O Supremo e a farsa do amianto

Acompanho o escândalo do amianto desde 2001. E desde 2001 vejo os trabalhadores morrendo sem justiça. Em 2012, fiz uma reportagem em Casale Monferrato e vi uma cidade contaminada por uma fábrica da Eternit, com centenas de pessoas doentes, pessoas que nunca tinham pisado no chão de fábrica, pessoas de todas as classes e profissões. A tragédia de Casale poderá ser a paisagem futura de localidades brasileiras. A produção de amianto aqui começou mais tarde. E o pico dos mesoteliomas (câncer do amianto) acontecerá também mais tarde.

Por tudo isso, precisamos acompanhar com muita atenção o que o Supremo vai decidir nesta quinta-feira, dia 10. O amianto está no corpo dos trabalhadores, está nos nossos telhados, está nas nossas caixas d’água…

Como é possível que, em 2017, ainda se discuta no Brasil se é possível seguir produzindo e usando um material cancerígeno que mata milhares de pessoas e há muito foi banido de dezenas de países?

 

Leia na minha coluna no El País

(Trailer do documentário “Não respire – contém amianto”, Divulgação: Repórter Brasil)

 

Leia também:

A maldição do amianto 
Vítimas lançam uma ofensiva internacional para cassar os títulos e prêmios do bilionário Stephan Schmidheiny, ex-dono da Eternit suíça. No Brasil, miram na Ordem do Cruzeiro do Sul, dada a ele pelo presidente Fernando Henrique Cardoso

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E se a classe média de Pinheiros tivesse se omitido?

O mais significativo ato de potência num país interditado foi ignorado ou tratado como algo menor pela grande imprensa, num noticiário dominado pela Lava Jato, pela condenação de Lula, pelo aumento da gasolina e pelas barganhas no Congresso. Sobre a missa na Sé, muito pouco. Mas talvez nada seja mais importante hoje do que enxergar onde está o movimento. Ou onde estão as pequenas rachaduras nos muros. É assim que as transformações profundas, as estruturais, começam ou continuam. A potência hoje e já há algum tempo está em outros lugares e em outros atores.

É importante fazer a pergunta pelo avesso: e se os moradores de Pinheiros tivessem se omitido, como faz a maior parte da população mais rica e mais branca?

Missa na Caedral da Sé Foto: LILO CLARETO (Reprodução El País)

Missa na Caedral da Sé Foto: LILO CLARETO (Reprodução El País)

 

A catedral encheu. O que, de novo, é muito e pouco ao mesmo tempo. Mas, numa cidade de milhões, era possível desejar mais. Perguntei para várias pessoas que divulgaram a missa e não compareceram por que não foram. Com variações, a resposta era: “Queria muito, divulguei muito, mas tinha um compromisso”. Há nessa resposta algo importante sobre os brasileiros, mesmo os mobilizados pelos direitos humanos. A ideia de que não podem perder nada. Só ganhar.

Quando alguém afirma que tinha um compromisso, portanto algo mais importante, está dizendo também que o outro estava lá porque não tinha o que fazer. Acredito que a maioria das pessoas que compareceram à missa tinham algo a fazer que deixaram de fazer porque entenderam que nada poderia ser mais importante do que estar ali. Ou seja. Perderam algo para ganhar outra coisa. É assim que são as escolhas, afinal. Às vezes se perde bastante: uma reunião que estava marcada há muito e é difícil de remarcar, um trabalho que se deixa de fazer e portanto de receber, o chefe que não entendeu a ausência e então é o emprego que se arrisca, retaliações de vários tipos. É assim que a gente se recorta na vida, fazendo escolhas. Escolhas que custam.

Não basta divulgar nas redes sociais. É preciso presença, é preciso botar o corpo na rua. O que mais leio no Facebook e no Twitter são declarações como essa: “Me sinto impotente diante da realidade do país”. A missa na Sé era um momento de potência, que poderia ser ainda mais significativo do que foi – e foi bastante – se os que se declaram impotentes tivessem somado seu corpo ao corpo de quem estava lá. Ouvi também: “Não pude ir, mas você me representa”. Neste ato, cada um é insubstituível, cada um é um a mais. E o que se faz ali é intransferível.

Se, como escrevi alguns parágrafos atrás, um dos desafios mais importantes do Brasil hoje é criar possibilidades de estar com o outro no espaço público, há um desafio que talvez seja ainda mais crucial: o quanto cada um está disposto a perder para estar com o outro. Porque será preciso perder: de sossego a privilégios de classe, de gênero, de raça.

Assim como um grupo de moradores de Pinheiros fez uma escolha, quando o movimento se ampliou com a missa na catedral da Sé, a escolha se ampliou para todos que vivem em São Paulo e cidades próximas. A pergunta é: o que é mais importante do que se manifestar contra a execução de um ser humano por um agente do Estado consumada em plena rua na maior cidade do país?

O que se perderia estando lá é circunstância de cada um. O que se perde não estando lá é humanidade. Cada um com a sua balança.

 

Leia na minha coluna no El País

A carroça de Ricardo Nascimento foi enfeitada e colocada no local da execução MUNDANO/PIMP MY CARROÇA

A carroça de Ricardo Nascimento foi enfeitada e colocada no local da execução MUNDANO/PIMP MY CARROÇA

 

O Brasil desassombrado pelas palavras-fantasmas

Como o sonho e a arte podem nos ajudar a acessar a realidade e a romper a paralisia

Exposição 'Osso', em cartaz no Instituto Tomie Othake. (JOÃO CASTELLANO/ Reprodução El País)

Exposição ‘Osso’, em cartaz no Instituto Tomie Othake. (JOÃO CASTELLANO/ Reprodução El País)

O que sonhamos nós neste momento do Brasil? Neste momento em que as palavras não estão proibidas, como no sonho da alemã, mas esvaziadas de substância? Nesta condição, as palavras são como fantasmas que atravessam o corpo do outro sem produzir nenhum efeito. E então voltam para nós, falantes compulsivos, gritadores contumazes, que produzem som, mas não movimento. E esta talvez seja uma versão contemporânea, uma versão dos tempos da Internet, de um outro tipo de censura. E de encarceramento pela linguagem. Palavras-fantasmas, é preciso dizer, não assombram. Desassombram.

Leia o texto completo AQUI

Sobre a crise da palavra no Brasil atual, leia também:

O golpe e os golpeados

Tupi or not to be

Por quem rosna o Brasil

A Lava Jato como purgação e maldição

DIVULGAÇÃO/PF

DIVULGAÇÃO/PF

Para refundar a democracia é preciso bem mais do que combater a corrupção: é preciso produzir justiça e memória dos crimes contra a vida humana cometidos pelo Estado

Se a crise da democracia e da política é um fenômeno global, é preciso compreender o que há de particular na experiência hoje vivida pelo Brasil. Minha hipótese é de que as raízes da nossa atual crise estão no próprio processo de retomada da democracia após 21 anos de ditadura civil-militar. As raízes da nossa crise estão no apagamento dos crimes da ditadura e na impunidade dos torturadores. O Brasil retomou a democracia sem lidar com os mortos e os desaparecidos do período de exceção. Seguiu adiante sem lidar com o trauma. Um país que para retomar a democracia precisa esconder os esqueletos no armário é um país com uma democracia deformada. E uma democracia deformada está aberta a mais deformações. O que se infiltra no imaginário da população é que a vida humana vale pouco qualquer que seja o regime. E este não é um dado qualquer na atual crise.

É neste sentido o uso das palavras “purgação” e “maldição” do título deste artigo para se referir aos significados da Lava Jato. Se a operação é importante e é imperativo que ela continue, porque expõe a relação estabelecida entre governos, partidos e parte do empresariado nacional, a Lava Jato também revela, pelo seu avesso, o pacto do diabo que resultou na alma deformada da nossa democracia. A grande purgação nacional não é pela vida humana, mas pelo dinheiro. Não é pela carne, mas pela matéria inanimada. Quando finalmente combatemos a impunidade, o que nos mobiliza são os bens materiais, enquanto a vida segue sendo ferida de morte.

Leia o texto completo AQUI

Esta é a terceira de uma série de três colunas que se complementam e dialogam entre si. Sobre este tema, leia também:

Cotidiano de Exceção
Como lutar pela democracia aprendendo sobre a tirania

Por que Diretas Já
É preciso interromper a crescente fragilização da democracia para recuperar a capacidade de imaginar um país

 

 

 

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