A doença de ser normal

Com medo da liberdade, preferimos aderir à manada

Na semana passada, li uma entrevista do professor José Hermógenes de Andrade Filho, uma lenda no mundo da ioga no Brasil. No texto, ele conta ter criado uma palavra – “normose” – para dar conta daquele que talvez seja o grande mal do homem contemporâneo. “Normose” seria a “doença de ser normal”. O professor explica: “Como diz o título de um documentário que fizeram sobre mim: ‘Deus me livre de ser normal!’. Pois, na dita normalidade em que vivemos, somos constantemente alimentados pelo que nos aliena de nós. Com isso, perdemos a noção das coisas, do sentido de nossa vida, deixando que o mundo interfira muito mais do que deveria. (…) Essa normalidade nunca esteve tão distante da verdade”.

A entrevista faz parte de uma coletânea de boas conversas com pessoas ligadas ao universo da espiritualidade – não necessariamente religiosa – no Brasil e no mundo, escrito em dois volumes pelo jornalista mineiro Lauro Henriques Jr., com o título “Palavras de poder” (LeYa, 2011). Ganhei os dois livros de uma pessoa especial na minha vida e por isso comecei a ler com curiosidade. Me deparei com a “normose” do professor Hermógenes. E fiquei instigada a pensar sobre ela.

No mesmo período, o psicanalista e romancista Contardo Calligaris fez na Flip, em Paraty, um comentário bem provocador: “Quando desistimos da nossa singularidade para descansar no comportamento de grupo, aí está a origem do mal. O grupo, para mim, é o mal.”

Acredito que, por caminhos diferentes, Hermógenes e Calligaris nos estimulam a pensar em algo que vale a pena, que um chamou de “normose” e o outro de “comportamento de grupo”. Daqui em diante, enveredo pelas minhas reflexões a partir das provocações de ambos – que possivelmente sejam diversas do que eles pensaram ao propô-las. A responsabilidade, portanto, é minha.

No passado, a vida no Ocidente era determinada pela tradição. O destino de cada um era imutável, definido pela sua origem, pela categoria social a qual pertencia, e não havia dilemas sobre o que seria a sua passagem pelo mundo: se você fosse homem, seguiria os passos do pai; se fosse mulher, os da mãe. De todos era esperado o cumprimento de um roteiro previsível, que, se você nascesse homem, consistia em dar sequência aos negócios ou ao ócio da família, ou trabalhar para o mesmo patrão ou senhor do pai; e, se nascesse mulher, casar-se com alguém do mesmo nível social, em contratos arranjados previamente, reproduzir-se e cuidar da sua própria casa ou servir na casa em que a mãe serviu. Além disso, esperava-se que cada novo núcleo familiar seguisse a religião dos pais e participasse da comunidade do jeito de sempre, cada um no seu lugar determinado pelo estrato social.

A modernidade embaralhou tudo isso. E fomos, como disse Sartre, “condenados a ser livres”. É o preço que o indivíduo paga para ser indivíduo. Ainda que, em países desiguais como o Brasil, a classe social na qual se nasce influencie as chances que cada um vai ter, mesmo aqui estamos muito longe de ter o lugar cimentado da tradição do mundo de ontem. E cada governo democrático, se quiser garantir a continuidade de seu projeto no poder, precisa agora prometer trabalhar para igualar as bases de onde cada cidadão partirá para construir sua história. No mundo contemporâneo, cada um é o principal responsável pelas suas escolhas, pelos seus desejos e pelas suas desistências.

Embora existam muitos órfãos da tradição, suspirosos de nostalgia, penso que a prisão daquela vida determinada desde antes do nascimento era mais assustadora do que a liberdade de se estrepar que a modernidade nos deu. É verdade, porém, que para viver hoje é necessário um outro tipo de coragem, já que cada homem ou mulher virou em si um projeto em constante construção e desconstrução. Não é que não exista mais chão, mas ele é pantanoso, e cada um precisa escolher diante de um emaranhado de trilhas. E, se cada uma delas leva a lugares diferentes, é fato que nenhuma é segura.

É aí que a “normose” ou o “comportamento de grupo” se encaixa. Qual é o desafio de cada um de nós hoje? Desde que você não esteja na faixa da população em que toda energia e talentos são gastos na luta pela sobrevivência mais básica, o desafio que se impõe diante de cada um é a busca da sua singularidade. E esta é a busca de uma vida inteira. Não como se você tivesse uma essência que precisasse encontrar e, tão logo encontrada, estivesse tudo resolvido. Pelo contrário, esta procura leva à invenção de nós mesmos – e nunca está nada resolvido, já que sempre podemos nos reinventar. Não sem limites, mas às voltas com eles.

A proposta da modernidade e da ideia de indivíduo, muito mais libertária do que nossos antepassados amarrados pela tradição jamais sonharam, parece ótima. O problema é que dá uma angústia danada, já que, a rigor, não haveria ninguém para culpar por uma escolha equivocada ou porque o enredo que inventamos para a nossa vida saiu diferente do nosso desejo. Então, com medo de nos “enforcarmos nas cordas da liberdade”, como diz o ator Antônio Abujamra no programa “Provocações” (TV Cultura), em vez de nos arriscarmos a criar uma vida, nos responsabilizando por ela, aderimos à manada. E aqui, é importante deixar bem claro, não estou me referindo a lutas coletivas movidas por indivíduos unidos por suas singularidades, mas à adesão que implica se deixar possuir pelo grupo para não se arriscar a ser possuído por si mesmo.

Nesta adesão à manada, a “normose” ou o “comportamento de grupo” substituiria ilusoriamente o vazio deixado pela tradição. Com medo da liberdade e dos riscos inerentes a ela, muitos de nós colam no grupo. Seja ele do tipo que for: religioso, corporativo, profissional, cultural, intelectual, político, de orientação sexual ou até esportivo. Cada um deles garante, ainda que de forma muito mais frágil do que a tradição, um certo jeito de se comportar e de se vestir, um tipo de ambiente a frequentar, temas que merecem ser debatidos, gêneros de lazer e de viagens para as férias e para os fins de semana, crenças para compartilhar e até bens para adquirir. Um tipo de “normose” – que, paradoxalmente, mas com muita lógica, dentro do grupo é tratada como “diferentose”, já que, como coletivo, contrapõe as suas verdades a dos outros grupos, em geral vistos como inferiores ou limitados.

E como estas são as pessoas com quem se convive, torna-se meio inevitável namorar e ter filhos com gente da mesma turma. Assim como a tendência é reproduzir mais e mais os mesmos padrões e visão de mundo. Sem questionar, porque questionar possivelmente levaria a uma ação. E todos nós conhecemos gente, quando não nós mesmos, que prefere deixar tudo como está, ainda que doa, para não se arriscar ao desconhecido. É assim que muitos de nós abrem mão da época histórica mais rica de possibilidades de ser em troca de uma mercadoria bem ordinária: a ilusão de segurança. Mas, como sabemos, lá no fundo sentimos que algo está bem errado. Especialmente quando fica difícil levantar da cama pela manhã para seguir o roteiro programado.

Suspeito que o mal-estar contemporâneo tem muito a ver com não estarmos à altura do nosso tempo. No passado, havia “outsiders”, gente que desafiava a tradição para inventar uma outra história para si. Hoje, com a (bendita) falência da tradição, talvez o que se exija de nós seja que todos sejamos “outsiders” à nossa própria maneira – não no sentido de contrariar o mundo inteiro, mas de encontrar o que faz sentido para cada um, arriscando-se ao percurso tortuoso do desejo. Ciente de que, logo adiante, vamos perder o sentido mais uma vez e teremos de nos reinventar de novo e de novo, num processo contínuo de construção e desconstrução movido pela dúvida – e não pelas certezas.

Vivemos numa época de intenso movimento interno, em que se perder seja talvez o melhor caminho para se achar, mas nos agarramos à primeira falsa promessa como desculpa para permanecermos imóveis. Voltados sempre para fora e cada vez com mais pressa, porque olhar para dentro com a calma e a honestidade necessárias seria perigoso. Queremos garantia onde não há nenhuma, sem perceber que o imprevisível pode nos levar a um lugar mais interessante. Podemos finalmente andar por aí desencaixotados, mas na primeira oportunidade nos jogamos de cabeça numa gaveta com rótulo. Ainda que disfarçada de vanguarda.

Mas o que pode ser mais extraordinário do que inventar uma vida, ainda que com todas as limitações do existir? E que utopia pode ser maior do que nos igualarmos pela singularidade do que cada um é?

Acho que vivemos um momento histórico muito rico. Só precisamos de mais coragem. Como diz o professor Hermógenes, do alto dos seus 90 anos, “Deus (seja ele o que for – ou não – para cada um) me livre de ser normal!”.

(Publicado na Revista Época em 18/07/2011)

Meu filho, você não merece nada

A crença de que a felicidade é um direito tem tornado despreparada a geração mais preparada

Ao conviver com os bem mais jovens, com aqueles que se tornaram adultos há pouco e com aqueles que estão tateando para virar gente grande, percebo que estamos diante da geração mais preparada – e, ao mesmo tempo, da mais despreparada. Preparada do ponto de vista das habilidades, despreparada porque não sabe lidar com frustrações. Preparada porque é capaz de usar as ferramentas da tecnologia, despreparada porque despreza o esforço. Preparada porque conhece o mundo em viagens protegidas, despreparada porque desconhece a fragilidade da matéria da vida. E por tudo isso sofre, sofre muito, porque foi ensinada a acreditar que nasceu com o patrimônio da felicidade. E não foi ensinada a criar a partir da dor.

Há uma geração de classe média que estudou em bons colégios, é fluente em outras línguas, viajou para o exterior e teve acesso à cultura e à tecnologia. Uma geração que teve muito mais do que seus pais. Ao mesmo tempo, cresceu com a ilusão de que a vida é fácil. Ou que já nascem prontos – bastaria apenas que o mundo reconhecesse a sua genialidade.

Tenho me deparado com jovens que esperam ter no mercado de trabalho uma continuação de suas casas – onde o chefe seria um pai ou uma mãe complacente, que tudo concede. Foram ensinados a pensar que merecem, seja lá o que for que queiram. E quando isso não acontece – porque obviamente não acontece – sentem-se traídos, revoltam-se com a “injustiça” e boa parte se emburra e desiste.

Como esses estreantes na vida adulta foram crianças e adolescentes que ganharam tudo, sem ter de lutar por quase nada de relevante, desconhecem que a vida é construção – e para conquistar um espaço no mundo é preciso ralar muito. Com ética e honestidade – e não a cotoveladas ou aos gritos. Como seus pais não conseguiram dizer, é o mundo que anuncia a eles uma nova não lá muito animadora: viver é para os insistentes.

Por que boa parte dessa nova geração é assim? Penso que este é um questionamento importante para quem está educando uma criança ou um adolescente hoje. Nossa época tem sido marcada pela ilusão de que a felicidade é uma espécie de direito. E tenho testemunhado a angústia de muitos pais para garantir que os filhos sejam “felizes”. Pais que fazem malabarismos para dar tudo aos filhos e protegê-los de todos os perrengues – sem esperar nenhuma responsabilização nem reciprocidade.

É como se os filhos nascessem e imediatamente os pais já se tornassem devedores. Para estes, frustrar os filhos é sinônimo de fracasso pessoal. Mas é possível uma vida sem frustrações? Não é importante que os filhos compreendam como parte do processo educativo duas premissas básicas do viver, a frustração e o esforço? Ou a falta e a busca, duas faces de um mesmo movimento? Existe alguém que viva sem se confrontar dia após dia com os limites tanto de sua condição humana como de suas capacidades individuais?

Nossa classe média parece desprezar o esforço. Prefere a genialidade. O valor está no dom, naquilo que já nasce pronto. Dizer que “fulano é esforçado” é quase uma ofensa. Ter de dar duro para conquistar algo parece já vir assinalado com o carimbo de perdedor. Bacana é o cara que não estudou, passou a noite na balada e foi aprovado no vestibular de Medicina. Este atesta a excelência dos genes de seus pais. Esforçar-se é, no máximo, coisa para os filhos da classe C, que ainda precisam assegurar seu lugar no país.

Da mesma forma que supostamente seria possível construir um lugar sem esforço, existe a crença não menos fantasiosa de que é possível viver sem sofrer. De que as dores inerentes a toda vida são uma anomalia e, como percebo em muitos jovens, uma espécie de traição ao futuro que deveria estar garantido. Pais e filhos têm pagado caro pela crença de que a felicidade é um direito. E a frustração um fracasso. Talvez aí esteja uma pista para compreender a geração do “eu mereço”.

Basta andar por esse mundo para testemunhar o rosto de espanto e de mágoa de jovens ao descobrir que a vida não é como os pais tinham lhes prometido. Expressão que logo muda para o emburramento. E o pior é que sofrem terrivelmente. Porque possuem muitas habilidades e ferramentas, mas não têm o menor preparo para lidar com a dor e as decepções. Nem imaginam que viver é também ter de aceitar limitações – e que ninguém, por mais brilhante que seja, consegue tudo o que quer.

A questão, como poderia formular o filósofo Garrincha, é: “Estes pais e estes filhos combinaram com a vida que seria fácil”? É no passar dos dias que a conta não fecha e o projeto construído sobre fumaça desaparece deixando nenhum chão. Ninguém descobre que viver é complicado quando cresce ou deveria crescer – este momento é apenas quando a condição humana, frágil e falha, começa a se explicitar no confronto com os muros da realidade. Desde sempre sofremos. E mais vamos sofrer se não temos espaço nem mesmo para falar da tristeza e da confusão.

Me parece que é isso que tem acontecido em muitas famílias por aí: se a felicidade é um imperativo, o item principal do pacote completo que os pais supostamente teriam de garantir aos filhos para serem considerados bem sucedidos, como falar de dor, de medo e da sensação de se sentir desencaixado? Não há espaço para nada que seja da vida, que pertença aos espasmos de crescer duvidando de seu lugar no mundo, porque isso seria um reconhecimento da falência do projeto familiar construído sobre a ilusão da felicidade e da completude.

Quando o que não pode ser dito vira sintoma – já que ninguém está disposto a escutar, porque escutar significaria rever escolhas e reconhecer equívocos – o mais fácil é calar. E não por acaso se cala com medicamentos e cada vez mais cedo o desconforto de crianças que não se comportam segundo o manual. Assim, a família pode tocar o cotidiano sem que ninguém precise olhar de verdade para ninguém dentro de casa.

Se os filhos têm o direito de ser felizes simplesmente porque existem – e aos pais caberia garantir esse direito – que tipo de relação pais e filhos podem ter? Como seria possível estabelecer um vínculo genuíno se o sofrimento, o medo e as dúvidas estão previamente fora dele? Se a relação está construída sobre uma ilusão, só é possível fingir.

Aos filhos cabe fingir felicidade – e, como não conseguem, passam a exigir cada vez mais de tudo, especialmente coisas materiais, já que estas são as mais fáceis de alcançar – e aos pais cabe fingir ter a possibilidade de garantir a felicidade, o que sabem intimamente que é uma mentira porque a sentem na própria pele dia após dia. É pelos objetos de consumo que a novela familiar tem se desenrolado, onde os pais fazem de conta que dão o que ninguém pode dar, e os filhos simulam receber o que só eles podem buscar. E por isso logo é preciso criar uma nova demanda para manter o jogo funcionando.

O resultado disso é pais e filhos angustiados, que vão conviver uma vida inteira, mas se desconhecem. E, portanto, estão perdendo uma grande chance. Todos sofrem muito nesse teatro de desencontros anunciados. E mais sofrem porque precisam fingir que existe uma vida em que se pode tudo. E acreditar que se pode tudo é o atalho mais rápido para alcançar não a frustração que move, mas aquela que paralisa.

Quando converso com esses jovens no parapeito da vida adulta, com suas imensas possibilidades e riscos tão grandiosos quanto, percebo que precisam muito de realidade. Com tudo o que a realidade é. Sim, assumir a narrativa da própria vida é para quem tem coragem. Não é complicado porque você vai ter competidores com habilidades iguais ou superiores a sua, mas porque se tornar aquilo que se é, buscar a própria voz, é escolher um percurso pontilhado de desvios e sem nenhuma certeza de chegada. É viver com dúvidas e ter de responder pelas próprias escolhas. Mas é nesse movimento que a gente vira gente grande.

Seria muito bacana que os pais de hoje entendessem que tão importante quanto uma boa escola ou um curso de línguas ou um Ipad é dizer de vez em quando: “Te vira, meu filho. Você sempre poderá contar comigo, mas essa briga é tua”. Assim como sentar para jantar e falar da vida como ela é: “Olha, meu dia foi difícil” ou “Estou com dúvidas, estou com medo, estou confuso” ou “Não sei o que fazer, mas estou tentando descobrir”. Porque fingir que está tudo bem e que tudo pode significa dizer ao seu filho que você não confia nele nem o respeita, já que o trata como um imbecil, incapaz de compreender a matéria da existência. É tão ruim quanto ligar a TV em volume alto o suficiente para que nada que ameace o frágil equilíbrio doméstico possa ser dito.

Agora, se os pais mentiram que a felicidade é um direito e seu filho merece tudo simplesmente por existir, paciência. De nada vai adiantar choramingar ou emburrar ao descobrir que vai ter de conquistar seu espaço no mundo sem nenhuma garantia. O melhor a fazer é ter a coragem de escolher. Seja a escolha de lutar pelo seu desejo – ou para descobri-lo –, seja a de abrir mão dele. E não culpar ninguém porque eventualmente não deu certo, porque com certeza vai dar errado muitas vezes. Ou transferir para o outro a responsabilidade pela sua desistência.

Crescer é compreender que o fato de a vida ser falta não a torna menor. Sim, a vida é insuficiente. Mas é o que temos. E é melhor não perder tempo se sentindo injustiçado porque um dia ela acaba.

(Publicado na Revista Época em 11/07/2011)

O teste da caneta e o motorista gay

Quando a crueldade vem travestida de fé

Deve ter sido um junho tenebroso para os católicos que vivem verdadeiramente o evangelho. Para quem não é católico, para os que praticam outra religião, para os agnósticos e os ateus também. Para qualquer pessoa minimamente decente, confrontar-se com o discurso da crueldade – travestido de fé – é uma experiência aterradora. Foi o que aconteceu quando Dom Luiz Gonzaga Bergonzini, bispo da diocese de Guarulhos, no estado de São Paulo, falou em entrevista sobre o estupro de mulheres. Depois, o choque se repetiu no pronunciamento de Myrian Rios, deputada pelo PDT do Rio de Janeiro e, segundo ela mesma, “missionária católica da Canção Nova”, ao discursar sobre gays e pedofilia – e confundir as duas coisas.

Quando duas pessoas públicas, com responsabilidade e ressonância de pessoas públicas, dizem o que Dom Bergonzini e a deputada Myrian Rios disseram, é preciso prestar atenção. Não é banal, não é folclórico. É sério – e tem consequências.

Primeiro, Dom Bergonzini – que, em seu blog, aparece várias vezes com o título de “o leão de Guarulhos”. Em entrevista à repórter Cristiane Agostine, do jornal Valor Econômico, publicada em 13 de junho, o bispo afirmou que há “uma ditadura gay” em curso e que uma “conspiração da Unesco transformará metade do mundo em homossexuais”. Esta forma de ver a conjuntura internacional poderia, por si só, chocar boa parte dos leitores, mas o bispo se supera no trecho da reportagem que reproduzo aqui:

“Vamos admitir até que a mulher tenha sido violentada, que foi vítima… É muito difícil uma violência sem o consentimento da mulher, é difícil”, comenta. O bispo ajeita os cabelos e o crucifixo. “Já vi muitos casos que não posso citar aqui. Tenho 52 anos de padre… Há os casos em que não é bem violência… [A mulher diz] ‘Não queria, não queria, mas aconteceu…’”, diz. “Então sabe o que eu fazia?” Nesse momento, o bispo pega a tampa da caneta da repórter e mostra como conversava com mulheres. “Eu falava: bota aqui”, pedindo, em seguida, para a repórter encaixar o cilindro da caneta no orifício da tampa. O bispo começa a mexer a mão, evitando o encaixe. “Entendeu, né? Tem casos assim, do ‘ah, não queria, não queria, mas acabei deixando’”. (…) O bispo continua o raciocínio. “A mulher fala ao médico que foi violentada. Às vezes nem está grávida. Sem exame prévio, sem constatação de estupro, o aborto é liberado”, declara, ajeitando o cabelo e o crucifixo.

Sim, no teste do bispo, a vagina da mulher é uma tampa e a caneta é o pênis do estuprador. Se a mulher não quer ser violentada, basta que ela não permita que a tampa encaixe na caneta. Simples assim. É com esta humanidade que Dom Bergonzini escuta, há 52 anos, como ele faz questão de enfatizar, as católicas violadas que buscam acolhida e compaixão na sua igreja. E então passam por uma acareação através do método da tampa-vagina e da caneta-pênis.

Agora, Myrian Rios. Aliás, só descobri nesse episódio que hoje ela é deputada estadual. Até então, só a conhecia como ex-atriz e ex-mulher do cantor Roberto Carlos. A deputada do PDT apresentou-se como “missionária católica” e discursou no plenário da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj), em 21 de junho, sobre a PEC-23, que inclui a orientação sexual entre as características pelas quais um cidadão não poder ser discriminado. Reproduzo um trecho do seu discurso aqui, mas sugiro que o leitor ouça da própria deputada, na íntegra, em vídeo de menos de 12 minutos, postado no YouTube.

O vídeo é todo coberto por textos em amarelo, num discurso sobreposto em defesa da deputada. Pede apoio a ela e faz, inclusive, um alerta: “Cuidado com a imprensa e a mídia”. Sugiro escutar Myrian Rios, sem prestar atenção ao texto. E, em seguida, assistir ao vídeo novamente, só lendo os textos em amarelo. Ambos – o discurso e a defesa do discurso – são muito reveladores. Para alguns, pode parecer uma perda de tempo, mas vale a pena o esforço para compreender o mundo onde estamos metidos.

A seguir, uma amostra da fala de Myrian Rios no plenário da Alerj:

“Eu não sou preconceituosa e não discrimino. Eu prego o amor e o respeito ao próximo. (…) Se somos todos iguais, com os mesmos direitos, eu também tenho que ter o direito de não querer um funcionário homossexual na minha empresa. (…) Digamos que eu tenha duas meninas em casa, que eu seja mãe de duas meninas, e eu contrate uma babá. E esta babá mostre que a orientação sexual dela é ser lésbica. (…) Se minha orientação sexual não for esta, for contrária, e querer demiti-la, eu não posso. (…) O direito que a babá tem de mostrar que a orientação sexual dela é lésbica eu tenho como mãe na minha casa de não querer que ela seja babá das minhas filhas, dá licença? (…) Com esta PEC, eu não tenho esse direito. Eu vou ter de manter a babá na minha casa, cuidando das minhas meninas, e sabe Deus se ela não vai inclusive cometer a pedofilia com elas.

(…) Então, se o rapaz escolheu ser homossexual, o problema é dele. (…) Ele escolheu ser homossexual, ser travesti, aí eu o contrato para ser motorista da minha casa e eu tenho dois meninos em casa. Ele começa então a trabalhar vestido de mulher, travestido, porque é essa a orientação sexual dele. Aí eu, como mãe dois meninos, digo opa, não é essa a minha orientação sexual aqui em casa. Aqui em casa eu gostaria que meus filhos crescessem pensando em namorar uma menina para perpetuar a espécie, como está em Gênesis. Deus criou o homem e a mulher para perpetuar a espécie. (…) No momento em que eu descobri que o motorista é homossexual e poderia estar, de uma maneira ou de outra, tentando bolinar o meu filho… não sei, pode de repente partir para uma pedofilia com os meninos, eu não vou poder demiti-lo, a PEC não me permite. (…) Se essa PEC passa, e o rapaz tem uma orientação sexual pedófilo (sic), se a orientação sexual do rapaz é transar, é ter relacionamento sexual com um menino de 3 a 4 anos, nós não vamos poder fazer nada, porque ele está protegido pela lei.

(…) Eu estou defendendo as crianças e os jovens de uma porta para a pedofilia. (…) Não vou permitir que, por uma desculpa de querer proteger ou para que se acabe com a violência, a homofobia, a gente abra uma porta para a pedofilia! (…) Deus abençoe a todos, tenham uma boa tarde, que o Espírito Santo possa hoje, nesta Assembleia, cair fogo do céu aqui. Muito obrigada.”

É constrangedor fazer alguns esclarecimentos pela sua obviedade. Mas já que discursos desse nível existem – e são feitos por representantes democraticamente eleitos – é preciso dizer à deputada que: 1) homossexualismo e pedofilia não são a mesma coisa; 2) pedofilia não é uma orientação sexual, mas um crime; 3) se um funcionário da sua casa ou da sua empresa ou qualquer pessoa, em qualquer lugar, tenha a orientação sexual que tiver, cometer o crime de pedofilia, deverá ser denunciado e preso, independentemente da PEC-23, porque está previsto no Código Penal.

Se Myrian Rios cometeu esse discurso por ignorância ou por má fé, só ela, com sua consciência, pode resolver consigo mesma. E aqui uso o “má fé” em dois sentidos: tanto na tentativa de manipular a opinião pública, fazendo com que os cidadãos do estado do Rio de Janeiro pensem que não vão poder demitir criminosos se a PEC-23 for aprovada, como por sua controversa interpretação do evangelho que diz praticar.

Após a repercussão dos respectivos discursos, tanto Dom Bergonzini quanto Myrian Rios manifestaram-se como de hábito: a questão não foi o que disseram, mas uma interpretação equivocada de suas palavras. É curioso como a responsabilidade é sempre do outro. No caso, do leitor, da jornalista, do espectador, do eleitor. Mas as respostas, tanto de Dom Bergonzini quanto de Myrian Rios, são autoexplicativas. E iluminam melhor do que eu seria capaz de fazer as verdades dos fatos.

O bispo reproduziu a reportagem do Valor Econômico em seu blog. Sem desmenti-la, fez uma chamada em vermelho, acima da matéria: “Obs: sobre estupro, leia aqui”. Depois, repetiu o alerta no ponto da reportagem em que discorre sobre o tema. Neste novo link, ele declara: “Só um insano diria que a mulher é culpada pelo estupro”. Aqui, sou obrigada a concordar com ele. O religioso continua: “A violência contra a mulher é mostrada diariamente pela imprensa. As mulheres, de qualquer idade, são atacadas, brutalmente violentadas e assassinadas por maníacos sexuais em praças, vias públicas, locais mal iluminados e até em casa. A lei presume a violência em crimes de estupro praticados contra menores e pessoas especiais”. Dom Bergonzini termina esse tópico dizendo: “Jamais afirmamos que a mulher não é a vítima. O criminoso é o culpado pelo crime que ele cometeu”.

O bispo parece não apenas duvidar da dor e do testemunho das mulheres violentadas, mas também da inteligência e da capacidade de discernimento do leitor. Todos puderam ler o que disse Dom Bergonzini à jornalista do Valor Econômico e aprender sobre o “teste da caneta”. Portanto, cada um pode tirar suas próprias conclusões.

Já a deputada Myrian Rios (PDT) divulgou uma nota, através de sua assessoria. No texto, ela pede desculpas pelo discurso, mas responsabiliza o público por uma compreensão equivocada de suas palavras: “Se entenderam dessa maneira, peço desculpas”. Reproduzo a nota na íntegra: “Iniciei meu discurso de 21 de junho na tribuna da Alerj relatando a minha condição de católica, missionária consagrada da comunidade Canção Nova (ligada ao movimento de Renovação Carismática) e, como tal, eu prego o respeito, o amor ao próximo, o perdão. Destaco que Deus ama a todas as pessoas, pois Ele não faz diferenciação. Em um dos trechos, afirmo: não sou preconceituosa e não discrimino. Repudio veementemente o pedófilo e jamais tive a intenção de igualar esse criminoso com o homossexualismo. Se entenderam desta maneira, peço desculpas. Conto na minha família com parentes e amigos homossexuais e os amo, respeito como seres humanos e filhos de Deus. Da mesma forma repudio a agressão aos homossexuais, pois nada justifica tamanha violência. Votei contra a PEC-23 por minhas convicções e não contra este ou aquele segmento de determinada orientação sexual”.

Graças à internet e à tecnologia, o leitor pode assistir ao discurso da deputada na íntegra. E tirar suas próprias conclusões sobre as intenções da “missionária católica” ao dizer o que disse.

Percebo que existem pessoas que, ao falarem em nome de sua fé, seja ela qual for, acreditam ter o patrimônio do bem, da ética e da verdade. Às vezes, até do “amor”. Como alguém já disse, muita gente tortura os números para que eles digam aquilo que pode comprovar a sua tese. Lendo, escutando e assistindo à fala de alguns religiosos, tenho a impressão de que torturam a Bíblia para que possam seguir com a propriedade de uma verdade única – a sua. O caminho da sabedoria, porém, inclusive para os grandes teólogos da Igreja Católica, passou e passa pelo exercício da dúvida, constante e tenaz. É preciso se despir da vaidade das certezas para alcançar a dor do outro – movimento imprescindível para o amor.

De minha parte, acho que o mundo pode abrir mão de demonstrações de “amor ao próximo” como a de Dom Bergonzini e Myrian Rios.

(Publicado na Revista Época em 04/07/2011)

Nunca estamos onde queremos

Conto de fadas de Woody Allen discute os limites do presente

Depois de alguns minutos, o novo filme de Woody Allen – “Meia-Noite em Paris” – nos provoca um delicioso sorriso bobo, que permanece até o final. O diretor no presenteia com uma história de Cinderela para adultos. À meia-noite, o protagonista embarca em um calhambeque tinindo de novo e pronto, está onde sempre quis estar: na animada Paris dos Anos 20. Gil Pender, como boa parte de nós, acha o presente insuficiente. O passado era melhor. Não qualquer passado, mas o idealizado por ele. Como uma fada madrinha do nosso tempo, Woody Allen realiza, com essa varinha de condão que é o cinema, o desejo que é de todos. E por isso abrimos um sorriso encantado.

Me convenci a dar uma espiada para o lado e para trás e vi no público a mesma boca aberta de antecipação e deleite das crianças quando escutam um conto de fadas. Desde o surgimento do calhambeque, a gente já sabe o que vai acontecer. É porque queremos muito que aconteça que é tão prazeroso. Como as crianças que pedem para repetir mil vezes a mesma história, a gente tem vontade de gritar: “De novo! De novo!”.

A identificação com o protagonista é imediata. O ator Owen Wilson vive Gil Pender, mas, ao mesmo tempo, encarna Woody Allen com tanta competência, que às vezes enxergamos o próprio. No filme, ele é um roteirista de Hollywood que tenta escrever um romance enquanto visita Paris com uma noiva mimada e um casal de sogros tão digestivos quanto óleo de rícino. Os personagens são todos estereotipados como num bom conto de fadas.

A noiva é uma típica menina rica, fútil e ambiciosa, mais preocupada com a aparência da vida e dela mesma do que com a vida em si. Os sogros são americanos bem sucedidos, republicanos do Tea Party, com todos aqueles valores que conhecemos melhor ao acompanharmos a trajetória de Sarah Palin. Ao chegarem a Paris, a noiva encontra um casal de amigos. Ele, um homem pelo qual já foi apaixonada, é também um personagem comum do nosso tempo: um especialista em tudo, de vinhos a Rodin. E, desde o início do filme, o detestamos como se deve fazer com um bom vilão que não causa mais mal do que abusar da nossa paciência e da de Gil com seu pedantismo e seu conhecimento de Wikipedia, programado para impressionar um certo tipo de moça. Já Gil, nosso herói, é doce, sensível e com aquele ar meio perdido de quem quer muito ir, mas não sabe direito para onde. Também um personagem clichê da nossa época.

Nesta escolha dos personagens, há algo interessante que podemos pensar. Esses dois estereótipos masculinos representam em parte a confusão do que significa ser homem hoje em dia. Ambos inseguros depois do naufrágio do papel masculino definido por uma tradição que já não existe. Mas com respostas diferentes para a questão. E, como a mulher deste milênio, a noiva também oscila entre esses dois homens sem saber bem se quer aquele que sabe tudo sem saber (e que jamais saberá qualquer coisa porque não tem planos de parar de fingir) – ou deseja aquele que admite que não sabe, mas um dia talvez possa descobrir porque procura.

Esta não é a questão principal do filme, mas Woody Allen sempre foi hábil em falar da (bendita) confusão dos papéis masculinos (e femininos) de nossos dias – e seu conto de fadas não poderia ser diferente. O dilema central de nosso Cinderelo é que ele queria viver onde não vive.

Gil Pender desembarca na cidade dos seus sonhos – e Woody Allen também nos dá, desde o início, uma Paris de cartão postal, com direito a própria Carla Bruni interpretando uma guia turística. Mas Gil está acompanhado pela noiva fútil, os sogros fúteis, o casal de amigos fúteis e fazendo coisas fúteis com todos eles. Preso, portanto, a um presente que não quer, mas que não tem forças para mudar. Como acontece com boa parte de nós aqui, em nossa vida cotidiana – e também em férias idealizadas das quais voltamos com fotos em que estamos sorridentes, sobre as quais contamos maravilhas para os amigos e parentes, mas secretamente sabemos que não foram tão perfeitas assim.

Então, à meia-noite, num determinado lugar, a carruagem passa e o carrega para a Paris que deseja. E Gil Pender encontra, entre outros personagens fascinantes que se reuniram em Paris nos Anos 20, Zelda e Scott Fitzgerald, Cole Porter, Ernest Hemingway, Pablo Picasso, Salvador Dalí, Luis Buñuel. E consegue dar seu romance para a própria Gertrude Stein avaliar. Todos esses personagens reais que fizeram a efervescência e a lenda dos (pelo menos para nós e para Gil Pender) gloriosos Anos 20 estão lá não como são – mas como nosso Cinderelo os vê. É o passado idealizado por ele – não o passado como foi para quem o viveu. Só assim, afinal, é possível ter um conto de fadas.

Posso contar tudo isso aqui porque, como nas fábulas, não importa o que acontece, importa que tenhamos certeza que acontece. Por isso as crianças querem ouvir a história tantas vezes e viver seus medos protegidas pela segurança do enredo conhecido. Depois dos primeiros 15 minutos de filme, sabemos o que Woody Allen vai nos dar. E então é só a delícia de assistir ao desenrolar dos fatos que já antecipamos.

Mas Woody Allen nos trai com uma personagem clandestina, que não faz parte do roteiro das fábulas – a mulher comum. Aquela que esteve na história, mas não foi registrada nela. Aquela que não sobreviveu à morte como memória. É a partir das inquietações dela, que em determinado momento torna-se o espelho dele, que Gil Pender tem de fazer uma opção que é a de todos nós: entre o tempo que não há e o tempo que há. Ele precisa fazê-la na prática. Nós temos de fazê-la dentro de nós, como uma escolha interna que determina todo o enredo da história que é nossa.

Gil Pender, nosso Cinderelo, coloca o impasse entre a idealização da vida e a vida como ela é com uma das sacadas geniais que fazem Woody Allen ser quem é: “Você se dá conta que esses caras vivem sem anestesia nem antibiótico?”. A frase é bem melhor do que esta, mas eu não tinha nenhum bloquinho para anotar. É quando o homem que procura encontra algo – e descobre que precisa fazer uma escolha se quiser viver onde está – não importa se na Paris dos Anos 20, na Paris da Belle Époque ou na Paris de hoje. Para quem o viveu, o passado era presente.

Assim como não há passado, só presente – não há vida idealizada, só vida. É com essa vida, no presente, que temos de fazer o melhor que pudermos, mesmo que sempre nos pareça insuficiente. Para, quando chegar ao final que sempre chega, termos a chance de concluir: “Que pena que acabou. Mas vivi, não tudo o que quis, mas o melhor que pude”. E só dá para ter certeza de que fizemos o melhor possível com nossa vida imperfeita quando temos a coragem de fazer escolhas. Que, inclusive, podem dar errado – e muitas vezes dão. Mas também podem dar certo, ou dar errado dando certo de um jeito que não sabíamos que existia.

Do contrário, vamos ficar fingindo que conhecemos o enredo, como o chato da história, e ninguém encontra nada sem se arriscar ao vazio e às perguntas difíceis, com respostas às vezes indigestas. Não há final feliz – o final é sempre a morte, como nos repetiram tantos poetas. O que temos é o presente possível para experimentar por tentativa e erro.

As grandes questões da existência, afinal, são sempre as mesmas – e é para nos lembrar disso que servem os contos de fadas. “Meia-noite em Paris” é um dos bons.

(Publicado na Revista Época em 27/06/2011)

Por que vale a pena ouvir Marina Silva

Com conhecimento de causa e prática ética, ela tem renovado o debate político

Gosto de acompanhar a trajetória de Marina Silva porque ela soa como algo novo em um momento histórico do Brasil em que até o que se prometia diferente ficou dolorosamente igual. Acredito que, mesmo para seus (muitos) inimigos, é possível (sempre é) discordar de suas ideias, mas acho difícil duvidar, pelo menos até hoje, de sua integridade ética. E ética, convenhamos, é algo que foi varrido do horizonte da política brasileira, o que causa, a mim e a muitos, um bocado de desespero.

Aprecio a delicadeza firme de Marina Silva, que antes de se tornar política gastou as mãos e a saúde nos seringais do Acre, foi empregada doméstica em Rio Branco e, com grande coragem e esforço pessoal, se formou professora. Respeito sua força num corpo tão frágil, contaminado por mercúrio e solapado por três hepatites, cinco malárias e uma leishmaniose; sua voz que vem de uma garganta arranhada, mas que se expressa com tanta inteligência apesar de só ter se alfabetizado aos 16 anos.

Por isso, recomendo que assistam ao Roda Viva (TV Cultura) em que Marina Silva foi a entrevistada, na segunda-feira, 13/6. Com o braço direito enfiado numa tipoia porque uma ressonância magnética constatou uma ruptura parcial no músculo, ela usa a esquerda para dar ênfase às palavras com gestos elegantes. Sim, Marina é elegante, não daquele jeito que se compra em loja, mas daquele que emana da inteireza de sua postura na vida. Vale muito a pena abrir um espaço na rotina e escutá-la – o link está aqui, basta clicar. Especialmente o segundo e o terceiro blocos são muito esclarecedores em mais de um sentido. Porque, acho importante repetir, estamos diante de uma encruzilhada no Brasil.

Se o país fosse uma pessoa, estaria naquele momento da vida em que pode ir por aqui ou por ali, e qualquer que seja a decisão tomada, ela vai definir o resto da sua existência – e o bem-estar ou não de seus descendentes. Se não compreendermos isso e não nos posicionarmos, vamos deixar que outros decidam a nossa vida, que os “outros” de sempre decidam o futuro do país com a costumeira pequeneza de ideais (e de ideias) e o desrespeito pela coisa pública que temos testemunhado no cotidiano do Congresso e de alguns setores do governo.

O novo (e nocivo) Código Florestal – que ainda pode ser rejeitado no Senado se a sociedade civil fizer o seu papel – e a licença para a usina de Belo Monte são questões estratégicas, que deveriam estar sendo discutidas nas ruas, com a família na mesa do jantar, nas escolas e nas universidades – e não estão. E Marina Silva é uma das poucas pessoas públicas que tem se dedicado a desmascarar com propriedade as mentiras que circulam por aí. Mentiras que circulam há tanto tempo que colam, mesmo em gente inteligente, como verdade. E são usadas com a habitual má fé por aqueles que só pensam na urgência do seu próprio bem-estar. Como disse Marina Silva, “as políticas para o Brasil devem ser de longo prazo, mas os políticos são de curto prazo”.

É bastante impressionante, mas, ainda hoje, para parte da população as questões ambientais soam como algo descartável, uma espécie de luxo, de assunto menor, ao qual se pode prestar atenção ou não. Parece não compreender que a escassa preocupação com os recursos naturais e as fortes pressões contrárias à sua preservação interferem na sua vida já. Esquece-se de todas as perdas que já sofreu no dia-a-dia por causa da contaminação do meio ambiente e se acostuma com qualquer coisa, até mesmo com o fedor do rio que banha sua cidade e a fuligem que cobre sua pele depois de um dia de trabalho.

Ambientalistas são tachados de “ecochatos”, como se estivessem atrapalhando uma festa – e não tentando salvá-la. (Assim como colunistas que voltam à questão com frequência.) Aqueles que lutam pela preservação ambiental são imediatamente colocados, pelas raposas de plantão, como se fossem contra o desenvolvimento e contra a agricultura e a pecuária. E o mantra é reproduzido pela manada de sempre. Quando, na verdade, são apenas os setores mais atrasados do agronegócio que defendem teses como a do novo Código Florestal, já apelidado de “Código de Devastação Florestal”.

Só lembrando: entre outras aberrações, o texto perdoa quem ocupou e desmatou áreas ilegais até 2008 e facilita o cultivo e a pecuária em zonas de proteção ambiental, inclusive nascentes. A mera discussão do novo Código pelos deputados causou a multiplicação do desmatamento no Mato Grosso, segundo o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE). Na semana de aprovação do texto pela Câmara, cinco agricultores ligados à preservação da Amazônia foram assassinados no Pará e em Rondônia – uma prova cabal de que o Brasil ainda é um país mais velho do que novo em muitas de suas práticas.

Se o novo Código for aprovado, proteger as florestas se tornará uma exceção – e não a regra. Homens e mulheres que lutam em defesa do meio ambiente nos rincões do país, como afirma Marina Silva, até agora tinham pelo menos a lei ao seu lado. Se o novo Código Florestal for aprovado também no Senado, aqueles que hoje arriscam (e muitas vezes perdem suas vidas) para proteger a floresta estarão na ilegalidade.

O agronegócio moderno (e sim, ele existe no Brasil) sabe que só vai vender no Exterior quem tiver respaldo ambiental. Quem pratica a agricultura predatória estará condenado no futuro próximo, é um Neandertal num mundo assombrado pela devastação do planeta. A questão é falsamente colocada – de propósito, para confundir a população – como uma oposição entre o agronegócio e o meio ambiente. De fato, o que há é uma discussão em torno da escolha dos rumos do país, uma opção entre manter as velhas práticas de exploração indiscriminada dos recursos naturais, como se não existissem outros caminhos, ou incluir o Brasil entre os países engajados no desenvolvimento sustentável.

O manejo dos recursos naturais – e especialmente da água – tem movido as discussões sérias do planeta. Até grandes predadores têm percebido que, se nada fizerem, vão ter problemas ainda maiores logo ali na frente. Por que a China, a nova potência econômica do mundo, mas ameaçada pela degradação ambiental e a desertificação, tem como prioridade a construção da “Grande Muralha Verde” (em alusão à histórica Muralha da China), com o objetivo de reflorestar 356 mil quilômetros quadrados de terra até 2050? Alguém conhece competidores mais agressivos na economia internacional que os chineses? Alguém acha que eles querem reflorestar porque acham as árvores bonitas ou precisam de sombra? Óbvio que não. É por pragmatismo e visão de futuro.

Enquanto isso, no Brasil, vende-se o retrocesso embalado em desenvolvimento. Em vez de o país ocupar uma posição estratégica nesse momento histórico do mundo, na medida em que apesar da devastação ainda pode contar com recursos naturais importantes, parece existir no Brasil um esforço para que o país volte para trás, apenas para que os mesmos de sempre não percam seus privilégios. E o mais incrível é que pessoas decentes caem nesse conto da Carochinha. É para estas, as decentes, que escrevo, na tentativa de que comecem a duvidar das máximas repetidas a exaustão pelos suspeitos de sempre.

Quando a proposta é manter as conquistas e aprimorar a legislação ambiental – em vez da libertinagem difundida no novo Código Florestal –, logo surge aquele discurso de que a riqueza do Brasil são as commodities (mercadorias de origem, matérias-primas) e que os “gringos”, sempre eles, querem que o Brasil deixe de ser uma potência agrícola. Essa conversa é mais falsa que uma nota de três reais, mas cola. O pior é que cola.

Parte da população não percebe que a maior commodity do Brasil não é a soja, a carne ou o café, como tem alertado o recém criado Comitê Brasil em Defesa das Florestas e do Desenvolvimento Sustentável. A mais importante commodity do Brasil é a água. Sem água, qualquer um percebe que não há nem agricultura. E as mudanças propostas pelo novo Código Florestal colocam a grande reserva hídrica do Brasil em risco. Ou seja, o discurso mais retrógrado deste país, vendido como sendo “em prol do desenvolvimento”, é aquele que quer acabar com a riqueza estratégica do país, aquela capaz de garantir ao Brasil um lugar de liderança no cenário mundial. É por isso que esta não é uma queda de braço entre ambientalistas e ruralistas – mas uma urgência de toda a sociedade.

Comecei esta coluna falando de Marina Silva porque ela tem representado uma nova forma de fazer política – depois da corrosão ética do PT. Não sei se ela fica ou não no PV, que por enquanto tem preferido ser um partido de ocasião, nem como articulará sua próxima candidatura. O que acho importante reconhecer em sua trajetória é o fato de que ela – até agora – tem feito política para além do fisiologismo, do troca-troca, da barganha e do imediatismo. Está aí, brigando pelas questões que acredita e é a principal voz contra o novo Código Florestal e a licença de Belo Monte. Com consistência, com dados, com história.

Afinal, em sua gestão à frente do Ministério do Meio Ambiente (2003 a 2008) – de onde saiu pela força de pressões poderosas, internas e externas – o desmatamento anual na Amazônia caiu de 27 mil quilômetros quadrados para menos de 7 mil quilômetros quadrados. Em seu mandato foi apreendido 1 milhão de metros cúbicos de madeira ilegal. “O equivalente a uma fileira de caminhões carregados de toras unindo São Paulo ao Rio de Janeiro”, exemplifica. É importante ouvir Marina Silva porque ela se expressa com a clareza de quem sabe o que diz – porque vive o que diz.

Sabiamente Marina Silva tem conseguido manter o fato de ser evangélica na esfera do privado. No momento em que agir diferente, ela tem consciência de que perderá o apoio da parcela urbana, jovem e intelectualizada que se alinha ao seu lado e lhe garantiu parte significativa dos quase 20 milhões de votos na última eleição presidencial. Afinal, no pleito de 2010, não foi ela, mas sim José Serra e Dilma Rousseff que fizeram aquele papelão no segundo turno, submetendo-se aos interesses religiosos, em especial os da Igreja Católica.

É por isso que vale a pena ouvir o que Marina Silva tem a dizer. Porque ela está entre os poucos políticos em atuação que tem um discurso consistente, alicerçado na trajetória pessoal, sobre algo que vai mudar talvez não a nossa vida – mas a de nossos filhos, netos e bisnetos. Sem a participação da sociedade, que vai muito além do voto, a democracia não passa de uma ficção. Por isso é que já passou da hora de falar de meio ambiente com sua família na mesa do jantar. Porque botar a questão ambiental na mesa, no dia-a-dia, não é uma escolha, é um dever. Significa debater e decidir o que queremos ser e qual legado queremos deixar. Eu e você. Nós.

(Publicado na Revista Época em 20/06/2011)

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