O amor que sabe do tempo e do vento

Histórias que não são compradas em shopping

Dias atrás liguei para meus pais e os dois se divertiam com as dificuldades de expressar o amor que sentem um pelo outro. Acontece o seguinte. Toda manhã meus pais acordam, mais ou menos no mesmo horário, e ficam abraçadinhos esperando o sol entrar pelas frestas da persiana enquanto conversam sobre a vida. O desafio, agora, segundo minha mãe, que é mais despachada, é encontrar uma posição em que não doa alguma parte do corpo de um e de outro. Ora é a coluna do meu pai que se anuncia, interrompendo o beijo, ora são os joelhos da minha mãe que gritam embaixo do cobertor. Então, ele aos quase 81, ela perto dos 76, gastam alguns minutos encontrando uma posição em que é possível namorar sem dor. Acabam achando. Quando não param para rir da própria condição humana, o que também provoca algumas dores.

Para mim, a imagem do dia dos namorados, essa data tão comercial que acabou de levar legiões aos shoppings, é a de meus pais achando uma posição para se abraçar entre as dores de um corpo que viveu. Acho que o amor começa com som e com fúria, mas aprende na passagem do tempo o valor das pequenas delicadezas, as manias de cada um que irritam, mas que fazem cada um ser o que é. Aquela mirada terna e quase secreta em direção ao outro que faz uma bobagem qualquer, para mim vale tanto ou mais que o furor do desejo. Aprendi isso observando meus pais, primeiro com ciúmes desse amor onde eu não cabia, porque sabiamente eles mantiveram essa parte só para eles. Depois, com curiosidade científica e, finalmente, com ternura.

Desde que me entendo por gente, meus pais namoram. O que para mim foi por muito tempo algo misterioso, que exigia uma investigação que, por medo da descoberta, eu acabava sempre postergando. Por exemplo: por que as luzes da cabeceira trocavam de cor a cada semana? Em algumas noites eram vermelhas, em outras azuis e havia até madrugadas de verde. Eu perguntava, claro que perguntava, e a resposta era verdadeira, mas convenientemente sucinta: “Para variar”.

Meu pai deve ter sido o único pai do mundo que passou pela Disney, numa inusitada viagem de trabalho, comandando uma trupe de agricultores, e voltou de lá não só com brinquedos para nós, mas com baby-dolls para a minha mãe. Baby-dolls que corariam não apenas o Mickey, mas também os piratas do Caribe.

É também o único homem que eu conheço que dá rosas para a minha mãe no “aniversário de conhecimento”. Até hoje. Sim, “aniversário de conhecimento” é uma data lá em casa. Enquanto o poste embaixo do qual trocaram sussurros supostamente castos existiu, eles faziam visitas periódicas ao poste, como uma espécie de dívida de gratidão. Depois, foram miseravelmente traídos pela prefeitura. E o banco da praça onde trocaram confidências, e possivelmente algumas inconfidências, foi parar no museu. Não por causa deles, parece óbvio para todos. Menos para nós.

Tudo começou com o que eu chamo de “tijolaço” que minha mãe acertou na cabeça do meu pai. Minha mãe se finge de ofendida, mas sei que ela gosta da minha versão. Era terrível a minha mãe. Aos 13 anos ela viu meu pai passar com seu porte de soldado de chumbo e decretou: “Este vai ser meu”. Meu pai nem desconfiava, preocupado que estava com suas obrigações no internato, ele que trabalhava duro para pagar os próprios estudos, primeiro na limpeza, depois no cuidado dos alunos. Não adivinhava, mas já tinha o futuro decidido por uma pirralha com uma trança ruiva de cada lado.

Aos 15 dela, 20 dele, ela o avistou na festa de Sete de Setembro da paróquia da igreja matriz e despachou um correio amoroso em sua direção. Correio amoroso era a versão do torpedo no século passado. Era 1950, veja bem, no interior do Rio Grande do Sul, e ela tivera o desplante de escrever essa intimação. Sutil como uma ararinha azul num filme de zumbis a minha mãe: “Se for correspondida, serei a mulher mais feliz do mundo”. Meu pai espichou um meio sorriso em sua direção, o que deve ter lhe custado mais do que o passo que Neil Armstrong daria no final da década seguinte. Meu pai só foi aprender a sorrir muito mais tarde. Ensinado, claro, pela minha mãe.

Minha mãe se tornou mesmo a mulher mais feliz do mundo. E vice-versa. E nós aprendemos a vê-los sempre de mãos dadas andando pela cidade, no seu passo só aparentemente dissonante, minha mãe mais ligeirinha, atuando no miúdo, e meu pai com passadas lentas e firmes. Meu pai passeando pelos interiores de si, minha mãe novidadeira, auscultando os arredores. E, aos finais de semana, os dois executando o balé de décadas ao caminharem de mãos entrelaçadas para espiar as vitrines das lojas, fazendo de conta que elas mudavam, se abismando ora com a boniteza das peças, ora com o preço “pela hora da morte”.

Quando eu era criança, como já contei aqui, eles cumpriam também o programa familiar do domingo, no qual éramos generosamente incluídos, e que consistia em uma volta de fusca para ver as casas bonitas da cidade pequena. Sempre as mesmas, sempre dos mesmos. Lá em Ijuí eram os médicos, os fazendeiros e os empresários que tinham se dado bem no “milagre” econômico da ditadura militar que tinham casas bonitas. O resto se virava.

A vida deu e tirou de tudo do meu pai e da minha mãe, como em geral faz com quase todos. Roubou-lhes uma filha, deu-lhes outra da pá virada, a maior parte do tempo faltou-lhes dinheiro e sobrou trabalho, suspiraram de júbilo e de tristeza talvez na mesma proporção. Por muitos anos sonharam em fugir do verão de Ijuí, de onde até o diabo escapa lá por dezembro, mas não encontravam jeito. Quando juntaram umas economias, a casa que alugaram ficava na zona rural da cidade praiana, e em vez de gaivotas tínhamos galinhas. Mas nos divertimos mesmo assim, e virou história.

Como virou história a nossa primeira ida em família a um restaurante. Chinfrim que só, mas pisávamos em nuvens com nossas roupas de aniversário e sentíamos aromas de mil e uma noites. Para mim, nunca haverá um D.O.M. ou Fasano que se equipare ao restaurante do Primo. Desde então, e até hoje, qualquer prato seguido por “à Califórnia” é sinônimo de coisa muito fina lá em casa. A gente enchia a boca para dizer “à Califórnia” E até hoje meus pais adoram coisas “à Califórnia”.

Para mim e para meus irmãos era um choque descobrir que na casa de alguns de nossos amigos os pais não se beijavam nem arrulhavam. Nós achávamos que era uma lei da natureza que determinava, geneticamente, o modus operandi dos pais. Fiquei indignada quando disseram, uns anos atrás, que Hebe Camargo tinha inventado o selinho. Todo mundo sabe que foram os meus pais.

O amor é assim. Cheio de coisas sem importância que fazem uma vida. Acho que a sabedoria dos meus pais foi ter percebido que eram essas pequenas delicadezas o que realmente importava. Que os desacertos e as trapalhadas teciam os enredos das histórias que iam bordando a nossa pequena saga. Ninguém nunca achou lá em casa que era fácil viver, por isso o difícil assustava, mas não nos metia tanto medo assim.

Gosto de pensar, quando acordo pela manhã, que meus pais estão procurando, apesar das dores de outono, uma posição para ficar abraçadinhos. E, assim, encaixados de amor, falar da vida enquanto lá fora, como Erico Verissimo tão bem percebeu, ruge o tempo e o vento, cada vez mais vorazes.

(Publicado na Revista Época em 13/06/2011)

Se a Amazônia é nossa, por que não cuidamos dela?

Para boa parte dos brasileiros, a floresta não passa de uma abstração

Um amigo me procurou tempos atrás porque queria usar suas férias para conhecer a Amazônia. Não as capitais, nem os hotéis engana-turistas, com seus macacos amestrados, pesca de piranhas e índios contratados para fazer dancinhas. Mas a floresta – e o povo da floresta. Expliquei a ele que não existe uma Amazônia, mas muitas, e que uma vida não basta para conhecê-las. Mas, se ele quisesse ter um contato real, precisaria sair do turismo previsível e se entregar à experiência. Meu amigo foi, então, para a reserva de Mamirauá, no estado do Amazonas, e, depois, comprou uma rede e embarcou num barco de linha pelo rio Solimões. A única parte previsível da viagem é que ele voltaria apaixonado – transformado e transtornado. E foi o que aconteceu. Meu amigo agora é um brasileiro com uma memória amazônica dentro dele, que o sobressalta a cada (má) notícia anunciada pelos jornais de São Paulo, onde vive.

A experiência do meu amigo me ajudou a compreender por que boa parte dos brasileiros pouco se importa com a Amazônia. Se você perguntar para qualquer pessoa na rua ou numa festa de família, ela vai enfaticamente dizer que a Amazônia é nossa, é o pulmão do mundo, é importantíssima. Mas, na prática, vai testemunhando a devastação da floresta pelo noticiário enquanto toma um pingado ou uma cerveja. Porque a Amazônia, para a maioria, não passa de uma abstração.

Uma floresta meio mitológica e longe, muito longe – não digo distante como Marte, mas muito mais distante do que Miami, Cancun ou mesmo o deserto do Atacama ou a Patagônia, destino dos que se consideram um pouco mais aventureiros. Até porque a Amazônia real exige força de espírito, uma entrega ao incontrolável da vida. A relação me lembra da inauguração do Animal Kingdom (Reino Animal), parque temático da Disney, nos anos 90, em que as crianças presentes ficaram profundamente entediadas porque os leões de verdade não falavam com elas nem faziam show aeróbicos, mais preocupados eles mesmos em dormir de tédio naquela selva de mentira.

Em Mamirauá, meu amigo era o único brasileiro do grupo. Havia dois britânicos, dois australianos e um austríaco. Nenhum deles fazia o tipo Indiana Jones. Meu amigo é roteirista de TV, dois dos visitantes eram do mercado financeiro e mexiam com a Bolsa, uma mulher estava estudando mandarim porque seu banco a mandaria para a China no mês seguinte, outra era publicitária, e o austríaco era um aposentado que cuidava da mulher doente havia duas décadas e uma vez por ano tirava férias e saía pelo mundo. Todos eles conheciam o Brasil – não o país turístico, mas um bem mais interessante – melhor do que o meu amigo, o que o deixou primeiro chocado, depois envergonhado. Deram-lhe dúzias de dicas preciosas sobre lugares pouco badalados. E não, não estavam atrás da biodiversidade brasileira. Queriam apenas conhecer o Brasil profundo e voltar para a rotina de suas vidas em seus países de origem com experiências – e não apenas com fotografias.

Fico me perguntando: por que a discussão do novo Código Florestal não mobiliza multidões em vez dos mesmos de sempre? Ou por que o povo não protesta pela aprovação açodada da usina de Belo Monte, concedida pelo Ibama neste início de junho mesmo sem que o consórcio tenha cumprido todas as exigências, num processo claramente atropelado desde o início? Tão atropelado que já gerou no passado o pedido de demissão do responsável pelo licenciamento no Ibama, que saiu denunciando que não suportava mais a pressão.

Está em curso a aprovação de um Código Florestal que contraria o bom senso ao anistiar desmatadores, entre outras liberalidades, e que representa um retrocesso na política ambiental do país em um momento crucial para o Brasil. Isso dito não por mim – mas por gente que dedicou a vida a estudar o tema. E ninguém faz passeata nas capitais.

A bacia do Xingu, onde o governo quer construir a usina de Belo Monte, é a moradia de 28 etnias indígenas, 440 espécies de aves, 259 de mamíferos e 387 de peixes. A obra vai deslocar pelo menos 20 mil pessoas de suas casas e outras 100 mil poderão migrar para uma região conhecida pelos conflitos de terra. O lago ocupará uma área equivalente a um terço da cidade de São Paulo. Como afirma Marina Silva em artigo, a previsão é de que algo em torno de 210 milhões de metros cúbicos, só um pouco menos que o volume subtraído para a construção do Canal do Panamá, seja retirado para a escavação dos canais. Sem contar a duvidosa viabilidade econômica do megaprojeto tocado pelo consórcio Norte Energia, que já sofreu várias desistências. Nem se sabe direito quanto a obra vai custar, já que os cálculos mudam a todo momento. Seja você contra ou a favor ou mesmo sem opinião formada, há de concordar que uma obra desta proporção, que vai alterar todo o ecossistema de uma região vital para o país e para o planeta, não pode ser construída sem cuidados rigorosos e respostas claras.

E isso tudo se desenrola numa época em que a implantação de grandes obras como hidrelétricas na Amazônia são questionadas como solução para o problema da energia no país por gente respeitável. Mas, cada vez que alguém ousa ter uma opinião dissonante ou fazer perguntas perfeitamente lógicas, imediatamente é “acusado” de ambientalista radical. Quando não culpado pelo déficit energético do país, como se a única alternativa fosse destruir o meio ambiente em prol do desenvolvimento. É complicado mesmo conciliar a geração de energia com a preservação ambiental, mas não há escolha nesse momento histórico – e chegamos a esse impasse porque demoramos a acordar (se é que acordamos). É para encontrar soluções responsáveis que tanta gente estuda e tanto dinheiro público é gasto. Se fosse fácil, qualquer um faria.

Belo Monte, por exemplo, é anunciada há uns 20 anos. E sempre que foi anunciada colaborou para acirrar os conflitos de terra na região de Altamira, no Pará. Onde já vive uma parcela considerável dos abandonados da Transamazônica e dos projetos megalômanos de ocupação da floresta promovidos pela ditadura militar. No Avança Brasil, de Fernando Henrique Cardoso, a retomada de Belo Monte estava prevista, e o mero anúncio triplicou a população da miserável Anapu, multiplicando os conflitos de terra na região. Não foi por obra do acaso que a missionária Dorothy Stang foi assassinada em Anapu. Mas a relação entre uma coisa e outra em geral é convenientemente esquecida.

Parece que a maioria pouco se importa, de fato, com o destino da Amazônia. Exceto os que vêm lutando e morrendo por ela, como aconteceu com quatro brasileiros entre 24 e 28 de maio – José Cláudio Ribeiro da Silva, Maria do Espírito Santo da Silva, Adelino Ramos e Eremilton Pereira dos Santos. Agora, se alguém lançar um SPAM na internet dizendo que “gringos” e “ONGs” americanas estão invadindo a Amazônia, aí o povo grita. Multiplicam-se os discursos ufanistas. Porque, afinal, a “Amazônia é nossa”. Pelo jeito, tão nossa que podemos acabar com ela. Gritar é fácil, pensar e se comprometer dá mais trabalho.

Tive o privilégio, por ser repórter e me interessar pela região, de conhecer várias Amazônias. Tenho uma vida simples e todo o dinheiro que me sobra, quando sobra, uso para conhecer o mundo da forma mais barata possível – e conheço menos do que gostaria, mas mais do que a maioria. Posso afirmar, sem hesitação, que o lugar mais belo que conheci em toda a minha vida, até hoje, foi a Amazônia – a parte ainda salva dela. Acho que, em algum momento do ensino médio ou fundamental, todos os estudantes deveriam conhecer uma parte da floresta, para se apropriar dela no coração, desde cedo, como o meu amigo que partiu de férias para Mamirauá e navegou pelo Solimões ao sabor das histórias do povo da floresta. Aí, sim, poderíamos dizer que a Amazônia é nossa.

Por enquanto, o descaso real com que acompanhamos o noticiário mostra que a Amazônia é apenas uma posse no imaginário da população. Mas não há uma apropriação real, concreta, que se traduza em preocupação e em cuidado com aquilo que se ama. Porque a floresta é apenas uma abstração para boa parte dos brasileiros.

Não, não são os gringos que estão dilapidando a Amazônia. Se a culpa fosse deles, seria bem mais fácil. Somos nós mesmos. E estamos à beira de sermos coniventes com mais dois golpes de morte – o novo Código Florestal e a aprovação descuidada da usina de Belo Monte.

(Publicado na Revista Época em 06/06/2011)

A coluna que (quase) ninguém lê

Para que mais uma morte de pobre não vire estatística – ou vaia de ruralista

Bocão morreu. Tinha esse apelido por causa do sorriso largo, que dava vontade de rir com ele. Por que Bocão ria? Não sei. Por teimosia, talvez. Ou porque sabia que a expectativa de vida dele era de menos da metade da média dos brasileiros e já nascera com menos dias de riso. Bocão tinha ainda outros dois nomes: o do registro, Alexsandro Rocha da Silva, e o do rap ligado ao Grupo de Apoio à Prevenção da AIDS (GAPA), MC Alex. Ele fugiu de casa aos 7 anos para morar nas ruas de Porto Alegre porque o padrasto batia na mãe. E ele bateu no padrasto. E o padrasto bateu nele. História comum entre as crianças e adolescentes das ruas do Brasil. Morreu neste final de maio de uma doença oportunista da AIDS, empurrado de um hospital a outro. Foi enterrado pelo pai que o procurava – e o encontrou.

Bocão viveu mais do que todos. Fez, como costumava dizer, “hora-extra na Terra”. Ele era o último protagonista de uma das histórias mais bonitas que testemunhei em minha vida de repórter, de gente. Em março de 1994, um grupo de guris de rua da capital gaúcha rodeou uma mulher que conheciam por causa do sopão dos pobres. Deirdre Bicca era o seu nome. Ela era professora de matemática. Aqueles meninos estropiados de frio, de fome, de tiro, de droga, de polícia, de HIV, a rodearam não para assaltá-la, como a maioria pode ter pensado. Eles pediram a ela algo pungente: pediram escola.

“A senhora pode dar aula para nós? A gente precisa de estudo para o nosso futuro.” Deirdre começou então a alfabetizá-los primeiro numa praça, depois na escadaria da Igreja das Dores, de onde foram expulsos. E ainda foram enxotados de muitos lugares até conseguirem ter aulas ao relento, no Parque da Redenção. Fora, sempre fora.

Formavam a Turma do Cachorrinho, assim batizados pela rua porque guardavam carros na praça onde também estacionava o cachorro-quente mais famoso da cidade, o cachorro-quente do Rosário. E Rosário é o nome de um tradicional colégio privado onde jamais entrariam. Aqueles meninos com olhos de velho realizaram uma das utopias mais belas e dolorosas deste país – uma escola que sobrevivia a eles. Em um ano em que os acompanhei, sete morreram antes dos 20 anos. Mas, para cada um que morria, eles botavam outro guri de rua no lugar. Para que a escola vivesse. Eles morriam, mas o sonho não. Bocão foi o último.

Mas o último dos primeiros. Uma década atrás, duas jornalistas (Clarinha Glock e Rosina Duarte) criaram com a Turma do Cachorrinho o jornal Boca de Rua. Pelo jornal, com suas mãos e mentes, os meninos se inscreveram na história. Agora não é mais a escola, mas o jornal que vive além deles. E é o bocão de Bocão que estampa o primeiro número – hoje histórico – do jornal. Como diz Rosina, Bocão trazia o nome do jornal no próprio nome.

Uma das muitas noites tristes da vida de Bocão aconteceu ao apanhar da polícia por arrombar um carro para dormir no banco de trás porque temia morrer de frio no inverno gaúcho. Em outra foi marcado por um corte de palmo e meio na barriga que levou seis meses para fechar. Um dos dias felizes da vida de Bocão aconteceu ao ser barrado em um dos principais centros culturais da cidade pelo segurança. Ele lá estava com os companheiros para exibir um filme sobre a experiência do jornal. O segurança perguntou diante de suas roupas de muitas mãos: “Quem são vocês?”. E Bocão não hesitou, apropriando-se do que havia se tornado: “Nós somos os autores”. E foi Bocão que, ao escolherem o título de um livro sobre as escrituras do povo de rua, disse, em um belo achado de linguagem: “Histórias de Mim”.

Quando morreu, uma assistente social comentou: “Ele não tinha nenhum documento. Parecia que nunca havia existido”. Ela estava enganada. Bocão existiu de várias maneiras. E seguirá existindo – porque a ideia que ajudou a construir vive. A morte o calou, mas o que escreveu segue falando pelo Boca de Rua. E seu sorriso está lá, nos lembrando que a vida quer viver.

Alguns podem ter estranhado o título desta coluna. A quem chegou até aqui – porque boa parte não chega –, quero explicar. Em mais de dois anos escrevendo neste espaço, comprovei que os textos menos lidos são aqueles sobre moradores de rua. No início, isso me chocava e me entristecia profundamente. Hoje, entendo que é lógico que, assim como a maioria finge não vê-los nas ruas concretas, também finge não vê-los em todas as camadas de mundo. Para mim, que não me pauto pela audiência, mas pela relevância, esta é uma excelente razão para continuar escrevendo sobre moradores de rua. Meus leitores podem não ler, mas vão ter de fazer a escolha de não ler. Porque aqui está visível. E será preciso assumir a decisão de fazer de conta que eles não existem. E que cada um de nós não tem nada a ver com a sua vida – e com a sua morte.

Quem quiser se conectar com a realidade na qual estamos todos implicados, mesmo quando fingimos que não estamos, pode acessar as colunas menos lidas de minha trajetória neste site: O homem sem país, Uma história de luz, A guria dos 7.

Quem sabe um dia mais gente comece a estranhar que alguns já nasçam com direito apenas a um terço da vida.

bocao

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A semana passada foi uma vergonha para este país. No mesmo dia em que a Câmara dos Deputados aprovou um Código Florestal que beneficia quem vem acabando com o meio ambiente e comprometendo o futuro de todos os brasileiros – e também do planeta –, foram assassinados dois líderes extrativistas que defendiam o manejo sustentável da floresta. José Cláudio Ribeiro da Silva e Maria do Espírito Santo Silva foram mortos a tiros na terça-feira, 24/5, em Nova Ipixuna, no sudeste do Pará. Depois, José Cláudio teve parte da orelha decepada. Quando foi anunciado na Câmara o duplo assassinato, o que fez a bancada ruralista? Vaiou. Dois brasileiros foram executados – e alguns de nossos representantes vaiaram.

Como Chico Mendes e Dorothy Stang, o casal também avisava há muito, como mostra este vídeo, que estava “com uma bala na cabeça”. E, como parece sempre acontecer nesse país, a profecia se realizou. Mas, diferente de Chico Mendes e de Dorothy Stang, o espaço dado à sua morte na imprensa foi bem menor. Possivelmente porque a luta de Chico Mendes foi noticiada primeiro pelo New York Times – e Dorothy Stang tinha família americana. Assim como os outros 18 executados no ano passado no Pará por conflitos agrários, como mostra a matéria Eles morreram pela floresta, José Cláudio e Maria eram brasileiros pobres que lutavam pelo que nós todos deveríamos estar lutando. E morreram porque não foram escutados. Também por nós.

Foi uma semana feliz para os assassinos do Brasil – os assassinos de gente, e os de futuro que circulam pelo Congresso. Prestem atenção na votação do novo Código Florestal no Senado, anotem o nome de quem faz o que, porque é uma ideia de país que está em jogo. Não custa lembrar que todos aqueles homens e mulheres que estão decidindo o nosso futuro – boa parte deles mais preocupado com o próprio presente – foram escolhidos e legitimados pelo nosso voto, o que nos coloca na condição de cúmplices da ruína ética a que assistimos no Congresso mandato após mandato. Na sexta-feira, 27/5, Adelino Ramos, outra liderança que combatia o desmatamento da floresta, foi assassinado quando vendia verduras. Desta vez, em Rondônia. Coincidência?

Não é com parlamentares como estes – capazes de queimar a Amazônia em benefício próprio e vaiar quando é anunciado o assassinato de brasileiros que defendiam a floresta – que vamos a algum lugar. Nem com cidadãos que testemunham a indignidade e seguem calados. Essa classe de políticos só tem a ousadia de ser tão vil em suas barganhas e em seus atos porque sabe que sempre pode contar com a nossa omissão.

Não há nenhuma discussão, hoje, no país, mais importante que a do Código Florestal. Seu desfecho determinará muito do que seremos – ou não seremos. Quem sabe ainda dê tempo para mais gente estranhar um Código Florestal que anistia desmatadores ser aprovado pela Câmara em pleno ano de 2011, quando o desafio urgente é – ou deveria ser – o desenvolvimento sustentável do país. E mais gente comece a desconfiar que assassinatos de defensores da Amazônia não combinam com as pretensões do Brasil de ocupar um lugar de destaque no cenário mundial.

(Publicado na Revista Época em 30/05/2011)

O que “os livro” contam?

Algumas dúvidas sobre a polêmica do livro didático

Li o capítulo do livro “Por uma vida melhor”, que vem causando polêmica há mais de uma semana na imprensa e na comunidade acadêmica. O livro é distribuído pelo Ministério da Educação para ser utilizado pelas escolas públicas na Educação de Jovens e Adultos e foi coordenado pela Ação Educativa – ONG pela qual tenho grande respeito pelo trabalho que realiza no reconhecimento e ampliação das vozes da cultura, especialmente a das periferias. Copio o trecho da discórdia aqui – e sugiro que o leitor leia o capítulo inteiro, intitulado “Falar é diferente de escrever”. É importante ler o texto na fonte para que possamos pensar juntos e para que cada um possa formar sua própria opinião.

O trecho que gerou a polêmica é este:

“Os livro ilustrado mais interessante estão emprestado.
Você acha que o autor dessa frase se refere a um livro ou a mais de um livro? Vejamos:
O fato de haver a palavra os (plural) indica que se trata de mais de um livro. Na variedade popular, basta que esse primeiro termo esteja no plural para indicar mais de um referente. Reescrevendo a frase no padrão da norma culta, teremos:
Os livros ilustrados mais interessantes estão emprestados.
Você pode estar se perguntando: ‘Mas eu posso falar ‘os livro?’. Claro que pode. Mas fique atento porque, dependendo da situação, você corre o risco de ser vítima de preconceito linguístico. Muita gente diz o que se deve e o que não se deve falar e escrever, tomando as regras estabelecidas para a norma culta como padrão de correção de todas as formas linguísticas. O falante, portanto, tem de ser capaz de usar a variante adequada da língua para cada ocasião.”

Ao ler o capítulo inteiro, é fácil perceber que, em nenhum momento, os autores do livro afirmam que não se deve ensinar e aprender a “norma culta” da língua. Pelo contrário. Eles se dedicam a ensiná-la. Logo na primeira página, é dito: “Você, que é falante nativo de português, aprendeu sua língua materna espontaneamente, ouvindo os adultos falarem ao seu redor. O aprendizado da língua escrita, porém, não foi assim, pois exige um aprendizado formal. Ele ocorre intencionalmente: alguém se dispõe a ensinar e alguém se dispõe a aprender”. Mais adiante, os autores estimulam o aluno a ler e a escrever – e a insistir nisso, mesmo que possa parecer difícil, porque é lendo e escrevendo que se aprende a ler e a escrever.

Não há, portanto, nenhum complô contra a língua portuguesa, como algumas intervenções fizeram parecer. Nem mesmo caberia tanto barulho, não fosse uma ótima oportunidade para pensarmos sobre a língua. E o debate das ideias sempre vale a pena. É mais interessante, porém, quando partimos das dúvidas – e não das certezas. Não custa perguntar uma vez por dia a si mesmo: “Será que eu estou certo?”. Ninguém está velho demais, ou sábio demais, ou tem diplomas demais que não possa duvidar e aprender. Um professor que pensa que sabe tudo não é um professor – é um dogma. E dogmas cabem nas religiões e nas ditaduras – e não na escola e na democracia.

Há algumas afirmações no texto que, em minha opinião, merecem uma reflexão mais atenta. E o trecho de “Os livro” é apenas uma delas. Em outro momento, os autores dizem o seguinte:

“Em primeiro lugar, não há um único jeito de falar e escrever. A língua portuguesa apresenta muitas variantes, ou seja, pode se manifestar de diferentes formas. Há variantes regionais, próprias de cada região do país. (…) Essas variantes também podem ser de origem social. As classes sociais menos escolarizadas usam uma variante da língua diferente da usada pelas classes sociais que têm mais escolarização. Por uma questão de prestígio — vale lembrar que a língua é um instrumento de poder —, essa segunda variante é chamada de variedade culta ou norma culta, enquanto a primeira é denominada variedade popular ou norma popular. Contudo, é importante saber o seguinte: as duas variantes são eficientes como meios de comunicação. A classe dominante utiliza a norma culta principalmente por ter maior acesso à escolaridade e por seu uso ser um sinal de prestígio. Nesse sentido, é comum que se atribua um preconceito social em relação à variante popular, usada pela maioria dos brasileiros. Esse preconceito não é de razão linguística, mas social. Por isso, um falante deve dominar as diversas variantes porque cada uma tem seu lugar na comunicação cotidiana”.

É verdade que a língua pode ser um instrumento de dominação – e foi ao longo da História não só do Brasil, mas do mundo. O português mesmo é a língua dos colonizadores – e foi sendo transformado por falantes vindos de geografias e de experiências diversas ao longo dos séculos, num constante movimento. Assim como a apropriação da palavra escrita e a ampliação do acesso à escola estão na base de qualquer processo igualitário. Também é verdade que os pobres sempre foram discriminados por tropeçarem nas palavras e na concordância. Basta lembrar as piadas que faziam com Lula porque no início de sua carreira política ele falava “menas” – em vez de menos. A solução para a discriminação, sempre uma indignidade, não foi afirmar que “menas” também era correto.

O que discordo no capítulo polêmico é exatamente o caminho que o livro propõe para a inclusão. Primeiro, acho complicado afirmar que usar “a norma culta” ou a “norma popular” é uma questão de ocasião. Como neste trecho: “A norma culta existe tanto na linguagem escrita como na linguagem oral, ou seja, quando escrevemos um bilhete a um amigo, podemos ser informais, porém, quando escrevemos um requerimento, por exemplo, devemos ser formais, utilizando a norma culta”.

Aceitar que está correto dizer “Os livro” – ou que basta aprender onde cabe a “norma popular” e onde é mais apropriada a “culta” – pode significar aceitar a dominação e acolher o preconceito. Quem fala e escreve “os livro” o faz não por escolha, mas porque lhe foi roubado o acesso à educação. É verdade que quem assim se expressa supostamente comunica o mesmo que quem respeita a concordância. E o objetivo maior da língua é permitir a comunicação. Mas, se você afirma que a concordância ou não é apenas uma questão de ocasião, você corre o risco de estar acolhendo a discriminação – e não incluindo de fato.

A inclusão real só vai acontecer quando a escola pública oferecer a mesma qualidade de ensino recebida pelos mais ricos nas melhores escolas privadas. Quando o Estado for capaz de garantir a mesma base de conhecimento para que cada um desenvolva suas potencialidades. E este é o problema do país: uma educação pública de péssima qualidade, com adolescentes que chegam ao ensino médio sem condições de interpretar um texto – e muitas vezes incapazes até mesmo de ler um texto.

O que os mais pobres precisam não é que alguém lhes diga que expressões como “os livro” é bom português, mas sim uma escola que ensine de fato – e não que finja ser capaz de ensinar. Para dizer “os livro” ninguém precisa de escola. É óbvio que a língua, como coisa viva que é, também é política. Mas a política de inclusão contida no texto do livro pode estar equivocada. E a discussão sobre o tema, seja de um lado ou de outro, poderia ser mais interessante se fosse menos sobre política – e mais sobre educação.

Dominar as regras é importante até para poder quebrá-las. É preciso conhecer profundamente a origem, a estrutura da língua, para poder brincar com ela. Você precisa partir do parâmetro para reinventá-lo na escrita. Quando o personagem de um romance que se passa na periferia de uma grande cidade diz “Os livro”, seu autor sabe que a concordância correta é “os livros”. Quando ele escolhe colocar essa construção na boca do personagem, há uma intenção literária. Ele está nos dizendo algo muito mais profundo do que uma mera equivalência poderia sugerir. Se você elimina essa possibilidade, pode estar eliminando a denúncia da dominação ou a possibilidade do estranhamento. (Ao final do capítulo polêmico, aliás, há um texto bem interessante sobre a visão de mundo contida na escolha da linguagem escrita, desenvolvido a partir do poema “Migna terra”, de Juó Bananére.)

Quando alguém é discriminado por dizer “Os livro” não me parece ser “um preconceito linguístico”, como os autores afirmam, mas um preconceito. Ponto. Ninguém tem o direito de zombar de outro porque ele não conhece as regras gramaticais – ao contrário, deve ajudá-lo a encontrar os meios de aprender. E é nesse ponto que me parece que pode existir também um equívoco na compreensão do que é a linguagem popular.

Não sou linguista, nem gramática, nem professora de português. Estou sempre estudando para não cometer erros ao escrever, mais ainda agora com a nova ortografia. Mas, mesmo com a gramática e o dicionário já bem gastos pelo uso, às vezes me acontece de atropelar a língua. Acho, porém, que entendo um pouco da linguagem das ruas. E nisso tenho algo a dizer.

Percorro o Brasil há mais de 20 anos ouvindo histórias de gente – e muitos dos que escutei eram analfabetos. Sempre defendo que a principal ferramenta do repórter é a escuta. E é justamente esta escuta que me ensinou que a linguagem popular é muito variada – e muito, muito sofisticada mesmo. Seguidas vezes, meu desafio é apenas escutar com redobrada atenção para reproduzir pela escrita o que foi inventado pela fala. Porque há uma recriação de mundo em cada canto, contida nas pessoas a partir de experiências as mais diversas. É essa sofisticação da linguagem que me abre as portas para o universo que me propus a contar.

Com frequência eu penso, diante de um analfabeto nos confins do Brasil: “Nossa! Isso é literatura pela boca!”. E é. Guimarães Rosa não reinventou a língua portuguesa apenas porque era um gênio. Acredito que era um gênio – mas acredito também que ele bebeu em genialidades orais do sertão do qual se apropriou como poucos.

Então, acreditar que a linguagem popular (ou “variante popular” ou “norma popular”) é dizer coisas toscas como “os livro” pode significar subestimar a riqueza e a diversidade de expressão do povo. Sempre lamentei que as pessoas que me contavam suas histórias não tivessem tido acesso à escola, devido à abissal desigualdade do Brasil, para que não precisassem de mim para transformar em escrita as belas construções, os achados de linguagem que saíam de sua boca.

Nada a ver com “os livro”. Posso estar errada, mas me arrisco a afirmar que o povo brasileiro é muito melhor do que isso. Se o Estado algum dia garantir escola pública de qualidade e professores qualificados, bem pagos e dispostos a ensinar, o português será uma língua muito mais rica também na expressão escrita – como já é na oral.

(Publicado na Revista Época em 23/05/2011)

Bebês censurados

É perigoso quando a internet confunde banho de criança ou amamentação com atos de pedofilia

Em abril, um pai levou sua filha à cidade onde viveu boa parte da vida para apresentá-la aos amigos mais queridos. Para receber sua família, foi preparado um jantar caprichado na casa da madrinha do bebê. Como o aniversário do pai aconteceria dias mais tarde, os amigos decidiram lhe dar um álbum de fotos desse acontecimento tão especial e planejado desde que a criança nasceu. E assim, a fotógrafa do grupo a qual também pertenço, dedicou-se a registrar todos os momentos.

Tão logo minha amiga editou as fotos, colocou-as num álbum do Hotmail que pudesse ser compartilhado pelo número restrito de pessoas que haviam participado da festa. Algum tempo depois, ela recebeu um aviso enorme da Microsoft, em inglês, que, resumidamente, dizia o seguinte: “Nós encontramos imagens envolvendo nudez de crianças em sua conta. Se você não retirá-las em 48 horas, seremos obrigados a cancelar esta e outras contas. Esta política busca reduzir os riscos na comunidade online. A Microsoft leva a sério a segurança das crianças. As violações incluem nudez, nudez parcial, pornografia, assédio, comportamento ilegal ou ofensivo”.

Minha amiga demorou alguns bons minutos para encontrar alguma pista sobre o crime do qual estava sendo acusada ao fotografar episódio tão amoroso. Então descobriu: havia pelo menos duas fotos dos pais com o bebê durante o banho. E ninguém ali tinha uma mente tão perversa a ponto de pensar que aquele momento inocente pudesse ser remotamente confundido com algum tipo de pornografia ou ato pedófilo que exigisse providenciar o impossível: um banho de roupa no bebê.

Assustadíssima, minha amiga tirou o álbum inteiro da rede. A situação me pareceu surreal. Mais ainda porque, entre as muitas ironias, está o fato de que a suspeita é uma jornalista que se especializou e se dedicou à proteção da infância e da adolescência nos últimos 20 anos. Por sua atuação nessa área é convidada a dar palestras e oficinas no Brasil e fora dele. E já ganhou prêmios por seu trabalho em Direitos Humanos. De fato, não haveria ninguém mais improvável do que ela de cometer algum ato de pedofilia contra um bebê ou disseminar pornografia infantil na internet.

Na semana passada, a imprensa noticiou que a jornalista Kalu Brum foi censurada na mais poderosa rede social do planeta, o Facebook, após postar uma foto amamentando seu filho. Em 10 de maio, Kalu recebeu a seguinte mensagem: “Olá. Você carregou uma foto que viola nossos Termos de uso e ela foi removida. O Facebook não permite a publicação de fotos que ofendam um indivíduo ou grupo, ou que possuam nudez, drogas, violência ou outras violações de nossos Termos de Uso. Essas políticas são desenvolvidas para garantir que o Facebook continue a ser um ambiente seguro e confiável para todos os usuários, incluindo as crianças que usam o site”.

O caso foi divulgado e debatido no blog Mamíferas. E depois de a foto ter sido retirada do ar, Kalu lançou o “Mamaço no Facebook” – um protesto que incentiva as mulheres, até 20 de maio, a trocar as fotos de seus perfis por imagens em que estejam amamentando, e os homens a trocá-las por fotos das mães de seus filhos nesse mesmo ato saudável.

Os dois casos da internet – que com toda certeza não são os únicos, muito pelo contrário –, fazem soar uma sirene na nossa cabeça. E eu acho que precisamos escutá-la antes que o mundo fique estranho demais. Tanto a Microsoft quanto o Facebook estão agindo “em nome do bem”. E, assim como outras corporações poderosas da rede, têm sido pressionados a responder pelos conteúdos veiculados em seu ambiente virtual pela Justiça de diferentes países. Obviamente as mensagens que Kalu e minha amiga – e muitos outros – receberam são automáticas, geradas sempre que o programa detecta algum tipo de ameaça. Uma proporção maior de pele nua, talvez. Só o Facebook e a Microsoft podem nos explicar os mecanismos utilizados em seu sistema para detectar supostas violações.

O fato é que o programa não tem como avaliar subjetividades. E então imagens de uma mãe amamentando ou um bebê tomando banho sob o olhar embevecido de seus pais são imediatamente censuradas em termos ameaçadores. No mundo virtual, o rotineiro banho do bebê cujas fotos circulam entre amigos e parentes passa a ter o mesmo potencial criminoso do rotineiro banho do bebê que circula entre as redes de pedofilia. Porque, a rigor, a nudez do bebê é a mesma. O que muda é o olhar do espectador. E o uso das imagens.

Embora existam quadrilhas que escravizam ou pagam por fotos de meninas em posições eróticas ou atos sexuais, um pedófilo se excitaria, e um criminoso poderia vender a foto de uma criança de biquíni na praia, construindo um inocente castelo de areia, para uso ilegal. Porque, de novo, o que caracteriza a ilegalidade neste caso são o olhar e o uso.

A saída deveria ser voltarmos a uma espécie de era vitoriana e obrigarmos nossos filhos a tomar banho de mar vestidos porque existem pessoas doentes e outras criminosas no mundo em que vivemos? Ou amamentarmos trancadas em quartos, com vergonha de nossa natureza? Ou dar banho no bebê de portas fechadas, escondidos de todos como se fosse algo feio ou proibido? Acredito que lutamos muito para lidar melhor com nossos corpos e nossas vidas para tal retrocesso.

Mas é algo semelhante o que está acontecendo na internet – um mundo no qual vivemos durante boa parte do nosso dia e pelo qual nos comunicamos com amigos, parentes, parceiros de trabalho e desconhecidos. Um mundo virtual – mas bem real.

Na rede, tudo virou a mesma coisa – e confundi-las me parece muito perigoso. Porque, se começarmos a tratar da mesma maneira uma mulher amamentando seu bebê e um ato de pedofilia, logo não saberemos mais a diferença. E, se não soubermos mais a diferença, não haverá mesmo como prevenir e punir o crime.

O outro ponto que deve fazer a sirene da nossa cabeça tocar ruidosamente diz respeito à Lei. Para criar ou alterar uma lei em um país democrático, é necessário antes que o texto seja discutido e aprovado pelo Legislativo. E, ultimamente no Brasil, pelo vazio e pela indigência desta instância, algumas questões cruciais têm sido debatidas e decididas pelo Supremo Tribunal Federal. No processo democrático, o debate se estabelece na imprensa e nas ruas, as opiniões se digladiam, e o cidadão influencia nas decisões seja pelo seu voto, seja pelo seu poder de manifestação. Do mesmo modo, a polícia precisa de autorização judicial para grampear alguém dentro da lei.

Na internet, não. Há uma espécie de polícia virtual, transnacional e privada atuando em nossas vidas como bem entende. Porque, para esta “polícia”, não somos cidadãos – mas clientes (ou “customers”, já que a comunicação, em geral, é em inglês. Quantos de nós, no mundo inteiro, têm seu cotidiano ligado a marcas como Microsoft, Google, Apple, Facebook, Twitter, etc? Me parece que não temos percebido que vivemos sob suas leis. E uma delas nos diz que o banho de nossos bebês ou o momento da amamentação é pedofilia.

A partir do momento em que vasculham nossos arquivos e recebemos o aviso de que estamos violando sua política de uso, nossa escolha é aceitar o veredicto e retirar as imagens do ar, quando não as eliminam por sua própria conta – ou sermos banidos desse mundo.

Supostamente seria uma escolha estar ou não na rede, usar ou não a mercadoria que oferecem. De fato, cada vez mais deixa de ser uma escolha, já que boa parte da população do planeta não pode mais conceber sua vida pessoal e profissional sem estar em alguns desses conglomerados virtuais.

Como disse Kalu Brum para esta coluna: “Tive de concordar que li e aceitei os termos de uso do Facebook de que a foto feria as regras. Fiquei indignada e por isso pensei em sair da rede. Vejo tantas fotos com pessoas de decote, shorts minúsculos, por que uma foto de amamentação, em que o mamilo nem aparecia, estava sendo retirada? Imediatamente pensei que poderia usar a própria rede social para mobilizar mulheres a trocarem suas fotos do perfil”.

Acho ótimo que alguém tenha decidido reagir e torço para que o “mamaço” organizado por Kalu surta algum tipo de efeito no Facebook. Mas sabemos o tamanho e o poder desta rede com mais de 600 milhões de usuários no planeta – e como é difícil atingi-la ou influenciá-la. Não é por acaso que a manifestação contrária à política da rede social aconteça dentro da rede social, sem que o Facebook perca um único usuário. E é sobre isso que também precisamos refletir.

Assim como Kalu, minha amiga também retirou o álbum de fotos, chocada, e seguiu sob o império da Microsoft. E, possivelmente, se me acontecesse algo semelhante, eu faria o mesmo. Porque preciso usar as redes e não tenho escolha. De fato, sem nenhum direito de defesa ou julgamento, se não acatarmos que o banho do bebê ou a amamentação é pedofilia – porque é isso que aceitamos como verdade quando retiramos as imagens da rede ou continuamos lá depois que são retiradas –, somos banidos do mundo. Como párias.

E é assim que chegamos a resultados concretos como estes: uma das jornalistas mais atuantes na área da proteção dos direitos da infância e da adolescência é obrigada a eliminar um álbum virtual de acesso restrito porque há nele a foto de pais dando banho em seu bebê; uma mãe amorosa tem a foto em que amamenta seu filho retirada da rede social da qual participa. Tudo em nome do bem. E, claro, como muito do que nos tem sido impingido nos últimos anos, com a melhor das intenções.

Até o final do século XX, esta era uma realidade que só havíamos vislumbrado pela ficção. Agora, o futuro chegou. Não há respostas nem soluções fáceis para as questões apresentadas pelo novo mundo. Mas acho que é preciso ouvir a sirene e acordar.

(Publicado na Revista Época em 16/05/2011)

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