A mulher que restou

Como viver depois de perder o marido e a filha única em 20 meses? Joan Didion responde à tragédia num texto delicado e brutal

Eliane Brum 

A VIDA NO VAZIO Joan Didion em seu apartamento em Nova York. A velhice chegou logo depois das perdas (Foto: Aristide Economopoulos/Star Ledger/Corbis)

A VIDA NO VAZIO
Joan Didion em seu apartamento em Nova York.
A velhice chegou logo depois das perdas
(Foto: Aristide Economopoulos/Star Ledger/Corbis)

Quando Quintana se casou, ela usava flores de jasmim entrelaçadas na grossa trança que lhe pendia nas costas. Seus pais, os escritores Joan Didion e John Gregory Dunne, brindaram a ela, sua única filha, e a Gerry, agora seu genro. Duas vezes. Uma na catedral, a outra mais tarde, num restaurante chinês de Nova York. Desejaram a eles felicidade, saúde, amor, sorte e filhos bonitos. Naquele dia, 26 de julho de 2003, eles ainda chamavam a isso de “bênçãos triviais”, aquilo que se deseja com sinceridade para quem amamos, mas quase sem pensar. Cinco meses depois, John estava morto. Um ano e oito meses depois dele, Quintana estava morta. Restou Joan, perplexa, pensando que houve um dia, houve uma vida, houve alguém com seu nome que acreditara que felicidade, saúde, amor, sorte e filhos bonitos pudessem ser bênçãos triviais.

Noites azuis (Nova Fronteira, 144 páginas, R$ 29,90, tradução de Celina Portocarrero), o último livro da jornalista, roteirista e escritora americana Joan Didion, é a narrativa de uma mulher que se descobre sozinha para testemunhar o próprio fim. Antes dele, Joan escrevera O ano do pensamento mágico, sobre o período que se seguiu à morte do homem com quem vivera por quase 40 anos, com quem escrevera roteiros para Hollywood, com quem sonhara com uma filha que se chamaria Quintana Roo. Um homem que caiu de repente sobre a mesa do jantar porque o coração parou, deixando-a só e perplexa.

Ao escrever sobre a vida sem John, ela alcançou uma síntese perfeita da catástrofe humana: “A vida muda num instante. Você se senta para jantar e a vida que você conhecia acaba de repente”. Era essa a tragédia inescapável, a emergência para a qual não há equipes de salvamento. O ano do pensamento mágico tornou-se um best-seller nos Estados Unidos e vendeu 100 mil exemplares no Brasil. Quintana morreria pouco antes do lançamento, depois de meses com complicações de saúde cujos detalhes Joan escolhe não explicar. Tinha 39 anos.

Noites azuis é a continuação que Joan jamais esperaria escrever. É a história de uma mulher que restou. E talvez se possa dividir a condição humana em três destinos: ou morremos jovens, de doença, tiro, terremoto, acidente de trânsito, como aconteceu com Quintana; ou vivemos até uma idade madura, mas um câncer, um infarto ou um derrame nos leva um pouco antes de todos os outros, como John; ou restamos. No território de seus afetos, Joan foi a que restou. Tinha 70 anos quando se descobriu só.
O que fazer quando você é a que resta? Se você é uma escritora, escreve. Agarra-se às palavras na tentativa de compreender o impossível, agarra-se para não afundar. Agarra-se porque é preciso enfrentar as lembranças, sempre fragmentadas, e com elas construir uma memória que faça algum sentido na paisagem devastada que agora é você. Com 1 metro e 56 centímetros e meio de altura e a silhueta de quem poderá ser levada embora na primeira brisa, Joan Didion é uma escritora feroz. Examina a si mesma sem autopiedade ou pieguice e entrega-se ao leitor com todas as suas marcas. A grandeza de seu texto está na capacidade de entrelaçar a tragédia às pequenas delicadezas do cotidiano. Como ao perceber que, por muito tempo, escrevera vendo as roupas de Quintana secar ao sol.

As lembranças espreitam Joan atrás de cada porta, dentro de cada gaveta. Ela levanta a tampa da caixa de joias forrada de cetim e encontra lá dentes de leite. Abre a porta do guarda-roupa e vê três velhas capas de chuva de John, uma jaqueta de camurça dada a Quintana pela mãe de seu primeiro namorado e um bolero de angorá, há muito comido pelas traças, que sua mãe ganhara de seu pai depois da Segunda Guerra Mundial. Ela abre caixas e acha convites para casamentos de gente que há muito se separou, cartões de agradecimento de funerais de pessoas cujo rosto esqueceu. “Em teoria, essas lembranças servem para trazer de volta o momento”, escreve. “Na prática, servem apenas para demonstrar quão inadequadamente apreciei o momento quando ele aconteceu.”

Em que momento surgiu Quintana Roo? Antes de se tornar criança, ela havia sido uma paisagem. Um nome visto por Joan e John num mapa do México, um nome que falava de uma geografia que ainda era terra de ninguém – ainda era, como Joan definiria, “terra incógnita”. Como todos os filhos, seus contornos foram se desenhando primeiro no território do desejo. Até que o telefone tocou.

“Tenho uma linda menina no St. John”, disse o médico aos pais que esperavam uma chance de adoção. E lá estava não um bebê entre tantos, mas o seu bebê, a sua Quintana Roo, com uma fita rosa no cabelo preto e uma pulseira no braço com as iniciais “N.I.” – nenhuma informação. Quintana sempre pediria para repetirem a história não de seu nascimento concreto, mas de seu nascimento para aqueles pais. “E se vocês não estivessem em casa para atender o telefone? E se tivessem sofrido um acidente na estrada, o que teria acontecido comigo?”, perguntava.

Joan nunca teve respostas para as perguntas da filha. Como a maioria dos pais, ela se iludira que seu bebê era uma página vazia, à espera de uma história. Mas todo recém-nascido é uma página que já começou a ser preenchida pelo desejo, ou pela neurose, ou pelo desespero, ou pelos genes, ou por tudo isso junto. No caso de Quintana Roo, também pelo abandono que assombra os filhos que um dia restaram, antes de ser escolhidos por um triz. Durante a maior parte da vida, Joan não conseguia compreender: “Como ela pôde pensar que eu não cuidaria dela?”.

Leia um trecho do livro (Foto: divulgação)

Leia um trecho do livro
(Foto: divulgação)

Mas isso foi antes, quando Joan ainda não tinha ouvido do médico da UTI: “Ela não consegue obter oxigênio do ventilador há pelo menos uma hora”. O que aconteceu? “Se ontem mesmo eu a segurei em meus braços. Ontem mesmo eu prometi a ela que estaria segura conosco.” Enquanto escreve, Joan sabe que homens e mulheres só descobrem a mortalidade quando têm um filho. Quando você jura proteger sua criança para sempre, mas acorda sem ar no meio da noite porque sabe que está mentindo. Você mente porque algumas mentiras são necessárias para seguir vivendo, mas você sabe – e seu filho também sabe. Com a terrível lucidez de ser aquela que restou, Joan agora é capaz de inverter a pergunta, perigosamente perto da verdade que sempre esteve lá: “Como ela poderia sequer imaginar que eu tomaria conta dela?”.

Joan descobre, enquanto amarra lembranças, que um filho será sempre, em alguma medida, uma terra incógnita. O nome, afinal, não estava deslocado. Possivelmente ela nunca precisaria pensar nisso se a ordem da vida – e da morte – não tivesse sido rompida. Agora, aqui está ela, perplexa, apavorada. É a esta altura que Joan acorda um dia e percebe que se tornou uma velha. Ela sabe o momento exato.

Era manhã de quinta-feira, 2 de agosto de 2007. Joan acordou com manchas avermelhadas no rosto e algo parecido com dor de ouvido. Desde então, seu corpo tem falhado de várias maneiras. A ponto de uma noite ela ter se surpreendido com medo de não conseguir se levantar de uma cadeira dobrável num evento público. Como foi ela que restou, agora gasta horas a fio na sala de espera de hospitais, às voltas com o preenchimento de formulários nos quais lhe pedem algo nebuloso: indicar quem chamaria em caso de emergência.

Joan descobre que não tem mais medo de morrer. Tem agora medo de não morrer – de restar sem consciência ou movimento. Restar sem poder contar nem consigo mesma. Percebe então que as noites azuis não voltarão. Aquelas noites assim chamadas porque anunciam o verão e só vão embora depois que ele acaba, nas quais podemos nadar em azul no crepúsculo antes de a escuridão nos alcançar. “Será que eu pensava que as noites azuis durariam para sempre?”, indaga-se, para sempre perplexa.

Ela escreve, porém. As palavras também começam a lhe escapar, ela sente que seus verbos e substantivos “não dizem o que deviam dizer ou não querem”. Mas Joan vive enquanto escreve – e escreve para saber que ainda vive. Enquanto escreve, mantém todos vivos. Um truque desesperado do ilusionista que é todo escritor, mas também um milagre humano. No livro, Quintana, John e tantos outros que povoaram o mundo de Joan Didion ainda vivem. E as noites azuis continuam lá.

MEMÓRIAS DOLORIDAS Quintana, John Gregory Dunne e Joan Didion em Malibu, em 1976. As lembranças mostram como os momentos felizes foram vividos (Foto: John Bryson/Sygma/Corbis)

MEMÓRIAS DOLORIDAS
Quintana, John Gregory Dunne e Joan Didion em Malibu, em 1976. As lembranças mostram como os momentos felizes foram vividos (Foto: John Bryson/Sygma/Corbis)

(Publicado na Revista Época em 26/08/2012)

Por que o amianto foi parar no meio do mensalão?

Em meio ao período de julgamento do mensalão, o Supremo Tribunal Federal realiza uma audiência pública com 35 expositores para debater o uso do mineral cancerígeno presente em cerca de três mil produtos do nosso cotidiano. Entenda como isso afeta – e muito – a nossa vida e o que está em jogo neste momento no Brasil e na corte

Nas próximas duas sextas-feiras (24 e 31/8), o Supremo Tribunal Federal realizará uma audiência pública sobre o amianto – também conhecido como asbesto. O tema afeta diretamente a população, que ainda bebe água de caixas d’água de amianto ou dorme sob um teto de telhas de amianto ou ainda tem em sua vida cotidiana três mil produtos fabricados com essa fibra mineral comprovadamente cancerígena. Apesar da importância da questão, já estamos na semana da audiência pública e pouco se ouve falar sequer de que ela vai acontecer – seja na imprensa, seja nas ruas, até mesmo nos corredores do próprio Supremo. A razão é óbvia: como é possível que se preste atenção em qualquer outra coisa realizada na corte em pleno período de julgamento do mensalão?

Mesmo que não estejam previstas sessões de julgamento do mensalão nestas duas sextas-feiras, ainda assim é legítimo questionar: se o principal objetivo de uma audiência pública é esclarecer os ministros em temas supostamente controversos, como os principais interessados estarão aptos a concentrar seus esforços em qualquer outra coisa que não seja o mensalão, ouvindo 35 expositores sobre um tema complexo, quando alguns já são flagrados cochilando e outros reclamam publicamente de exaustão devido à agenda semanal pesada?

A audiência pública foi pedida pelo Instituto Brasileiro do Crisotila, que serve à indústria do amianto, no curso de uma ação que tenta derrubar a lei que proibiu a fibra mineral no Estado de São Paulo. Movida pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Indústria (CNTI), esta ação (ADI 3937) alega a inconstitucionalidade da lei paulista. Mas é só uma entre várias ações relativas ao amianto que começaram a tramitar há mais de uma década no Supremo, o que permitiria supor que a corte já estaria bastante informada sobre o assunto. Mas, pelo menos no entender do relator, ministro Marco Aurélio Mello, não está. O Instituto Brasileiro do Crisotila pediu audiência pública e o ministro Marco Aurélio concedeu o pedido – marcando, dias antes do anúncio oficial do cronograma do mensalão, o debate para agosto.

Como tudo o que se refere ao amianto no Brasil, a audiência pública no meio do julgamento do mensalão é só mais um entre muitos capítulos estarrecedores. O quadro é o seguinte. A Organização Mundial da Saúde considera o amianto cancerígeno desde 1977 – há 35 anos, portanto. Segundo estimativas da OMS, cerca de 107 mil trabalhadores morrem a cada ano no mundo por doenças causadas pelo amianto. Documentos provam que a indústria já tinha informações sobre a relação entre amianto e doenças letais desde os anos 30 do século passado. Nos anos 90, a contaminação por amianto tomou proporções de escândalo de saúde pública em países da Europa, como a França, onde estima-se que 100 mil pessoas morrerão de doenças relacionadas ao amianto até 2025. Em toda a Europa ocidental, as estimativas apontam que o câncer causado por amianto matará 250 mil pessoas entre 1995 e 2029. O primeiro país europeu a vetar o mineral foi a Noruega, em 1984 – quase três décadas atrás, portanto. Desde 2005, a fibra está banida em toda a União Europeia. Atualmente, o amianto está proibido em 66 países.

O Brasil é o terceiro produtor mundial, o segundo exportador e o quarto usuário de amianto. A principal ação que tramita no Supremo contesta justamente a lei federal que permite “o uso controlado do amianto”. Seu relator é o atual presidente da corte, ministro Ayres Britto. Mas, como sabemos, ele aposenta-se em novembro. A ação foi colocada na pauta de julgamentos, mas não tem data marcada para ser votada.

Hoje, o amianto é proibido em cinco estados – São Paulo, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Mato Grosso e Pernambuco – e em mais de duas dezenas de municípios. A única mina de amianto no Brasil está localizada no município de Minaçu, em Goiás. Parte dos parlamentares que formam a chamada “bancada do crisotila”, dedicada a barrar o andamento no Congresso de projetos de lei para banir o amianto no país, tem estado bastante presentes no noticiário desde que estourou o escândalo de Carlinhos Cachoeira. “Crisotila” é o nome do tipo de amianto extraído no Brasil, cuja possibilidade de “uso seguro” é defendida pela indústria junto a ministros, parlamentares e população, apesar de uma ampla gama de pesquisas, realizadas pelos mais respeitados cientistas no mundo nesta área, provar que não há nenhuma maneira segura de usar amianto.

O escândalo do amianto configurou-se no Brasil na virada do milênio. Naquele momento, vieram a público as informações sobre a doença e a morte de dezenas de trabalhadores das fábricas de amianto. As doenças mais comuns causadas pela fibra mineral são a asbestose – conhecida como “pulmão de pedra”, na qual o doente é lentamente levado à morte por asfixia – e o mesotelioma – um tumor maligno, agressivo e letal na maioria dos casos, conhecido como o “câncer do amianto”. Uma em cada três mortes por câncer ocupacional está relacionada ao amianto.

Hoje, começam a surgir os primeiros casos de contaminação ambiental também no Brasil – pessoas que não trabalharam nas fábricas, mas moravam perto de fábricas de amianto ou tiveram contato com a fibra mineral de outro modo. Em uma série de reportagens publicada em maio, o jornal O Globo mostrou o caso da doceira Adelaide de Jesus Morino, que sofre de um mesotelioma. Ela mora a 200 metros da antiga fábrica da Eternit, em Osasco, na Grande São Paulo (leia aqui).

O estarrecedor com relação ao amianto é observar que o Brasil discute hoje o que os países mais avançados da Europa discutiram 30 anos atrás, alguns, 20 anos outros. Como se esta parte do mundo não estivesse globalizada – e as informações não estivessem disponíveis. No caso do amianto, o Brasil alinha-se com as posições de países como Rússia e China – o primeiro e o segundo produtores de amianto do mundo, cujas práticas econômicas, assim como a relação com os direitos humanos e trabalhistas, são bem conhecidas.

Enquanto a Europa discute como fazer a descontaminação ambiental das cidades nas quais havia minas e fábricas de amianto para evitar o aumento do número de mortes de cidadãos, o Brasil discute se é ou não possível o uso seguro do mineral cancerígeno. Em fevereiro, o Tribunal de Turim, na Itália, condenou o multimilionário Stephan Schmidheiny, antigo dono da gigante Eternit, e o barão belga Jean-Louis Marie Ghislain de Cartier de Marchienne, ex-dirigente da multinacional: a 16 anos de prisão, pela morte de cerca de três mil pessoas. Provou-se na corte que eles sabiam do potencial cancerígeno e, mesmo assim, calaram-se. Ações semelhantes são movidas em diferentes países da Europa, como você pode ler aqui. Enquanto isso, no Brasil, é marcada uma audiência pública para debater, entre outras questões, o impacto econômico do banimento do amianto.

Parece surreal? A mim, pelo menos, parece bastante. Mas, assim é que é. E por que é assim?

Para nos ajudar a entender o que está em jogo na audiência pública do Supremo que começa na próxima sexta-feira, entrevistei Fernanda Giannasi para esta coluna. Auditora fiscal do Ministério do Trabalho há 29 anos, ela é a grande referência na luta pelo banimento do amianto no Brasil – e uma das principais protagonistas no cenário internacional. É conhecida como a “Erin Brockovich brasileira”, numa referência à americana que venceu uma poderosa indústria que contaminara a água de uma pequena comunidade na Califórnia, causando doenças e mortes. No cinema, Erin foi vivida por Julia Roberts, em um filme que lhe rendeu o Oscar de melhor atriz.

Nesta luta, Fernanda vem sofrendo todo tipo de pressão, já chegou a receber ameaças de morte, recentemente foi vítima – mais uma vez – de uma tentativa de desqualificação, como foi mostrado aqui. Nos últimos dois meses, ela vem dormindo entre duas e duas horas e meia por noite, para atender às necessidades da preparação da audiência pública. A luta pelo banimento do amianto depende, em grande parte, do idealismo de seus ativistas, já que os recursos são escassos e a infraestrutura é pouca. Fernanda teme que, apesar de todos os esforços empreendidos, a audiência seja esvaziada por conta do período sobrecarregado do Supremo. E poucos estejam dispostos a escutá-los com a atenção que o tema merece.

O que está em jogo nesta audiência?
Fernanda Giannasi – A tentativa de adiar decisões com a composição atual do Supremo. Segundo avaliações de decisões anteriores, a maioria dos ministros hoje é desfavorável ao uso do amianto. Assim, os advogados do lobby pró-amianto pediram audiências públicas em todas as ações relativas ao tema, com o objetivo de protelar as votações, na esperança, talvez, de que a próxima composição do Supremo seja mais favorável à indústria do amianto. Uma das ações que o ministro Ayres Britto colocou em pauta, na véspera de assumir a presidência do Supremo, foi a ação que analisará a constitucionalidade da lei federal do uso controlado do amianto. Se esta lei for julgada inconstitucional pelo Supremo, todas as demais ações perdem sua razão de ser – e o amianto será banido. Mas Ayres Britto é o relator – e se aposentará no final deste ano.

Mas não é importante discutir o amianto?
Fernanda – Primeiro, as perguntas que estão postas para a audiência pública são as perguntas que foram trazidas pelo lobby do amianto. Claramente têm uma intencionalidade: reforçar a ideia de que o amianto brasileiro, o crisotila, é diferente dos outros, que o uso seguro é possível e que as outras fibras que estão sendo usadas como alternativa têm um custo alto e a substituição do amianto causaria muitas demissões. Bem, eu pretendo esclarecer duas destas questões. A primeira é que o uso seguro do amianto não se tornou viável em nenhum lugar do mundo. Apenas para dar um exemplo, minha equipe já multou caminhões que na ida carregavam amianto e, na volta, torradas e panetones de uma das empresas líderes de mercado. Não é realista imaginar que se conseguirá neutralizar os riscos da manipulação de um produto cancerígeno da mineração à construção civil e ao transporte, sem contar o consumo. A segunda questão que pretendo esclarecer é o impacto econômico e social da substituição do amianto. O lobby do amianto fala em 200 mil empregos, nos quais inclui os empregados no transporte dos produtos e da construção civil. Ora, os caminhoneiros transportam todo o tipo de produto, com ou sem amianto, e os trabalhadores da construção civil usam todo o tipo de material, com ou sem amianto. De fato, segundo os cadastros do Ministério do Trabalho, no qual sou auditora fiscal há 29 anos, a indústria do amianto gera no Brasil 5.500 empregos diretos e indiretos – enquanto as 170 empresas que substituíram o amianto geram, apenas no estado de São Paulo, 10.500 empregos diretos. Estes postos de trabalho, sim, estão ameaçados, se o amianto for mantido e começarmos a importar produtos com amianto da China, como já estamos fazendo. Nossa fiscalização mostrou que produtos com amianto estão chegando até mesmo por meio de compras pela internet. O fornecedor fica em Macau, o cliente recebe pelo federal express. Recentemente, inclusive, houve um escândalo na Austrália, onde o amianto é proibido, ao comprarem 23 mil carros e descobrirem que as juntas automotivas continham amianto. Agora, estão fazendo um recall para devolver os carros à China.

Mas não é importante mostrar tudo isso em uma audiência pública no Supremo?
Fernanda – O debate é sempre importante e temos discutido essa questão, em todas as instâncias, há pelo menos 20 anos, com grande dificuldade e, mais no passado do que hoje, até com risco pessoal. O problema é que essa audiência foi uma surpresa para nós, que lutamos pelo banimento do amianto. E me arrisco a dizer que foi uma surpresa também para alguns ministros do Supremo.

Por quê?
Fernanda – Primeiro, porque a questão do amianto tramita no Supremo há mais de uma década. A primeira ação é de 2001. Já houve decisões e, portanto, os ministros estão bem informados e esclarecidos sobre o tema. Neste sentido, é curioso realizar uma audiência para debater algo que os ministros já estão prontos para votar. Ainda assim, nós sempre estamos dispostos a debater. Portanto, tão logo o pedido de audiência pública feita pelos defensores do amianto foi deferido pelo ministro Marco Aurélio, no início de maio, começamos a empreender todos os nossos esforços para trazer os especialistas internacionais mais relevantes na área para qualificar o debate. E então, de novo fomos surpreendidos: as audiências foram marcadas para agosto, no mesmo período do julgamento do mensalão. O país inteiro está mobilizado para este julgamento: ministros, imprensa, público. Já que chamaram uma audiência pública, gostaríamos de ter a presença massiva dos ministros, a atenção do público e da imprensa, para que realmente haja foco no debate. Mas receamos ter, em vez disso, um debate esvaziado. Esta é a nossa perplexidade: a quem interessa realizar uma audiência pública sobre um tema que tramita há anos e já está na pauta de julgamentos? E, além disso, uma audiência pública realizada no mesmo período do julgamento do mensalão? Qual é o objetivo de fato desta audiência pública?

Mas quando a audiência pública do amianto foi marcada para agosto, não havia ainda a definição do cronograma do mensalão. Pelo que consta no andamento do processo no Supremo, o ministro Marco Aurélio determinou em despacho de 23 de maio que a audiência fosse realizada em agosto. E a data do julgamento do mensalão foi anunciada pelo Supremo alguns dias depois, em 6 de junho. Não teria sido apenas uma coincidência?
Fernanda – Não. Ainda que o julgamento do mensalão não tivesse sido oficialmente marcado e anunciado para agosto, quando a audiência pública foi marcada já estava sendo acertada a data do julgamento entre os ministros. Já se sabia que esta era a proposta. Sei disso porque, assim que nossos advogados souberam que a audiência seria marcada para agosto, manifestaram sua preocupação a ministros do Supremo, mencionando o mensalão. No início, pensamos que seria cancelada por conta disso, mas o fato é que não foi.

Qual é o seu temor?
Fernanda – Que a maior parte dos ministros não acompanhe o debate com a atenção e o foco que poderiam ter em outro momento, já que estão totalmente dedicados ao mensalão, numa agenda que já é pesada por si só. E você não imagina o esforço que é para o movimento social participar dessa audiência. Eu estou indo a Brasília com as minhas milhas, vou pagar o hotel do meu bolso. O Eliezer (de Souza, presidente da Associação Brasileira de Expostos ao Amianto) está indo de ônibus. Estamos hospedando gente nas casas de amigos, porque não temos dinheiro para hotel. Estamos tentando conseguir recursos para pagar a tradução simultânea. E só conseguimos trazer os convidados estrangeiros porque eles obtiveram os recursos para as passagens com suas próprias universidades e centros de pesquisa. E tudo isso para algo que pode nem ter repercussão na imprensa. Ainda nem temos certeza se a TV Justiça vai transmitir a audiência. De novo: a quem de fato interessa isso? Para quem é fácil mobilizar recursos nesse nível? Só pro lobby pró-amianto. Pra nós é um sacrifício e corremos o risco de termos um resultado pífio.

Está mais do que provado que o amianto é cancerígeno, já morreram milhares de pessoas e a previsão é de que morram centenas de milhares nas próximas décadas. Por que você acha que setores da indústria, do sindicalismo e mesmo da academia no Brasil se dedicam a continuar defendendo algo que mata gente?
Fernanda – É um lobby que tem sustentáculos em várias instâncias. Inclusive no próprio parlamento, com a “bancada da crisotila”, que agora ficou em destaque com o escândalo do Cachoeira. Dentro das universidade públicas mais renomadas, como USP e Unicamp, há pesquisadores que têm suas pesquisas financiadas pela indústria do amianto. Há sindicatos financiados pela indústria do amianto, como já provamos mais de uma vez. E hoje temos três ex-ministros do Supremo que advogaram ou advogam para a indústria do amianto depois de terem se aposentado. O primeiro foi o falecido Maurício Corrêa, que foi substituído pelo Carlos Velloso e, pelo que soubemos, até mesmo o Francisco Rezek está assessorando o lobby do amianto para as questões no STF. É aquela história, o que o homem persegue? Poder, dinheiro e prestígio. Hoje, prestígio já não há, com industriais e cientistas já respondendo por crimes em tribunais europeus. Mas poder, ainda que efemeramente, sim. Há notórios lobistas do amianto mantidos pela presidente Dilma Rousseff nos ministérios de Minas e Energia e do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior. E riqueza rápida, certamente. É fácil perceber os indícios de riqueza na vida de alguns sindicalistas e acadêmicos.

Quantas pessoas já morreram no Brasil por causa do amianto?
Fernanda – Oficialmente, houve 2.400 casos de mesotelioma nos últimos dez anos. E o número vem crescendo ano a ano, com a melhoria dos diagnósticos e dos registros. Mas ainda vivemos o chamado “silêncio epidemiológico”. Os nossos registros oficiais não refletem o fato de o Brasil ser o terceiro produtor mundial, segundo maior exportador e quarto maior usuário de amianto. Isso não é porque a nossa crisotila supostamente seria mais segura, mas porque há problemas de registro. A Argentina comprava a nossa crisotila e tem mais casos registrados de mesotelioma do que o Brasil. Sem contar que há situações inexplicáveis, como uma decisão do STJ (Superior Tribunal de Justiça) que autoriza 17 empresas do amianto, entre elas a Eternit, a não informarem ao Sistema Único de Saúde quem são os seus doentes. Esta decisão existe desde 2006 e até hoje não foi revogada. Há basicamente dois mecanismos que tornam nossos dados invisíveis à sociedade: o primeiro é esta decisão imoral, e o segundo mecanismo são os acordos extrajudiciais. Temos quatro mil acordos extrajudiciais, celebrados pelas empresas com trabalhadores doentes, e seria necessário torná-los visíveis às instituições de saúde e à previdência, assim como ao público. Fizemos um enorme esforço e conseguimos ter acesso a pouco mais de mil destes acordos.

Há alguns analistas que comparam o lobby do amianto ao do tabaco. Você concorda?
Fernanda – É muito parecido com o lobby do tabaco, sim. São os chamados “mercadores da morte”. Se você tiver oportunidade, dê uma olhada num livro que os advogados da indústria americana do tabaco escreveram, chamado “O nosso produto é a dúvida” – ou seja, a cada nova certeza, eles produzem uma nova dúvida. E assim vão ganhando tempo e dinheiro enquanto as pessoas morrem. Com o amianto é a mesma coisa. Há o financiamento de uma ciência própria, com cientistas financiados pela indústria para produzir determinados resultados. E, a cada etapa que avançamos, o lobby do amianto vai gerando novas dúvidas, sempre para atrasar o processo. Do mesmo modo que agora, em outra instância, quando ações estão na pauta de votações, tratam de pedir uma audiência pública. E, assim como o cigarro, o amianto também é um lobby mundial. Os mesmos processos intimidatórios, as mesmas tentativas de desqualificar quem luta pelo banimento. As práticas se repetem.

Neste sentido, o que hoje acontece aqui é semelhante ao que acontecia na Europa décadas atrás. Atualmente, a preocupação de alguns países europeus é como fazer a descontaminação ambiental das cidades onde havia minas e fábricas. Assim como megaempresários do amianto, como os antigos donos da Eternit, são condenados por crime, como aconteceu no mês de fevereiro, em Turim. Se a Europa é o nosso futuro, no que se refere ao amianto, podemos contar como certo o banimento daqui a alguns anos?
Fernanda – Ninguém tem dúvida de que mais cedo ou mais tarde o amianto vai ser banido no Brasil. Mas eles apostam no mais tarde. Essa indústria está com os dias contados. O que eles querem conseguir é prazo. O amianto é superado no mundo desenvolvido. A OMS (Organização Mundial da Saúde) fala em banimento, a OIT (Organização Internacional do Trabalho) fala em banimento. Quem hoje defende o uso do amianto? Mesmo no Brasil, aqueles que antes estavam mais em cima do muro, hoje já estão começando a se posicionar. Restaram apenas os que não podem mudar de posição e quem está usando essa disputa para ganhar dinheiro rapidamente, mesmo que isso vá custar mais tarde a perda de prestígio, poder, dinheiro e, certamente, uma enorme mancha no currículo, quando não uma ficha policial. O que eles querem é uma sobrevida – que estão conseguindo à custa de vidas.

(Publicado na Revista Época em 20/08/2012)

 

Dançando com fantasmas

Netos de sobreviventes do Holocausto ampliam a verdade ao investigar o passado com a coragem que seus pais não puderam ter

Arnon Goldfinger vai limpar o apartamento de sua avó, Gerda, que morrera dias antes em Tel Aviv, e descobre que ela e seu avô, Kurt, mantiveram antes e depois da II Guerra, antes e depois do Holocausto, uma amizade calorosa com um casal de alemães. Não um casal qualquer, mas um encabeçado por um eminente oficial nazista. Claudia Ehrlich Sobral viaja para tirar dois dias de folga e assistir ao jogo do Brasil na Copa de 2006, na Alemanha, mas não consegue permanecer depois da partida. Ela antecipa o retorno a Roma por não suportar conviver com a ideia de que os pais e avós daquelas pessoas nas ruas mataram 6 milhões de judeus. Para Ben Peter, só restou Miriam, a avó de 96 anos. E com ela 1 milhão de negativos de fotografias feitas pelo avô, Rudi, que documentam em imagens a história do Estado de Israel. Agora, a loja de fotografias que guarda essa memória será demolida em Tel Aviv.

Como lidar com a memória que você não viveu – mas viveu? Essa questão tem sido respondida de forma fascinante pelos netos dos sobreviventes do Holocausto, através do cinema de documentário. Às vezes também pelos filhos, como no excelente “Seis milhões e um”, sucesso de público no Festival de Amsterdã do ano passado, sobre o qual já escrevi aqui. Mas, em geral, os filhos se descobrem paralisados pelo impacto da memória que não se fez memória, mas é carne aberta em uma vida cotidiana na qual o horror é também sobreviver ao horror. Ou se veem paralisados pela negação da memória, como a mãe de Arnon, que conheceremos mais adiante. Os netos, pelas razões óbvias, parecem mais inteiros para remexer pedaços.

As histórias do início deste texto são contadas em três documentários, que acabaram de ser exibidos no 16 Festival de Cinema Judaico, em São Paulo. Como lidar com a memória é uma questão de todos nós. O que torna esses documentários – ou esse modo de lidar com a memória – dignos de serem vistos é a coragem dessa geração, desses netos, de não fugir das contradições. Assim como sua capacidade de ampliar as nuances tanto quanto possível.

É muito claro que os judeus são as vítimas do Holocausto – e os nazistas, os algozes. Mas há um universo de questões para além desse fato incontestável. E são elas que os netos dos sobreviventes têm nos proposto, numa colaboração inestimável à compreensão do processo histórico – e da delicadeza da alma humana, mesmo quando varada pelo horror. É essa geração que, pelo menos no cinema, está adicionando camadas de complexidade a um dos acontecimentos mais brutais da História da humanidade.

A seguir, uma reflexão sobre esses três olhares novos, para pensarmos juntos sobre como ecoam em nós, judeus e não judeus.

O Apartamento

Este extraordinário documentário começa com filhos e netos entrando alegremente pelo apartamento deixado por Gerda Tuchler para “limpá-lo”. “Estes persas não têm valor nenhum”, é uma das primeiras frases da mãe de Arnon, ao examinar os tapetes. Logo percebemos que nada ali parece ter valor nem para ela, nem para nenhum dos outros. Objetos são jogados em sacos de plástico e móveis inteiros são atirados pela janela, estatelando-se vários andares abaixo. Aquela memória não tem valor algum – é lixo. Por quê? Talvez os descendentes pressintam que há algo de incongruente naquela aparência, ou veem só aquilo que lhes fora dado para ver: um passado sem história.

Gerda havia emigrado com o marido para a Palestina, em 1936, pouco antes da II Guerra (1939-1945), quando Hitler aumentava cada vez mais as restrições aos judeus. Desde então, vivera em Israel como se ainda estivesse em Berlim, transformando aquele apartamento em seu pedaço particular da Alemanha. Ao morrer, com 98 anos, praticamente não falava hebraico, só alemão. Conversava em inglês com Arnon, seu neto que gostava de livros. Conversava em uma língua neutra. Mais tarde, no curso da filmagem, Arnon lembraria que nunca haviam falado nada “realmente importante”. Ao começarem a examinar os documentos de Gerda, Arnon e a mãe descobriram que seria mais difícil “limpar” a memória do que parecia a princípio.

Arnon descobriria que seus avós, judeus cultos e de boa posição social (Kurt havia sido juiz na Alemanha), tinham viajado pela Palestina, nos anos 30, com um casal de alemães. Arnon ficou curioso, porque nunca ouvira falar desse assunto nos jantares de família. Logo, ele descobriria fotos e cartas mostrando que a amizade entre os dois casais havia continuado por muito tempo depois do fim da guerra, com visitas periódicas de seus avós à Alemanha e viagens conjuntas de férias.

Mas quem eram os Mildenstein? Arnon acha uma pista. Liga para um telefone e, do outro lado da linha, encontra a calorosa filha do casal alemão. Ao contrário dele e de sua mãe, ela conhece muito bem os Tuchler, sobrenome dos avós de Arnon. Conviveu bastante com eles, têm recordações e presentes para comprovar. Está feliz de ter contato com a família dos grandes amigos de seus pais.

Arnon cruza o oceano e é recebido pela filha dos Mildenstein. É ela quem começa a lhe contar a história. Mas é só um pedaço da história, o quebra-cabeça está longe de ser completado. Arnon sabe disso. Para a filha, o pai era um homem que gostava de judeus, que havia se recusado a colaborar com o nazismo – e a prova disso era a sólida amizade com os Tuchler. Mas onde estaria o resto da verdade?

Arnon começa a investigar – voltar atrás já não é possível. Pessoas, documentos, arquivos. Sua mãe é levada a reboque, hesitante, quase a contragosto. Ao final, Arnon prova que o barão Leopold Von Mildenstein, que teve uma carreira como executivo da Coca-Cola no pós-guerra, trabalhara no famigerado Departamento de Propaganda de Goebbels. E fora um dos mentores da política que levou os judeus aos campos de concentração. Morreu sem ter respondido por seus crimes, como tantos que conseguiram se ocultar nas franjas dos interesses da Guerra Fria, alguns deles protegidos pela CIA. Arnon descobriu também que sua bisavó, a mãe de Gerda, uma mulher chamada Susanne Lehmann, fora enviada para um campo de concentração, onde morrera. Como tantos judeus alemães, ela se recusara a emigrar com a filha, por não acreditar que “o seu país” pudesse lhe causar mal. “Acho que eu nem a conheci”, diz a mãe de Arnon no início do filme. Antes de descobrir fotos com Susanne – e cartas jamais entregues onde ela contava da saudades que sentia da neta.

Arnon Goldfinger e sua relutante mãe investigam o passado e encontram perguntas sem respostas (Foto: Divulgação)

Arnon Goldfinger e sua relutante mãe investigam o passado e encontram perguntas sem respostas (Foto: Divulgação)

Por quê? Esta é a pergunta com que Arnon tem de lidar. Por que Gerda e Kurt apagaram a memória da mãe assassinada em um campo de concentração e continuaram a ser amigos íntimos de um nazista? “Um nazista podia odiar os judeus, como política de Estado, sem que isso o impedisse de ter relações com um judeu culto, de seu nível social. Assim como para um judeu, podia ser importante, para ser capaz de seguir vivendo depois do que aconteceu, saber que existiam alemães que não queriam tê-los expulsado de seu próprio país, que não os odiavam” – disse a Arnon um acadêmico especializado em estudos do Holocausto.

É uma explicação possível – mas é também uma verdade capenga ou uma mentira com a qual é possível conviver como verdade. Arnon sabe disso. Sabe também que jamais saberá. Mas chegou à encruzilhada: como lidar com a memória? No caso dele menos óbvia, mais espinhosa. Ele diz algo mais ou menos assim (no escuro, não dá pra anotar as palavras exatas): “Talvez eu nunca saiba o porquê de meus avós manterem uma amizade com nazistas. Mas agora preciso decidir o que eu vou fazer com essas informações”.

Arnon volta à casa bucólica da calorosa filha dos Mildenstein, em uma cidadezinha de contos de fadas onde parece que o mal jamais terá permissão de entrar. Ele volta para fazer o que considera certo, “em nome da amizade”, mas o fato é que volta como um anjo vingador. Devolve à mulher um horror que lhe pertence, mas que ela fingiu desconhecer ou não pôde ver. Seu pai foi um nazista, é o que Arnon diz a ela. Seu pai foi um criminoso. Como eu, você vai ter de lidar com isso. A amizade que nunca poderia ter acontecido é encerrada pelos descendentes. E a contradição é exposta às milhares de pessoas que assistirão ao documentário. Agora, todos têm suas marcas expostas – também a filha do nazista.

Há duas figuras trágicas na história real contada por Arnon com indiscutível coragem: as filhas, seja dos sobreviventes, seja do algoz. Uma é a filha do barão Mildenstein, que agora terá de lidar com o estigma de ser filha de um nazista, sem ter sido culpada pelos crimes do pai. A outra é a mãe de Arnon, durante todo o filme apatetada com uma memória que não foi buscar, mas que seu próprio filho a obrigou a encontrar. Vítima tanto da mãe quanto do filho. Mas o filho, pelo menos, ao restituir a complexidade da verdade, dá a ela a chance de deixar de ser apenas vítima. Essa mulher vive em Tel Aviv, em um apartamento no qual tudo é novo e impessoal, dos móveis à decoração, sem vãos onde coisas possam ser ocultadas. Como a memória lhe foi negada pela mãe, ela é uma página vazia. Sem passado, vaga a esmo. O que farão agora essas mulheres quebradas? O que farão agora que o frágil alicerce sobre o qual estruturaram suas vidas foi ao chão?

O que Arnon faz, com o ímpeto da geração que veio bem depois do cataclisma, é mostrar que não há como limpar a memória. Em algum canto do apartamento atulhado que é a nossa vida, verdades incômodas nos espreitam. E há esqueletos mesmo em armários supostamente insuspeitos. Não há como limpar a memória, mesmo quando ela foi empilhada em blocos bem arrumadinhos – seja por um indivíduo ou um grupo, ou mesmo pelo Estado. Há que se encontrar um jeito de lidar. E, em geral, ele passa por desarranjar o prédio inteiro para descobrir as partes que faltam. Ou apenas para constatar a falta. E viver com ela.

Os Fantasmas do Terceiro Reich

A forma que Claudia Ehrlich Sobral encontrou para lidar com o mal-estar que sentiu na Alemanha foi escutar não a dor dos judeus – mas a dos alemães. Não a dor dos descendentes de sobreviventes do Holocausto, como ela, mas a dos descendentes dos nazistas. Seu documentário, feito para a televisão no formato padrão, revela que há dor – e muita – do outro lado. Diferentemente da filha de Mildenstein, que conseguira dar um jeito de desconhecer os demônios do passado, os personagens reais encontrados por Claudia convivem com a dor há muito – e dois deles deram soluções radicais à descoberta de que o pai ou o avô era a versão mais aproximada de um monstro. Seus personagens são o que talvez a filha de Mildenstein tenha se tornado depois do encontro com Arnon Goldfinger.

Ursula Boger voltou um dia da escola contando em casa que a professora falara do que acontecera com os judeus em Auschwitz. “Seu avô esteve em Auschwitz”, foi tudo o que lhe disse a mãe. Ela então inicia um profundo mergulho na escuridão para descobrir que seu avô tinha sido o inventor de um dos piores métodos de tortura aplicado nos campos de concentração – aquele em que um judeu era pendurado, com pés e mãos amarrados, e espancado. O rosto devastado de Ursula é mais contundente do que qualquer uma de suas palavras. Quando você descobre que seu avô foi um dos piores criminosos da História, com quem você compartilha vergonha e dor? Ursula repete várias vezes o quanto é brutal a sua solidão.

Bernd Wollschlaeger, filho de um tenente-coronel nazista que viveu sem responder publicamente por seus atos, lidou com a culpa pelos crimes do pai rompendo com todos os vínculos concretos e simbólicos que o ligavam a ele. Bernd, que vinha de uma longa linhagem de oficiais condecorados do exército alemão, converteu-se ao judaísmo, emigrou para Israel e tornou-se um oficial-médico do exército israelense. Tornou-se em tudo o avesso do pai, encarnou o pior “inimigo” do pai – e nunca mais o viu. O que possivelmente tenha significado uma pena pior do que a morte para o ex-oficial da SS que nunca demonstrara qualquer arrependimento.

Bettina Göring foi talvez ainda mais além. Ela é sobrinha-neta de Hermann Göring, o segundo homem na linha de comando do Terceiro Reich, o que significa carregar um dos mais terríveis sobrenomes do nazismo. Até se matar com uma cápsula de cianureto no dia anterior ao seu enforcamento, em 1946, Göring fora um orador eloquente, que apreciava frases de efeito. Tanto que disse ao seu carcereiro que morreria, mas permaneceria na História. O que de fato aconteceu, mas possivelmente jamais como imaginara. Mas a frase do tio-avô que ecoaria em Bettina seria outra: “Os cromossomos são coisas engraçadas. Hereditariedade é mais importante do que ambiente. O gene pode saltar uma geração, e a criança nascer mais parecida com o avô do que com o pai”.

Temerosa de legar o monstro que poderia carregar dentro de si, Bettina se submeteu à esterilização. E cortou a linha de descendência. À custa de uma parte de si, “matou” o tio-avô muito além de uma vida. Para lembrar o que jamais será esquecido, Bettina Göring eliminou a memória que para ela era a mais ameaçadora – a genética.

Bettina Göring, sobrinha-neta do segundo homem no comando do Terceiro Reich, esteriliza a si mesma para não produzir descendência, com medo de gerar outro monstro (Foto: Divulgação)

Bettina Göring, sobrinha-neta do segundo homem no comando do Terceiro Reich, esteriliza a si mesma para não produzir descendência, com medo de gerar outro monstro (Foto: Divulgação)

Depois de alcançar a humanidade daqueles que antes lhe causavam náusea, Claudia pôde passear em paz pelas ruas da Alemanha. Em seu documentário, ela emprestou carne à frase famosa de Elie Wiesel, sobrevivente do Holocausto e Prêmio Nobel da Paz: “Os culpados são os culpados. Os filhos dos culpados não são culpados”.

Mas é o filho de um sobrevivente judeu que diz a frase mais redentora do filme. Samson Munn promove encontros na Áustria entre descendentes de nazistas e descendentes de vítimas do Holocausto – “porque nossas raízes foram cortadas com nossos pais e avós, e eles temem que suas raízes estejam envenenadas”. O que Samson diz de muito especial é: “Não me interessa alinhar-me com os judeus. Me interessa alinhar-me com a humanidade inteira.”

A Vida Através das Fotos

– Quanto tempo faz, Ben?

– Muito tempo.

A pergunta é feita por Miriam Weissenstein, a avó. Ben é o neto. Ambos testemunham a retirada de uma gigantesca foto na qual uma mulher jovem, sorridente, de coxas bonitas, é imortalizada num passo de dança sem passo. O chão não é tocado, o corpo inteiro da mulher está no ar, desafiando a lei da gravidade, mas também o tempo. É Miriam esta mulher. Ou já foi Miriam. Ela agora tem 96 anos, e a loja de fotografias está sendo demolida, desalojando 1 milhão de negativos que documentam a história do Estado de Israel. O velho prédio dará lugar a um novo na cidade de Tel Aviv. Ben e Miriam perderam a batalha pela geografia de suas lembranças. E estão ali, assistindo ao desmonte da memória.

A tragédia dessa cena está toda no olhar de Miriam. Ela vê arrancarem da vitrine a si mesma em movimento. Esta outra de si que só sobrevive ali naquela foto. A Miriam que vê arrancarem sua versão mais jovem e potente está numa cadeira de rodas. Mas é esta Miriam gasta pelos anos que ainda faz a roda da vida girar. A jovem morreu, restou na foto. A velha a acolhe.

Toda a vida de Miriam e de seu marido, o fotógrafo Rudi Weissenstein, foi documentar em imagens a construção do Estado de Israel. O que significa que toda a vida deles foi se assegurar – e assegurar aos outros – que Israel existia. De repente, ao fim desse caminho, esta história, que era presente, passa a ser passado. Merece exposições e homenagens pela Europa, mas não merece mais o seu lugar concreto naquela rua de Tel Aviv. Apesar de toda a luta de Miriam e do aliado que lhe restou, o neto Ben, é preciso dar lugar a um novo prédio de gosto duvidoso.

Qual é a velha Israel colocada abaixo? E qual é a nova que surge sobre seus escombros? Falta-me conhecimento para responder, mas acho a pergunta das mais interessantes.

Talvez, apesar de todas as dificuldades e contradições que acompanhamos pelo noticiário, já exista ali uma crença na continuidade da vida que permita destruir para construir outra coisa – algo que, para a geração de Miriam, aquela que precisou construir um país, seja impossível compreender. Ben, ao contrário, pode mudar todo o acervo para bem perto dali, no novo espaço reservado, sem ter a sensação de que algo de essencial se perdeu na troca de endereço.

Para Miriam, só há um endereço. A vida toda se justifica pela construção deste endereço. Para Ben, graças ao que a geração de Miriam construiu, as possibilidades são múltiplas. Afinal, quando a geração de Ben faz seus documentários, o que está fazendo é dar um novo endereçamento à memória. A reconstrução ou recriação pode partir da destruição ou da desconstrução, dependendo do sentido que cada um dá. O certo é que a construção não pode ser monopólio da primeira geração – nem das que virão depois, com suas diferentes atribuições de sentido. Um sentido único, permanente e inquestionável é um tipo de morte.

Entre os três documentários, este, dirigido por Tamar Tal, é o mais delicado. Porque se propõe a algo que para alguns é menor, mas que de forma nenhuma é. Se Miriam contém em seu corpo consumido toda a história de Israel e de sua geração, o neto resgata a necessidade da continuidade da vida em seus pequenos atos. Em nenhum momento do filme há menção ao que fez Miriam migrar da Tchecoslováquia para Israel. A tragédia que une avó e neto não é a do Holocausto, mas uma mais prosaica, ainda que pavorosa. A filha de Miriam, a mãe de Ben, foi assassinada pelo marido, que depois se suicidou. De certo modo, avó e neto lidam com o drama humano universal enquanto tentam dar um novo lugar ao legado histórico de uma nação construída a partir do sangue, sobre sangue – ainda hoje. E é a geração de Ben que decidirá os próximos capítulos.

É verdade que, ao testemunhar a demolição de sua loja de fotografias, Miriam testemunha a mudança do país que ajudou a construir. Mas é também verdade que ao ver a jovem que ela foi ser retirada como fotografia da vitrine que não mais existirá, ela também está às voltas com a velhice do próprio corpo. Neste caso, as ruínas da loja já estão dentro dela há muito, em seu corpo destruído pelo tempo.

São muitos os simbolismos desse filme. Mas talvez o mais importante deles seja o de que a vida só vence, de fato, se for capaz de tecer uma teia de pequenos afetos cotidianos.

Prosaicos, talvez, mas fundamentais. É nos vãos amorosos das discussões travadas, das constantes implicâncias e dos olhares que escapam entre Miriam e Ben que sabemos que a vida se impôs.

Ben Peter e sua avó, Miriam Weissenstein, lutam juntos para proteger o legado histórico, sem esquecer que a vida humana sobrevive nos pequenos gestos (Foto: Divulgação)

Ben Peter e sua avó, Miriam Weissenstein, lutam juntos para proteger o legado histórico, sem esquecer que a vida humana sobrevive nos pequenos gestos (Foto: Divulgação)

Como lidar com a memória do horror, afinal? Se na História é fundamental mantê-la viva, para que o horror jamais seja esquecido e repetido, na existência individual, íntima e cotidiana, na vida que segue, é preciso encontrar aquilo que faz viver. Ou então só há um estado de morte no qual restamos congelados, que é um outro tipo de campo de concentração. Para vencer é preciso amar –apesar de todas as peças que faltam. E amar, muitas vezes, significa remexer nos cacos para criar um novo sentido com a verdade possível. Tanto a verdade quanto o sentido sempre aquém, sempre incompletos. Sempre fascinantes.

(Publicado na Revista Época em 13/08/2012)

A primeira morte

A pequena tragédia de um homem comum diante do exame de colesterol

A notícia veio em um exame de rotina, aberto na página do laboratório na internet enquanto tomava um chocolate quente. Na verdade, leite com um chocolate em pó cheio de porcarias que ele toma desde a infância e, por isso, aos 43 anos, é uma fonte de alegria permanente na prateleira da cozinha. Quando bateu na minha porta, os olhos escancarados, avisando que tinha uma má notícia, eu pensei logo em câncer. No nosso tempo, é o que a gente sempre pensa, mesmo que não diga. “Meu colesterol está alto”, ele disse. “Muito acima do péssimo.” Amoleci inteira e até esbocei um sorriso. “Ah, mas isso não é tão grave.” Mas era. Eu não fui capaz de perceber logo, mas era a primeira morte de meu melhor amigo.

Não era uma doença incurável, não era um drama humanitário, não era nada que alterasse a ordem do mundo. Era só a pequena tragédia dele. Comezinha e cotidiana. A tragédia de um homem comum, com uma vida comum, que sentia a primeira fisgada do fim.

No percurso de uma vida, quando temos a sorte de ter uma existência longa, passamos por várias pequenas mortes e renascimentos. É importante que partes de nós morram para que outras possam nascer – ou apenas para que esses pedaços mofados de nossas crenças sobre nós ou da crença de outros sobre nós saiam do caminho. É triste quando alguém é uma coisa só a vida toda – perdendo a chance de acolher todos os outros de si. Quando alguém anda pela vida apertado em uma roupa que nunca lhe serviu direito, mas que foi vestida nele ou nela por seus pais ainda na infância, como se fosse o único modelo que lhe coubesse.

É importante que, em algum momento, de preferência mais cedo do que tarde, a gente descubra que essa roupa não serve – ou que apenas algumas partes servem e outras precisam ser jogadas fora, para que novas possam ser inventadas. É essencial que nos libertemos dos dogmas impingidos sobre nós para podermos criar uma vida que faça mais sentido – e para nos sentirmos livres para recriá-la o tempo todo. O olhar do outro sobre nós, a começar pelo dos nossos pais, às vezes é redenção, em outras é prisão, em geral é ambos.

Por isso me parece que uma vida é mais rica quando morremos e renascemos muitas vezes. Mas esta é a existência psíquica, é o que se passa em nossas porções invisíveis, naquela parte da nossa geografia que não se pode tocar com as mãos. Poucas coisas ou nenhuma são mais assustadoras do que ousar se libertar de um jeito de ser cujo funcionamento conhecemos. Porque ainda que esse jeito nos sequestre o desejo, nos parece mais seguro do que enfrentar o vazio de descobrir formas de viver mais próximas de nossos anseios. Mas, se tivermos essa coragem que anda de mãos agarradas com o medo, nós nos responsabilizamos pelas nossas escolhas, seguimos e criamos e morremos e renascemos. Muitas vezes.

Em algum momento, porém, o corpo anuncia uma morte da qual não é possível renascer. A rigor, começamos a morrer desde o nascimento. De fato, nosso declínio físico começa aos 20 e poucos anos, mas esses sinais podem ser ignorados. E são. Por volta dos 40 – um pouco depois, para quem tem mais sorte, um pouco antes, para quem tem mais azar –, recebemos a notícia da primeira morte que não podemos ignorar. A primeira morte do corpo.

Foi o que aconteceu com meu melhor amigo. Para não morrer nos próximos anos de enfarte ou AVC por causa das artérias entupidas de gordura, ele matou com um só golpe um mundo inteiro dentro de si. Não é uma mera mudança de hábitos, como médicos e nutricionistas tentam nos convencer em consultas, reportagens e sites da internet. É um mundo inteiro que se extingue como se o Sol explodisse de repente, muito antes dos bilhões de anos calculados pelos astrônomos. Para quem vive nesse planeta, é uma hecatombe. Para a imensidão do universo, é um nada, estrelas morrem o tempo todo sem que a ordem da vida dos outros se altere.

Para o planeta humano que é meu melhor amigo, foi uma hecatombe. Acabaram-se as feijoadas, o churrasco, a pizza, o hambúrguer, a batata frita, os pastéis, os bolos, os bolinhos, as tortas, os chocolates. Mas não só. Encerrou-se a possibilidade de renovar a qualquer momento a memória de uma vida de afetos: a receita de bacalhau da mãe que morreu, a torta de morangos que só a sogra sabe fazer, o feijão gordo que a mulher prepara toda quinta-feira e havia se tornado um acontecimento, a noite com o amigo de infância recheada de cumplicidade, chope e frituras.

Acabou-se a possibilidade de degustar territórios ainda não desbravados. As experiências gastronômicas com um amigo chefe de cozinha. O acesso às dores de alma e as alegrias de outros povos e terras através da comida, dos ingredientes e dos temperos, que o instigavam a jamais perder nenhuma chance de viajar. Suas próprias invenções com as panelas que reuniam os mais próximos em alegres descobertas na mesa da cozinha. Agora, ele terá de recusar pratos em almoços e jantares – e será um problema na cozinha alheia.

Um mundo dentro do mundo morreu em um segundo. E a notícia dessa morte o lembra o tempo todo de que é só a primeira das muitas que virão. “Tenho medo de morrer de repente”, ele diz. Porque sente que uma parte dele teve morte súbita tendo ele mesmo por testemunha. “Eu não fumo, não uso drogas, só bebo em ocasiões especiais”, ele diz, traído. Eu quase digo: “A vida não dá garantias”, mas me contenho a tempo.

Sei que dentro dele toca o réquiem de Verdi, dramático e grandiloquente, mas só ele escuta. Porque sua tragédia é prosaica, acontece com muitos, não é notícia nem na família. Ele é só mais um homem diante do parapeito da ponte – sem vontade de atirar-se dali, mas apavorado porque um dia vai estar lá embaixo.

Pesquisamos juntos na internet, tentamos inventar receitas, descobrir novos ingredientes, criar um mundo novo dentro do universo restrito ao qual ele foi confinado. Cheiramos desconfiados uma linguiça de soja, passamos retos pela manteiga, enchemos o carrinho de coisas verdes. Depois vamos ao cinema para esquecer seu pequeno drama diante da grandeza do drama maior de um outro, mas quando estaqueamos diante da pipoca, o luto desce sobre ele, inexorável. Sabemos que é preciso aceitar essa morte, assim como todas que virão, com o excesso de perdas que ela contém. Em geral não se morre de uma vez só, mas aos poucos. E é o corpo que nos ensina a brutalidade dessa verdade.

O colesterol não encolheu apenas a largura das artérias de meu melhor amigo, mas também a largura da sua vida. Ele sabe que não pode escapar dos limites impostos pelo corpo. Pode, como todos nós, no máximo adiá-los. No exame do laboratório o tal do LDL avisa que a juventude, aquele tempo no qual era possível fingir que não havia limites, acabou. Mas a gordura que entulha as artérias de meu melhor amigo não lhe obstrui o espírito. Porque morreu e nasceu muitas vezes ao longo de seus 43 anos, há nele uma vida dentro da vida que se amplia também nesse choque com os limites. Enquanto o corpo falha, sua mente recolhe suas lágrimas, sua surpresa e sua dor e os transforma em uma experiência a mais.

Sempre foi assim, afinal. É no confronto com a miséria da condição humana que produzimos o melhor do humano. Condenados eternamente ao fracasso de nosso embate com a morte, inventamos essa vida dentro da vida. Que, se tivermos a ousadia de morrer e nascer várias vezes no espaço de uma existência, será uma vida maior que a vida.

Não tenho dúvidas de que meu melhor amigo seguirá suspirando de saudades de uma picanha gorda ou de um feijão com costelinha de porco. Mas, nesse último final de semana, ele já havia colado um cartaz patético na cozinha, com imagens suas de a.C. e d.C. – “C” não de Cristo, mas de colesterol. Estava entrouxado de roupas porque acreditava que os 100 gramas que tinha perdido desde que abriu o exame tornaram-no “mais friorento”. E tentava inventar uma maionese caseira sem ovos nem óleo.

Soube então que estava salvo. Não do colesterol, mas de algo muito pior: uma vida pequena.

(Publicado na Revista Época em 16/07/2012)

 

Todo dia é dia de estupro

Ela deixou o coração das trevas para contar sua história. A travessia de Marie Nzoli – do Congo a um hotel de luxo de São Paulo

“Por que a água é azul?”, pergunta Marie Nzoli, apontando para a piscina. Em um mundo com infernos demais, ela acabara de chegar do pior deles. Pela primeira vez em 48 anos de vida, deixara a República Democrática do Congo e, depois de uma saga de três dias, desembarcara no Gran Hyatt, um luxuoso hotel de São Paulo, com vista para a Ponte Estaiada. Na mala, trazia lençóis.Como nunca havia pegado um avião, ela pensava que seria necessário forrar a poltrona com eles. Ao olhar para a piscina e constatar que “a água é azul”, talvez estivesse tão ou mais encantada que o astronauta Iuri Gagarin ao ver pela primeira vez a Terra do espaço. Marie Nzoli atravessara vários mundos –fora e dentro de si – para contar sua história ao Brasil.

De onde Marie vem, o estupro é um instrumento de guerra. E as mulheres contaminadas pelo HIV são armas biológicas. O Congo é devastado por conflitos armados antes e depois da independência da Bélgica, em 1960. No final do século 19, quando a África já tinha sido canibalizada pelos europeus, a terra de Marie inspirou Joseph Conrad a escrever o perturbador “O coração das trevas” – livro que no século 20 inspiraria Francis Ford Coppola ao filmar“Apocalipse Now”, transportando o horror para o Vietnã. Hoje, o Congo continua habitado pela insanidade. Além das guerras, é arrasado também pela fome, pela falta de água potável e por doenças como Aids, sarampo e malária. Tem o pior IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) do planeta.

Para compreender o espanto de Marie é preciso apalpar as dimensões de sua travessia.Marie deixara uma casa de madeira, tijolo e barro, com uma plantação de batata e feijão e uma criação de cabras, porcos e coelhos, na pequena cidade de Butembo, no Kivu do Norte, uma das regiões mais perigosas do Congo.E, quando algo é muito perigoso no Congo, pense no inimaginável. Encravado no leste do país, a província de Kivu do Norte faz fronteira com Uganda e Ruanda. E, para além de todos os tormentos, vive uma disputa étnica entre tutsis e hutus. O genocídio que matou cerca de 1 milhão de tutsis na vizinha Ruanda, em 1994, se estendeu para dentro da fronteira leste do Congo, para onde hutus fugiram em massa depois da recomposição do país. (Se você não conhece essa história, pegue na locadora um filme chamado “Hotel Ruanda”.)

Militares e guerrilheiros igualam-se na capacidade de cometer atrocidades em massa, deixando a população desamparada, sem ter para quem pedir proteção. Quase 2 milhões de pessoas, segundo a ONU, vivem hoje longe de suas aldeias – em fuga, mas sem conseguir escapar.“O povo do meu país está sempre fugindo”, diz Marie. “Foge de tudo, porque sabe que está sendo exterminado.” Foge em círculos.

Mulheres como Marie vivem a demência de ter seus filhos recrutados à força pelas milícias, quando ainda são crianças, e suas filhas, assim como mães e irmãs, estupradas muitas vezes, por muitos homens alternando-se sobre os seus corpos. É prática comum, além de violentar, arrancar os mamilos e o clitóris à faca, e furar os pés para que não possam fugir e sangrem até a morte. É uma guerra sem fim, alimentada pelo mercado internacional de diamantes, e talvez o Congo seja, há mais tempo, o pior lugar do planeta para uma mulher nascer.

A única saída para Marie é inventar vida no território da morte. Com outras 17 mulheres, ela criou, em 1983, uma organização chamada Coperma para reagir à violência contra seus filhos. Hoje, somam quase oito mil pessoas. Marie trabalha com vítimas de estupro. Mulheres de todas as idades que, além de serem estupradas, muitas vezes ficam com fístulas porque a violência transformou o canal do ânus e da vagina, ou da bexiga e da vagina, em uma coisa só. O rasgo é produzido pela quantidade de homens que se alternam sobre cada mulher, mas também é feito à faca ou com revólver ou fuzil. E, por terem sido estupradas, elas são discriminadas na comunidade.

No Congo, Marie é uma mulher de classe média. Perguntei o que isso significa. Ela explicou: “Eu como todo dia”. Marie nunca ouvira falar do Brasil. Nem mesmo do clássico futebol, favela e carnaval. Ela chegou aqui ao aceitar o convite da jornalista Ana Paula Padrão para participar de um fórum de debates chamado “Mulheres reais que inspiram”, promovido pelo site “Tempo de Mulher”, em 2 de julho. Quando recebeu o convite, foi correndo procurar o Brasil no mapa. Marie estava feliz, porque há muito sonhava em vencer as fronteiras do Congo para pedir socorro ao mundo.

Nos quatro dias em que permaneceu na capital paulista, Marie repetia: “Como o Brasil é rico, como as casas são bonitas, como a população vive bem aqui!”. Sua tradutora, Ilka Camarotti, retrucava: “Não é todo o Brasil que é assim”. Quando perguntei a Marie do que sentiria saudades, quando voltasse ao Congo, ela disse algo impensável para qualquer brasileiro: “Da limpeza do aeroporto”.

Além do aeroporto, o hotel foi todo o Brasil que Marie conheceu. Nele, ela teve várias primeiras vezes: o banho de chuveiro, vinho branco argentino (ela nunca tinha provado nenhuma bebida alcoólica), algumas frutas, como coco, a escada rolante, o cartão para abrir o quarto, a TV (ela nunca tinha visto) e o controle remoto. Um arrepio de prazer ao receber nas axilas o jato de desodorante do patrocinador do evento.

Mas nada impressionou Marie mais do que o elevador. No último dia, ela já apertava os botões sozinha, com um dedo trêmulo, como se estivesse prestes a acessar algum tipo de magia. E nunca sabia qual era a hora de dar o passo para fora, o momento em que o chão, sem sair do seus pés, chegava ao chão de fato.

Várias vezes, ao longo desta entrevista, Marie divagou. Enquanto a tradutora passava as respostas do francês para o português, ela espiava um prédio em construção, onde um elevador subia e descia. Alto, mas para si mesma, Marie espantava-se com o mundo: “La technologie…” E ria sozinha, em abissal perplexidade. Depois, voltava a contar sobre os estupros.

Perguntei a Marie o que gostaria de dizer aos brasileiros. Ela disse: “Agora que eu vim e dividi a minha história, esse combate não pode ser apenas meu. Essa luta tem de ser também do Brasil. Vocês precisam ajudar as mulheres do Congo.”Marie acredita que o que faltava para que os brasileiros se importassem era que alguém conseguisse chegar até aqui para contar o que está acontecendo lá. Para ela, é difícil compreender que alguém saiba – e nada faça.

Esta é a história de Marie Nzoli – cujo último nome significa “sonho”.

O pai expulsou a mãe porque ela só paria meninas

“Meu pai era professor na escola da prefeitura. E minha mãe, agricultora e dona de casa. Minha mãe teve quatro meninas. E porque minha mãe só tinha meninas, meu pai a escorraçou de casa junto com as filhas. Minha mãe fugiu para a casa do sogro. Eu tinha 8 anos.

Meu avô fez a reaproximação: por um lado, tentou convencer meu pai a aceitar minha mãe de volta, por outro, precisou convencer minha mãe a voltar para casa. Ela voltou. E então fez oito meninos, e meu pai ficou feliz. Mas, nós, meninas, continuamos sem existir.

Era meu pai quem dava dinheiro para a minha mãe. Mas o dinheiro era só para a escola dos meninos. Meu pai achava que menina não precisava estudar. Então, minha mãe roubou dinheiro dele. Eu não tenho o direito de dizer ‘roubar’, mas, na realidade, foi isso o que aconteceu. Minha mãe roubava dinheiro do meu pai para pagar o estudo das filhas.”

Marie “só” foi estuprada pelo marido

“Eu fui estuprada pelo meu marido. Muitas vezes. Eu estava fazendo comida e não queria. Mas, ele dizia: ‘Vem cá’. Eu não queria, mas ele dizia: ‘Eu tenho o direito. É o direito do homem’. Ele me pegava mesmo diante dos meus três filhos. E, se eu me recusasse, ele me batia na frente das crianças. Até hoje eu não suporto escutar meus filhos chamando ele de ‘papai’.”(A tradutora diz: “é um monstro”. E Marie repete: “É um monstro”.)

“Em 1997, depois de seis anos de casamento, meu marido deixou um bilhete, dizendo que partiria para libertar o Congo.”(Neste ano,o guerrilheiro Laurent-Désiré Kabila depôs o ditador Mobutu, no poder desde 1965). “Nunca mais vi meu marido. Eu tenho medo de que ele volte. Se ele voltar, vou dizer para ele que, como ficou muito tempo fora, só posso aceitá-lo se ele fizer um exame de HIV. Como nenhum homem quer fazer o exame de HIV, ele vai recusar. Porque os homens dizem: ‘Eu não vou fazer o teste, você tem de me aceitar como eu sou’.

Como ele vai se recusar a fazer o teste, eu posso dizer que então não posso aceitá-lo. Vou dizer a mesma coisa à família dele. Mas, talvez, eles exijam que eu devolva o dote de 10 cabras. Agora, não sou apenas eu que tenho de devolver, mas também os meus filhos. Sinceramente, eu não sei se eles vão querer.”

(Pergunto a Marie se ela já teve prazer sexual alguma vez.)

“Vários homens quiseram fazer sexo comigo depois que meu marido foi embora, mas eu não quis. Eu não quero mais pensar nisso. Eu não quero isso pra mim.”

Imaculada é o nome da irmã violada

“Minha irmã mais nova, de 14 anos, estava saindo da escola. E encontrou uma milícia. Eles viraram a cabeça da minha irmã para trás. Giraram tanto a cabeça que ela passou dois anos sem se mexer. Ficou também com os olhos doentes. Minha irmã ficava de olhos fechados, sem conseguir caminhar ou comer. Ela não se movia. Eu dava banho nela e também lhe dava comida. Naquele dia, minha irmã se debateu, mas dois deles a estupraram. Minha irmã se chama Immaculé.”

Mulheres contaminadas: a nova arma biológica

“Há estupros todo dia. Meninas e também mulheres mais velhas estão plantando. Os militares passam e as estupram na frente de todo mundo. Vi meninas de 10, as mais velhas com 15 anos, serem estupradas. Os mais pobres precisam andar até 30 quilômetros para encontrar água para beber. As meninas vão buscar água e, quando voltam, os militares as violentam. Depois, elas geram bebês.

Pouco importa se é milícia ou exército.Guerrilheiros e militares são todos selvagens. Se as mulheres resistem, eles cortam os seios e o clitóris. Uma vez jogaram vários militares que já estavam doentes de Aids na nossa cidade e contaminaram muitas mulheres. Existe lá um hospital só para cuidar das mulheres infectadas.

Os ruandeses e também os ugandenses, mas mais os ruandeses, querem exterminar a população do Kivu do Norte, onde eu vivo, para ocupar o nosso território. Antes, a guerra era com faca, com fuzil. Mas, hoje, além da faca e do fuzil, existe a doença. Eles estupram as mulheres, transmitem a Aids e assim vão nos matando. É um genocídio. E é um genocídio há muito tempo.”

Marie fez o parto nua, com dinheiro escondido no ânus e na mira de fuzis: se fosse menino, seria poupada; se fosse menina, fuzilada

“Na primeira vez em que fui de Butembo à cidade de Goma (capital da província de Kivu do Norte, na fronteira com Ruanda) para vender batatas, nosso ônibus foi parado por militares de Ruanda. Esses militares têm autorização para trabalhar e para matar. Nesta estrada, a cada dia dez pessoas são estupradas e mortas. Eles pegam a mala dos passageiros, tomam o dinheiro, tiram as roupas, estupram as mulheres e matam todos. Eu precisava vender batatas e levei dinheiro comigo para a viagem.”(Marie não lembra se eram 10, 15 ou 20 dólares.)

“Quando esses militares de Ruanda pararam nosso ônibus, mandaram todo mundo tirar a roupa, inclusive o motorista. Havia pastores evangélicos no nosso ônibus, e eles também tiveram de tirar a roupa. Eu enrolei o dinheiro, bem enroladinho, e enfiei no ânus para que não me roubassem.

Eu sentia medo e raiva. Quando nos mandam tirar a roupa, a gente precisa dizer ‘obrigada’. Eles ordenam: ‘Agora, digam obrigada porque a gente ainda não matou vocês’. Mas, desta vez, não nos mataram. Como eu fazia acompanhamento psicológico na Coperma, um pastor disse aos militares que eu era enfermeira. A mulher de um deles estava grávida, e eles precisavam que alguém ajudasse no parto. Me deram um pano para cobrir o sexo, e eu fui ajudar a mulher. O militar disse que, se nascesse um menino, seríamos poupados. Mas, se fosse uma menina, estaríamos mortos.

Eu tremia muito. Pensei que estava no final da minha vida. Mas, quando nasceu o menino, os militares ficaram numa felicidade enorme. Saíram para comprar cerveja e comemorar. E, quando voltaram, celebraram fuzilando todos os passageiros de um ônibus que estava atrás do nosso. E depois botaram fogo no ônibus e nas pessoas. Dezoito mortos.

Então, nos mandaram sumir. E voltamos para o nosso ônibus nus. Eu tirei o dinheiro do ânus e, com ele, comprei lençóis e cortinas na feira, para todo mundo se cobrir.”

(É comum as mulheres congolesas esconderem dinheiro no ânus e também na vagina, na tentativa de salvar o pouco que têm, caso sobrevivam à violência. Quando são estupradas, o dinheiro é de tal forma introjetado no corpo que é preciso uma cirurgia para retirá-lo.)

Só a mãe faz Marie chorar

(Pergunto a Marie se este foi o pior momento da vida dela. Ela me diz que não. Parece surpresa por eu cogitar que seja.)

“O pior momento da minha vida foi a morte da minha mãe, um ano atrás. Muitas emoções explodiram dentro de mim. Minha mãe morreu nos meus braços. Dizem que foi por causa de uma intoxicação, que destruiu o fígado. Era como se ela dormisse. Minha mãe, que me fez estudar. Que se esqueceu dela mesma. Eu sou velha, mas sinto muita falta do amor da minha mãe. Fiz tudo para curá-la, mas não foi possível. Com a morte, não há cooperação.”

(Então Marie, que narrou todas as violências com os olhos secos, como se contasse o seu cotidiano – e é o seu cotidiano – começa a chorar. E chora por um longo tempo. A mulher violentada de várias maneiras, que já testemunhou todas as formas de violência, chora apenas de saudades da mãe.)

(Publicado na Revista Época em 09/07/2012)

 

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