Onde está Wally Sarney?

É prudente seguir este velho personagem, mas atualíssimo, na intrincada paisagem de Brasília

A imagem simbólica da transmissão da faixa presidencial de Lula para Dilma Rousseff não foi nem um nem outro – mas sim José Sarney com os dois. Quem acompanhou, viu. Estava tudo ali, como em geral está nestes grandes momentos em que os personagens se movem pelo palco e é preciso prestar uma atenção tão grande em quem se esgueira pelos cantos como em quem está no centro. O primeiro presidente operário transmitindo o cargo à primeira mulher presidenta. O discurso correto, mas pouco empolgante de Dilma. A cor da sua roupa, pérola em vez de vermelho. A filha como acompanhante da presidenta divorciada. O espalhafato com a mulher 42 anos mais jovem de Michel Temer. Hugo Chávez logo atrás de Hillary Clinton nos cumprimentos à nova governante. José Dirceu dizendo que não falaria porque a mulher não deixava. Erenice Guerra na posse (como assim?) levando seu abraço amigo à ex-chefe. A presidenta torturada pela ditadura militar passando as tropas em revista. Tudo bem significativo – por razões diversas. Mas o mais revelador era José Sarney. Para compreender a política brasileira e o Brasil é preciso saber onde está Wally. E o nosso Wally, com bigode e intenções muito diferentes, se chama José Sarney.

E onde estava Wally Sarney? Depois de passar o ano de 2009 levando chumbo como alvo de denúncias cabeludas, tanto que alguns chegaram a apostar que ele e sua dinastia tinham chegado ao fim, José Sarney estava ali, em 1º de janeiro de 2011, na presidência do Senado, dando posse a Dilma Rousseff como determina a Constituição. De quem era a voz de taquara rachada que se ouvia pelas TVs do país cantando o hino nacional? Adivinha. Quem tivemos de ouvir depois de Dilma? Sim. Tudo estritamente segundo a Constituição. Já que José Sarney teve o apoio decisivo de Lula para se manter no cargo quando as denúncias de corrupção tornavam indecente para o país que ficasse.

Onde estava Sarney depois? Pegando carona no Aerolula, o avião oficial. Carona para São Paulo e para outras geografias menos palpáveis e mais nebulosas. Para estupor das centenas de pessoas que se aglomeraram diante do apartamento dos Lula da Silva em São Bernardo do Campo para homenagear o presidente mais popular desde Getúlio Vargas, lá estava Sarney entre Lula e o prefeito Luiz Marinho. Em casa, como se viu. Chegou ali, segundo ele mesmo, “pelos caminhos da amizade e pelo reconhecimento”. E discursou: “Nele (Lula) descobri o homem de grande densidade humana, generoso, de patamar internacional. Nunca se viu antes no Brasil um presidente que falasse bem do outro. Mas eu vim aqui falar bem e dizer que ele sai consagrado por tudo o que fez”.

Não é pouca coisa que, no fim de tudo, depois de oito anos, tenha sido José Sarney a levar Luiz Inácio Lula da Silva de volta para casa ao som do Tema da Vitória – a música imortalizada nas homenagens a Ayrton Senna. “Quero agradecer ao companheiro Sarney que, quatro anos atrás, me disse que quando terminasse meu mandato ia vir até a porta do meu apartamento me entregar e veio”, disse Lula.

Na madrugada deste mesmo dia, a filha de José Sarney, Roseana (PMDB), tomou posse, pela quarta vez, como governadora do Maranhão. Com o apoio de Lula, que para isso atropelou as pretensões do PT local. E assim, como acontece há tempo demais na história deste país, o Maranhão segue sob o domínio do clã Sarney, que há décadas consegue o feito de manter o estado miserável – sempre disputando com êxito a liderança dos piores índices socioeconômicos do Brasil. No Amapá, estado pelo qual Sarney é senador, seus desmandos de coronel tem alimentado a crônica amazônica contada pelos corajosos blogueiros da região.

Até aí estava bem fácil localizar Wally Sarney, bem disposto sob os holofotes, saracoteando no centro do palco. Já na primeira semana do governo de Dilma Rousseff era importante descobrir onde ele não estava. Como, por exemplo, na posse do ministro das Relações Institucionais, Luiz Sérgio, responsável por negociar a divisão de espaços na máquina pública e a liberação de emendas parlamentares. A posse do ministro foi boicotada pelo PMDB como forma de mostrar seu descontentamento com a partilha dos cargos. E o que fez o ministro no dia seguinte ao boicote de sua posse? Defendeu a reeleição de Sarney à presidência do Senado: “Ele é um dos quadros mais experientes da política brasileira, foi parceiro do presidente Lula e certamente terá uma contribuição muito importante para o governo Dilma”.

E onde estava então o homem que não estava lá? Articulando, claro. De quem foi a ideia de defender um valor maior para o salário mínimo como forma de pressionar Dilma Rousseff na barganha por cargos? Segundo a jornalista Renata Lo Prete, da Folha de S.Paulo, foi José Sarney quem sugeriu ao PMDB abraçar a bandeira do aumento do mínimo como forma de retirar do foco a disputa por cargos no governo de Dilma Rousseff, real interesse do partido. “É só falar do salário que vai virar manchete”, teria instruído o presidente do Senado em reunião com correligionários no apartamento do vice-presidente Michel Temer. O PMDB salta na garganta de Dilma e ainda faz bonito diante da população ao defender causa tão nobre.

Onde estava Wally Sarney nas últimas décadas? É uma longa ficha corrida de serviços prestados à nação. Quase sempre afinadíssimo com o poder. José Sarney apoiou a ditadura militar e foi beneficiado por ela. Abandonou o PDS (ex-Arena) que presidia por discordar da escolha de Paulo Maluf para disputar a presidência nas eleições indiretas de 1985. Ao perceber a fragmentação do PDS, dividido por disputas internas, fez uma manobra habilíssima e acabou como vice de Tancredo Neves na vitoriosa chapa de oposição. Como Tancredo adoeceu antes da posse e mais tarde morreria, Sarney virou o primeiro presidente da redemocratização. Durante os últimos 50 anos da vida do país, de um jeito ou de outro, Sarney sempre esteve no poder ou muito perto dele. E agora, aos 80 anos de idade, lá está ele, a sombra entre o operário que deixa o governo e a mulher que o assume.

A era Lula, autoproclamada como fundadora de um novo tempo, na qual “o povo brasileiro fez a travessia para uma outra margem da história”, como afirmou Dilma Rousseff em seu discurso de posse, termina assombrada pelo que há de mais arcaico na política brasileira, encarnado na figura do oligarca José Sarney. E é o PMDB de José Sarney que consome boa parte da primeira semana do governo de Dilma Rousseff em sua disputa com o PT por cargos e pelos orçamentos mais polpudos. Se o lulismo é algo novo na história do país, há algo de muito velho – e algo estrutural – que continua bem aqui, que nunca deixou de estar bem aqui. Apenas que forte e desenvolto como há tempos não se via. E que tem na figura de José Sarney sua imagem mais eloquente.

Entre os ensaios publicados sobre a história recente do país, destacam-se os do cientista político André Singer sobre o lulismo e o do filósofo Marcos Nobre na revista Piauí de dezembro. Neste último, Nobre fala sobre o fenômeno do pemedebismo – um jeito de ser e estar na política que transcende o próprio partido. “O fim da polarização. Nem petistas, nem tucanos: o pemedebismo no poder”.

Vale muito a pena ler o ensaio para compreender as últimas décadas da vida política brasileira e também as cenas a que estamos assistindo no atual momento. Ao traçar a genealogia e a linha do tempo do pemedebismo, o filósofo afirma: “De maneiras diferentes, tanto o Plano Real como o ‘lulismo’ foram tentativas de controlar o pemedebismo de fundo da política brasileira. Por isso, por mais importantes que pareçam e de fato sejam, são momentos de inflexão em uma linha de força muito mais duradoura e consistente”.

E, em outro momento: “O marco do novo surto pemedebista pode ser representado pela resistência de José Sarney na presidência do Senado apesar de uma saraivada de denúncias, em 2009. O apoio decisivo de Lula à permanência de Sarney na presidência do Senado selou a aliança com o PMDB para a eleição presidencial de 2010 e, ao mesmo tempo, marcou a volta do pemedebismo à disputa pela hegemonia da gramática política brasileira. Ao contrário de casos anteriores, que resultaram em renúncia ou cassação de mandatos, a permanência de Sarney mostrou que o centro político ganhou tal amplitude e poderio que pode em grande medida ignorar protestos sistemáticos e generalizados da sociedade”.

Nos acontecimentos a que se refere Marcos Nobre, Lula produziu uma de suas frases mais simbólicas das muitas de seu período no poder. Simbólica pelo que há de chocante no que disse e por ser ele a dizê-lo. E simbólica pelo que revela do momento nacional. Recordem-se. O presidente de origem sertaneja e nordestina, o ex-torneiro mecânico, o governante do povo, afirmou o seguinte: “Sarney tem história no Brasil suficiente para que não seja tratado como se fosse uma pessoa comum”.

Aí está.

Enquanto sonhamos com uma reforma política, para compreender o país precisamos continuar procurando nas intrincadas cenas de Brasília, na complexa paisagem do Brasil, onde está Wally Sarney. E também – convém jamais esquecer – onde ele não está.

(Publicado na Revista Época em 10/01/2011)

Qual é o tamanho de Lula?

O Lula que desceu a rampa é maior e menor do que o que subiu

Eu estava entre aqueles milhões de brasileiros que se emocionaram quando Lula fez o discurso da vitória, na Avenida Paulista, no segundo turno da eleição de 2002. No dia seguinte, lembro de ter acordado com a certeza de que vivia num país diferente. Não acho que tenha me enganado. A força simbólica de um presidente com a origem de Lula só poderá ser dimensionada com precisão daqui a algumas décadas, com o necessário distanciamento histórico. Mas a mudança concreta na forma com que milhões de brasileiros passaram a se enxergar pode ser percebida nas ruas para quem estiver disposto a ver. O país mudou para melhor no governo Lula – e não apenas porque a conjuntura internacional era favorável. Lula deu visibilidade concreta a uma parcela da população que, embora maioria, sempre havia ficado na margem. Ao se reconhecer em Lula, esta ampla fatia do povo brasileiro resgatou autoestima e começou a construir um novo lugar no país. Cerca de 30 milhões de brasileiros ascenderam de classe e entraram no mundo do consumo, criando novas cenas na vida cotidiana da casa e dos espaços públicos. E acho difícil alguém, de qualquer estrato social, afirmar com sinceridade que sua vida piorou nos últimos anos.

Dito isso com toda a clareza, posso afirmar que, em minha opinião, o Lula que desceu a rampa do Palácio do Planalto no primeiro dia de 2011 é maior, mas também é menor do que aquele que subiu em 1° de janeiro de 2003. Lula é maior fora e dentro do Brasil – basta conferir a cobertura internacional e os 87% de aprovação interna. É maior também na História, depois de dois mandatos. Mas ao longo destes oito anos Lula perdeu algo que antes de 2003 parecia constituí-lo como liderança. E, embora tenha acreditado em demasia no próprio mito – e talvez por isso mesmo –, ficou aquém dele em princípios fundamentais.

Havia em 2003 uma enorme expectativa sobre os ombros de Lula, maior do que seria realista depositar. Ele mesmo dizia que não podia errar. E muito poderia dar errado diante do tamanho não do medo, como tanto se especulou, mas da esperança. O que eu – e acho que a maioria das pessoas – não imaginava é que a falta de ética na vida pública e a corrupção se tornariam questões sérias e assumiriam tal proporção na era Lula. Que os fins justificariam os meios com tanta desenvoltura. E que o fisiologismo, tantas vezes criticado com razão por Lula e pelo PT no passado, se tornariam o pão com manteiga da rotina do poder. Naquele momento, poucos ousariam imaginar que o partido que sempre se colocara como guardião da ética na política e representante de um novo jeito de lidar com o patrimônio público pudesse rastejar pela lama com tanto despudor e em tão má companhia nos anos seguintes.

Ingenuidade minha e dos tantos que ficaram chocados com as denúncias de corrupção e as negociatas que desfilavam no noticiário diário? Talvez. Mas acredito que pode e deve ser diferente. Que a ética – seja na vida pessoal ou na pública – é essencial e não descartável no primeiro aperto. Milhões de brasileiros pobres que resistem ao crime e à contravenção, mantendo-se honestos contra todas as adversidades nas favelas e periferias do país, nos provam isso todos os dias. Tornar a ética um artigo de luxo, que se coloca ou tira do cardápio conforme as necessidades do momento, é zombar desse esforço pessoal e coletivo empreendido diariamente por brasileiros de todas as classes – mas com um custo muito maior pelos mais pobres.

Esta é a parte que me preocupa na aprovação majoritária de Lula no poder. O que ela nos diz? A vida da maioria das pessoas melhorou de verdade – e esta é uma excelente razão para aprovar um governo e um governante. Mas que a falta de ética, o fisiologismo e a corrupção que também ficaram aparentes nesse governo não pesem pelo menos um pouco nessa conta é triste. Porque aí somos aquele tipo de gente que só se importa com o dinheiro no bolso – e nada com os valores que os puseram ali. Seria melhor para nós e para o país que fôssemos melhores que isso.

Como jornalista, cheguei a estudar seriamente a possibilidade de pedir transferência para Brasília em 2003 com o objetivo de cobrir a mudança de costumes na capital federal. Eu esperava testemunhar um outro tipo de elite política provocando transformações na forma de se relacionar não só nas esferas oficiais de poder, mas nos restaurantes, nas casas e nas ruas sem esquinas de Brasília. Ainda bem que tive de abortar o projeto por razões pessoais. Algo mudou, é verdade, mas não no rumo que se esperava.

O comportamento da primeira família também despertava minha curiosidade. Quando cobri a eleição de 2002, vale a pena lembrar, Lulinha (Fábio Luís Lula da Silva) era apenas aquele garoto que acompanhava a mãe nos eventos de campanha. Formado em biologia, o mais significativo que ele havia feito até então era um estágio no zoológico de São Paulo. Lulinha era simpático e falava meia dúzia de palavras a mais que dona Marisa Letícia, que não pronunciava nenhuma. Naquele momento eu não apostaria um real que Lulinha tivesse esse progresso meteórico e pudesse se transformar no empresário rico e bem sucedido, exemplo de sucesso que é hoje. Dona Marisa manteve o mutismo público nos oito anos como primeira-dama, mas apenas isso. De todas as seduções do poder, parecia difícil supor que seriam as cirurgias plásticas e os tratamentos estéticos, as roupas de grife, o cabeleireiro a tiracolo e a companhia chique que a seduziriam mais.

Acho uma pena Lula acreditar tanto no próprio mito, a ponto de às vezes soar como um messias. É saudável para qualquer um em algum momento do dia parar tudo e olhar para si mesmo de um canto, com o necessário distanciamento, para retornar às dimensões humanas. Lembro de meu mal-estar na primeira vez em que estive na Bahia, ao constatar o número de obras públicas com o nome de Antônio Carlos Magalhães. Naquele tempo, “Painho” era vivíssimo. Quem diria que o governo do filho de dona Lindu terminaria com um campo gigante de petróleo batizado com o nome de Lula.

Nesta mesma linha, colocar-se como um pai e como um chefe de família quando está no lugar de presidente soa mal, muito mal. Lula é pai do bem sucedido Lulinha e de seus outros filhos. Assim como cada um de nós tem seu próprio pai. E um já é suficiente. Um presidente republicano, eleito democraticamente, é alçado ao poder pelo voto, por um tempo determinado pela Constituição. É colocado no poder não por filhos, mas por cidadãos adultos e livres. E é julgado por seus atos e pela qualidade de sua administração – e não pelo afeto. É uma relação de igual para igual, entre adultos responsáveis e emancipados.

Essa conversa de pai e filho infantiliza a população – especialmente os mais pobres, que supostamente precisam ser “cuidados”. Como se um governo que inclua seus anseios e necessidades fosse a concessão de um governante bondoso e não um direito básico de cidadão legitimado pelo voto e assegurado pelo processo democrático. Essa conversa de pai e filho também ecoa o que há de pior no Brasil patriarcal – ainda que o pai desta vez seja um “homem do povo”. Acho este discurso uma irresponsabilidade. Ainda bem que não colou quando tentaram transformar Dilma em nossa mãe durante a campanha eleitoral. Era só o que nos faltava nessa altura de uma vida democrática tão duramente conquistada, em parte pela geração da própria Dilma.

Mas a maior fraqueza do governo Lula, além da saúde, foi a educação. Ao contrário do que Lula diz, melhorou muito menos do que deveria. Terminar o segundo mandato com um investimento em torno de 5% do PIB não dá a nenhum presidente a possibilidade de afirmar que a educação foi prioridade em seu governo. Não foi – e não foi por nenhum ângulo que se olhe. É verdade que ocorreram alguns avanços, como a ampliação do acesso ao ensino superior. Mas é pouco, muito pouco, diante da catástrofe educacional do país. A educação tem de ser uma causa como foi – e pelo discurso de Dilma Rousseff na posse continuará sendo – a erradicação da miséria. Causa do governo, causa de todos.

Não me parece que exista essa compreensão. Nem com Lula, nem com Dilma – ainda que no discurso de posse a presidenta tenha sinalizado a educação, a saúde e a segurança como prioridades. Assim como a educação também não foi prioridade no governo de seus antecessores. E isso explica nossa situação atual. Como um país pretende ser grande com metade dos jovens de 15 anos que estão na escola – porque 15% já não estão – com dificuldades para interpretar textos e um problema maior ainda para fazer contas? E com 43% dos empregados no mercado de trabalho sem diploma do ensino médio? Ou com os professores ganhando a miséria que ganham, a maioria deles descomprometidos com seu trabalho e sem serem avaliados por sua atuação em sala de aula?

A educação é uma das principais causas de desigualdade, e o Brasil continua sendo um dos países mais desiguais do mundo. Erradicar a miséria não é apenas garantir que todos os brasileiros possam comer – o que é enorme, mas ainda é pouco. Há uma miséria subjetiva que não se resolve com comida, mas com educação. Como já escrevi numa coluna anterior, logo após o primeiro turno da campanha eleitoral, o desafio que se impõe a todos nós é qualificar o nosso desejo. É pela educação que as pessoas desejam mais (e não apenas produtos de consumo), exigem mais de si mesmas e do país, e são capazes de andar com suas próprias pernas, superando a mera transferência de renda e os programas assistenciais.

Diante da catástrofe educacional vivida pelo Brasil, não dá para fazer apenas o possível. Tem de dar um jeito de fazer o impossível. Já, ontem. E Lula não fez. Mesmo simbolicamente ele não fez. Com o capital simbólico de Lula, teria feito diferença vê-lo alguma vez com um livro na mão. Em vez disso, houve ocasiões em que Lula reforçou a falsa dicotomia entre a experiência prática e a intelectual. Posso compreender seu esforço em valorizar a “escola da vida”, historicamente relegada como algo menor. Mas ele deveria ter a clareza de mostrar que não há oposição entre um e outro, pelo contrário, são conhecimentos que se complementam e dialogam entre si.

Nas ocasiões em que Lula colocou um tipo de conhecimento em oposição ao outro, prestou um grande desserviço ao país. Ao inaugurar o campus de Sorocaba da Universidade Federal de São Carlos, em agosto último, por exemplo, ele referiu-se à importância de um governante conhecer seu país. Para conhecer o país que governaria, afirmou ter preferido percorrê-lo (na Caravana da Cidadania, em 1993) a ler Raízes do Brasil, a obra clássica de Sérgio Buarque de Holanda. “Eu poderia ter lido o livro do Sérgio Buarque de Holanda, Raízes do Brasil, e poderia ter conhecido um pouco o Brasil. Mas eu achava que em vez de a gente apenas ler um livro e dizer que a gente conhecia, era melhor que a gente botasse o pé na estrada para ver a megadiversidade deste país”.

Seria tão melhor se Lula tivesse dito que é importante ler o livro e é importante percorrer as estradas e conversar com o povo. Afirmasse que uma experiência amplia a outra. Que ambas foram e são importantes. Afinal, a educação, o acesso aos livros, a possibilidade de inscrever sua experiência na literatura é o que foi roubado dos mais pobres durante tantos séculos. Uma pessoa deve lamentar que não pôde ler ou estudar e reivindicar maior acesso aos livros e à educação – mas, se orgulhar da falta de leitura, nunca. E nunca mesmo se esta pessoa é presidente de um país em que boa parte da população não entende o que lê.

Espero que Dilma Rousseff tenha a clareza de transformar a educação em prioridade de fato. E Lula possa aproveitar o tempo livre para ler Raízes do Brasil e muitos outros livros. Ninguém perde nada por ler – nem mesmo e principalmente alguém com a estatura e a grandeza de Lula.

(Publicado na Revista Época em 03/01/2011)

A história dentro da história

Eliane Brum conta como acompanhou a família Costa Pereira ao longo de todo o governo Lula

Quando propus a ÉPOCA contar a trajetória da família Costa Pereira, do final do governo Fernando Henrique Cardoso ao final do governo Lula, algumas pessoas da redação ficaram intrigadas com este testemunho de nove anos. Apresentei duas vezes, oralmente, a história desta família no exterior, em eventos sobre o Brasil em Ferrara (Itália) e em Madri (Espanha), e a curiosidade se repetiu. Jornalistas estrangeiros me perguntavam se eu continuaria acompanhando os Costas Pereiras no governo de Dilma Rousseff. Sim, claro que sim, eu respondia. Mas não exatamente pelas razões que eles supunham. Penso que preciso explicar como esta reportagem aconteceu – a história dentro da história.
Na virada de 2001 para 2002, eu fui incumbida de encontrar um brasileiro da Grande São Paulo que desse carne às estatísticas de um momento difícil para o Brasil. Buscava um chefe de família que, como tantos naquele contexto, tivesse perdido o emprego há tempo suficiente para compreender que seria muito difícil conseguir outro. Eu buscava um homem no instante da queda para contar um momento histórico específico do Brasil.

Tentei vários caminhos, como as listas dos cadastros de benefícios da prefeitura e do Estado de São Paulo. Consumi alguns dias perambulando pelas periferias sem encontrar o que procurava. Desempregados e pobres havia muitos. Mas eu buscava um momento muito específico, entre o final do seguro-desemprego e o início da percepção de que o controle da vida escapava pelo vão dos dedos. E buscava um homem capaz de dimensionar sua perda. Depois de alguns dias atravessando a Grande São Paulo de várias maneiras, num carro sem ar-condicionado e no auge do verão paulistano, o motorista perguntou: “Afinal, o que exatamente você procura?”. Eu esmiucei em detalhes. “Ah!”, disse ele. “Você procura o meu vizinho!”

E ele tinha toda razão. Como em geral têm os bons motoristas de imprensa – hoje infelizmente quase extintos, com a terceirização do serviço. No momento em que fui apresentada a Hustene Alves Pereira, no Jardim Veloso, na periferia de Osasco, eu soube de imediato que era ele. Seus olhos queimavam no quarto mês de desemprego. Ele era um homem vivo – com medo de ser esmagado pelo Brasil e pelo discurso da exclusão.
Nos reconhecemos ali. Tenho convicção de que toda reportagem é um encontro entre personagem e jornalista. Só acontece quando este encontro é de verdade. Para isso, é preciso existir um movimento de entrega de ambas as partes: eu me abro para ouvir a sua história sem preconceitos e você se abre para contá-la com tudo o que ela é, o feio e o bonito. Com Hustene e sua família foi assim.

Passamos dias juntos, Hustene e eu, vencendo quilômetros em busca de emprego, a pé porque ele não tinha dinheiro para o ônibus. Nestas longas caminhadas Hustene me contava da angústia do seu presente, dos sonhos de seu passado e do futuro que não mais enxergava. Testemunhei do meu canto a delicadeza com que sua mulher, Estela Costa, tecia com o que lhe restava de linha não só tapetes para vender, mas uma rede para que sua família não se afogasse. Seus quatro filhos, alguns com mais intimidade do que outros, me falavam de seus anseios. E às vezes eu apenas ficava ali, observando sem nada dizer.
Repartiam comigo também o seu feijão com arroz. Algumas pessoas, ao saber que eu comia em sua mesa, ficavam indignadas porque o que eles tinham já era tão escasso. Este é um tipo de conclusão de quem pouco entende de gente e pouco pisou em favelas e periferias. Nada seria mais ofensivo para Hustene e Estela do que minha recusa em compartilhar o que tinham – mesmo que fosse quase nada. E eu nem cogitei tal desfeita.

A reportagem, com o título de “O Homem-Estatística”, foi publicada em fevereiro de 2002, no último ano do governo FHC e também no ano em que Lula, depois de três tentativas, finalmente venceria a quarta eleição. É neste momento que começa o capítulo mais surpreendente da história dentro da história.

Há uma pergunta recorrente que estudantes de jornalismo costumam fazer quando dou palestras em universidades: “Você se envolve com as fontes?”. Minha resposta é sempre a mesma: “É claro que sim!”. Se não me envolvesse, para que viveria? Deixando sempre bem claro que este envolvimento inclui um profundo respeito pela história que conto e que pertence ao outro – e isto significa escutar sem julgar e interferir o mínimo possível.

Hustene e eu criamos um vínculo. E um que hoje, quando olho para trás, penso que era muito mais claro para ele do que para mim. Eu era a contadora de sua história. E foi assim que Hustene continuou narrando fatos e sentimentos mesmo depois da reportagem publicada. Ele, por sua vez, passou a acompanhar a minha vida de repórter. Assim que a situação financeira melhorou um pouco, em meados da primeira década deste século XXI, Hustene assinou a ÉPOCA para poder ler e recortar minhas reportagens. Meus livros também estão na prateleira do seu novo escritório, figuras humildes entre vistosos best-sellers.

Seguidamente sou mencionada em seus diários – ele não esquece jamais nem o dia do jornalista nem o dia do escritor. E há uma foto minha perto de Nossa Senhora de Fátima para me proteger do risco de algumas reportagens. Especialmente se viajo a trabalho de avião, uma criatura alada da qual Hustene tem pavor. Cada vez que descobre que vou embarcar em algum, ele reza.

Segui acompanhando os principais acontecimentos da vida da família, às vezes mais de perto, em outras mais de longe. As contas de luz e água cortadas, os empregos e desempregos dos filhos, os Natais tristes, a volta da carteira assinada depois de Hustene amargar três anos e sete meses sem trabalho, a felicidade de ser o “Porteiro Pereira”, a doença de Hustene, o péssimo atendimento do SUS, a decepção com a educação pública e, finalmente, a vida melhorando e as portas do consumo se abrindo. Perpassando tudo isso, a profunda identificação com Lula, primeiro como decepção, depois com orgulho. E uma visão de mundo muito particular.

Hustene e sua família seguiram fazendo a narrativa da sua vida. E eu segui escutando com atenção e cuidado. Primeiro por telefone, depois por email. Hustene escreve muito – e escreve com verdade. Sobre fatos, sobre sentimentos, sobre sua percepção do país. Tenho uma coleção de emails de uma riqueza extraordinária sobre sua visão do governo Lula e do Brasil – e de sua família no governo Lula e no Brasil. Hustene organiza a sua existência tantas vezes por um fio escrevendo diários a Nossa Senhora e, antes, também escrevia a Che Guevara. A mim concede o privilégio de escrever sobre a trajetória de sua família e sobre sua própria escritura. Sou o olhar externo – de dentro.

Sempre tive clareza do meu lugar na casa da família Costa Pereira. E tento estar à altura do meu posto de “escutadeira” de uma história de vida. Mas este também é um lugar amoroso. E foi muito difícil vê-los passar Natais de penúria, como aquele em que Estela serviu apenas farinha com cebola, sem interferir. Foi Hustene, mais do que eu, que teve a sabedoria de riscar os limites e assim manter o mais importante a salvo. Como quando fiquei – e fico – muito angustiada com a deterioração de sua visão por uma doença degenerativa causada pela diabetes. Ele não recebeu até hoje nenhum tratamento. A (des)assistência do SUS é desesperadora. Me ofereci para pagar um tratamento privado. Não consigo imaginá-lo cego – não por falta de assistência. Ele recusou na hora, enfaticamente. Entre nós, não pode existir dinheiro nem favores.

O que eu mais gosto na vida é escutar, ler e escrever. Acompanhei a história da família Costa Pereira sem nenhum propósito de publicá-la. Mas sempre guardei tudo o que Hustene me enviou por escrito por aquele amor que a gente tem pelo testemunho histórico. E, no meu caso, porque tenho especial apreço pela grandeza das vidas supostamente – e só supostamente – comuns. Fiz apenas mais uma pequena reportagem sobre a interpretação de Hustene do primeiro ano do governo Lula, já que ele gravara todas as promessas de campanha e escrevera uma carta “ao amigo presidente”, e contei seu sofrimento em minha coluna no site da revista quando os peritos do INSS fizeram greve e ele ficou sem benefício, como milhares de brasileiros.

Só em 2010 percebi que tinha algo precioso e inédito nas mãos: a trajetória de uma família no governo Lula, a ascensão da pobreza à “nova classe média” contada pelo particular, um retrato íntimo e privado dos personagens mais importantes deste momento histórico. Pedi então licença para contar sua história e fiz várias entrevistas com todos os membros da família. Posso afirmar que só compreendi grande parte do significado, das nuances e das contradições do governo Lula quando pude enxergá-lo pelos olhos da família Costa Pereira. Espero que tenha conseguido transmitir este olhar aos leitores na reportagem publicada nesta primeira edição de 2011, logo após a posse de Dilma Rousseff – e da despedida (oficial) de Lula.

Como foi possível testemunhar a história da família Costa Pereira nos últimos nove anos? Porque Hustene Alves Pereira é um personagem que escolheu seu autor. E, para minha sorte, este autor sou eu.

(Publicado na Revista Época em 29/12/2010)

O novo, o velho e o antigo

Estudioso de Chico Buarque lança um olhar provocador sobre o Brasil e suas circunstâncias

Antes de o italiano Luca Bacchini descobrir o Brasil, foi o Brasil que aportou na sua alma em notas de samba. O Novo Mundo navegava na vitrola da casa da família na Roma da sua infância em discos de vinil que o pai ganhava de um piloto da Alitalia. Ao observar a euforia dos adultos, forjando em língua desconhecida uma versão mais viva de si mesmos nos carnavais improvisados que o pai organizava, Luca capturou o Brasil como uma visão particular de paraíso. Muitos anos depois desse primeiro contato, ele se tornaria um estudioso da obra musical e literária de Chico Buarque. Um “chicólogo”, como ele diz. E uma espécie de romano-carioca que corre sobre as pedras milenares da Via Ápia enquanto planeja sua próxima passagem pela Marquês de Sapucaí.

Convidei Luca Bacchini a refletir nesta coluna sobre seus passos entre dois mundos. A vida cotidiana em Roma, talvez a cidade do planeta onde é possível apalpar como em nenhuma outra o peso do passado no presente. Onde nossos pés pisam sem deixar marcas em pedras que foram assentadas ali antes de Cristo e ali estarão muito depois do nosso fim. E a apreensão da vida nesse país do futuro que é o Brasil, eternamente jovem em sua espera pelo dia seguinte.

Nesta entrevista, Luca Bacchini nos ajuda a pensar sobre o antigo, o velho e o novo. Sobre o Brasil e suas representações. Sobre Chico Buarque e a reinvenção da língua. Professor contratado de literatura brasileira e portuguesa do curso de pós-graduação da Faculdade de Letras da Universidade ‘La Sapienza’ de Roma, ele também é crítico literário e tradutor de livros, artigos e reportagens. Já publicou vários ensaios em coletâneas e revistas especializadas sobre a literatura e a música brasileira, especialmente sobre Chico, Tom Jobim e João Gilberto. Dedica-se nesse momento a escrever um livro sobre o romance Budapeste, de Chico Buarque. É também conhecido em alguns meios como “Luca do agogô”. Mas este é um personagem que só se manifesta durante o Carnaval no Rio de Janeiro.

Acompanhe.

Quis fazer esta entrevista ao ouvir você falar sobre a convivência entre o velho e o antigo na sua cidade, Roma. Essa lembrança constante de que as pedras sobrevivem a nós. De que somos frágeis e somos passagem. Qual é a diferença entre o velho e o antigo, para você? E como isso repercute no homem que você é?

Luca Bacchini – Uma cidade como Roma, que é chamada de “cidade eterna”, inevitavelmente implica uma relação problemática com seus habitantes, que são mortais. Dispondo de um tempo ilimitado, a cidade levará sempre uma posição de vantagem com relação a nós, que contamos com um tempo limitado. A gente aqui convive com as ruínas. A antiguidade é um período afastado e remoto, mas que persiste obstinadamente no nosso presente. O antigo é fascinante, não necessariamente belo, mas automaticamente impõe respeito. O velho já é ligado ao conceito de decadência, de enfraquecimento, de declínio de algo que era jovem, talvez bonito, e que hoje não é mais o que era antes. O antigo se mede em séculos e é o tempo “forte” das ruínas, enquanto o velho remete a um tempo “fraco”, mais humano, que inexoravelmente nos revela a caducidade das coisas. Roma é um dos lugares do mundo onde você pode perceber melhor esta diferença. O velho não se torna antigo porque não sobrevive ao tempo. É destinado à extinção, deixando apenas escombros e entulhos que irão desaparecer. Ao contrário das ruínas, que ficam para sempre. Tudo aqui se alimenta da tensão entre estas duas temporalidades antitéticas que acabam vivendo num contraste amoroso.

Como é essa convivência no cotidiano?

Luca – Roma impõe respeito, mas sem inibir. É uma cidade monumental – e não uma cidade com monumentos. A maioria das suas riquezas, artísticas e arqueológicas, não está protegida atrás de vidros blindados. Roma pretende ser usada, tocada, pisada, esculachada, sujada e continuamente re-vivida, sobretudo nas suas ruínas. No Coliseu já houve encontros de boxe e vários eventos musicais. Nas Termas de Caracalla já assisti a um show de Caetano Veloso e a uma representação daAida. Na infância, disputei peladas intermináveis no campo do Circo Massimo e hoje, duas ou três vezes por semana, corro na Appia Antica (Via Ápia). Quando termino o treino, uso as pedras da tumba dos Rabiri ou de Quinto Apuleio para fazer os alongamentos. Às vezes acontece de algum turista querer tirar uma foto e aí, tudo bem, mudo para outro sepulcro. Mas não sou profanador de tumbas. São elas que invadem a minha academia.

Você acha que este é o drama humano, também? Se vamos nos tornar velhos ou antigos, mortos esquecidos ou lembrados, permanecer além da vida? Esta é uma questão para você?

Luca – Quem dera que os homens se preocupassem em ser lembrados ou em permanecer além da vida. Seria, afinal de contas, uma preocupação nobre e profunda. Por séculos a Igreja desfrutou e alimentou essa fraqueza humana montando umbusiness incrível – basta pensar na “venda de indulgências”. Hoje, porém, estamos aflitos por exigências e necessidades muito mais práticas e imediatas. Meditar e refletir é considerado um tempo que você está subtraindo à ação. Vivemos exasperadamente a filosofia do “Carpe diem”, mas numa forma distorcida e hedonista, que tem pouco a ver com o pensamento horaciano. Acho que hoje o grande drama humano é aceitar a velhice ou, dito de outra forma, prolongar ao máximo a juventude. Daqui a 50, 70 anos a grama dos nossos cemitérios estará toda contaminada por botox e silicone.

Você acha que a morte é mais presente – ou uma presença – quando se vive numa cidade em que o passado é tão concreto e mesmo palpável?

Luca – A morte está mais presente onde há violência. Aqui na Itália não temos um contato cotidiano com a morte como no Brasil, na Colômbia, na Venezuela, no Irã, na África do Sul ou nos países envolvidos em guerras. Acredito que todos os brasileiros ou a grande maioria deles têm um parente, um amigo ou um conhecido que já foi vítima ou testemunha de mortes violentas. Dentro do meu grupo de parentes, amigos e conhecidos, até hoje eu não ouvi nenhum caso de morte ou ferimento causado por criminosos ou, pior ainda, por policiais corruptos. Pelo contrário, a morte foi bem presente na geração que viveu a II Guerra Mundial. Minha avó, por exemplo, assistiu a toda a brutalidade e desumanidade da represália nazista na Itália. Ela viu famílias inteiras deportadas, homens justiçados sob os olhos dos filhos e da esposa, mulheres abusadas, partisanos torturados e massacrados. Ainda hoje ela me fala com horror do ruído das botas dos soldados alemães que ecoavam à noite pelas ruas estreitas da cidadezinha onde ela morava.

Vivendo numa cidade tão monumental, mesmo, já que em Roma o “monumental” faz sentido e não é apenas um adjetivo vazio, como é possível construir ou inventar o novo?

Luca – Morando numa cidade monumental – e na Itália há muitas – a gente tem o privilégio de frequentar cotidiamente a arte e a história. Por um lado, nós acabamos desenvolvendo uma natural sensibilidade estética. De repente é daí que vem o que no Exterior é chamado de buon gusto ou stile dos italianos. Por outro lado, criamos uma relação meio traumática com o passado que está sempre lá, materialmente presente, te olhando, te espiando e te questionando. Em termos políticos isso se traduziu numa falta total de interesse na programação do futuro e, consequentemente, na instauração de um sistema gerontocrático. Os nossos políticos são os mais velhos da Europa. Em qualquer setor da sociedade as decisões mais importantes são assumidas por pessoas com uma idade bem avançada, em vários casos até anterior àquela dos meus pais. De um certo ponto de vista as pessoas idosas são aquelas que mais se aproximam da eternidade (risos). Com certeza, o espírito do lugar não estimula a criação do novo. Morando aqui você é levado a perceber o novo numa forma prevalentemente negativa, como uma categoria transitória, provisória, com prazo marcado. Como algo que antecipa o tempo, mas que pelo tempo afinal será sempre derrubado, que inevitavelmente passará de moda e que, em breve, se tornará velho, superado, obsoleto, até desaparecer. Afinal, é tristemente normal que uma sociedade gerontocrática considere o novo como uma ameaça à ordem constituída porque ele viola no presente a hegemonia do passado. Para mim, o Brasil, com a sua vocação congênita de país do futuro, funciona como uma espécie de alternativa libertadora para equilibrar essa falta crônica de utopia.

Mas não é possível que o novo se torne antigo? Construir algo novo que permaneça, do ponto de vista arquitetônico e também imaterial?

Luca – Para responder devidamente, eu deveria ser eterno. Por enquanto, me limito a concordar com o antropólogo Marc Augé, quando diz que a nossa época não poderá produzir ruínas porque não tem mais tempo. Somos vítimas complacentes da cultura do descartável.

“O Brasil sofre de uma falta de ruínas nas quais fundar o próprio passado”

Por que o Brasil seria, como você diz, uma alternativa libertadora devido à “vocação congênita de país do futuro”? Por que você sente isso a respeito do Brasil e não sente, por exemplo, por outros países da América Latina, todos eles jovens, já que os colonizadores destruíram a maior parte do que havia antes? O que é diferente aqui?

Luca – Naturalmente, a ideia do Brasil como “país do futuro” não é de minha autoria, mas há uma ilustre tradição secular atrás. Porém, acho muito difícil dar uma resposta satisfatória à sua pergunta. Explicar racionalmente e numa forma convincente os motivos dessa minha predileção me levaria a dizer banalidades ou a cair em lugares comuns, talvez correndo o risco de ofender outros povos latino-americanos. Tudo no Brasil é diferente. E com isso não quero dizer que tudo seja melhor ou pior que no resto do continente. Poderia argumentar essa diferença numa perspectiva histórica, cultural ou sociológica, mas isso não explicaria o meu sentimento pelo Brasil. Um aspecto interessante é que também a maioria dos italianos percebe essa diferença do Brasil com relação à America Latina numa forma muito clara e quase instintiva. Como resposta posso contar-lhe uma situação pela qual já passei e que acho bastante significativa. Cada vez que aqui na Itália, por motivos diferentes e nos contextos mais variados, devo explicar que sou um estudioso da cultura brasileira e que com um certa frequência viajo para o Brasil, assisto sempre à mesma reação. O interlocutor me olha com o mesmo jeito alusivo, ensopado por uma inveja mal disfarçada, saindo com comentários do tipo: “Você sabe tudo!”, “Você é o grande malandro”, “Eu não entendi nada na minha vida”, “Eu também deveria ter seguido o seu caminho”. Com meus colegas, especialistas de outras áreas da América Latina, a reação geralmente é entre a perplexidade e a interrogação: “Que interessante! Mas por que você resolveu ir até lá?”.

Qual é a sua percepção do Brasil? Ou, melhor, qual é a sua percepção do Rio de Janeiro, já que o “seu” Brasil é o Rio de Janeiro?

Luca – Eu sou a pessoa menos indicada para responder a esta pergunta porque gosto demais do Rio de Janeiro e, portanto, qualquer afirmação minha seria viciada por uma parcialidade tão descarada que acabaria me deslegitimando. Como todas as pessoas apaixonadas não posso ser objetivo quando falo do objeto de amor. No Rio eu quero conscientemente ser seduzido, que é também a melhor disposição para ser iludido, eu sei disso, mas a cidade é apaixonante e não tenho como resistir. Sou um caso tão desesperador que, quando estou em Roma, até sinto falta daquele trânsito horrível que toma a Lagoa nas horas de pico, daquele cheiro forte de xixi que invade as ruas durante o Carnaval, daqueles temporais que em poucos minutos inundam a cidade paralisando tudo e daquele medo constante de poder ser continuamente assaltado. Para mim, o Rio é sobretudo um lugar de sonho encontrado quando era criança e que mais tarde descobri existir no mapa. É lá que reencontro o tempo perdido da minha infância. Portanto, esse tempo é mítico, sacro e incontestável. Nessa dimensão suspensa tenho a sensação – e a ilusão – de viver no presente um tempo eterno e, assim, no país do futuro consigo me descarregar do peso das ruínas.

Que ponte você faz entre o Brasil e a Itália, Roma e o Rio?

Luca – Até pouco tempo atrás eu tinha uma teoria para explicar o Brasil. Dizia que Roma é como o Rio, Milão como São Paulo e Nápoles como Salvador. Um dia uma amiga mineira me perguntou como ficaria se colocasse Belo Horizonte dentro dessa equação. Aí deu branco! (risos) Sendo o país do futuro, o Brasil se relaciona a um tempo que está banido na Itália. Em termos de identidade, ele tem um problema contrário ao nosso. Sofre de uma falta de ruínas nas quais fundar – e legitimar – o próprio passado. A saída foi a construção de uma identidade nacional baseada mais no espaço e na geografia que no tempo e na história. Na Itália tudo pretende ser o “mais antigo do mundo” – o teatro mais antigo, a igreja mais antiga, a universidade mais antiga, etc –, enquanto no Brasil triunfa a retórica do “maior do mundo”. Nesse gigantismo natural que não depende da presença do homem, o povo brasileiro é chamado a expressar a próprio valor. Daí vem esse ufanismo recorrente baseado nos primados de grandeza: o maior estádio, a maior hidrelétrica, o maior shopping, o maior produtor disso, o maior exportador daquilo, etc. Dentro dessa visão, o que conta é só a quantidade. E isso pode ser muito arriscado, sobretudo em termos sociais de longo prazo, porque acaba narcotizando o sentido crítico do povo, que começa a avaliar a própria existência só em termos quantitativos. Um gigante sem consciência sempre será facilmente vulnerável, como demostrou Ulisses contra Polifemo (episódio da Odisseia, de Homero, em que Ulisses vence o ciclope Polifemo cegando seu único olho depois de embriagá-lo).

“O futuro está ainda longe num país que no presente tem milhões de analfabetos e de pobres”

Que tipo de consequência pode se esperar dessa visão de que tudo se resolverá num suposto dia seguinte?

Luca – Falando das cidades americanas, o antropólogo Claude Lévi-Strauss comentou que elas vivem febrilmente uma doença crônica. São sempre jovens, sem nunca gozar de saúde. Em 1935, ele visitou São Paulo e ficou maravilhado pelas “precoces devastações do tempo”. Penso que o Brasil tem um pouco dessa imagem do jovem doente. Nesses anos em que estive no Brasil eu vi um país sempre em obras, sempre envolvido em grandiosos projetos a serem realizados no futuro e que, graças a essa esperança, conseguia cotidianamente ignorar tanto os entulhos que sobraram do fracasso dos projetos anteriores quanto a persistência de graves problemas crônicos. O que mais me chama a atenção é a capacidade que o povo tem de se acostumar com quase qualquer coisa que o presente lhe propõe: violência, injustiça, corrupção, etc. Não é aceitação nem resignação, mas é a consequência de uma fé ilimitada e incondicionada na utopia do futuro que, talvez, seja para muitos a única maneira de sobreviver.

Na política também?

Luca – Na política em geral domina a idéia de que o Brasil é um país jovem e que, assim sendo, os problemas e os erros do presente em alguma medida podem ser tolerados enquanto “pecados da juventude”. Importa apenas o futuro glorioso que está na frente. E até lá o Brasil terá sempre o álibi do novato, do emergente. O fato que o slogan “Pra frente Brasil” ainda hoje seja usado pelos políticos é muito significativo. Se o Brasil não tivesse a obrigatoriedade do voto, com certeza assistiríamos a um filme bem diferente. Atualmente, poucos países no mundo adotam esse sistema e nessa pequena lista não aparece nenhuma das grandes democracias. A companhia teatral não está mais preocupada com a qualidade da comédia quando sabe que a casa está sempre cheia.

Você se refere à ultima campanha eleitoral, que elegeu Dilma Rousseff?

Luca – Estou me referindo de forma mais geral ao funcionamento do sistema político brasileiro, isto é, aos nexos entre os mecanismos para a criação do consenso, a composição do eleitorado e os programas de governo, independentemente do time que ganhou nessa eleição ou nas anteriores. Existe um problema estrutural nas regras do jogo que nenhum dos jogadores, sejam vencedores ou perdedores, têm interesse em mudar. A Dilma é apenas uma das soluções que esse sistema corretamente admite.

Você acompanhou o governo Lula e esta última eleição? O que você viu?

Luca – Sinceramente, eu não daria muita importância ao baixo nível do debate na última campanha eleitoral. Na política o transformismo paga mais que a coerência. Nesse segundo turno, Dilma Rousseff e José Serra não teriam hesitado em lançar uma campanha feroz pela abolição do churrasco se tivesse sido decisivo o voto dos vegetarianos. A busca do consenso é sempre prioritária à perseguição do bem da nação – e isso, claro, não só no Brasil. Campanha eleitoral é aquela festa de sempre em qualquer lugar do mundo. Discurso de político aos eleitores é tão confiável quanto as promessas de um homem quando faz um pedido de casamento. No circo dos horrores da política italiana de hoje encontram-se exemplos excepcionais. Quanto ao Lula, ele foi eleito como presidente e saiu do Planalto como um grande herói do povo, atuando com sucesso na fórmula de um “populismo light”, que lhe garantiu índices de consenso extraordinários, sobretudo nas faixas de baixa renda. Acho que, afinal de contas, cada cidadão brasileiro, independentemente da orientação política e do nível social, pode estar orgulhoso de ter tido um presidente como Lula. E eu também, durante esses oito anos, enquanto estudioso e amigo do Brasil, tive o privilégio de compartilhar um pouco desse orgulho tanto na Itália quanto no Exterior. Claro, Lula cometeu muitos erros, alguns até de uma certa gravidade. Não vou negar que existem várias decisões com as quais absolutamente não concordo, sobretudo na política externa.

Como por exemplo…

Luca – Penso no flertezinho com o Irã e na tentativa de legitimá-lo internacionalmente; na defesa do Cesare Battisti e nas declarações do ministro Tarso Genro sobre a Itália; no silêncio sobre a violação dos direitos humanos em Cuba e na negação de asilo aos dois boxeadores cubanos durante os jogos panamericanos; na cooperação militar com a China e, consequentemente, na decisão de alterar o voto de condenação à China no Conselho de Direitos Humanos da ONU; na aproximação com o ditador Teodoro Obiang da Guiné Equatorial, em nome do comércio exterior e do petróleo; na distribuição de camisas da seleção brasileira aos chefes de Estado durante o G8 sediado em L’Aquila, sem entender que a celebração da vitória da Copa das Confederações naquele clima de consternação geral resultaria inoportuna e ofensiva para as vítimas do terremoto. O elenco poderia continuar também no plano da política interna, mas errar é normal para quem a cada dia deve tomar decisões para uma coletividade de quase 200 milhões de pessoas. Aliás, talvez uma grande parte dos brasileiros não dê a menor importância aos fatos que citei. Com a política externa não se ganham as eleições, ao menos que o país esteja em guerra. Apesar de tudo, acredito que o grande mérito de Lula foi o de não ter repetido muitos dos erros trágicos que seus predecessores cometeram teimosamente por décadas. E isso já foi suficiente para fazer do Brasil um país melhor.

Você se referiu algumas vezes à crença do Brasil como eterno “país do futuro”. Mas hoje começamos a ouvir, em alguns meios, que o futuro chegou. Você, que nos olha de fora mesmo quando está dentro, sente isso? Se o futuro chegou, você consegue arriscar algumas hipóteses do que muda no nosso imaginário do país e de nós mesmos?

Luca – Isso acontece ciclicamente no Brasil, com a mesma frequência com que em outros países se anuncia o fim do mundo. Vozes mais ou menos intensas de que o futuro tinha chegado já circularam durante o Estado Novo, no anos JK e na ditadura do general Médici. Não é uma novidade. Agora, boa parte do país é atravessada por uma euforia infantil devido à Copa do Mundo e às Olimpíadas. A política e a mídia alimentaram a idéia de que estes dois eventos têm o poder mágico de resolver a maioria dos problemas do país. Essa ilusão é contagiante. Um trem-bala, uma estação do metrô, um aeroporto maior e um estádio reformado são suficientes para provar que o futuro chegou? O povo deveria ser bem mais exigente. Acho que o futuro está ainda longe num país que no presente tem milhões de analfabetos e de pobres, onde um número assustador de crianças vive nas ruas ou trabalha em vez de ir à escola, onde duas das maiores empresas são a prostituição e o narcotráfico. Mas isso é papo de gringo…

“O Brasil se tornou um lugar de sonho para onde fugir”

Falando em gringo, como você descobriu o Brasil?

Luca – A minha descoberta do Brasil concide com as primeiras lembranças que guardei da infância. Meu pai tinha uma amigo, piloto da Alitalia, que era apaixonado por música. Cada vez que fazia escala no Brasil, ele trazia para nós um disco de presente ou, quando tínhamos menos sorte, ele gravava numa fita o disco que tinha comprado para ele. João Gilberto, Chico Buarque, Vinícius de Moraes, Toquinho, Tom Jobim, Jorge Ben eram algumas daquelas vozes misteriosas, vindas de um país longínquo, que meu irmão e eu ouvíamos ininterruptamente. Tínhamos a certeza de que os intérpretes daquelas músicas não eram propriamente cantores, mas nossos companheiros de brincadeiras. Outros meninos, talvez um pouco mais velhos, que de um lugar indefinido chamado “Brasil” pediam que fôssemos seus cúmplices e que escutássemos em silêncio os segredos e as histórias que vinham nos sussurrar. Apesar de eles não se dirigirem a nós em italiano, conseguíamos entendê-los igualmente, cada vez numa forma diferente – afinal, quando existe uma amizade é possível se entender mesmo sem falar o mesmo idioma. Meus pais também adoravam aquelas músicas e, de vez em quando, organizavam festas de Carnaval em casa convidando os amigos. Era tudo muito surreal, todos cantando numa língua que não entendiam. Meu irmão e eu trocávamos os discos na vitrola e ficávamos olhando os adultos enlouquecidos. Para nós era uma grande alegria porque podíamos ir dormir mais tarde.

E os convidados, o que achavam desse carnaval?

Luca – Entre os convidados, quem merecia destaque era um casal gay muito amigo da minha família que morava no mesmo prédio. Osvaldo era rico, feio, culto e mal humorado. Elio era exatamente o contrário: de origem humilde, bonito, sem cultura e sempre alto astral. Nessas festas o Elio vinha vestido de mulher e o Osvaldo de Pierrot choroso, com uma lágrima pintada no rosto. E os dois sempre brigavam por causa do Brasil! (risos) Quando ouvia um samba-enredo, o Elio ficava possuído e começava a jurar que na manhã seguinte compraria uma passagem para o Rio. E o Osvaldo ficava danado!! Nossa! (risos) O sonho do Elio era passar o Carnaval no Brasil e desfilar nas escolas. Eram cenas hilárias, com os dois gritando e berrando e todo mundo rindo até chorar. Eu não entendia porque os dois brigavam, mas a partir daí ficou aquela idéia do Brasil como uma obsessão, como um lugar de sonho para onde fugir. Lembro que uma frase recorrente do Elio era: “Um belo dia chuto o balde e fujo pro Brasil.” Ele faleceu dois anos atrás e nunca conseguiu visitar o Brasil. Até o fim da sua vida, cada vez que a gente se encontrava, ele sempre me fazia mil perguntas sobre o Rio e o Carnaval, como quem estivesse pensando em organizar uma viagem daqui a pouco. O Osvaldo já não berrava mais, mas sempre olhava muito feio para ele.

Quando você desembarcou no Brasil concreto pela primeira vez houve um choque entre imaginação e realidade?

Luca – Minha primeira vez no Brasil foi em 1999, junto com meu irmão, e foi totalmente hilária. Na época eu estava finalizando a minha tese de graduação sobre o uso das metáforas bíblicas nos cronistas do Novo Mundo e tinha ganhado uma bolsa de estudo para pesquisar na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Lembro sobretudo do choque climático. Viajamos em julho, trocando o tórrido verão romano pelos trópicos, sem imaginar que nos trópicos as temperaturas não são sempre “tropicais”, no sentido estereotipado que a gente atribuía a esse adjetivo. Partimos completamente desprevenidos porque estávamos indo para um país que, pela fantasia, frequentávamos desde a infância. Na mala só tínhamos colocado bermudas, sungas, camisas de mangas curtas e protetor solar. Naquele dois meses choveu muito e fez um friozinho bastante violento. Para enfrentar a emergência tivemos de comprar roupa pesada. Às 17 horas já era escuro e isso para nós era inaceitável num país tropical! Mesmo com frio e sem entender quase nada adoramos a cidade. Não tínhamos outra opção, porque aquele lugar tinha para nós um fortíssimo valor emocional e afetivo que invalidava qualquer capacidade crítica. Voltamos para Roma com o protetor solar ainda lacrado, mas com os corações já completamente apaixonados pelo Rio.

Quantas vezes você voltou, desde então?

Luca – A partir de 1999 voltei quase todos os anos, ficando dois ou três meses. Durante o doutorado era bem legal porque dava para ficar direto, por muito mais tempo. Agora, com os compromissos da faculdade, é tudo mais complicado. No ano passado nem pude ir ao Brasil. Tenho desfilado nas escolas de samba sempre que vou e sempre em mais de uma escola. A Estácio (de Sá) é uma constante, seja no grupo especial ou no grupo de acesso. As outras se alternam: Império, Caprichosos, Mangueira, Salgueiro, União da Ilha, Porto da Pedra. Digamos que sou um “viciado do samba”: qualquer escola que oferece a possibilidade de desfilar… eu vou.

Por quê? Como é o “seu” Carnaval?

Luca – Meus primeiros carnavais cariocas foram vividos inconscientemente na minha casa, em Roma, durante a infância. Assim, passar o Carnaval no Rio tornou-se uma maneira de alimentar uma espécie de tradição de família. Os samba-enredos sempre tiveram um poder emocional muito forte para meus pais, meu irmão e eu. Quanto ao “meu” Carnaval no Rio, ele tem um dimensão plural e coletiva e, portanto, seria mais correto que eu fale do “nosso” Carnaval, aquilo que passo em companhia dos meus amigos. A cada ano chegamos ao dia do desfile absolutamente convencidos de que a nossa escola vai ganhar, mas a apuração pontualmente nos contradiz. Então, começamos a gritar que foi um escândalo, que a escola foi roubada, que chegou a hora de acabar com a nossa inglória carreira de foliões e que nunca mais iremos desfilar. Mas já em agosto, timidamente, voltamos a falar da escolha do novo enredo e dos esboços da fantasias… Nos últimos anos comecei a tocar na bateria de alguns blocos de rua. O problema inicialmente foi que eu não sabia tocar nenhum instrumento de percussão. Até fiz um cursinho para aprender o básico do tamborim. Mas, como alertava Noel Rosa, “o samba não se aprende no colégio”. Então, mudei de estratégia. Pensei que a única solução fosse escolher um instrumento pouco difundido que quase nenhum bloco tivesse. Foi assim que comecei a tocar o agogô. Ainda hoje toco mal pra caramba, mas graças à falta de concorrência sou sempre muito bem-vindo nas baterias. Aliás, o fato de ser estrangeiro às vezes ajuda. Um dia um amigo me apresentou ao diretor de um bloco de uma maneira completamente maluca: “O rapaz aqui é “Luca do agogô”. Ele é italiano, nunca desfilou com a gente, mas em Roma já tocou para o Papa em São Pedro durante a missa do galo”. O diretor me olhou emocionado e me perguntou se eu tinha conhecido pessoalmente o Bento XVI! (risos).

Se o Rio surgiu para você como um lugar mágico para onde fugir, é isso o que é, em certa medida, ainda hoje? Neste sentido, você foge do quê?

Luca – Geralmente se foge “de” um lugar e não “para” um lugar. No meu caso ficou a idéia infantil de que o Brasil é um destino que se alcança pela fuga, e não por uma simples viagem, mas sem que a partida implique escapadas ou evasões.

Você quer morar no Brasil? Como seria viver no lugar mágico de fuga? Não teme não ter mais para onde fugir?

Luca – Queria morar aí, mas sempre com uma passagem de volta para Roma na mão, como forma de preservar a magia do lugar e não renunciar à possibilidade de fugir de novo. Claro que tenho medo – e muito – de perder o meu lugar de fuga. E nem faço questão de averiguar esse risco. A experiência de quem me precedeu não foi promissora. O austríaco Stefan Zweig, cuja fama se liga principalmente ao livro Brasil, um país do futuro, foi vítima da mesma utopia que o seduziu e que contribuiu para sustentar. Para fugir do nazismo Zweig teve de enfrentar uma longa peregrinação pela Europa e pela América. Desembarcou no Brasil em 1936, quase por acaso, e foi logo amor à primeira vista. Descreveu a cidade do Rio de Janeiro como uma das impressões mais poderosas que experimentou na vida, uma mistura de fascinação e estremecimento causada pela paisagem e pelo tipo de civilização encontradas. Os destinos sucessivos foram Argentina, Portugal, França, Inglaterra, Estados Unidos, até resolver se mudar definivamente para o lugar dos seus sonhos, em 1941. Foi morar em Petrópolis, mas enquanto os meses passavam e a chance de voltar para a Europa tornava-se sempre mais improvável devido à extensão do conflito mundial, ele entrava no túnel de uma depressão progressiva. No ano seguinte, suicidou-se em pleno Carnaval, junto com a esposa. No dia anterior tinha descido ao Rio para assistir aos desfiles na Praça Onze. Será que eu estou fugindo do Berlusconi sem sabê-lo? (risos)

Quando está no Brasil, você tem saudade da Itália?

Luca – Em Roma sou capaz de rodar a cidade inteira em busca de um feijão preto importado ou de uma goiabada em lata. Eu, que quase não bebo, até cheguei a comprar cachaça só para sentir o cheiro. No Brasil revira-se o imã da saudade e começo a comprar compulsivamente macarrão. Depois de muita procura, achei até uma loja que vende uma marca importada de Nápoles. Nunca como tanto spaghetti – e faço questão da grafia italiana da palavra – como quando estou no Rio. (risos)

“Chico Buarque é um genial inovador da língua”

Por que você escolheu Chico Buarque como tema de estudo? Por que o Chico e não outro?

Luca – Estudar Chico Buarque foi uma decorrência natural do meu interesse pela literatura e pela música brasileira. Muitas músicas do Chico ficaram gravadas inconscientemente na memória sonora da minha infância. Mas não foi só a vontade de resgatar esse baú de lembranças musicais que me levou ao estudo da obra dele. Afinal, Chico Buarque não era o único artista brasileiro que a gente ouvia em casa. Minha primeira pesquisa no âmbito da literatura brasileira foi sobre os cronistas do século XVI e XVII. E daí fui me aproximando devagarinho da contemporaneidade. Para chegar ao estudo de Chico Buarque demorei bastante. E isso foi bom, porque enfrentar a obra dele não é fácil. Exige muito da gente. Para o crítico é um fascinante desafio interpretativo cheio de obstáculos e armadilhas.

Na sua opinião, qual é o significado de Chico Buarque para a cultura brasileira?

Luca – Na minha opinião, Chico Buarque representa uma das figuras imprescíndiveis da cultura brasileira contemporânea. Não é apenas um músico extraordinário, que avança idealmente no mesmo caminho iniciado por Villa-Lobos e continuado depois por Tom Jobim, mas é também um genial inovador da língua portuguesa que podemos colocar ao lado de clássicos consagrados como Machado de Assis, Guimarães Rosa e Carlos Drummond de Andrade. Antônio Cândido definiu Chico Buarque como “uma grande consciência, inserida num enorme talento”. Cada vez que sai um novo disco ou romance do Chico, a gente se dá conta de que esta consciência e este talento têm um tamanho muito maior do que se imaginava até aquele momento. Chico é um gênio em permanente expansão e evolução e por isso não deixará nunca de nos surpreender com a sua música e com a sua literatura. O estudo da obra dele é um exercício tão prazeroso e estimulante que se tornou o objeto principal das minhas pesquisas. E, assim, virei um “chicólogo”.

Como você começou a se tornar um “chicólogo”?

Luca – Comecei a me dedicar à obra de Chico Buarque durante o doutorado em Estudos Americanos na Universidade de Roma Tre. O título da minha tese era “Francisco-Francesco. Chico Buarque de Hollanda e a Itália”. Trata-se de uma reconstrução da relação do Chico com a Itália, a partir da estadia de 1953-54 até hoje, tentando um diálogo entre a vida e a obra. Recolhi muito material inédito ou pouco conhecido na Itália e no Brasil, como fotos, gravações, recortes de jornais, correspondências, etc. Ao mesmo tempo, tive o privilégio de entrevistar várias pessoas extraordinárias, famosas ou não. Além do próprio Chico e de seus familiares, pude contar com a colaboração de Sergio Bardotti, Toquinho, Ennio Morricone, Elza Soares, Lucio Dalla, Sergio Endrigo, só para citar os mais conhecidos. Foi uma experiência muito enriquecedora do ponto de vista humano antes que intelectual.

Você está escrevendo sobre o romance Budapeste. Pode contar um pouco sobre suas percepções?

Luca – A história de José Costa (personagem do livro) me ensinou que há sempre a possibilidade de plágios e roubos no mundo editorial. (risos) De repente alguém lê essa entrevista e resolve contratar um ghost writer para escrever um livro baseado nas minhas respostas. Já pensou nisso? A associação dos escritores anônimos é mais ativa do que o romance faz imaginar! (risos) E visto que ainda não assinei um contrato com uma editora, tenho que ser prudente nos adiantamentos. Em síntese, a minha pesquisa aborda o Budapeste focalizando-se no estudo do espaço, da intertextualidade e da linguagem. Trata-se de um trabalho de crítica literária que enriqueci também com as vozes das pessoas que entrevistei, inclusive aquela do próprio autor. O elemento recorrente nos vários níveis da análise proposta é a presença de um ménage à trois criativo entre o Brasil, a Hungria e a Itália. O Budapeste se tornou uma espécie de leitura obsessiva com a qual, daqui a pouco, vou celebrar seis anos de convivência. E o barato é que o livro ainda continua me surpreendendo. Por causa dele até me aproximei da cultura húngara e – ai de mim! – também um pouco do idioma, mas só o pouco suficiente para concordar com José Costa de que “o húngaro é a única língua que o diabo respeita”. Nos últimos anos já re-percorri todos os passos de José Costa no Rio e, provavelmente, na próxima primavera vou fazer uma breve viagem para Budapeste, apesar de o Chico ter escrito o romance sem visitar a cidade antes.

O quanto você se identifica com esse personagem entre duas cidades, duas línguas?

Luca – Na verdade, eu acabo me identificando com todos os personagens, até com os mais chatos, antipáticos e revoltantes. Acredito que essa tendência seja um elemento constituinte do processo de leitura. Afinal, os personagens de ficção têm a chance de sobreviver apenas graças a nós. Uma vez que fechamos um livro, eles não se extinguem, mas ficam conosco, iluminando com a própria sombra a nossa leitura do cotidiano. Com efeito, a vida de um personagem de ficção completa e complica a nossa experiência do mundo real. Cada um de nós, quando lê um livro ou escuta uma música, mergulha na história e nos sentimentos dos personagens e, daí por diante, começa a ver o próprio mundo de uma forma mais ampla, que abrange também a perspectiva deles. Esse processo de identificação acontece independentemente do sexo, da idade, do caráter ou do nível social do personagem. Graças à obra de Chico Buarque entramos em contato com uma galeria de personagens – e também de condições e sentimentos – extremamente variada. Nos tornamos íntimos de pedreiros, malandros, emigrantes, vagabundos, atrizes, sambistas, pivetes, prostitutas, favelados… E, ao mesmo tempo, assistimos a todas as possíveis declinações do amor – da paixão e da ternura até a raiva e a violência. Nessa lista, figura naturalmente também o José Costa, com a sua incapacidade de identificar-se plenamente com uma cidade, uma língua e uma cultura. No meu caso, o Budapeste oferece um acervo extraordinário de situações e cenas que recorrentemente desfruto para elaborar a percepção do que estou vivendo. Não posso negar, por exemplo, que no Rio as minhas caminhadas pela orla ficaram irremediavelmente marcadas por aquelas do José Costa. Sem que eu queira, suas palavras começam a bater na minha cabeça, misturando-se em harmonia com outras vozes e imagens que já encontrei em outros livros, músicas, filmes ou em experiências anteriores que já vivi na vida real. Os personagens de ficção têm a capacidade de nos surpreender quando menos esperamos, assim como acontece com as lembranças das pessoas que compartilharam conosco um trecho da existência.

Quando você virá ao Brasil novamente? Neste Carnaval?

Luca – Ainda não tenho uma previsão. De qualquer forma, outro dia me ligou meu amigo Adilson e me disse que a Estácio está linda e que vai ganhar o Carnaval, com certeza absoluta!

(Publicado na Revista Época em 15/11/2010)

Dilma-lá!

Faz alguma diferença ter uma mulher na presidência?

Não tenho resposta para esta pergunta. Mas acho interessante fazê-la. E pensar sobre ela. É claro – e é bom dizer logo no começo – que é importante, significativo e até histórico ter, pela primeira vez, uma mulher na presidência. Como Lula gosta de dizer, “nunca antes neste país” uma mulher ocupou este lugar. Supostamente, se uma mulher é eleita para ocupar o cargo máximo de poder em um país, então qualquer mulher pode ocupar qualquer posto, o que é uma conquista, ainda que na prática não funcione exatamente assim. Mas a pergunta que tenho me feito e que trago para esta coluna é se o fato de uma mulher ocupar a presidência faz alguma diferença por ser uma mulher – e não um homem. Se há um jeito feminino de governar.

Em 1938, pouco antes do início da II Guerra Mundial, a escritora inglesa Virginia Woolf publicou um ensaio em que respondia a um advogado que havia feito a ela a seguinte pergunta: “Como nós podemos evitar a guerra?”. Virginia respondeu a ele num texto corajoso e cáustico chamado “Três guinéus”, no qual relacionou “guerra, tratamento desigual das mulheres e patriarcado”. Logo no início ela já dizia que não existia aquele “nós”. Ainda que pertencessem à mesma “classe instruída”, ele era um homem e ela era uma mulher. E as mulheres não faziam guerra. A maioria dos homens sentia “uma glória, uma necessidade e uma satisfação em lutar” que a maioria das mulheres não sentiria. O texto desagradou até mesmo seus amigos mais íntimos, assim como uma parcela das feministas. A escritora, que não viu o conflito acabar porque acabou com a própria vida antes, afirmou que a guerra tinha um gênero – e este gênero era masculino. Para Virginia, era tarefa das mulheres emancipar os homens da violência para que a paz e a liberdade pudessem ser alcançadas. Tal feito só seria possível “destruindo os atributos masculinos, a violência e a idolatria do poder”.

Quando li esse ensaio, fiquei pensando no que milhares de mulheres ao longo da história já pensaram e continuam pensando: se há um jeito feminino de fazer política. Era outra época – e outro contexto. Mas ainda que muitos – e eu mesma – possam discordar das conclusões de Virginia Woolf, a questão é atual. E mesmo o movimento feminista tem dado diferentes respostas a ela. Lembrei desse ensaio ao me perguntar, a partir da eleição da primeira presidenta do Brasil, se há características de gênero que tornam o governo de uma mulher diferente do governo de um homem.

Se procurarmos na história das democracias modernas a diferença que mulheres fizeram no governo por ser mulheres não encontraremos nada no legado de Margaret Thatcher ou Golda Meir, por exemplo. Sobre esta última, aliás, David Ben-Gurion, o primeiro chefe de governo de Israel, disse em tom de elogio: “Golda Meir é o único homem do meu gabinete”. Já Thatcher foi “a dama de ferro” dos britânicos. Mesmo olhando para nossa época, nem governantes como Michelle Bachelet, ex-presidente do Chile, ou Angela Merkel, a atual chanceler da Alemanha, ou mesmo Cristina Kirchner, da Argentina, independentemente de sua competência, nos fazem supor que há “um jeito feminino de governar”. O mesmo vale para as governadoras e prefeitas do Brasil.

Há algum significado de conteúdo, para além do ineditismo, na ascensão da primeira mulher ao Planalto? Em busca de pistas para esta questão revisitei o que foi dito sobre a condição feminina de Dilma Rousseff ao longo da campanha eleitoral. Foi um percurso revelador.

Logo no lançamento oficial de sua candidatura, em junho, a própria Dilma tratou de marcar o ineditismo de uma mulher na presidência do Brasil como estratégia de marketing eleitoral. Ela disse: “Chegou a hora de uma mulher governar este país. Nós, mulheres, nascemos com o sentimento de cuidar, amparar e proteger. Somos imbatíveis na defesa da nossa família e dos nossos filhos”. Dilma, possivelmente aconselhada por Lula e por marqueteiros, anunciava ali as supostas vantagens de uma mulher para governar um país.

Primeiro, é arriscado afirmar que “cuidar, amparar e proteger” seja um sentimento inato das mulheres. Teríamos de acreditar que todas as mulheres guardam dentro de si desde a concepção o ímpeto de cuidar, amparar e proteger. E que todos os homens, por sua vez, não possuiriam este mesmo ímpeto. Em seu discurso, o “cuidar” está associado à família e aos filhos. Isso dito numa época em que uma parcela das mulheres escolhe não ter filhos e a parcela que opta por tê-los divide com o pai das crianças até mesmo a tarefa de trocar fraldas soa ultrapassado. É claro que há muitos homens que ainda acham que algumas tarefas e cuidados não lhes pertencem, mas estes são vistos cada vez mais como espécimes de um modelo arcaico.

Como Dilma defende que estes são os melhores atributos para uma governante, ela transforma o Brasil numa casa de família e nós todos em seus filhos. E Lula explicita ainda mais: “A palavra não é governar, mas cuidar”. Mais tarde Dilma dirá que vai “cuidar como uma mãe do povo brasileiro”. Logo, se acreditarmos nas palavras de Dilma, uma mulher não governa – cuida. E o melhor que uma mulher pode fazer como presidente é ser mãe.

Mais: segundo este discurso, ao governar ela transforma o público em privado – e cidadãos autônomos em crianças que precisam ser cuidadas, protegidas e eventualmente corrigidas. Em seguida, Lula esclarece que, sim, ela será mãe. Mas não de todos: apenas dos mais pobres entre nós. Dilma será a “mãe dos pobres”. Portanto, os pobres teriam, além da pobreza, o ônus de serem tratados como crianças numa relação desigual e baseada no afeto, cujas benesses viriam de seu bom comportamento nas urnas – e não cidadãos com direitos garantidos pela Constituição que legitimaram um governante com seu voto consciente por um período determinado.

Colocado dessa maneira – ainda que seja apenas discurso de marqueteiro, porque acredito e espero que Dilma seja mais inteligente que isso –, uma mulher na presidência seria não um avanço, mas uma regressão a um populismo tosco, ainda que matriarcal. A certa altura, Lula chegou a dizer que votar em Dilma era dar uma chance (à minha, à sua), à nossa mãe. E a seguinte letra foi cantarolada num jingle: “Deixo em tuas mãos o meu povo e tudo o que mais amei/ mas só deixo porque sei que vais continuar o que fiz/ o país será melhor e meu povo mais feliz/ do jeito que sonhei e sempre quis/ As mãos de uma mulher vai nos conduzir/ O meu povo ganhou uma mãe que tem um coração que vai do Oiapoque ao Chuí/ deixo em tuas mãos o meu povo”.

Depois do pai, a mãe. Depois da grande mulher atrás do grande homem evoluímos para o grande homem atrás da grande mulher. Ou seria o mito de Pigmalião aplicado à política?

Se levarmos a sério este discurso – e acho que precisamos levar porque foi também com ele que pela primeira vez uma mulher se tornou presidente do Brasil –, os principais trunfos de uma mulher na política e na administração pública seriam atributos colocados como inatos – e não conquistados com estudo, trabalho e esforço. E atributos ligados à biologia, à vocação reprodutiva da mulher. É por parir que uma mulher supostamente seria uma boa governante.

Em artigo recente, o teólogo Leonardo Boff desenvolveu a tese de que há uma ruptura entre o trabalho e o cuidado – e um predomínio do homem sobre a natureza e a mulher. Há, segundo ele, “uma urgência de feminilizar as relações” e, para isso, é preciso “reintroduzir em todos os âmbitos o cuidado”. Por ser mulher, Dilma seria, na opinião de Boff, capaz de fazer esta síntese. Acompanhe o raciocínio: “Ela poderá unir as duas dimensões do trabalho que busca racionalidade e eficácia (a dimensão masculina) e do cuidado que acolhe o mais pobre e sofrido e projeta políticas de inclusão e de recuperação da dignidade (dimensão feminina). Ela possui o caráter de uma grande e eficiente gestora (seu lado de trabalho/masculino) e ao mesmo tempo a capacidade de levar avante com enternecimento e compaixão o projeto de Lula de cuidar dos pobres e dos oprimidos (seu lado de cuidado/feminino). Ela pode realizar o ideal de Gandhi: ‘política é um gesto amoroso para com o povo’”.

Aqui, vale a pena observar quais são as qualidades atribuídas a cada gênero. Ao masculino, a racionalidade, a eficácia e o “lado trabalho”. Ao feminino, o cuidado, a ternura, a capacidade de acolhimento, a compaixão e a atitude amorosa. Se concordarmos com esta divisão de atributos correspondentes a cada gênero, Dilma Rousseff está apta a governar porque sintetiza o masculino e o feminino em seu corpo de mulher. Poderíamos pensar então que é preciso ser mais do que uma mulher para governar. É necessário ser um tipo particular de mulher, uma mulher com um homem dentro dela.

Mas vamos seguir adiante. Quando Dilma foi entrevistada no Jornal Nacional, Lula achou que o apresentador William Bonner foi duro demais. Ao reclamar, o argumento que usou foi: “Eu, que conheço debates há muitos anos, esperava que pelo fato de você ser mulher e ser candidata, o entrevistador tivesse um pouco mais de gentileza”. Deu a Dilma uma rosa por ter mantido “a calma e a tranquilidade” durante a entrevista. Se acreditarmos neste discurso, teríamos de ficar preocupados com as futuras e inevitáveis negociações duras que nossa presidenta terá de enfrentar dentro e fora do país. E sugerir que os chefes de Estado levem rosas nas negociações com as governantes do mundo.

O mais curioso é que Dilma era conhecida como uma administradora dura. As palavras usadas para descrevê-la eram “truculenta”, “autoritária”, “mandona”, “forte”, pouco afeita a conciliações. Sua voz grossa ajudava a compor esta imagem. Para os preconceituosos – e isso ficou explícito nos ataques na internet –, ela seria uma “mulher masculinizada”. Escutei estarrecida, mais de uma vez, mulheres comentarem que Dilma não as representaria porque não era, “como poderiam dizer, uma mulher-mulher”.

Ao começar a ser esculpida como candidata, Dilma passou por uma espécie de “feminilização”, tomando por modelo uma ideia de mulher mais compatível com o tempo de nossas avós. Submeteu-se a cirurgias plásticas e tratamentos estéticos, mudou o cabelo, trocou o guarda-roupa, modulou a voz. Tudo no sentido de transformá-la numa mulher mais “feminina”, numa candidata mais suave e palatável, em alguém que o povo pudesse identificar com uma maternidade tradicional. Submeteu-se a uma metamorfose difícil – precisava se fragilizar para se adequar a uma ideia muito específica de feminino e se manter forte para convencer como futura governante. Ao submeter-se a isso acredito que Dilma Rousseff fez um desserviço às mulheres deste país. Por que Dilma não poderia ser uma mulher como Dilma efetivamente é? Por que Dilma precisou ser outra para convencer como mulher?

Vale a pena voltar a Virginia Woolf e a quase um século atrás. Numa conferência que a escritora fez em 1931, para as mulheres reunidas no Congresso da National Society Women’s Service, em Londres, ela defendeu o “matricídio”. Simbólico, obviamente. Para se tornar escritora e uma mulher com expressão pública, ela confessa que precisou “matar” a sua mãe, o modelo de uma mulher que era só bondade, generosidade, compreensão, doçura e beleza, que se dedicava de corpo e alma aos outros, confortava, pacificava, se sacrificava. Como diz uma de suas biógrafas, Nadia Fusini, precisou matar a imagem que é a base da hagiografia feminina vitoriana, o “anjo do lar”.

Nesta campanha, o que assistimos – alguns de nós bem espantados – foi exatamente a volta do “anjo do lar”, mas aplicada à política e transferida ao espaço público, o que é bem curioso. Esta imagem do feminino, aliada a atributos identificados como masculinos, como “racionalidade, eficácia e um lado trabalho”, supostamente tornavam Dilma Rousseff uma candidata qualificada e a tornariam uma boa presidente para o Brasil. E aqui não estou analisando em que medida esta embalagem funcionou ou não – apenas apontando as escolhas que foram feitas para definir o feminino e suas vantagens na política e na governança.

Chocadas com o slogan “Pátria livre, Pátria Mãe”, algumas feministas ligadas ao PT lembraram que não bastava ser mulher, era preciso se comprometer com uma agenda de políticas públicas relacionadas às mulheres. É discutível, como tudo. Mas se acreditarmos que esta é uma diferença significativa entre o governo de um homem e de uma mulher, Dilma recuou de sua posição sobre o aborto na primeira ameaça de perder votos de parte dos evangélicos e dos católicos. Não hesitou em assinar uma carta comprometendo-se a não alterar a legislação do aborto nem “promover nenhuma iniciativa que afronte a família”. A descriminalização do aborto tem sido uma luta histórica das feministas brasileiras.

Completado o percurso, não há nada que nos esclareça se faz alguma diferença ter uma mulher – por ser mulher – na presidência do Brasil. O tratamento estapafúrdio do feminino – e o que Lula e os marqueteiros fizeram da mulher que é Dilma Rousseff, assim como o que ela deixou fazer consigo mesma – só nos revelam que foi uma campanha de baixo nível – em todos os sentidos. Resta-nos torcer que a indigência dos argumentos sobre o feminino seja apenas obra de marqueteiros, não crença real de quem tem a tarefa de comandar o país. Em certo momento, juro, temi topar com algum slogan do tipo “Serra é de Marte, Dilma é de Vênus”. Por sorte, acabou. E agora, talvez, possamos descobrir quem é esta mulher chamada Dilma Rousseff.

Tomara que a gente goste.

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P.S. 1 – Em algumas semanas, uma coluna é pouco diante dos temas factuais sobre os quais eu gostaria de escrever. Foi o caso da semana que passou, pródiga em barbaridades. Como precisei escolher, queria deixar aqui meu repúdio (e meu horror) à censura de Monteiro Lobato nas escolas públicas pelo Conselho Nacional de Educação. E sugerir a leitura de uma coluna anterior na qual o psicanalista Mário Corso argumenta brilhantemente sobre a influência (nefasta) do politicamente correto em nossas vidas.

P.S. 2 – Outra indignidade foi o “rodeio das gordas”, promovido por estudantes da Unesp de Araraquara, no interior paulista. Se o que aconteceu é reflexo de várias mazelas atuais, inclusive a da educação, é também reflexo do preconceito que perpassa nossa sociedade, obcecada por uma ideia distorcida de saúde e por um modelo de beleza anoréxico. Em geral destilado em doses mais ou menos disfarçadas, neste caso o preconceito foi levado ao extremo e a uma atitude criminosa. Espero que não fique impune. Escrevi duas colunas sobre o tema que podem nos ajudar a refletir: Porca Gorda e O insustentável peso do ser.

Boa leitura e até a próxima!

(Publicado na Revista Época em 01/11/2010)

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