra.

No lançamento do meu primeiro romance, o confronto com a realidade da fama se repetiu. Eu a avistei de longe. Veio de lado, assuntando com o corpo. De repente, estava junto à mesa de autógrafos, dividindo a pequena área comigo. Me fez perguntas profundas, numa voz rouca de traça de sebo com rinite alérgica: “Sobre o que é o seu romance?”; “Você sofreu ao escrevê-lo?”; “Qual é o seu sentimento neste momento?”.

Percebi que a entrevista seguia um questionário decorado e que ela vasculhava para além de mim, procurando avidamente com o olhar alguma coisa mais instigante entre as prateleiras da livraria. Parecia não ouvir minhas respostas. Mas sempre voltava para uma próxima pergunta na qual colocava um acento mais denso do que uma cumulus nimbus. Então, finalmente, ela sorriu e disse: “Apenas uma última pergunta”.

Me aprumei toda na cadeira.

— O que estão servindo?

Sim, sim, benditos (não) leitores. Sabendo escutá-los a gente aprende mais sobre nosso lugar na humanidade, que de estrela só tem a tal da poeira de que o Carl Sagan falava. E, de volta ao pó, retornamos também aos nossos interiores que seguem sendo o lugar de onde, com sorte, emergem algumas letras de bom tamanho.

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