Cabeça a prêmio: R$ 80 mil

Defensor da floresta pede ajuda para não morrer

No porto de Altamira, Raimundo Belmiro se prepara para embarcar na voadeira que o levará de volta para casa. Junto com ele viaja o tio, Herculano Porto. Só alcançarão seu destino, a Reserva Extrativista Riozinho do Anfrísio, no Pará, depois de três dias de viagem por rio. Só é possível navegar com a luz do sol. À noite assam no fogo de chão o que pescaram horas antes nas águas, para comer com farinha, amarram a rede numa árvore e dormem para acordar com o barulho impressionante dos macacos. Eles moram numa região da Amazônia entrincheirada entre os rios Xingu e Iriri – e conhecida por um nome mítico: Terra do Meio. Quem olha para Raimundo e Herculano enxerga dois homens pequenos. Raimundo mais falante, Herculano mais sestroso. São dois gigantes. Todos nós, brasileiros, devemos a eles a preservação de um pedaço da floresta. Nesta guerra travada no coração turbulento da selva, os dois quase perderam a vida anos atrás. E hoje, mais uma vez, aos 46 anos, Raimundo Belmiro tem a cabeça a prêmio. O preço: R$ 80 mil.

Primeiro, é preciso compreender que, na Amazônia brasileira, as ameaças precisam ser levadas a sério. Na luta para proteger a floresta há uma trilha de cadáveres de homens e mulheres honestos, em geral anônimos, quase sempre abandonados pelo Estado.

Se no Rio de Janeiro, no Sudeste do país, uma juíza é executada com 21 tiros, dá para imaginar como a violência se desenrola nos confins do Brasil. Somente em maio, como todos sabemos, cinco pessoas foram assassinadas na Amazônia porque lutavam pelo que todos nós deveríamos estar lutando. Mas não estamos. Se existe floresta nativa em pé, tenhamos certeza, é por causa da luta dessa gente que se organiza, que grita e que morre – e que às vezes consegue fazer o Estado cumprir a lei.

Se Raimundo Belmiro for assassinado depois de ter pedido proteção, a responsabilidade será do governo federal – e também será nossa. Desde o início de agosto, o ICMBio (Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade) sabe que Raimundo Belmiro está com a cabeça a prêmio. O ICMBio é o órgão do governo federal responsável por “fomentar e executar programas de pesquisa, proteção, preservação e conservação da biodiversidade e exercer o poder de polícia ambiental para a proteção das Unidades de Conservação federais”.

Apesar de ser área de proteção federal, a reserva extrativista tem sido desmatada pelos fundos, a partir de uma localidade chamada Trairão. Ao derrubar a floresta, os bandidos deparam-se com a resistência de Raimundo Belmiro, principal liderança do Riozinho do Anfrísio. É por isso que seu nome circula entre a pistolagem da região. Como antes aconteceu com Brasília, Dema, Dorothy, Zé e Maria, apenas o nome de alguns tombados nos últimos anos no Pará.

Estas são as palavras que Raimundo me pediu para levar ao Brasil e ao mundo:

– Se as autoridades me entendessem e vissem que eu tenho valor, eu queria uma proteção. Uma coisa séria, porque não tá fácil pra mim. Eles sabem quando eu tô na floresta, sabem quando eu tô em Altamira. Estou desprotegido, só tenho a proteção de Deus. E o pessoal tá invadindo lá dentro do Riozinho, tirando madeira. E essa gente ataca pelas costas. À traição.

Raimundo fez esse mesmo pedido de proteção ao escritório do ICMBio de Altamira, no início de agosto. Nesta última sexta-feira, 19, falei com Paulo Carneiro, coordenador-geral de proteção ambiental do ICMBio, em Brasília. Apesar de terem se passado mais de dez dias, Carneiro afirmou que tomara conhecimento da ameaça de morte apenas naquele momento, a partir do meu contato. Também disse que o órgão estava ciente de que existiam focos de desmatamento na reserva extrativista. E assegurou que falaria com Raimundo Belmiro e providenciaria sua proteção a partir desta semana. Caberá a todos nós garantir que essa promessa seja cumprida e que a Amazônia não seja manchada mais uma vez de sangue, em mais uma morte anunciada.

Conheci Raimundo Belmiro, este homem pequeno, de sorriso meio encabulado e coragem amazônica, em 2004. Como 99% dos moradores do Riozinho do Anfrísio, Raimundo Belmiro não existia no Brasil oficial. Não tinha carteira de identidade, nem votava. Descendentes de soldados da borracha, nordestinos pobres levados para o interior da floresta pelo governo de Getúlio Vargas na Segunda Guerra Mundial, eles foram abandonados na selva quando a o látex deixou de valer a pena. Raimundo e cerca de duas centenas de pessoas viviam quase sem contato com o restante do Brasil. Viviam do extrativismo, como outros milhares de protetores anônimos da floresta.

Mas, se o Estado os ignorava, grileiros e desmatadores não. Eram estes ribeirinhos que estavam entre eles e os lucros da devastação. Para ameaçá-los, os bandidos desfilavam pelo rio com capangas exibindo suas armas, botavam fogo em castanhais e algumas vezes também em casas da Terra do Meio. Sozinhos, armados apenas com velhas espingardas que só serviam para caçar paca, os moradores resistiam lutando pela floresta e pela vida – duas entidades que, para nossa sorte, nunca puderam separar.

Naquele tempo, Raimundo Belmiro, Herculano Porto e Luiz Augusto Conrado (o Manchinha), as três principais lideranças da região, conviviam com a certeza de poderem ser assassinados no próximo segundo. Contei esta história, junto com o fotógrafo Lilo Clareto, numa reportagem publicada em 4/10/2004, que pode ser lida aqui: O Povo do Meio. Na época, a ex-seringueira Marina Silva era a ministra do Meio Ambiente. Como nenhum outro político neste país, Marina compreende a floresta e os homens e mulheres da floresta. E sabe que lá ameaça de morte vira morte.

Naquele momento, com uma sensibilidade que hoje faz muita falta no governo, Marina Silva disse: “O Estado e a sociedade brasileira têm uma dívida com a população extrativista que presta um serviço lá no coração da Amazônia, protegendo a nossa biodiversidade, cuidando dos rios e das florestas. É uma questão de justiça e de estratégia. Eu vivi o que eles viveram. Quando olhei para eles, vi minha gente. Sabia o que eles estavam passando. Não é coisa de entender racionalmente, mas de entender com o coração”.

Por ordem de Marina, os três foram retirados da selva de helicóptero e levados a Brasília para que contassem da guerra da floresta. Ali, ganharam identidade: a do documento e a da história escutada. Em novembro de 2004, Lula assinou o decreto criando a reserva extrativista Riozinho do Anfrísio. Em dezembro, o governo federal deu a Raimundo Belmiro o prêmio Defensores de Direitos Humanos. Agora, sete anos depois, Raimundo mais uma vez está sendo caçado por pistoleiros.

Peço agora que cada um pare de ler por um instante para tentar imaginar o que significa estar no meio da floresta amazônica, ameaçado de morte.

É assim que Raimundo Belmiro se sentia em 2004. É assim que se sente agora.

Antes de empreender sua longa jornada selva adentro, Raimundo Belmiro me disse:

– Se me matarem, Eliane, matam um homem.

É por ser um homem que Raimundo Belmiro precisa continuar vivo.

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P.S. – Para saber mais sobre Raimundo Belmiro e a Amazônia, você pode ler O Povo do Meio, À Espera do Assassino e Se a Amazônia é nossa, por que não cuidamos dela? Também pode buscar informações nos sites do Instituto Socioambiental e Movimento Xingu Vivo Para Sempre, entre outros.

(Publicado na Revista Época em 22/08/2011)

A vida sugada por um ralo de piscina

Uma mãe leva ao Congresso sua luta pela proteção dos filhos dos outros

Sempre que viajo, seja em um ônibus ou avião, olho ao meu redor e penso no que leva cada uma daquelas pessoas desconhecidas para o mesmo destino que o meu. Sei que o destino apenas parece o mesmo no mostrador da sala de embarque, mas que é sempre diferente para cada um de nós. Assim como sei que cada pessoa de fato não carrega uma mala, mas sua história. E que algumas delas suportam um excesso de peso que não pode ser mensurado na balança do check-in. Na véspera de 9 de agosto, talvez alguém possa ter olhado para aquela mulher de olhos verdes, cabelos ondulados, calças pretas, bata estampada e salto alto, e pensado que ela era uma executiva ou mesmo uma assessora parlamentar no voo SP-Brasília das 15h51. Ela recusa a bebida e o lanche que a aeromoça oferece. Aceita uma bala. Gestos casuais, escolhas que nada dizem. Talvez a passageira da janela esteja fazendo dieta. Ou tensa demais para comer ou beber. Ou apenas enfastiada ou enjoada. Nem mesmo alguém com muita imaginação poderia supor que uma parte essencial daquela mulher não está ali, mas presa no fundo de uma piscina há 13 anos.

Odele Souza, este é o seu nome, embarcou naquele avião porque sua filha teve os cabelos, tão parecidos com os dela, sugados pelo ralo da piscina do condomínio em que a família vivia, em São Paulo. A sucção era tão forte que o irmão mais velho puxou a menina de 10 anos com toda a sua força e só conseguiu arrancar um punhado de cabelos. Desde então, Odele vive uma dor que ninguém pode medir: a de testemunhar sua filha crescer e se tornar mulher deitada em uma cama, sem consciência de si mesma. Flavia tem hoje 23 anos.

Em Brasília Odele se encontrou com um homem que também carregava um peso invisível à balança eletrônica. Ele vinha do Rio de Janeiro para encontrá-la. Com a mesma tragédia, ele difere de Odele porque sua dor ainda é carne viva. Este homem é pai. E perdeu sua filha mais velha, também com 10 anos, quando ela brincava numa piscina de fibra de vidro na casa de amigos numa festa de aniversário. Em certo momento, os amigos resolveram sair da piscina em busca de outra brincadeira. Ela ficou. Plantava bananeira quando teve os cabelos sugados pelo ralo. Só conseguiram tirá-la de lá depois de desligar a bomba da piscina. Muito tarde para a menina. Como Flavia, ela era excelente nadadora. Diferentemente de Flavia, ela morreu ali.

Era 12 de fevereiro deste ano. E esse pai não consegue falar de sua perda imensurável sem chorar. Ele é professor de educação física e começou a ensinar sua filha a nadar quando ela tinha três meses de idade. Odele sabe que o choro vai secar um dia. Para ela, foram dois longos anos em que as lágrimas se tornaram parte de seu olhar. Depois, elas foram estancando e agora aparecem em geral à noite, quando se sente muito só entre as paredes do seu quarto. Odele sabe que as lágrimas até podem secar, mas a dor não acaba nunca.

E é por saber disso que ela e esse pai estão ali. Junto com eles há um perito americano, Lawrence Doherty, que foi consultor das leis de segurança nas piscinas aprovadas nos Estados Unidos e na Colômbia, e o brasileiro Augusto Cesar Araújo, representante da Associação Nacional dos Fabricantes e Construtores de Piscinas e Produtos Afins. À noite, no hotel, eles alugam um projetor de slides e acertam os últimos preparativos para a exposição em PowerPoint que farão no dia seguinte para o deputado federal Darcísio Perondi (PMDB-RS), relator da lei federal de segurança nas piscinas que tramita no Congresso.

Foi Odele quem reuniu aquele grupo na capital federal para propor uma emenda ao projeto de lei que possa garantir que nenhuma criança ou adulto morra porque seus cabelos ou membros foram sugados pelo ralo de uma piscina. Às vezes a pressão é tão forte que chega a sugar parte dos intestinos, como aconteceu com Abigail Taylor, uma menina americana de 7 anos. Uma ameaça real, que mata pelo menos uma pessoa por ano no Brasil, isso se forem considerados apenas os casos divulgados pela imprensa – uma minoria. O Brasil é um dos países com maior índice de mortes por afogamento no mundo – mas não há estatísticas oficiais de quantos deles são causados pela sucção dos ralos das piscinas.

Do interior do seu apartamento em São Paulo, de onde pouco pode sair porque Flavia está presa a uma cama e ela é refém dessa tragédia, Odele se conecta à internet e usa a tecnologia para mover uma campanha incansável para que os brasileiros saibam que, mesmo no fundo das piscinas mais rasas, pode haver perigo de morte. Um risco que poderia ser evitado com o uso de equipamentos simples de proteção, como tampas antiaprisionamento e dispositivos que desligam automaticamente a bomba em caso de obstrução ou bloqueio do ralo. Como, por ignorância ou descaso, não existe a atenção devida à segurança, Odele briga para salvar a vida dos filhos dos outros de ter o destino da sua.

Como Flavia teve a fala roubada, sua mãe criou uma voz para ela. No blog Flavia vivendo em coma, Odele narra sua luta cotidiana por um mundo onde crianças não percam o futuro apenas porque estavam brincando em uma piscina num dia quente de verão. E, para ela, é como se Flavia pudesse falar, e estivessem juntas nessa batalha por dignidade. Contei a história dessas duas mulheres em uma reportagem chamada Saudades de sua voz. E também em um texto nesta coluna, com o título de Deus e a Eutanásia. Desde 2009 tenho testemunhado a força de Odele Souza. E mais uma vez pergunto a ela: “Por que você briga tanto para que os filhos dos outros não morram?”. E ela me responde, com a inteireza de sempre e um olhar que queima, mesmo quando suas pupilas bóiam em água salgada:

– A luta por uma Lei Federal para Segurança em Piscinas, com ênfase na sucção dos ralos, significa muito para mim. Além da indiscutível importância pública, essa luta me ajuda a conviver com o fato de ter visto Flavia crescer numa cama sem possibilidade de se tornar uma jovem como qualquer outra de sua idade. Sem a chance de estudar, se divertir, namorar, enfim, viver a sua juventude de forma saudável. Essa luta me ajuda a conviver com o fato de ver Flavia crescer nessa “cama-casulo”, se tornando uma borboleta. Que essa minha luta possibilite à Flavia, mesmo presa e imobilizada em seu estado de coma, voar o mais alto que ela possa. Que Flavia voe alto e longe e que leve às outras vítimas desse tipo de acidente – e são muitas – uma mensagem de amor, de resistência e de cidadania por alertar para o perigo existente nos ralos de piscinas. Antes da tragédia ocorrida com Flavia, poucos sabiam que ralos de piscinas – se vendidos, instalados e mantidos fora dos padrões de segurança – podem prender embaixo d’água uma pessoa pelos cabelos, ou por qualquer outra parte do corpo. Antes do mergulho sem volta de Flavia, poucos sabiam que ralos de piscinas podem matar ou deixar uma pessoa em coma. Com minha luta tento compensar, se é que isso é possível, a dolorosa convivência com o silêncio ao qual Flavia foi condenada a viver. Diante da cruel imobilidade imposta à minha filha, eu não me permito ficar imóvel. Diante da imobilidade e do silêncio impostos à Flavia, eu preciso estar em constante movimento. E preciso gritar. Gritar por mim, por Flavia e por todas as vítimas que morreram afogadas enquanto nadavam em uma piscina sem segurança.

Odele é assim. Intensa e inteira, mesmo sabendo que para sempre lhe faltará um pedaço essencial de si. Quando penso nela, a enxergo ao lado de Flavia, que se tornou uma moça de beleza suave sobre a cama. Em seu coma vígil, ela abre os olhos durante o dia e os fecha à noite, e se sobressalta com qualquer ruído. Vejo Odele com seu inseparável lap top, sentada perto de sua filha, gritando por justiça enquanto em sua casa o silêncio a perfura. Pelas internet ela descobriu peritos em diferentes países do mundo, arregimentou aliados e fez amigos. E no dia 9 alcançou Brasília. Depois de duas horas de exposição e da entrega de um texto cuidadosamente elaborado ao longo de meses com a sugestão de emenda ao projeto de lei, Odele deixou a Câmara dos Deputados com a promessa de que sua proposta será incluída e que o projeto será votado o mais rápido possível – talvez até o final desse ano. Se alguém fez a Odele uma promessa que não pretende cumprir, mal sabe a encrenca que se meteu. Conheço poucos brasileiros tão obstinados quanto ela. Dia após dia, Odele acorda para gritar.

No voo de volta Odele estava ansiosa. Afastar-se de Flavia exige uma operação complexa. Ela não conta com nenhum familiar para ajudá-la. Na ansiedade, pergunta ao passageiro ao lado se ele tem filhos. Ele responde que tem. Odele tenta contar sobre a sua luta. O passageiro ouve, mas parece não escutar e nada diz. Quando chega em casa, é para Flavia que Odele narra mais um capítulo da história que constrói para ambas. Como ela diz: “Em minha eterna conversa com minha filha, onde só se ouve a minha voz”. É chorando que Odele diz à Flavia:

– Princesa, mesmo sem sair da cama e do seu quarto, você viajou comigo para Brasília. Você estava presente na reunião. Você voou, Flavia.

(Publicado na Revista Época em 15/08/2011)

O Dia do Medo Macho

Os “machões” da Câmara de São Paulo estão precisando de terapia

Quando li nos jornais que a Câmara de Vereadores de São Paulo tinha aprovado um projeto de lei criando o “Dia do Orgulho Hétero”, minha primeira reação foi de indignação. Como cidadã que tem crises de bronquite por causa da poluição da cidade, em que ônibus, carros e caminhões circulam deixando nuvens de fumaça com monóxido de carbono, entre outras porcarias, sem que ninguém pareça fiscalizar. Como cidadã que tropeça nos buracos de calçadas quando anda a pé e já sofreu trancos na coluna quando anda de carro por causa da péssima pavimentação das ruas. Como cidadã que passa horas todo dia num trânsito empacado e é empurrada e machucada em trens e ônibus lotados porque o transporte público é insuficiente e ineficiente e a população que dele depende é tratada como gado. Como cidadã que testemunha a péssima qualidade da educação pública e do atendimento nos postos de saúde. Como cidadã que sofre nos períodos de seca com a qualidade do ar, mas teme a chuva porque ano após ano os mais pobres morrem soterrados ou têm suas casas destruídas por causa do descaso do poder público e de obras adiadas. Como cidadã que vive tudo isso na cidade mais rica de um país que é a sétima economia do mundo, ao ler a notícia minha primeira reação foi de indignação.

Afinal, será que os vereadores que deveriam honrar o voto da população não têm problemas reais para discutir no seu tempo muito bem pago com dinheiro público? Mais ainda ao saber que o autor do projeto, o vereador Carlos Apolinario (DEM) apresentou a proposta em 2005 e só conseguiu aprová-la, em primeira votação, no ano de 2007. Botou de novo a proposta em discussão em junho deste ano e, desde então, segundo a imprensa paulistana, estava emperrando a análise de outros projetos para, como chegou a ser dito, “vencer pelo cansaço”.

Quem é Carlos Apolinario, o homem que está tão preocupado com os gays? Como lembrou Fernando de Barros e Silva, colunista da Folha de S.Paulo, Apolinario é um adepto do troca-troca, pelo menos na política: “Já esteve no PMDB, passou por um tal de PGT, frequentou o PDT e hoje se abriga no DEM”. Mas, pelo empenho demonstrado, parece que aprovar o “Dia do Orgulho Hétero” era uma questão de convicção e de fidelidade para o vereador. E o projeto foi aprovado por 31 de 55 vereadores que só estão lá porque seus eleitores pensaram que fariam um bom trabalho.

Datas como o “Dia do Orgulho Gay” ou o “Dia da Mulher” ou o “Dia da Consciência Negra” fazem parte da luta pelos direitos básicos de parcelas da população que historicamente sofreram – e ainda sofrem – as consequências da discriminação e do preconceito por aquilo que são. Os gays, por exemplo, contra os quais o “Dia do Orgulho Hétero” se opõe, têm sofrido diariamente por séculos e continuam a ter ainda hoje sua vida ameaçada mesmo em cidades como São Paulo, em que os casos de homofobia aparecem com frequência alarmante nas manchetes da imprensa. Dezenas de pessoas são assassinadas por ano no Brasil por causa de sua orientação sexual. E, em julho, um homem teve parte de sua orelha decepada no interior de São Paulo ao abraçar seu filho porque foram “confundidos” com um casal homossexual – como se isso justificasse a violência.

A homofobia é um problema sério, que tem ameaçado a vida de cidadãos honestos, pagadores de seus impostos, que com seu trabalho ajudam a manter São Paulo e o Brasil funcionando. E a homofobia merece a preocupação dos vereadores de São Paulo. Em vez de se preocupar com isso, o que eles fazem? Aprovam uma lei que só vai acirrar a violência.

Em seu site oficial, Carlos Apolinario, que se autointitula “o vereador das mãos limpas”, discorre sobre “heterofobia” e “ditadura gay”. E assim justifica seu projeto: “Na verdade, meu projeto de lei que cria o Dia do Orgulho Hétero não significa um ataque à figura humana dos gays, que eu respeito. Meu objetivo é combater os excessos e privilégios praticados pelos gays”.

De fato, como todos sabemos, na vida real não há notícia de nenhum heterossexual sendo espancado por gays na Avenida Paulista ou discriminado na escola, no trabalho e em espaços públicos, como acontece com os homossexuais. Não há notícia de nenhum heterossexual ouvindo piadas nem risinhos por onde passa. Logo, o “Dia do Orgulho Hétero” pode ser interpretado como, no mínimo, uma provocação vulgar. Mas com consequências nefastas, na medida em que a homofobia tem causado a morte de seres humanos.

Como os heterossexuais nunca tiveram seus direitos nem sua vida ameaçados por causa de sua orientação sexual, não há justificativa para uma data como esta ser aprovada pela Câmara e fazer parte do calendário oficial de São Paulo. Como disse Pedro Estevam Serrano, professor de direito constitucional da PUC-SP: “Constitucional é (a lei). Mas, legítima no sentido humano, não é. Não é uma atitude de paz, é uma atitude beligerante”.

Por tudo isso, minha primeira reação foi de indignação. E, como cidadã, é indignada que devo me manter, já que a lei foi criada e aprovada por homens e mulheres públicos para ter repercussão e consequências públicas sobre a vida dos milhões de moradores de São Paulo. E com ecos no país e fora dele.

Mas, é sempre bom a gente dar a volta, e tentar compreender porque homens como Carlos Apolinario e os outros 30 que votaram a favor de seu projeto tiveram a atitude que tiveram. Sempre vale a pena vestir a pele do outro, ainda que em casos como este seja uma tarefa e tanto. A pergunta que me fiz foi a seguinte: “Por que homens e mulheres heterossexuais, que nunca tiveram sua orientação sexual questionada ou sofreram qualquer discriminação por causa dela, se sentem tão ameaçados pela homossexualidade do outro?”.

E segui com questões que me permitissem alcançar Carlos Apolinario e os outros 30: “Se eu me considero heterossexual e estou em paz com minha orientação sexual, por que vou me incomodar com a do outro? Por que preciso criar uma lei que se oponha ao modo de ser do outro, se ele e o mundo inteiro respeitam o meu modo de ser? Por que me sinto ameaçado por uma expressão da sexualidade que é pessoal apenas porque é diferente da minha?”. Por quê?

Em geral, a violência, seja ela física ou psíquica, é uma reação à percepção de ameaça. Você reage para se defender. Sente-se inseguro, arma-se (com pistolas, palavras ou leis) e reage com violência porque não consegue lidar de uma forma mais sofisticada com aquilo que interpreta como uma agressão. Se, na vida pública, não há nenhuma ameaça contra os heterossexuais sob nenhum ponto de vista, logo, não é aí que está o nó da questão. Portanto, é legítimo pensar que a ameaça possa ser uma percepção de foro íntimo para Carlos Apolinario e os outros 30. E, por dificuldades de lidar com essa questão no âmbito pessoal e privado, ela acabou se manifestando em fórum indevido, consumindo dinheiro público e acirrando problemas coletivos numa cidade que tem sido palco de crimes movidos pela homofobia.

Com isso não quero reforçar o clichê de que quem se sente incomodado com os gays pode estar com sua homossexualidade escondida no armário. Mas lembrar o que a necessidade de criar o “Dia do Orgulho Hétero” só desvela: a sexualidade é um território pantanoso e, para cada homem e mulher é pantanoso de uma maneira diversa. Não sei que tipo de perturbação moveu cada um dos vereadores que aprovaram a lei – e suas pulsões só acabaram por dizer respeito a mim e a todos os cidadãos de São Paulo porque eles fizeram dela algo público – fizeram dela uma lei.

Carlos Apolinario e os outros 30 não merecem o nosso escárnio, mas sim a nossa compaixão. Estes muitos homens e algumas mulheres precisam de ajuda, não de condenação. Preocupada com essa constatação, fui conferir seus rendimentos e verifiquei que um vereador de São Paulo recebe, por mês, R$ 15.033 de salário, além de R$ 16.359 de verba de gabinete para despesas variadas. Conclusão: dá bem para pagar uma terapia, dá não? Eles serão mais felizes e, mais bem resolvidos, poderão até se dedicar aos problemas reais de São Paulo. Nós todos, por razões humanitárias e de cidadania, agradecemos.

(Publicado na Revista Época em 08/08/2011)

A amnésia dos 40

E o que ela pode nos lembrar

Em uma noite, a inglesa Naomi Jacobs foi dormir com 32 anos. Na manhã seguinte, acordou com 15. Naomi tinha perdido 17 anos de memória em um caso raríssimo de amnésia. Quando despertou, pronta para encontrar as amigas e paquerar os meninos na escola, descobriu que tudo havia mudado. Horrorizou-se com o fato de ainda morar em Manchester, ter se tornado psicóloga e ser a mãe solteira de um filho de 11 anos que não reconhecia. Não tinha familiaridade com celular nem internet, não sabia que o mundo mudara depois do 11 de setembro. Acordou pensando estar no século XX e deparou-se com o século XXI. Despertou pensando que era jovem e tinha todas as possibilidades diante dela. E descobriu que a juventude tinha passado. Em suas palavras:

– Era como se eu tivesse dormido em 1992, como uma garota atrevida e autoconfiante de 15 anos, e acordado como uma mãe solteira de 32 anos. Quando acordei, olhei no espelho e levei o maior susto quando vi uma mulher com rugas me encarando. Não foi engraçado como Michael J. Fox em “De volta para o Futuro”. Eu havia adormecido num mundo de infinitas possibilidades e acordado num pesadelo.

Naomi acordou com uma memória de 15 anos em um corpo e numa vida de 32 no ano de 2008. Mas só agora contou sua história à imprensa britânica. Ela já recuperou a maior parte das lembranças e está escrevendo um livro sobre sua extraordinária – e aterradora – experiência.

Sua história lembra uma tirinha antológica do cartunista Laerte, publicada na Folha de S. Paulo. Nela, uma adolescente entra na tenda de uma cigana para saber do seu futuro. No último quadrinho, a jovem tinha se transformado em uma velha. Este, afinal, é o futuro de todos nós – pelo menos dos mais sortudos entre nós, daqueles não tiverem a vida interrompida por bala perdida, acidente ou doença. E não é necessário nenhuma bola de cristal para saber. Apenas que, para viver, preferimos nos esquecer desta que é uma das poucas certezas com que se pode contar na vida.

Conversando com amigos sobre a extraordinária história de Naomi Jacobs, percebo que o pesadelo é recorrente. Em geral, acho que esse despertar, que ela antecipou com violenta literalidade, acontece por volta dos 40 anos. É quando compreendemos que a juventude se foi. E o que é a juventude? É o tempo das possibilidades. Quando a máquina do mundo está aberta em todo o seu esplendor. E o horror que se oculta nas engrenagens é minimizado pela nossa potência. Aos 15 ou aos 20 anos, tanto a morte quanto a velhice pertencem à vida do outro. Ser jovem é ser imortal. E é tão bom ser imortal. Não faço o tipo saudosista. Mas, se me perguntarem do que tenho saudades dos meus 20 anos, era disso: da ilusão da imortalidade.

Aos 30, começamos a perceber alguns sinais da passagem do tempo. Mas boa parte de nós está ocupada tendo filhos ou lutando para se estabelecer na tal da carreira ou em algum outro lugar simbólico. Acho que a imagem da família doriana, mesmo que ridicularizada aqui e ali, ainda é muito forte. Mas este é um tema para outra coluna.

É nos 40 que a consciência da mortalidade nos assalta. A morte nos chega pelo avesso, ao descobrirmos que já não somos jovens. Um rápido cálculo nos mostra que estamos na meia-idade, isto se acreditarmos que vamos superar a média da expectativa de vida da população do país. Mas não é um meio da vida qualquer, já que a melhor metade, pelo menos para a beleza e a saúde do corpo, já passou. As primeiras dores começam a aparecer, assim como os problemas com colesterol e outras más notícias que os exames de laboratório nos dão. Nosso rosto começa a ser transformado pelas rugas, nossos cabelos já têm mechas brancas e o corpo ganhou quilos que não pedimos. Se exageramos na bebida numa festa, o dia seguinte e talvez até mesmo a semana seguinte estarão perdidos para a ressaca. Mas isso não é nada perto da consciência de que não há mais tempo para ser a primeira-bailarina de algum corpo de baile nem se tornar algum cérebro das ciências modelo exportação.

A juventude se foi aos 40. E parte de nós fica perplexo com essa descoberta anunciada desde sempre, mas que, por sermos jovens, era fácil negar. Testemunho nem uma nem duas, mas várias pessoas perguntando-se, perplexas, sobre o que fizeram entre os 20 e os 40. Ou como não perceberam o tempo passar. Como Naomi Jacobs, parecem ter se esquecido da parte da vida que as deixou ali. E essa “amnésia” – quem é este que ocupa meu corpo ou de quem é este corpo que se diz meu – torna-se, como disse a inglesa, “um pesadelo”. Vejam o que Naomi Jacobs diz:

– Aos 15 anos, eu pensei que teria conquistado metade do planeta quando chegasse aos 30. Foi um choque enorme descobrir que eu era apenas uma mãe comum, dirigindo um velho Fiat Brava.

No caso dela, com sua estranha amnésia literal, é bem fácil compreender o terror de acordar pensando que tem 15 anos e se descobrir com 32 e uma vida construída da qual é preciso dar conta. No caso de muitos de nós, quarentões, o pesadelo é mais sutil e vai se desvelando aos poucos. Mas, seja para Naomi ou para nós, só há um jeito de seguir vivendo: lembrar.

Não deixo ninguém me impingir a balela do “espírito jovem”. Simplesmente porque não quero ter espírito jovem nenhum. Penso que a grande conquista da idade é exatamente o “espírito velho”. E a grande perda é a do “corpo jovem”. Não só pela beleza da juventude, mas porque quanto mais o corpo envelhece, mais perto ele está da morte, e eu adoro viver. Mas espírito jovem, tenha dó. Deu um trabalho danado aprender tudo o que sei até agora, para isso escorreguei um monte de vezes, magoei umas tantas pessoas, fui arrogante e insensível em alguns momentos, passei do medo que paralisa para aquele que move, me libertei de várias neuroses e de outras tantas idealizações e tive de ralar muito para me tornar um ser humano melhor. Assim, deixem meu espírito velho em paz, já que não podem me devolver o corpinho.

Com isso quero dizer que o grande ganho de envelhecer é… envelhecer. É, portanto, a trajetória. Por isso, não há maior roubada do que esquecer o percurso, como fez Naomi, e como fazem muitos de nós, com a pergunta: “Como foi que eu cheguei até aqui? De repente, 40?”. É legítima a pergunta. E ela pode ser muito interessante se não nos paralisar, se for o começo de uma busca por resgatar a travessia. Porque, para seguir em frente, é preciso se apaziguar com o que ficou para trás, mesmo que a gente pense que poderia ter feito mais e melhor.

Para viver não há roteiro nem manual de instruções, estamos cansados de saber. Mesmo que nos bombardeiem de todos os lados e por todos os meios, 24 horas por dia, na tentativa de nos impor um jeito “certo” de estar no mundo, viver é viver. Ou seja, uma parte de escolha, outra de incontrolável. É com as nossas escolhas, mesmo que elas nos pareçam aquém das nossas expectativas, que precisamos ficar em paz. Vejo gente sofrendo porque caiu no conto da família doriana e agora se vê às voltas com a prestação ad eternum do apartamento, com a ex-mulher ou o ex-marido e com filhos que não parecem tão felizes assim. Do lado avesso, vejo gente se lamentando porque não comprou o apartamento com financiamento de 25 anos nem teve o casal de filhos nem deu aquele upgrade na tal da carreira porque ocupou seu tempo com outras aventuras.

Nossas escolhas sempre podem nos parecer insuficientes, porque nossa grande dificuldade é com o luto. E para cada escolha há uma perda. Se fui por aqui e não por ali, perdi tudo o que iria acontecer por ali, mas ganhei o que aconteceu por aqui. E vice-versa. Mas, numa sociedade que vende a falácia do gozo imperativo e absoluto, lidar com as perdas é um tormento. Aos 40, porém, é inadiável a compreensão de que não dá para ter tudo. Escolher é ganhar e perder, ao mesmo tempo. Ou, sendo mais precisa, talvez ganhar, com certeza perder. Dá medo, mas é assim que a gente anda.

Já fiz o exercício Peggy Sue – lembram do filme do Coppola, em que Kathleen Turner volta aos anos de escola depois de um estranho desmaio, com tudo o que sabe na meia-idade? Pois é. Descobri que, fora não cometer um ou outro namoro, no essencial teria de repetir todos os meus supostos erros, porque foram eles que me trouxeram até aqui. Até aqui para tentar outras vidas e me reinventar sempre que sentir necessidade, mas com a compreensão de que a mulher que virá conterá todas as outras que vieram antes. Hoje sou capaz de perceber que, entre os 15 e os 20 anos, fiz coisas incríveis. Menos por ser corajosa, mais por ser irresponsável. Aos 45, eu sigo tentando fazer coisas incríveis – incríveis para mim, claro, não necessariamente para os outros. Umas dão mais certo que outras. E agora não sou irresponsável, o que sou é corajosa.

Portanto, se você está tentado a sofrer de amnésia para não ter de acolher seu percurso, melhor não. Vale mais a pena se lembrar de cada detalhe, assumir suas escolhas pregressas e decidir o que vai fazer daqui para frente, com tudo o que é agora. A maravilha de ter 40, 40 e poucos ou muitos – e possivelmente vou estar dizendo isso aos 60 – é que sempre dá para a gente se reinventar. Dá até para virar bailarina, só por prazer, não por carreira. Ou estudar algo que sempre quis, sem maiores pretensões do que a delícia de aprender. Ou dar uma virada mais radical na vida, usando tudo o que descobriu chegando até aqui.

Foi mais ou menos isso o que a inglesa Naomi Jacobs fez, depois de ter a amnésia mais estranha da história. Recuperou as lembranças e decidiu realizar com elas um sonho de infância: escrever um livro sobre sua experiência. Nas palavras dela:

– Embora tenha sido traumático, eu estou realmente grata. Pude reavaliar minha vida e retomar o sonho de infância de me tornar escritora.

Atenção, porque é aí que está o ponto. Ela só poderá realizar o sonho da infância porque tem uma experiência para contar em livro. Precisou viver, com todas as perdas inerentes à vida – e no caso dela um enorme choque traumático –, para ter o que contar e realizar o sonho da infância.

Porque é isso que acontece por volta dos 40 e, no caso dela, aos 32: não é que perdemos a imortalidade, o que perdemos é apenas a ilusão da imortalidade. O que sempre tivemos, em qualquer idade, é uma vida: limitada, imperfeita, mortal. Mas extraordinária desde que olhemos para ela e para nós mesmos com generosidade e com a coragem de buscarmos o que é singular em nós. Ainda que contra o mundo inteiro. E, acredite, é mais fácil ter coragem com “espírito velho”.

(Publicado na Revista Época em 01/08/2011)

Reprodução assistida – ou desassistida?

O caso das trigêmeas e o lugar da maternidade em nosso tempo

No início deste ano, imprensa e público se chocaram com o caso de um casal paranaense que teve trigêmeas, depois de se submeter a técnicas de reprodução assistida, e quis dar uma delas para adoção. As meninas nasceram em janeiro de um parto prematuro e ficaram por quase um mês na UTI neonatal de uma maternidade de Curitiba. Os pais já haviam manifestado a intenção de entregar um dos bebês para ser adotado antes do nascimento. Mas, “denunciados” pelos funcionários do hospital ao Conselho Tutelar por “rejeitar” uma das filhas, supostamente a mais frágil, perderam a guarda das três. Em fevereiro, as meninas foram colocadas em um abrigo por intervenção judicial. Os bebês ficaram afastados dos pais por dois meses e meio, com visitas restritas a duas horas semanais. Em maio, a Justiça deu a guarda temporária a parentes e permitiu que os pais pudessem visitá-las diariamente. Desde o início, os pais declararam-se arrependidos de terem desejado dar uma das crianças para adoção e tentaram reaver a guarda das três filhas. O médico que acompanhou o casal em todo o processo da reprodução assistida, disse à imprensa: “Eu nunca vi um casal rejeitar os filhos após um tratamento para engravidar. Muito menos rejeitar um ou rejeitar dois. Isso realmente é uma novidade”.

Quando o caso tornou-se público, o casal virou uma espécie de monstro. A ideia, disseminada no senso comum, era: como pais, que desejaram tanto ter filhos, a ponto de se submeter a um procedimento caro e nem sempre bem sucedido, tiveram a coragem de “abandonar” a mais frágil das crianças? Danielle Breyton, Helena Albuquerque e Verônica Melo estavam entre as poucas vozes dissonantes. Psicanalistas do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, de São Paulo, elas pesquisam as questões da reprodução assistida desde 1997, no grupo denominado “O feminino no imaginário cultural contemporâneo”.

Impressionadas com o linchamento dos pais pela sociedade, elas escreveram um texto para a imprensa intitulado “Responsabilidades no caso das trigêmeas”. Tiveram dificuldade para encontrar espaço para publicá-lo, apesar da qualidade do trabalho e da experiência de 14 anos de estudos da questão da reprodução assistida. Vale a pena pensar se a falta de espaço pode significar uma resistência a escutar algo que adicione maior complexidade ao debate e algo que nos implique a todos – em vez de apenas demonizar os pais.

No texto, que tive a oportunidade de ler, as psicanalistas fazem algumas perguntas incômodas: “De quem é a responsabilidade pela implantação de três ou quatro embriões no útero de uma jovem de 28 anos? A quem cabe a decisão que implica tamanhos riscos? Ao casal? À equipe médica? Ao Estado?”. Desde o início deste ano, uma norma do Conselho Federal de Medicina determina que, no caso de mulheres com até 35 anos, devem ser implantados no máximo dois embriões, já que uma gravidez múltipla traz riscos para a mãe e para os bebês, sem contar as demais sequelas físicas e psíquicas. Entre os 36 e os 39 anos recomenda-se implantar três embriões. E apenas mulheres com mais de 40 anos podem ter quatro embriões implantados.

As psicanalistas apontam que, no caso das trigêmeas, os pais incorporaram algo que faz parte do discurso hegemônico, plenamente assimilado pela sociedade e amplamente divulgado pela mídia em centenas de reportagens. Neste discurso, os termos “escolha, doação, descarte e redução” são corriqueiros na área da reprodução assistida. No texto, elas criticam a desimplicação de todos no caso, a começar pelo médico, e afirmam que as trigêmeas não são apenas filhas de seus pais – mas de uma cultura. Neste sentido, são filhas de todos nós.

Quando o caso tornou-se público, chamou a atenção a incapacidade da maioria das pessoas que se manifestaram de parar para pensar, ainda que por um instante: “Como deve se sentir uma mulher de 28 anos com três bebês prematuros ao mesmo tempo?”. Quem tem apenas um, saudável e nascido de nove meses, sabe que não é fácil, especialmente nos primeiros tempos. É possível para qualquer um imaginar como pode ser difícil e assustador cuidar de três prematuros. Reconhecer a dor do outro não significa tirar-lhe a responsabilidade, apenas admitir que é preciso ter mais cuidado antes de julgar. Por que a condenação dos pais pela sociedade foi imediata e massiva é algo que vale a pena pensar. E talvez as imagens estampadas em jornais e revistas, assim como nas telas da TV, de casais sorridentes com sua ninhada de filhos nascidos na mesma gestação, que todos nós já vimos alguma vez, possam ser uma pequena parte da explicação.

O caso provoca ainda uma série de questões. Que Justiça é esta que prefere colocar três recém-nascidas em um abrigo em vez de deixá-las com os pais, que se dizem arrependidos e dispostos a criar as três filhas? Por que, como disse a advogada do casal, não ajudá-los a lidar com as dificuldades em vez de puni-los? E que sociedade é esta que se apressa a linchar o casal, preferindo transformar os pais em monstros e assim se afastar por completo do que a horroriza, em vez de pensar se não tem nada a ver com isso? O debate vale a pena não para que possamos encontrar outro culpado, mas para compreender o que tudo isso diz da época em que vivemos.

Convidei Danielle, Helena e Verônica para uma conversa nesta coluna. Não apenas sobre o caso das trigêmeas, mas sobre a reprodução assistida e o lugar da maternidade no nosso tempo. Na entrevista a seguir, destaco três temas que considero mais instigantes. O primeiro é a percepção de um paralelo entre parto natural e cesárea/reprodução natural e reprodução assistida. As psicanalistas perceberam, ao acompanhar grupos de pais à espera do procedimento, que, se o parto natural tornou-se exceção no Brasil, com prevalência da cesariana na maioria dos nascimentos, o mesmo começa a acontecer com a reprodução: um número crescente de mulheres, cada vez mais jovens e cada vez mais cedo, se consideram inférteis e incapazes de engravidar naturalmente, em relações sexuais com seus parceiros.

Outro tema muito interessante é que a tecnologia é amplamente usada e festejada no processo da reprodução e do nascimento, mas assim que o filho nasce volta-se imediatamente ao mito do amor materno: todos aqueles que colaboraram e às vezes até decidiram os processos relativos à reprodução e ao parto saem de cena, e o filho volta a ser dos pais e principalmente da mãe, já que é ela que tem licença maternidade de quatro ou seis meses. E então a sociedade exige que esta mãe ame incondicionalmente e de imediato seu filho e dê conta de tudo, mesmo que sejam três prematuras, como no caso que gerou a polêmica. Esta mãe não pode ter conflitos, dúvidas ou medos. Qualquer sentimento menos nobre diante de um bebê que chora sem parar ou que ela teme perder é considerado “antinatural” e ameaçaria um determinado ideal de maternidade. Da mulher se espera que seja uma supermãe – ou então correrá o risco de a sociedade transformá-la numa bruxa a ser queimada na fogueira midiática.

Por fim, vale a pena pensar no que a tecnologia deu às mulheres. É importante sublinhar que a tecnologia deu muito. Mas o reconhecimento dos benefícios deve servir também para nos estimular a problematizar as questões. Na conversa a seguir, Danielle, Helena e Verônica mostram que, de certo modo, o controle de novo está fora das mulheres – e na mão do poder hegemônico sobre o corpo na nossa época, que é o da Medicina. Perguntar sempre vale a pena. E pode nos levar a respostas intrigantes. É isso que tento fazer na conversa a seguir.

– Como surgiu a ideia de pesquisar a reprodução assistida?

Helena Albuquerque –  A ideia do grupo era pesquisar o feminino na cultura e buscar respostas para uma série de perguntas. Mudou alguma coisa em relação à mulher? Os conflitos e as angústias das mulheres são os mesmos? A mulher lida melhor com a sexualidade do que já lidou numa época mais repressiva? O grupo intercalava o estudo de textos psicanalíticos sobre o feminino com as questões da cultura e da clínica. Estávamos às voltas com a questão da reprodução assistida no consultório, e o tema surgiu na discussão. Resolvemos montar, então, um pequeno grupo para estudar os efeitos da tecnologia da reprodução assistida no feminino: na mulher, no jeito de conceber de um casal, no jeito de conceber a gravidez, o parto, a criança; se estas coisas se mantinham no mesmo lugar, se mudavam de lugar. Depois de um tempo de estudo teórico, fomos fazer uma pesquisa de campo no Hospital Pérola Byington, onde há um Serviço de Reprodução Humana totalmente gratuito que atende mulheres do Brasil inteiro. O foco da nossa pesquisa era investigar como ficava a ideia da infertilidade uma vez dado o diagnóstico: como os casais processavam isso subjetivamente, o que para eles era infertilidade, o que o diagnóstico causava em suas vidas. Trabalhamos com dois grupos de casais que selecionamos na fila de espera do Serviço de Reprodução Humana.

– Por que vocês escolheram este tema e não outro?

Verônica Melo – Acho que partimos de situações que a gente vivia, ou na clínica, ou com pessoas próximas, amigos que estavam buscando a reprodução assistida.

A mulher começa a se atrapalhar com coisas que sempre foram sentidas como sendo dela, sobre as quais tinha uma maior apropriação: menstruação, gravidez, amamentação passam a ser tomadas por uma parte da Medicina e da Mídia quase como se fosse doenças, disfunções. Ou seja, ficam na fronteira da patologia. Aparecem situações como, por exemplo: se a menstruação atrapalha, uma injeção a elimina.

A Psicanálise nasce, como todo mundo sabe, a partir das mulheres histéricas. Na época de Freud, a mulher tinha como marco de valor a procriação. Era este o papel social dela. Então, vamos estudando o que foi se passando na história da cultura e que lugares a mulher foi percorrendo e foi assumindo. E aí chegamos hoje a uma mulher que pilota aviões, mas se atrapalha com a amamentação. Começamos a prestar atenção nas propagandas de laboratórios e de clínicas especializadas em reprodução assistida, chamando a mulher com um tipo de mensagem mais ou menos assim: “Você não precisa mais ter de decidir entre progredir na carreira e ter filhos. Não se incomode com isso, porque você pode congelar óvulos, você pode congelar os embriões e postergar. Você pode ter filho lá pra frente”.

Danielle Breyton – O que inclusive não é verdade, não é? É uma propaganda enganosa. Porque uma mulher, depois dos 40 anos, mesmo com reprodução assistida possivelmente vai ter dificuldades para engravidar.

– O que começa a chamar a atenção de vocês é uma espécie de ilusão de controle da mulher sobre o seu próprio corpo?

Verônica – Sim, é uma armadilha para a mulher. Como se ela tivesse o poder nas mãos dela de decidir: “Então eu posso parar a minha menstruação; então eu posso ter uma carreira brilhante e depois eu vou ser mãe”. E é uma mentira porque, na verdade, depois de tudo o que ela conquistou, vai acabar sucumbindo, de novo, a uma demanda da cultura. De certo modo, depois de tudo o que conquistou acaba virando um objeto da Medicina.

Danielle – De um lado, temos um discurso supostamente libertador, de autonomia sobre o próprio corpo. De outro, há um controle absoluto sobre os corpos e sobre o tempo.

Helena – E este é outro tema forte na nossa pesquisa. Como se dá o discurso médico, qual é a proposta da Medicina. Não é que todo médico seja assim, mas é o que prevalece. Percebemos que, desde que o parto foi transferido para a mão da Medicina, ele foi, de certa forma, patologizado. E o discurso feminista, de uma forma enviesada, acaba submetendo a mulher a um controle maior do corpo, via Medicina. Parece que antes havia mais espaços para a mulher ocupar por conta própria do que depois que a Medicina se impõe com um discurso muito hegemônico. Décadas atrás, o problema da mulher era a fertilidade e a tentativa de ter uma vida sexual sem engravidar. Isso dá uma virada muito impressionante. O filho não é mais algo que acontece um pouco imprevistamente, sem planejamento. Você decide ter um filho. Então, tem uma conta a fazer: é preciso saber se o filho cabe no orçamento. É muito comum ouvirmos: “Olha, a gente vai ter um filho só. Não vai ter o segundo filho porque não temos dinheiro”. Então, há uma contabilidade. Há a questão da carreira, do corpo, do tempo e do filho, entre outras. Há uma decisão que precisa ser ser tomada e que torna mais difícil ter um filho. Sem contar que agora seu filho tem de ser feliz. (Risos)

Danielle – E você tem de continuar com seu corpo incrível e trabalhando como você sempre trabalhou…

Helena – E seu filho tem de ter um carro, uma casa…

Verônica – Tem um custo que já é pré-avaliado do filho. Em reunião de escola, há pais falando: “Olha, com a mensalidade dava para comprar um carro por ano…”.

Helena – Com uma equação colocada desta maneira, ter um filho torna-se uma decisão difícil de ser tomada.

– Vocês acham que a mulher perdeu muito nessa mudança?

Helena – Ela ganhou muito também.

Danielle – Ganha e perde. Problematizar isso não é questionar todo o ganho que as mulheres tiveram, pelo contrário.

– Vocês mencionaram a questão do controle do corpo e do tempo. Como a questão do tempo entra na infertilidade e na reprodução assistida?

Verônica – Quando a gente entrou no tema da infertilidade, nos deparamos com trabalhos que apontavam para uma mudança. Se antes considerar que uma mulher tinha problemas de infertilidade se dava após um certo tempo de pesquisa, de estudo da própria mulher mesmo, da fisiologia dela e tal, este tempo foi sendo suprimido. Hoje, o diagnóstico é dado num tempo muito mais curto: “É infértil, vamos começar a fazer tratamento”.

– Mais ou menos quanto tempo?

Verônica – Na Europa, eram dois anos de espera. E nos Estados Unidos um ano. Aqui também, mas está diminuindo.

Danielle Três meses…

Helena – Três meses, elas estão ansiosas, e os médicos – alguns, outros não – as encaminham para começar uma reprodução assistida, que vai virando um pouco uma questão mercadológica, né? São procedimentos caros. Em nossa pesquisa, percebemos um paralelo com a questão do parto normal e da cesariana. A cesariana salva a vida de muitas mulheres que têm complicações no parto, assim como de bebês. Mas virou uma distorção, na medida em que hoje, no Brasil, 80% dos partos são cesarianas. Da mesma forma, há um paralelo entre engravidar com relações sexuais, do jeito natural, e ter filhos via reprodução assistida. É como se um deslocamento parecido começasse a ser feito. O francês Jacques Testart (responsável pelo nascimento do primeiro bebê de proveta na França, em 1982) disse que engravidar normalmente vai virar coisa de ecologista. E aí temos vários filmes sobre esse tema, como “Gattaca – A Experiência Genética” (Andrew Niccol, 1997).

Danielle – É como se a liberdade passasse pelo controle. É uma questão do controle esse deslocamento da cesariana. Se organiza, planeja e ponto. Já há muitos casais que resolvem partir para a reprodução assistida com esse intuito: controlar, já. De uma vez só tem dois filhos e já resolve o problema.

Verônica – E para os médicos também. No parto normal, por exemplo. Uma coisa é ficar ali, com um trabalho de parto que vai levar cinco, seis, sete horas. A outra é marcar horário e resolver. Na questão da reprodução há este mesmo paralelo. Como determinar se ali existe um caso de infertilidade, de esterilidade? Quanto tempo se espera a gravidez acontecer sem intervenção? O tempo está diminuindo, mesmo para casais muito jovens. Nos chamava muito a atenção os números do ESCA (Esterilidade Sem Causa Aparente). Essas estatísticas agora estão diminuindo, porque é necessário justificar o procedimento e acabam achando uma causa. Acham a causa, às vezes, e um mês depois a mulher engravida sem intervenção nenhuma.

– É como se o médico, simbolicamente, fosse para a cama com o casal, não?

Helena – Ele passa a fazer parte da cena…

– Vocês perceberam, ao longo da pesquisa, que alguns casais que se declaravam inférteis no consultório médico nem mesmo tinham relações sexuais. Precisavam de reprodução assistida porque não transavam…

Danielle – Há, inclusive, um livro sobre isso, (“Mal-Estar na Procriação – As mulheres e A Medicina da Reprodução”), de uma psicanalista francesa, Marie-Magdeleine Chatel. Ela percebeu que, nas entrevistas médicas, o médico não perguntava sobre as relações sexuais. Então, numa das consultas, das quais participava como observadora, ela pergunta sobre a frequência com que tinham relações sexuais, e o casal responde que não tinha. Mas não ocorria aos médicos fazer essa pergunta.

Verônica – Essa é outra escuta que tem de ser incluída na entrevista médica. Porque não existe um olhar para algo que possa também ser coadjuvante nessa infertilidade.

Helena – É como se não interessasse, não precisasse. A relação sexual fosse supérflua.

Verônica – Tanto é que os folhetinhos que a gente ia arrecadando nas clínicas de fertilização falavam para a mulher o seguinte: “Se distraia, não pense no assunto, vá ao shopping…”. (Risos)

– Vocês perceberam que, assim como as mulheres estão se sentindo incapazes de assumir seu próprio parto, de dar à luz naturalmente, elas também começam a se sentir incapazes de engravidar sem a ajuda do médico e da Medicina?

Helena – E isso é também efeito de um discurso que está na cultura. As razões são muitas. Acho que há o medo da responsabilidade, na medida em que vira uma decisão de tantas consequências econômicas e corporais. E há um certo distanciamento do próprio corpo, dos processos que acontecem no corpo e que assustam. Muitas mulheres empresárias, executivas não menstruam mais, por exemplo.

– O que vocês estão dizendo é que supostamente as mulheres teriam hoje um maior controle sobre o próprio corpo. Mas, de certo modo, as decisões estão sendo delegadas à Medicina?

Danielle Exatamente.

Verônica É interessante pensar que lá atrás havia uma leitura nas Ciências Sociais de que a mulher sofria mais repressão na cultura porque, por causa desses processos fisiológicos, a mulher tinha um pé mais dentro da natureza. A hipótese era de que, por isso ser ameaçador, então o homem/a cultura exercia um controle maior sobre a vida dela. Se a gente atualizar essa ideia, hoje, ao tentar reassumir o controle sobre o corpo, a mulher está sendo novamente controlada. Acho que é isso que a gente foi observando.

– Outra questão que vocês levantam na pesquisa é que, para ser mãe, é preciso deixar de ser filha. E parece que esta tem sido uma passagem difícil para muitas mulheres…

Verônica – Dentro dessa cultura que valoriza muito a imagem, essa coisa de não poder envelhecer, de não haver diferenças entre gerações, encontramos também isso. Para ser mãe, você tem que deixar de ser filha, você tem que deixar agora o seu filho acontecer. Então, passar para este lugar, o de deixar de ser filha para ser mãe, exige uma operação subjetiva muito grande. É muito difícil.

Helena – Justamente. E aí entra a questão de como se lida com as perdas atualmente. Os lutos e as perdas. Está mais difícil fazer luto hoje. E virar mãe implica em um luto. O luto da filha, o luto de uma posição. Isso também estaria dificultado, na cultura atual, onde não se pode perder nada.

Verônica – E nada pode deixar marcas. Nem marca da velhice, nem marca da gravidez. Então você pega os famosos, que são formadores de opinião/imagem: mulheres que têm filhos e já aparecem na sequência com um corpo sem marca nenhuma de uma gravidez. Nessa cultura, nada pode fazer marca, nada pode fazer ruga.

– E como entra esta questão, que também é muito presente na nossa cultura, de que não há limites, de que se pode tudo?

Verônica – Percebemos isso… Se eu tenho vontade, eu posso. Que vai até para a coisa da educação da criança, da falta de limites, de eu não poder lidar com o meu desejo. O meu desejo impera, é imperativo. Então, eu QUERO ter um filho, e a qualquer custo eu vou ter esse filho. Agora, esse filho, às vezes, muitas vezes até, não está no lugar de filho mesmo. Ele está mais como objeto de satisfação narcísica para esse casal, para essa mulher. A gente continua achando que existe uma tendência para isso: para não poder lidar com a perda, com a frustração, com o limite que às vezes o próprio corpo impõe. Só que a coisa se complica bastante porque às vezes, muitas vezes, essa limitação que o corpo mostra é um sintoma. É um sintoma dessas próprias dificuldades, da própria falta de condições de exercer a maternidade. A certa altura, propusemos, em nossa pesquisa, uma divisão entre vontade e desejo. Quando a mulher chega para o médico e fala “eu quero ter um filho”, seria importante se ele pudesse sugerir questões para essa mulher, levando-a a diferenciar entre vontade e desejo. Eu posso querer ter um filho, e te digo que quero, mas desejo mesmo? Inconscientemente talvez o desejo desta mulher não seja este. Se você percebe isso, você consegue trabalhar com essa pessoa, ajudando-a a desfazer esse conflito que está lá dentro, o de querer e não querer, e poder falar que quer e não quer. Porque fala muito que quer, mas onde há espaço para aparecer a parte que não quer? E o “não quer” também não é absoluto, né? Porque tem um lado que quer também.

Danielle –  É importante deixar claro que a questão não é com a técnica, ou com quem procura essa tecnologia. A questão é cultural. Diz respeito ao lugar que tem um filho hoje, ao lugar dos corpos, ao lugar do controle. A gente não está discutindo os casos de reprodução assistida, mas o que isso nos faz ver sobre os tempos em que vivemos.

Verônica – Quando a mulher chega ao consultório, a dor daquela mulher que quer ter um filho é verdadeira. Achamos que ela pode ter um filho, mas achamos também que é preciso tomar cuidado. Aquela mulher vive a deficiência como sendo dela, quando a gente acha que essa infertilidade diz respeito à forma como está sendo processada toda essa questão na cultura: da mulher, do lugar de mãe, do lugar da maternidade. Não se trata de ser contra a reprodução assistida, mas de questionar como estamos lidando com a tecnologia. E o que essa forma de lidar diz da nossa época.

– Uma das questões da reprodução assistida trazida por vocês é a de que, já que você pagou tão caro e se submeteu a tantos procedimentos para engravidar, então está provado que você deseja este filho e é certo que você vai amá-lo. A realidade tem mostrado que as relações humanas são mais complicadas que isso…

Helena –  Eu acho que uma coisa muito complicada em relação a isso é a questão da ambivalência. Porque toda grávida, toda mãe, é ambivalente em relação aos filhos. Quer, não quer; ama e odeia… Uma vez feita a reprodução assistida, o filho tem de ser amado. É como se a ambivalência pudesse ser eliminada da cena.

Danielle – É como se o fato de ter procurado a reprodução assistida eliminasse, automaticamente, qualquer ambivalência. Isso é uma loucura completa.

Helena – E isso penaliza as mães, porque, afinal, fizeram tanto esforço… Ou seja, a mulher usou essa tecnologia que custa tão caro, que no SUS não estão pagando, e depois fica em conflito com a gravidez, com a maternidade? Como assim? Parte-se da ideia de que a tecnologia pode tornar o processo da maternidade asséptico e sem conflitos. Só que, na realidade, não é assim que acontece. O conflito não some, a ambivalência não some porque usou tecnologia para engravidar.

– Pegando este gancho, me deparo hoje com um certo desamparo dos pais. Porque, para se tornar pai e mãe é preciso abrir um espaço interno. Não é só transformar uma parte da casa em quarto do bebê e chamar uma decoradora. Mas parece que esse processo de abrir um espaço interno e se preparar internamente para receber o filho não é vivido por muitos pais ao longo da gestação. E então, de repente, estão com um filho nos braços, mas sem espaço interno, porque os conflitos não foram vividos no seu tempo – e nem mesmo se admite que os conflitos existam. Então, esses pais ficam muito angustiados, às vezes desesperados… Faz sentido para vocês o que estou dizendo?

Helena –  Achamos que não ter espaço interno tem a ver com a efetividade atual. Por que a efetividade hoje em dia prevalece sobre a afetividade. Deu uma virada nisso. Por falta de espaço interno.

Verônica – Temos uma situação ocorrida no grupo que pode traduzir isso. O que a gente vai vendo com essas mulheres é que assumem muito cedo a questão da infertilidade. Elas assumem o discurso da infertilidade de uma forma intensa. E num desamparo muito grande. Tivemos um momento no grupo em que, depois de falar sobre a Medicina e a técnica, lá pelas tantas uma delas começou a lembrar que a mãe fazia um caldo de galinha, elas começaram a lembrar do resguardo, e que no tempo de suas avós ou mães não se podia lavar o cabelo durante a menstruação. E aí começa um movimento no grupo que foi muito interessante, o de resgatar algo do simbólico mesmo, algo de um corpo olhado pelo outro. Disso que a gente estava falando: de as mulheres trocarem informações sobre o que está acontecendo com o próprio corpo.

– De um saber que não é médico….

Helena – Sim, de um saber que era herdado das mães. Porque hoje você não pergunta mais para a mãe, para a avó: “Como é que faz isso?”. Antes, o pedido de como se faz isso ou aquilo era para as mulheres da família. Hoje, elas ligam para o pediatra. Acho que é importante pensar o quanto o processo de reprodução assistida, e todas essas questões, repercutem na forma como os pais se apropriam dos filhos.

– Eu escuto muito a seguinte frase dita por mulheres as mais diversas: “Acho que não vou conseguir engravidar…”. Assim, do nada. Ao longo da pesquisa, vocês chegaram a perceber se as mulheres já se consideravam inférteis antes dos exames e do diagnóstico? Se o médico apenas confirmava uma infertilidade em que elas já acreditavam mesmo antes de procurá-lo?

Danielle – Eu me lembro de exemplos do consultório. Acho que atualmente a questão da infertilidade está muito presente. As mulheres, realmente, de 25, 27, 28 anos, se perguntam se vão conseguir engravidar, se vão ter dificuldade… Faz parte, já, do discurso. E este discurso costuma ser confirmado muito facilmente. Bastam seis meses de tentativa e já partem para a tecnologia.

Helena – A forma como a idéia da reprodução aparece na mídia já traz embutida a ideia de que as mulheres são inférteis, que precisam de uma assistência para engravidar.

– Vocês acham que toda essa questão também se dá, em parte, por uma relação de consumo? Porque há um momento em que a maior parte dos casais se sente obrigada a ter um filho. Não parece só ser uma questão de desejo, para alguns, mas também de imagem. Aí tem o filho. Só que ter um filho não é como ter um carro. Não dá pra vender e comprar outro – ou devolver se não está satisfeito com o desempenho. Nem dá para escolher o modelo, o sexo ou a cor dos olhos. Há algo da ordem do incontrolável de ter um filho que parece estar surpreendendo alguns pais…

Danielle – Tive uma paciente que fez um lapso a respeito do filho. Ela o chamou de carro. E o trabalho foi entender que, naquele momento, o que ela queria era um carro – e não um filho. Um carro em que ela escolhia a cor, o tamanho, o preço… Naquele momento da análise, para ela, soltou alguma coisa. Ela investiu no carro, ela e o marido compraram um carro incrível. Porque o projeto era esse mesmo. Muito mais tarde, ela começou a se preparar para ter um filho, e daí toda a história já era outra: os sonhos, como fazer ninho etc. Porque daí a história passa por como é que você vai lidar com a situação da ordem do não-controle mesmo. Era importante distinguir estas duas coisas e ficar tranquila. No momento em que o projeto é carro, o projeto é carro. Mas carro e filho não vão coincidir, não são a mesma coisa. Não dá para comprar um filho. E aí você protege a mãe e protege o filho.

Verônica – Lembrei de uma psicanalista que fala dos efeitos da tecnologia sobre a subjetividade humana. Acho que isso também é uma das coisas que assusta no fato de ter filhos, isso de que supostamente a felicidade do filho teria de ser garantida pelo oferecimento de TUDO pelos pais. O filho tem de ser feliz e você tem de dar todas as respostas para ele, tem de supostamente atender todas as necessidades dele. Essa psicanalista fala que um dos efeitos da tecnologia, por exemplo, se dá sobre a experiência do tempo de espera. Antigamente, você ligava a televisão e esperava a válvula esquentar, a imagem demorava a aparecer. Depois, você passa a apertar o botão e a imagem imediatamente aparece. E ela começa a notar no consultório que antes os filhos chamavam a mãe puxando a saia, puxando a roupa. (Verônica mostra o movimento de puxar.) E que depois passou a ser apertando assim… (Ela simula o toque em um controle remoto). É uma imagem de como a resposta tem de ser imediata. Se aperta, tem de responder. Então, eu acho que tem isso, essa coisa do controle, de que eu posso programar ter um filho, faço as contas de quanto vai custar. E também parece que é necessário se antecipar a tudo. Não é algo que está dado, e vamos ver o que acontece. É como se você não contasse com a experiência vivida. Que a experiência, no processo de construção desta maternidade e desta paternidade, fosse abrindo caminhos e trazendo elementos para você construir uma resposta para a situação. Essa questão do tempo é fundamental. E ela aparece em todas as etapas do processo.

– Por que vocês se indignaram com o tratamento dado aos pais que manifestaram a intenção de entregar para adoção uma das trigêmeas?

Helena – A gente foi lendo na imprensa e se dando conta de que havia um linchamento moral daquele casal. Uma mulher de 28 anos teve três meninas. Desde o início o casal se angustiou e anunciou que queria dar uma das meninas para adoção. E, quando nasceram as três, eles reafirmaram esse desejo. Não dá para ter certeza, porque as informações dadas pela imprensa são desencontradas, mas é possível que tenham escolhido dar para adoção a mais frágil das três. E aí o hospital denuncia para o Conselho Tutelar que esses pais estão rejeitando uma das crianças e a medida da Justiça é separá-las dos pais. Mandaram as trigêmeas para um abrigo. E os pais só poderiam vê-las durante duas horas por semana. Achamos que toda essa história tem que ser contextualizada para que a responsabilidade não recaia apenas sobre o casal. Há outros atores e fatores em cena.

– Vocês acham que os pais foram abandonados?

Danielle – Foram.

Verônica – Mas acho que eles não foram abandonados neste momento. Porque não deveria ser assim: eu tenho três filhos e escolho um. Você já sabe disso antes, e o que vai fazer. Porque aí vem de novo essa coisa da vontade. Do controle. Dessa coisa de que eu posso tudo. Então, se eu engravidei de três eu posso querer só dois. Como é que você se implica naquilo que acontece na sua vida? Eu me desfaço disso? É que nem novela? Mata, porque aquele personagem está demais? Descarto? O que nos chama a atenção é o que a gente vinha falando: como uma questão que é montada culturalmente – faz parte do discurso da cultura – é jogada, e esse casal passa a ser o único representante da falha. Quando é muito claro que a falha está em todo o processo. A questão não passa por tirar a responsabilidade do casal, mas a falha começou muito antes e estamos todos implicados nela. Qual é o discurso da Medicina, amplamente divulgado pela mídia? Implanta, escolhe, descarta, reduz…

– Aí, de repente, fica todo mundo surpreendido, não é? Somos todos inocentes… Nunca ninguém tinha falado nisso…

Helena – Nos cabe perguntar sobre a responsabilidade pela implantação de três embriões no útero de uma jovem de 28 anos. De que forma essa decisão foi tomada? A decisão cabe ao casal ou à equipe médica responsável pelo procedimento da reprodução assistida? Os casais são suficientemente esclarecidos sobre todo o processo da fertilização in vitro e sobre o destino dado aos embriões que não forem utilizados? É certo que o procedimento de implantação de embriões numa mulher jovem tem mais chances de dar certo, de os embriões se fixarem e seguirem se desenvolvendo, do que numa mulher de mais idade.

Vale a pena lembrar também da existência da técnica de redução embrionária, muito discutida no âmbito da medicina reprodutiva e praticada, embora proibida, no Brasil. Trata-se da técnica que permite a eliminação de um ou mais embriões, ainda em fase celular, em pacientes que geraram mais de um. Também chamada de técnica de “descarte de embriões”, é defendida por uma parte dos médicos como sendo necessária em mulheres com gravidez de risco por se tratar de uma gestação múltipla.

É evidente que o dilema vivido pelo casal não é um dilema que só lhes diz respeito, pois é explicitamente trazido à cena e posto em prática pela Medicina, cujas tecnologias de reprodução assistida estão à disposição no mercado. Este casal está, então, inserido em uma cultura em que a opção de “descartar um dos fetos” está colocada.

Já vimos reportagens, antes deste caso, contra as quais ninguém se manifestou ou se indignou. O título de uma delas, manchete de uma revista, era o seguinte: “A escolha mais difícil. O aumento no numero de gestações múltiplas coloca o dilema: abortar ou não alguns dos fetos?”. Quer dizer, está na manchete de uma revista, mas, na hora em que isso se encarna em alguém, que eu posso escolher, que eu posso descartar, porque está na Mídia, está na Medicina… há toda essa reação. E, paradoxalmente, na hora em que a Justiça determina a separação entre as crianças e os pais, como uma medida supostamente protetora, a amamentação é interrompida e impõe-se o abandono das crianças.

Danielle – Fala-se, por exemplo, da gravidez de risco. Mas há outra questão, que é o risco subjetivo, que fica completamente anulada. A gravidez é de risco não apenas porque são três bebês. Mas também porque lidar com três crianças que nascem, em geral, superprematuras, em situações de uma fragilidade extrema e absoluta, é um risco gigantesco. Porque é complicado fazer laço com três filhos ao mesmo tempo; é complicado fazer laço com três bebês que nascem frágeis, perigando morrer, perigando ter mil sequelas. Todas essas questões ficam muito negligenciadas no processo da reprodução assistida.

Verônica – Assim como fica negligenciada a figura do médico, que surge numa fala totalmente impávida neste caso. Ele disse: “Nunca vi um caso desses acontecer antes, de uma mãe rejeitar o filho”.

Helena – Ele foi o médico da mulher, foi ele quem implantou os embriões. Ela era paciente dele, e em vez de defendê-la e dizer “Eu conheço esta pessoa…”, ele se desimplica de um jeito muito irresponsável.

– Por que vocês acham que este casal sofreu um linchamento moral?

Helena – No cenário da reprodução assistida se intensifica de novo a questão do mito do amor materno. É isso o que, afinal, o médico enfatiza no discurso dele: “Eu nunca vi pais que, depois de quererem engravidar, rejeitam um filho…” Parece que, no mundo da reprodução assistida, não pode existir dor, perda, luto, conflito, ambivalência. Fica uma coisa chapada, onde só cabe sucesso, sentimentos positivos, potência, amor. Há um nível de negação muito intenso neste mundo. Há uma negação intensa de todo o lado do sombrio, digamos assim. E a positivação e a intensificação muito hipócrita, inclusive, de que não há conflito, não há ambivalência.

Danielle – Neste mundo obviamente todos querem ter um filho, obviamente todos querem ter muitos filhos e obviamente todos vão amá-los. De repente, há um encontro com o avesso disso. Então, é o seguinte: eu não tenho nada a ver com isso. Isso é ela – não eu. Jogam o conflito para cima do mais frágil.

Helena – Quando surge algo assim, como neste caso das trigêmeas, vira um escândalo. O médico diz: “Bom, nunca vi isso”. É hipócrita, é cruel, é uma negação. Há uma coisa muito negadora, em vários campos, como o menino lá do Realengo que matou todo mundo. A sociedade, a escola, não tem nada a ver com isso. Ele é um monstro que fez isso. Então, acho que há um certo parentesco de colocar a monstruosidade no indivíduo e, assim, a sociedade pode negar ter qualquer relação com essa violência, ambivalência, rejeição. O problema está no indivíduo. Há várias situações em que todo mundo se exime da responsabilidade. Nós não somos violentos – o violento é o outro. Não só violento, como um monstro. Como neste caso das trigêmeas. Ninguém diz: “Não cuidamos direito desta menina, que engravidou de três bebês”. É melhor negar e simplificar. Agora, você imagina o estrago que foi feito nesse começo de família, nestes pais e nestas filhas…

– Ao analisar o caso das trigêmeas, vocês afirmam o seguinte: “Tomemos, que o filho é nosso!”. O que significa isso?

Helena – Acho que “o filho é nosso” neste sentido, de que a gente precisa se comprometer com aquilo que está em jogo.

Danielle – E que a gente, como cultura, está veiculando e fazendo aparecer. Então acho que a ideia do “nosso” é: precisamos nos implicar e nos responsabilizar por aquilo que estamos fazendo acontecer.

Verônica – O que este casal está explicitando da nossa cultura? Por que causaram tanta indignação? São questões que precisamos nos colocar. Há uma banalização do processo todo, doação e descarte de óvulos, há uma banalização do que é ter três filhos ao mesmo tempo. Pensar sobre isso é responsabilidade de todo mundo. Esta, afinal, é uma produção da nossa cultura. Neste sentido é que “o filho é nosso”. É preciso também olhar para a idealização desse controle. Porque, de fato, não existe controle nesse nível. Implantam-se cinco embriões para tentar que dois deem certo. Então, os médicos jogam com isso. Só que o problema de jogar com isso é que no final da linha há um bebê. Ele está ali. E, agora, faz o que com ele?

Helena – Estamos todos implicados. Mas, em vez de problematizar, acusamos. E nos retiramos da cena. A ideia do “Tomemos, que o filho é nosso!” é reconhecer que estamos todos dentro da cena. O casal também tem de se responsabilizar. O problema foi responsabilizar a eles, exclusivamente, deixando-os sós. Eu acho que o “Tomemos que o filho é nosso!” é assim: este é um fruto da nossa cultura. É filho da cultura, não só deste casal.

– O que eu acho muito curioso é que existe essa tecnologia toda, nada precisa ser natural, nem o parto nem a reprodução, que pode ser feita num tubo de ensaio e não na cama, e no fim disso tudo a sociedade abre uns olhos espantados e exige a sacralidade do amor materno. “Como assim, essa mãe não acha maravilhosos ter três bebês ao mesmo tempo? Ah, nunca se viu uma coisa dessas…” Voltamos ao mito, como vocês disseram.

Helena – Eu acho que a mãe volta ao lugar idealizado via tecnologia. Ela foi destituída desse lugar tão idealizado, e ela volta a ser restituída a esse lugar com a tecnologia da reprodução assistida. O que volta com a reprodução assistida é justamente o mito do amor materno.

– Como assim?

Helena – Desse jeito. Se ser mãe passa a não ser mais tão valorizado – ser executiva talvez tenha mais valor, ou ser uma grande esportista, ou ter dinheiro, ou ter um carro bacana… As tecnologias de reprodução assistida possibilitam que as mulheres voltem a ser mães. Essa mãe que eles fabricam, que eles possibilitam/produzem, tem de ser uma mãe com letra maiúscula: uma mãe sem conflito com a maternidade, que nunca vai rejeitar o filho. De certo modo, a tecnologia possibilita a volta de “A Mãe”. E esta mãe não tem sombra, não tem marca. É a mãe com o letreiro e as luzes piscando. Ela retorna, e tem de refazer o mito do amor materno, porque também isso justifica a existência das tecnologias, da pesquisa, das ampliações dessas fronteiras tecnológicas. Então, é como o médico das trigêmeas falou: “Nossa, toda essa tecnologia, todo esse empenho, e eu nunca vi uma mãe depois de tudo isso não querer um filho”.

– O médico parece ter se sentido traído, né?

Verônica – Nesta pesquisa, a gente participou de algumas reuniões dos médicos do setor de reprodução. Em uma das discussões, eles debatiam a taxa de fertilidade. Um dos participantes disse: “Bom, a inseminação artificial bovina é perfeita, ela tem resultados ótimos, porque você usa o melhor reprodutor com aquela que tem mais condições de reproduzir. Nossos pacientes aqui são os piores reprodutores. As matrizes que a gente tem são falhas”. O que pensamos é que essa idéia remete ao biológico, ao corpo como uma máquina de procriação.

Helena – A gente fala muito que a Medicina retira o sujeito de cena, né? Acho que tem um pouco a ver com isso. O sujeito é aquele que é dividido, que tem conflitos. Sem conflitos não há sujeito.

(Publicado na Revista Época em 25/07/2011)

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