Chico Buarque é traição?

Ilustração: Carolina Vigna-Marú

Ilustração: Carolina Vigna-Marú

Há um debate recorrente lá em casa. Eu e meu marido não conseguimos chegar a uma conclusão definitiva sobre o que é ou não traição. Por exemplo. Para mim, é óbvio (u)lulante que Hugh Jackman, Johnny Depp e Russell Crowe não constituem traição. Eu, de minha parte, libero totalmente o João no caso de tropeçar na Monica Bellucci, Scarlett Johansson e Penélope Cruz. Ou mesmo com os peitos da Salma Hayek. O problema é quando chegamos à geografia nacional. Ou seja, ao território não propriamente do possível, mas também não tão impossível assim. Vai que…

Desde o início do casamento ele posa de magnânimo com a seguinte afirmação: “Oquei, Chico Buarque não é traição”. Ora, eu amo o Chico Buarque. Para mim, ele e o Laerte são os dois gênios com quem tenho a honra de compartilhar o mesmo tempo histórico. Na desordem do armário embutido meu paletó enlaça o teu vestido e meu sapato ainda pisa no teu é talvez a frase mais bonita da língua portuguesa. Se eu tivesse escrito só esta já rolaria de alegria até o fim dos meus dias, sem tentar cometer mais nenhuma para não correr o risco de estragar.

Mas a verdade é que o Chico não mexe com os meus instintos mais primitivos. Eu sei que é uma heresia, mas a gente não escolhe essas coisas. Sente ou não sente. E eu não sinto pelo Chico Buarque. Acho aqueles olhos de ardósia bonitinhos, mas nunca vi uma ardósia. E o fato é que há três anos tento trocar o Chico Buarque pelo Wagner Moura, mas o João se mantém irredutível. Chico não é traição. Wagner Moura é traição. E eu sonhando com o Wagner me dizendo pede pra sair.

Em represália, tirei a Alessandra Negrini da lista dele. Mantive apenas a Hebe Camargo. Dercy Gonçalves também pode. Ah… morreu? Sabia não, que pena… Pois então. Hebe Camargo não é traição. Alessandra Negrini é.

Um tormento, um tormento. Vá que…. eu encontre o Wagner Moura bêbado por aí e vou ter de dizer: “Nascimento, o sistema é foda mermão”. Putz, depois dessa só saindo correndo. “Perdeu, playboy.” Jamais me perdoaria.

O fato é que estávamos nessa discussão das mais relevantes na noite de ontem, quando eu acabei adormecendo no sofá azul. E não é que sonhei com o Chico Buarque? Eu estava em Paris fazendo não lembro o que, mas ninguém precisa de motivo para estar em Paris. Era algum evento, com certeza. Porque estávamos eu e Chico, Chico e eu, saracoteando por lá. E não é que o Chico se engraça comigo?

E eu no meu sonho, toda soltinha, pensando. Hum, Chico Buarque não é traição. Ainda bem que eu não o troquei pelo Wagner Moura. E em seguida: Oui, Chicô. Chicô me disse coisas lindas na orelha, mais lindas ainda que meu paletó enlaça o teu vestido, mas não consigo lembrar. Lembro bem que ele estava nesse ponto, dizendo o quanto eu era maravilhosa enquanto fazia rolinhos no meu pescoço, quando algo entra no meu sonho.

Uma voz. Não é possível! Sim, é possível. Uma voz de marido. Eu só dizia não, não, volta já para o Brasil que Chico Buarque não é traição. E o João me convencendo a dormir na cama. Me agarrei ao sonho como se disso dependesse o futuro do periquito da estepe e caminhei de olhos fechados até o quarto. Tentei buscar o sonho de volta. Uma luta e vai e quase acordo e me recuso e vai. E durmo de novo. E hum… rolinhos no meu pescoço, sim, eu sei, sou maravilhosa e não, não sei como você nunca me viu antes por aqui….

Viro ronronando pra dar um beijo… Rom-rom, fist-fist. E é o Zeca Pagodinho!

Acordo berrando, que nem personagem de filme. Já reparou como personagem de filme acorda sentado, berrando e suando? No dia seguinte tirei até a Hebe da lista dele. E, por via das dúvidas, a Dercy também. Vai que…

O complô de Laura Palmer

Ilustração: Carolina Vigna-Marú

Ilustração: Carolina Vigna-Marú

É uma locadora de bairro. À primeira vista ninguém poderia imaginar o que fazem ali dentro. Do que aqueles vendedores pálidos de tanto assistir a filmes com a cortina fechada durante o dia são capazes de fazer. É como as cidades pequenas. Saudáveis por fora, bichadas por dentro. Queria pedir ajuda para montar um pacote de fim de ano. Eu sonhava com isso depois da correria do Natal. Me anestesiar vendo filmes e séries no sofá azul. E dormir no meio de algum deles, antes da meia-noite. Com sorte, aqueles fogos insuportáveis da virada de ano entrariam no meu sonho como um ataque terrorista fictício e eu só viraria de lado.

Pedi ajuda ao loiro com cabelo rastafári e cara de quem caiu num caldeirão de maconha ao nascer. Quase como o Obelix. O cara era bom. Falava dos filmes com precisão. Tínhamos gostos semelhantes. E ele não estranhava minha combinação de filme norueguês sobre o nada com o ataque dos vermes malditos. Meu pacote de sobrevivência anti-réveillon foi tão volumoso que ele até me deixou entregar um dia depois.

E lá estava eu, com um estranho sorriso nos lábios, só tirando filmes da sacola e botando no aparelho de DVD. Tirando filmes do aparelho de DVD e devolvendo à sacola. Barras de chocolate tamanho Super GG para acompanhar. E então, a surpresa. É sempre assim com o que realmente muda a vida da gente. Você está tranquilamente no seu sofá azul, sem fazer mal para ninguém, e de repente é atingida na cabeça por uma bala perdida.

No meu caso, não foi uma bala. Não ao pé da letra, pelo menos.

O que era aquilo? Eu não escolhi aquele título. O que ele estava fazendo ali?

Primeiro, fiquei preocupada. Tenho essa mania de ser boa samaritana. Alguém podia ter escolhido aquele filme para o ano-novo e ele tinha caído por engano na minha sacola. Imaginei a frustração, depois os pulsos cortados. Não, não. Improvável. Em geral as pessoas mantêm os filmes na mão até passar pelo caixa. Hummmmm. Alguém deve ter devolvido e, em vez de o funcionário guardá-lo na prateleira, deixou por ali no balcão. Na hora de colocar meus filmes na sacola, o dito entrou junto por engano. Sim, com certeza foi isso.

Me tranquilizei mais ou menos, com o filme olhando para mim da ponta da mesa. Acho que precisava muito fugir da realidade, porque os filmes acabaram antes do final do ano. Então eu olhei para o filme, ele olhou para mim. Peguei a caixinha, balancei para lá e para cá. Hum, não era um filme. Era o primeiro disco de uma série. Adoro séries e aquela praticamente era a mãe de todas as séries contemporâneas. E eu beijo os pés dos Estados Unidos por causa das séries de TV. Hum, não custa, pensei.

Antes do final dos créditos iniciais eu já estava com os olhos vidrados. Alguém me ligou para dar feliz ano-novo, mas nem mesmo tenho certeza se era este mesmo o recado na secretária eletrônica. Esqueci de botar sal na lentilha e nem liguei. Meu Deus, quem matou Laura Palmer????? Sim, sim, eu sei. Eu sou a única pessoa que tinha mais de dez anos no início dos 90 e não viu Twin Peaks. Não sei por que, não tenho nenhuma explicação aceitável. Mas não vi. Desculpa, David Lynch.

Quando acabou o piloto, uma hora depois, eu já não era eu mesma. Estava dominada por uma força maior. Do além, possivelmente. Não posso ser responsabilizada por ter pedido um McDonald’s delivery com um número um e um número três com coca normal e suco de frutas vermelhas. E um sunday de marshmallow de sobremesa. Simplesmente aconteceu. Quando terminou o primeiro episódio eu tinha uma batata frita grudada na franja. Comi.

Engordurei o controle remoto ao passar para o próximo episódio. Cadê? Cadêêêê????? Não é possível!!! Só tinha dois? Não, eu não vou aguentar. Que horas são? Onze e trinta e quatro da noite. Não, não, nenhuma locadora aberta. Comecei a ligar para os amigos. “Feliz ano-novo você tem o Twin Peaks?”. “Sim, sim, também te considero pra caramba, mas você sabe quem matou a Laura Palmer?”. Bando de inúteis! Apenas unzinho sabia do que eu falava: “Ah, aquela série que tem um anão no final?”. Que anão, criatura, foi o anão que matou a Laura Palmer?

Eu estava possuída. Não conseguia dormir. Os fogos chegaram. O ano virou. E eu só pensava em pegar um táxi e dizer: “Me leva para uma boca de filmes”. Em meio ao delírio, compreendi. Era assim que eles viciavam as pessoas. Era o velho truque da maconha no copo de fanta-uva. Você está ali, com seu vestido rodado, e de repente toma aquela droga toda de canudinho e vira uma devassa. Aquele diabólico rastafári albino.

Foi assim que adentrei em 2011. Sentada no sofá azul da sala, diante da tela escura da TV, com um único pensamento na mente: “Quem matou Laura Palmer?”. E o anão, quem era o anão? Quem era Laura Palmer? Quem sou eu? Será que eu matei Laura Palmer? Estava neste ponto quando o maconheiro rastafári me encontrou sentada diante da porta da locadora pronunciando palavras desconexas, de calça de moletom e cabelo oleoso.

Eu já estava perdida. No ponto em que estava só sendo internada numa daquelas clínicas religiosas na zona rural. Talvez plantando nabos eu pudesse me livrar do vício. Não, da obsessão. Em vez disso, agradeci muito ao rastafári por ter colocado sorrateiramente a droga na minha sacola. E retirei todas as temporadas de uma só vez.

Não assisti à posse da Dilma. Nem acompanhei Lula descendo a rampa. E, o melhor de tudo, não vi o Sarney. Diante de certas realidades, às vezes o melhor mesmo é fugir. Eu estava com Laura Palmer. E agora eu sei quem é o anão.

O pequeno esquimó

Ilustração: Carolina Vigna-Marú

Ilustração: Carolina Vigna-Marú

Dizem que a gente não lembra os primeiros anos de vida. Eu lembro. Acho que nasci com a porta da memória aberta. Por isso lembrava aos três anos de cada briga do meu pai com a minha mãe. Não sei se eles se amavam. Eu não entendia de amor. Quando as discussões começavam eu tentava escapar colando as costas na parede, mas em algum momento eles se lembravam de mim. “Você nem ao menos cuida do seu filho”, dizia meu pai. “E você nem lembra que tem um filho”, respondia a minha mãe. E imediatamente esqueciam que eu estava ali.

Não tive tempo de saber se me amavam. Mas naquele Natal eu achei que sim. Embaixo do pinheiro empoeirado de papel brilhante havia um pacote que eu desembrulhei com um pouco de medo. Foi a primeira vez que o vi. O pequeno esquimó. Foi um tal de Noel que me deu. Pelo que eu entendi, um outro Papai. Eu gostei mais deste pai e senti uma pontada de culpa porque nessa hora o meu me olhava ansioso pela minha reação. Não entendo de amor, mas acho que amei aquele pequeno esquimó. Naquele verão que fazia minha mãe reclamar do suor embaixo do braço de seus vestidos, ele era um frio quente.

Quando as brigas recomeçavam eu agora encostava minhas costas na dele e nós dois deixávamos de ouvir. E à noite, na cama, eu o apertava bem forte e ele me dava a sua mão. Estava sempre com muita roupa, mas dizia que não sofria com o calor. Mas eu sentia que não era verdade porque ele tinha uma cara triste. Achei que ele não ouvia os gritos como eu, mas comecei a perceber que talvez ele continuasse ouvindo mas não me contava porque eram palavras ruins.

Não era uma casa bonita a minha. Era escura. E em alguns dias as paredes escorriam como se a casa tivesse inchado e começasse a explodir de dentro para fora como vi acontecer com uma ameixa que minha mãe esqueceu no fundo de um prato. Eu perguntava ao pequeno esquimó se ele estava chateado comigo por morar naquela casa e ele negava. Comecei a achar que ele mentia para mim, assim como mentia sobre os gritos. Tive medo de que ele me abandonasse e voltasse para o seu mundo de silêncio branco.

Tomei uma decisão. Não era justo que ele se sacrificasse por mim. Já era o suficiente o sacrifício da minha mãe. Às vezes ela chorava dizendo que a vida dela tinha acabado. Falava que por minha causa tinha de viver naquele lugar nojento. Parece que eu fiz algo ruim ao nascer e agora ela tinha uma barriga deformada. Eu não queria o pequeno esquimó deformado. De manhã bem cedo, eu disse a ele. Vamos embora para o seu mundo onde só se ouve o gemido do vento. Eu falava assim já naquele tempo. Depois descobri que fabulava.

O pequeno esquimó arregalou os olhinhos pretos. Mas você não vai ficar com saudades do seu pai e da sua mãe? Eu parei um pouco para pensar. Não, acho que não. Eles ficarão melhor sem mim. Poderiam fazer aquelas coisas todas que queriam e que eu não deixava, embora eu nunca tivesse dito nada.

Eu nem precisava arrumar uma mala. Não havia nada que eu quisesse levar. Deixei uma pequena flor de plástico que tinha vindo num doce em cima da cômoda da minha mãe. E uma figurinha do Shrek para o meu pai. Ele achava o Shrek engraçado. Você tem certeza?, me perguntou o pequeno esquimó. Eu tinha. Então nos demos as mãos e apertamos bem forte.

Eu não imaginava que o mundo do pequeno esquimó fosse o congelador da geladeira da minha casa. Sempre tinha achado que ficava muito mais longe. Levei um susto na primeira vez que minha mãe abriu a porta para tirar de lá uma lasanha congelada. Mas ela não nos viu entre o pacote de carne moída e uma caixa de hambúrguer de frango. Brincamos tanto naquele dia ou pelo menos eu acho que era dia porque ali dentro não sabíamos se tinha sol ou lua. Era sempre igual e eu gostava de saber que nada mudaria.

Acho que dormi. Acordei assustado com a mãozona do meu pai vindo na minha direção. O pequeno esquimó me agarrou com força, mas meu pai era muito maior. Ele não me reconheceu quando me dissolvi no seu copo de uísque.

Retardados

Ilustração: Carolina Vigna-Marú

Ilustração: Carolina Vigna-Marú

Em 14 horas de voo não ouvi a voz do marido.

Já ela, falou a noite inteira no banco atrás de mim. Chamava a todos de “retardado”. Era a palavra preferida dela. Retardado, retardado, retardado. A companhia aérea era retardada, a aeromoça era retardada, o piloto era retardado, nós todos éramos retardados.

— Eu não acredito que aquela mulher retardada vai ficar falando alto a noite inteira com aqueles dois retardados do lado dela. Como é que eu vou dormir? Eu nunca mais viajo nesta companhia de retardados. Nunca mais, ouviu bem?

— (….), respondeu o marido?

— Olha que mala, a retardada nunca mais vai parar de falar.

— (…), respondeu o marido?

— Aquela retardada atrás de mim roubou o meu travesseiro. Se eu não estivesse com as pernas presas ia me botar de joelhos no banco e ia armar o maior barraco.

(….), respondeu o marido?

— É claro que foi a retardada aqui atrás de mim. Ou desde quando travesseiro tem pernas?

(….), respondeu o marido?

— Olha aquele retardado lá reclamando que o sanduíche dele veio com presunto. Quer ser bem tratado ele que pague primeira classe. Classe econômica é para pobre. Poooobreee.

— (….), respondeu o marido?

— Pobre, sim. E pobre é tudo retardado. Agora acham que são classe C, os retardados!

— (….), respondeu o marido?

— É. Ainda bem que eu moro fora. Se tivesse continuado no Brasil, ia ficar assim, retardada.

— (…), respondeu o marido?

— Mas tenho de vir no Natal, ai que saco. Aquela família de retardados. Só venho porque minha mãe está velhinha. Depois que ela morrer, nunca mais boto o pé neste país retardado.

— (…), respondeu o marido?

De repente, a voz dela se suavizou.

— Olha a filhinha da mamãe, você não acha que ela está abatida?

— (…..), respondeu o marido?

— Será que ela está respirando?

— (…..), respondeu o marido?

— Fala com a mamãe, meu amor. Será que demos uma dose muito alta de sonífero?

Meu Deus, eles doparam o bebê. E agora, o que eu faço?

— Me ajuda aqui a arrumar cabecinha dela. Vem, segura por baixo.

— (…..), respondeu o marido?

Mataram o bebê?

— Olha o peito dela, ressonando. Quem é o bebê da mamãe?

Ufa. Acho que não morreu. Não ainda.

— Siiiissssi, dá um sorrisinho para a mamãe. Sissiiiiiiinha.

— (…..), respondeu o marido?

— A retardada aqui de trás vai querer roubar o meu cobertor também. Estou te dizendo, vou botar a Sissinha no teu colo e vou quebrar o pau. Eu sou fina, mas também sei rodar a baiana. No Brasil a gente tem de ser meio casca grossa, senão os retardados tomam conta da gente.

— (….), respondeu o marido?

Dormi.

No café da manhã, ela deu queijo para o bebê.

— Filhinha, come aqui o queijo do sanduíche da mamãe.

— (….), respondeu o marido?

— Olha que bonitinha. Comeu todo o queijo.

— (…), respondeu o marido?

— Pega o guardanapo que ela sujou o focinho.

Meu Deus, o bebê tem focinho!

Ah! Não é um bebê. Meu Deus! Tem um cachorro atrás de mim!

— Não tem problema eu dar meu sanduíche a ela. Este avião é um chiqueiro! Você não entendeu ainda que são todos retardados?

— (….), respondeu o marido?

Aterrissamos, todos os retardados, ela, o marido e a Sissi. Nem bateu na pista.

— Até que o piloto não é tão retardado.

— (…), respondeu o marido?

A família pulou rápido para o corredor. Finalmente eu os via. Ela, (….) e uma cadelinha branca, peluda, com um laço cor-de-rosa no cabelo. Ops, pelo. Praticamente a Rommy Schneider. Mas dava para perceber que Sissinha estava vivendo uma viagem digna da Janis, Janis Joplin. O que tinham dado para ela que não deram para nós? As portas não tinham ainda sido abertas e ela já gritava enquanto ninava a filha no colo.

— Andem, seus retardados, que eu não aguento mais ficar neste avião.

— (…), respondeu o marido?

E para a senhora que se despedia dos companheiros de viagem.

— Se despede lá fora que eu quero sair deste avião. Passaram uma noite juntos e já viraram melhores amigos? Brasileiro é tudo retardado!

— (….), respondeu o marido?

Sissi totalmente indiferente. Devia estar vendo ossos azuis e voadores. Hum, acho que estes cachorros de avião não gostam de ossos. Mentalizei. Colei meus olhos nos da Sissi. Você pode. Você pode. Você pode. Yes, you can, baby.

Sissi podia. Cravou os dentes.

— Fiiiiilha, por que você fez isso com a mamãe? Mas Sissi já corria pelo meio das nossas pernas com um dedo de unha vermelha na boca. E nós, os retardados, aplaudíamos.

É tudo verdade. Menos este final feliz. Quando olhei bem dentro dos olhos da Sissi, percebi que ela também me achava uma retardada.

A tosse

Ilustração:  Carolina Vigna-Marú

Ilustração: Carolina Vigna-Marú

Um dos dogmas do bom jornalismo diz que um repórter nunca deve começar um texto por: “Quando fulano acordou naquela manhã, não imaginava que…” ou “Quando fulana embarcou naquele avião, não poderia saber que…” E aí, fulano ou fulana jamais previram que levariam um tiro, seriam raptados por alienígenas ou morreriam num acidente. Os “big boss” do jornalismo morrem de rir dos “focas” que começam um texto assim. Porque, com certeza, ninguém pode adivinhar o que vai acontecer quando acorda pela manhã. Especialmente se vai chegar até o fim do dia.
Tenho dúvidas, porém.

Acho que não há nada mais real, mais concreto e portanto jornalístico, pelo aterrorizante que é, do que a certeza de que você não sabia. Não podia prever. Não tinha como alterar o rumo da tragédia. Esta é uma consciência que, em retrospectiva, e sempre escrevemos em retrospectiva, é quase paralisante. Por isso, talvez, jovens repórteres insistam neste início. Porque ao começar a cobrir a tragédia da vida, é difícil não se sentir tomado pela impotência.

É nisso que penso agora. Podia pensar no que aconteceu de tantas maneiras, mas é apenas nisso que penso. Eu também quando acordei hoje pela manhã, com a musiquinha chata do despertador me avisando que tinha de levantar, não imaginava que duas horas depois eu também não poderia ter adivinhado. Detesto acordar com despertador e em geral não acordo, mas tinha marcado uma bateria de exames no laboratório, exames de rotina, adiados há tempo demais. Tinha jurado a mim mesma que não terminaria o ano sem fechar esta conta com a minha saúde. E com a médica que não para de me atormentar porque há anos esqueço as requisições em alguma bolsa que depois perco.

Me enfiei num táxi sem reparar se faria sol ou chuva no dia que amanhecia. Levei o jornal, a revista Piauí que tinha acabado de chegar e uma biografia que preciso ler. Faria cinco exames diferentes. Na sala de espera havia apenas outras duas pessoas. As chances eram de 1 em talvez muitos milhões, mas uma delas era conhecida. Por coincidência, eu a tinha encontrado numa festa no final de semana. Nem sei por que, mas tivemos uma conversa mais densa do que costuma caber numa sala de espera de laboratório. Falamos sobre a consciência, lá pelos 40 e poucos anos, de que o tempo é tudo o que temos. E cada vez temos menos. E por isso percebemos que a vida precisa ser plena já e tudo o que era adiável se torna urgente. Estávamos neste ponto quando fui chamada para o primeiro exame.

A cada exame que terminava, eu perguntava, mais por hábito: “Está tudo bem?”. Estava. Eu sabia que estaria porque sempre tive saúde de vira-lata. Mas no quarto exame a médica demorou e eu já estava impaciente. Ela passeava e passeava o aparelho sobre o meu seio esquerdo. Ia e voltava. Está tudo bem?, perguntei. Ela não disse que sim nem que não. Você está vendo lá, no monitor, aquela mancha escura, ela disse. Não, eu não via nada. Para mim, a imagem do monitor podia ser a de um rinoceronte. O que é?, perguntei. É um nódulo. Se você tivesse trazido os exames anteriores, eu poderia afirmar com mais precisão se você deve ficar pouco ou muito preocupada. Como você não trouxe, eu não posso saber se a alteração surgiu de repente.

Neste momento eu comecei a odiá-la. E meu ódio costuma ser forte. Se fosse um dia como deveria ter sido, eu diria a ela o que pensava sobre a sua maneira de contar algo tão delicado para uma mulher. Mas tinha acabado de deixar de ser um dia normal. Eu estava ali, numa camisola ridícula, deitada numa maca, com uma profissional perfeitamente profissional me dizendo que talvez eu tivesse uma doença que talvez me matasse. Para mim, que perdi duas pessoas de câncer só nos últimos dois anos. E várias outras ao longo da vida. Qual é o tamanho?, perguntei. Qual é o tamanho mesmo?, ela perguntou para a assistente. Um vírgula seis centímetros.

E agora?, eu perguntei. Nós vamos analisar, comparar o ultrassom e a mamografia, e daremos o resultado. Mas o procedimento, se você fará uma punção ou uma cirurgia, é a sua médica que vai decidir, ela disse, sem alterar o tom. E quando eu vou ter o resultado? , perguntei. Quando ela vai ter o resultado?, ela perguntou para a assistente. Em quatro dias. A médica me alcançou toalhas de papel para que eu me limpasse. E se despediu desculpando-se: “Peço desculpas pela minha tosse. Tenha um bom dia”.

Isso mesmo. “Peço desculpas pela minha tosse. Tenha um bom dia”. É verdade, ela tossia. Tinha comentado algo sobre um resfriado mal curado. Como ela podia se desculpar pela tosse e me desejar um bom dia? Eu poderia enumerar vários motivos para ela me pedir desculpas. Mas a tosse? Quem são estas pessoas? Como elas vivem? Como são capazes de dizer “Peço desculpas pela minha tosse, tenha um bom dia”?

Eu queria ter vontade de matá-la. Mas já estava obcecada pela possibilidade de talvez morrer antes de envelhecer. Então eu respondi: “Imagina, não se preocupe. Obrigada”. Eu agradeci! Deveria ter enfiado uma faca nela, mas agradeci. Porque me sentia frágil e tinha vontade de chorar. E a solidão daquele ambiente asséptico e daquela crueldade de branco me estrangulava. Me vesti e desci as escadas até a última sala, o último exame. “Como está o meu coração?”, perguntei ao médico. Está bem. Você tem prolapso da válvula mitral, mas isso não significa nada, não tem nenhuma consequência, ele garantiu. Me lixei para o prolapso. Que me importa se meu coração sopra?

Sinto uma dor imaginária no seio esquerdo. Me apalpo e me apalpo. E não encontro. Onde você está? Tenho pena e ódio deste corpo que me trai. Quatro dias sem saber se vou envelhecer ou talvez não. Como não suporto a impotência, fico imaginando não o bicho que pode estar me corroendo neste instante, mas a minha vingança.

Amanhã, amanhã a médica vai acordar pensando na tosse e nada mais. E eu vou sequestrá-la por um momento. Vou amarrá-la numa cama e mostrar a faca. Você vê esta faca? Talvez ela seja de brinquedo, como as do circo, e quando eu enterrá-la em seu seio esquerdo ela vai apenas provocar uma coceira. Mas talvez não. Talvez ela alcance o seu coração e para você seja o último Natal. Mas não se preocupe. Em quatro dias eu volto para te dar a resposta. Eu saio da sala em passos leves de gueixa. E volto por um momento, com um sorriso de Mona Lisa: “Peço desculpas pela tosse da minha alma. Tenha um bom dia”.

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