Escolha o final

Mesmo nas histórias reais, a verdade nunca é simples

É curioso como acordamos com a ilusão de que sabemos o que vai acontecer. Numa manhã, dias atrás, eu tinha uma série de compromissos encadeados numa série que acabaria só tarde da noite. A parte leve do meu dia era um pit stop para fazer as unhas no salão aonde vou sábado sim, sábado não. Eu tinha acabado de superar o dilema feminino de escolher o esmalte, depois de oscilar entre cores e nomes que só os esmaltes são capazes de ter: Atrevida, Maçã, Paixão e Canoa. De repente, essa rotina segura foi rompida por um grito.

“A mulher está desmaiando”, gritou Elis, a moça que tinge, lava e seca os cabelos. Pela cortina, eu só vi as costas de uma mulher grande, sentada no banco diante da calçada, na Vila Madalena, em São Paulo. Ciça, a dona do salão, amparava o seu corpo. Tatiane, a recepcionista, correu a buscar um copo d’água. Rose, a manicure, arriscou um diagnóstico: “Pressão baixa”. Voltei a ler. A moça estava sendo cuidada. Eu tentava recuperar a palavra interrompida na página do jornal quando ela começou a falar.

O desespero na sua voz alcançou as cutículas da minha alma. Eu não entendia o que ela dizia, só escutava o desamparo. Pela cortina, via seus ombros sacudirem-se num choro convulso. Na porta, Tatiane narrava o que ouvia. Sua história vinha aos soluços, como no twitter. “O marido morreu”. “Ela saiu às 4h da manhã de casa”. “Foi despejada porque não tinha o dinheiro do aluguel”. “Deixou os filhos e suas coisas debaixo de uma árvore e veio procurar trabalho”. “O filho mais velho tem 12 anos e ficou chorando”. “Ela tem gêmeos de nove meses que amamenta”. “A vizinha ficou olhando os filhos”. “Ela está com fome”. “Ela está desesperada”.

No lado de dentro, nós éramos mulheres fazendo as unhas, tingindo e cortando os cabelos, num espaço do feminino distante do feminino dela. A dor da mulher entrava pela porta daquele santuário em que vivíamos nossas delicadezas no meio de uma cidade bruta. Cada uma com problemas que nos tentaculavam como polvos.

Algumas de nós cravaram os olhos em suas revistas de celebridades. Não porque fossem indiferentes ao drama, mas porque era dolorido demais entrar em contato. Tentavam se convencer de que aquilo não estava acontecendo. Se ficassem bem concentradas na polêmica sobre o vestido curto de Juliana Paes na cerimônia do Emmy, a voz terrível do lado de fora acabaria se calando. Uma delas nem percebeu que a revista estava de cabeça para baixo.

A certa altura, todas nós chorávamos. Uma mistura de compaixão e vergonha. Não por chorar, mas por não saber o que fazer. Éramos mulheres que davam duro para ganhar a vida e às vezes nos escondíamos ali para ficar bonitas. Fugíamos não só de nossas unhas roídas, mas da feiúra do mundo. E lá estava ela, à porta de nosso pequeno e frágil universo, chorando de fome e desespero. Cadê os seguranças, as cercas eletrificadas, o porteiro eletrônico, os vidros com insulfilm para nos proteger do desamparo alheio? Não havia.

Com braços espichados, pernas no colo da manicure, eu era um retrato patético da impotência. Depois de alguns minutos eternos consegui romper meu imobilismo. “Tati, quanto é o aluguel dela?”. Tati correu para fora. Voltou. “É cem reais.” A dona do salão ofereceu a ela um emprego em sua casa. Dei a ela o dinheiro do aluguel, para que pudesse reorganizar a vida e voltar a trabalhar.

A mulher quis entrar para me conhecer. O desamparo agora tinha corpo. Era negra, grande, os seios fartos de leite. O conjunto azul de saia e blusa revelava sua tentativa de estar apresentável para bater de porta em porta em busca de um emprego. Sempre me comovi com estes pequenos detalhes. O vestido puído, mas limpo, o paletó curto nas mangas, os sem-tetos que lavam as roupas nos parques para vesti-las embaixo de viadutos imundos.

Nos abraçamos ali, entre escovas, esmaltes e secadores de cabelo. Descobri que eu precisava tanto daquele abraço quanto ela. Duas estranhas abraçadas, cada uma com o nariz enfiado no pescoço da outra, misturando o sal das nossas lágrimas e do nosso suor. Duas mulheres em posições sociais diferentes, mas que se reconheciam no desamparo. Sem cercas para nos apartar, nos enxergávamos.

Quando percebi, eu dizia coisas para ela como: “A vida às vezes é bem dura, mas passa”. Ou: “Come antes de pegar o ônibus para não desmaiar”. Ou ainda: “Paga o aluguel, cuida dos teus filhos e depois volta”. Soube então que seu nome era Eliane. Éramos duas Elianes chorando abraçadas pela dor de ser mulher num mundo tão assustador.

Não era esmola o que dei ali. Nem era esmola o que ela aceitou. Era algo que nos igualava, que permitia que nos abraçássemos e chorássemos juntas. Ela achava que Deus tinha guiado os seus passos. “Eu ia por uma rua, mas Deus me mandou ir por outra”, disse ela. Já eu acredito mais nos pequenos milagres humanos. E acredito que eles acontecem quando vencemos nosso medo e nos reconhecemos nos olhos do outro. Toda violência, acho eu, começa quando deixamos de nos enxergar, erguendo – também literalmente – muros entre nós. Apartados uns dos outros, é óbvio que quando nos encontramos não há reconhecimento, só desconfiança.

Não foi por acaso que ela desabou naquela porta. O salão tem porta para a calçada e um banco onde é possível sentar. Sua arquitetura acolhe, não afasta. Deve ter sido o único banco que Eliane encontrou nos muitos quarteirões por onde andou arrastando a sua dor. Naquele mundo de mulheres ela chegou como estrangeira. Mas suas palavras foram ecoando em cada uma de nós, até que ultrapassaram a soleira da porta junto com ela. Ela então se tornou uma de nós, mulheres tentando desenredar a vida.

Salões de beleza, seja nos bairros nobres ou nas favelas, são universos onde os dramas do mundo feminino se desenrolam. Há uma força poderosa nesse desejo de se embelezar. Somos todas muito parecidas com os pés nus estendidos no colo de outra mulher. Essa trama delicada é tema de um filme bonito que está nas locadoras chamado Caramelo (Nadine Labaki, 2007).

Nele, as vidas de cinco mulheres se entrelaçam num salão de beleza de Beirute, no Líbano. Layale, amante de um homem casado, sonha com o dia em que ele vai se separar para ficar com ela; Nisrine está de casamento marcado, mas não é mais virgem e não sabe como contar isso ao noivo muçulmano; Rima sente atração por mulheres; Jamale tem medo de envelhecer; e Rose cuida da irmã mais velha.

Me senti num filme real naquele final de manhã. Um filme só de mulheres. Quando a outra Eliane partiu, ficamos fungando em silêncio. E Rose terminou de pintar minhas unhas com esmalte Maçã.

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Eliane deveria voltar na terça-feira seguinte para começar a trabalhar na casa da dona do salão. Nunca apareceu.

O que teria acontecido? O final desta história não é simples.

A terça-feira em que ela deveria voltar, 8 de dezembro, foi o dia em que São Paulo parou por causa da chuva. Eliane disse que morava nos confins da Zona Leste. Teria ela sido acossada pela chuva? Ou alguma de suas crianças? Como acontece a cada ano, dezenas morrem de algo tão previsível quanto a chuva no estado mais rico do país. Só naquela terça-feira morreram pelo menos seis na Grande São Paulo. E centenas ficaram desabrigadas.

Fico de olho nas notícias sobre os mortos, mas até agora não encontrei ninguém com suas características. Ela pode estar ferida, o barraco pode ter desabado, um filho pode ter ficado doente. Ela não deixou nenhum endereço. Ficou apenas de voltar com certeza.

Ou seria um golpe? Aceitando essa hipótese plausível, teríamos nós, escoladas moradores da metrópole, caído numa velha pantomina. A favor de nós, para que nos sintamos um pouco menos idiotas, pode-se dizer que ela era uma grande atriz. Sim, porque estava gelada, suava frio, tremia muito e chorava lágrimas copiosas.

Há outras possibilidades. De que ela estivesse mesmo desesperada e com fome, mas precisou contar uma história mais trágica para nos sensibilizar. Ou ainda, que estivesse em síndrome de abstinência de algum tipo de droga, o que explicaria o quase desmaio, os tremores e o suor frio. Mas ninguém lhe daria dinheiro para comprar crack, por exemplo, se falasse a verdade. Neste caso, o desespero seria real, o motivo mentira.

A verdade nunca é fácil nem está toda no mesmo lugar.

Quando fazemos reportagens, precisamos duvidar de tudo. Vamos a todos os lugares, falamos com todos os envolvidos, checamos os documentos, ouvimos o contraditório e relatamos o que encontramos, para que os leitores possam chegar a suas próprias conclusões. Mas, na vida cotidiana, não temos esse tempo. As escolhas, em geral, precisam ser rápidas. Estender ou não a mão a alguém que pede ajuda?

Não há certezas. E, na dúvida, qual é o final que prefiro para esta história?

Por um lado, gostaria de não ter caído num golpe. Ninguém gosta de se sentir idiota. Por outro, se não era um golpe, ela pode estar morta ou ferida o suficiente para não poder ligar pedindo ajuda. Isso seria bem pior, obviamente. Por paradoxal que seja, o melhor é ter sido vítima de um golpe e feito um papel ridículo.

Possivelmente nunca saberei a verdade dela. Mas é importante conhecer a minha verdade. A pergunta que importa agora é: o que eu faria se algo assim acontecesse novamente?

Eu faria o mesmo.

Pertenço à parcela das pessoas que prefere deixar a porta aberta a se trancar atrás dela. Sempre há um risco de entrar um golpista pela porta, mas por ela também entra quem precisa de um colo, entra o novo e até o extraordinário. É uma convicção profunda que me move pela vida. E espero sempre ser capaz de escolher este final para a minha história.

(Publicado na Revista Época em 21/12/2009)

O homem que me ensinou a morrer

Conheça a incrível história de Valentim de Moura, o operário que morreu passarinhando

O mais fascinante da profissão de repórter, na minha opinião, é a possibilidade de bater na porta de tantas vidas e ter uma boa desculpa para entrar. Isso, às vezes, tem um preço alto. Mas, em outras, como na história que vou contar, é um presente. Fui convidada a participar do Profissão Repórter, da TV Globo, sobre a enfermaria de cuidados paliativos do Hospital do Servidor Público Estadual, em São Paulo. O programa foi ao ar nesta terça-feira (15) e pode ser visto neste site. Ao gravar a minha parte, conheci um homem extraordinário chamado Valentim de Moura.

Durante mais de uma semana, acompanhei seu Valentim na vivência de sua morte. Nestes tempos estranhos que vivemos, em que a morte é um tabu, o mais radical é morrer com serenidade, sem medo. Por absurdo que pareça, morrer com naturalidade tornou-se um ato revolucionário. Foi assim com seu Valentim: ele encerrou sua vida em paz. Para ele, não havia nada mais natural do que chegar ao fim de sua trajetória e morrer cercado por quem amava contando histórias da sua vida.

Nós, repórteres, sempre sofremos com as histórias que apuramos e não couberam no texto – ou, neste caso, no programa de TV. Trabalhamos limitados pelo número de páginas, pelo tempo do programa. A história de seu Valentim não pôde ser contada. O inusitado ali era a naturalidade da morte. E o fato de uma morte serena ser algo tão subversivo me fez pensar bastante. Como estes acontecimentos ficaram tatuados na minha alma, quis contar aqui para que mais gente pudesse ter a chance de aprender com seu Valentim. Não queria me beneficiar sozinha de uma experiência de vida tão larga.

Ele sabia que morreria de câncer. Era tratado na enfermaria de cuidados paliativos, um lugar onde cuidar é mais importante do que curar. Lá, doentes com escassas chances de cura são acompanhados por profissionais da saúde com uma convicção diferente da difundida pela prática médica tradicional. Eles acreditam que seu papel é amenizar os sintomas, escutar muito, cuidar das feridas invisíveis para que os pacientes possam viver intensamente, até o fim. A vida não é nem abreviada, nem prolongada por tratamentos dolorosos e invasivos. Cada paciente é visto como a pessoa singular que é, e sua história é tão determinante na hora de tomar as decisões quanto os aspectos médicos.

Durante o tratamento, seu Valentim piorava e passava alguns dias internado na enfermaria, até estar bem e voltar para casa. Quando novamente piorava, voltava para o hospital. Até o dia em que sentiu que, quando voltasse à enfermaria novamente, não mais retornaria para casa. Reuniu a mulher, dona Geralda, os seis filhos, e pediu que lhe comprassem um túmulo. Queria que fosse branco, mas os filhos acharam que sujaria muito. Concordaram então em pintar da cor do céu. Ele pediu também que plantassem muitas flores no jardim. Seu Valentim pertencia à natureza.

Quando o túmulo ficou pronto, ele anunciou que havia chegado a sua hora. “Minha casa agora vai ser esta nova que vocês fizeram para mim”, disse. “Quero ir para aquela enfermaria cheia de moças bonitas, onde me tratam muito bem.”
No caminho, exigiu uma parada no cemitério. Vistoriou seu túmulo, seu jardim, e disse: “Muito bonito”. Entrou no carro satisfeito e foi para o hospital. Lá, contou-me que era metalúrgico e, como o presidente Lula, também teve o dedo engolido por uma máquina. De dentro do lençol, puxou uma mão magra para mostrar-me a ausência que marcava sua vida de operário. Ao lado, o cunhado lembrava dos tempos em que seu Valentim tocava sanfona e havia se apaixonado por dona Geralda. Enquanto ele morria, ouvia histórias. Em todas, era ele o protagonista.

A cada dia seu Valentim ia nos deixando um pouco mais. Mas sem pressa. Nenhuma. “O tempo é o dele”, disse a chefe da enfermaria, Maria Goretti Maciel. “Não temos nenhuma necessidade de intervir. Ele está vivendo o fim da vida. E o médico não deve se intrometer nisso. Só precisamos caminhar ao lado dele, para ajudar no que for preciso. Este é um caminho que tem de ser vivido.” Logo depois, com aquele jeito manso de Goretti, ela suspirou: “Não parece a morte que a gente gostaria de ter?”

Parecia. Desrespeitamos tanto o tempo na nossa vida, não esperamos o tempo de nada, atropelamos o tempo de tudo, não temos nem sequer minutos para elaborar os tantos acontecimentos vividos. Que pelo menos esperemos o tempo da morte. Resolvi até sentar-me um pouco no corredor para gastar tempo refletindo sobre o tempo sem me preocupar em gravar coisa alguma.

Nos últimos dias seu Valentim não falava mais. Só olhava, para longe e para dentro, na mais absoluta serenidade. Parecia que às vezes ele mesmo se surpreendia de acordar e ainda estar neste mundo. Já tinha deixado a casa que construiu, despedindo-se da família que criou com dona Geralda, falado de amor para a mulher com quem viveu 45 anos. Estava pronto para ir embora.

Numa manhã, partiu. “Passarinhando”, resumiu Goretti. Simplesmente parou de respirar, silenciou e se foi.

No dia seguinte foi enterrado em um cemitério chamado Saudade, acompanhado pela mulher, os filhos, os netos, os colegas de trabalho, os companheiros de sanfona, os amigos de uma vida inteira. Foi um enterro do jeito dele. Enquanto o cortejo evoluía pelo cemitério, eu escutei mais meia dúzia de histórias do seu Valentim. Quando todo mundo se calou por um instante, soubemos que dezenas, talvez centenas de passarinhos moravam nas árvores perto de seu túmulo.

Ao me despedir de dona Geralda, descobri porque aquele casamento tinha dado tão certo. Ela disse, depois de dar adeus ao homem com quem tinha dividido a maior porção da vida: “Ele está bem guardadinho ali no barraquinho dele”. Estava mesmo. E estava tudo certo.

Em um vídeo, que mostramos aqui, há uma pequena amostra do material gravado com seu Valentim. Dá para ter uma ideia deste homem e sua morte tão subversiva para os tempos atuais. Dizem que nome é destino. Às vezes, como agora, até acredito.

Se seu Valentim soube morrer sem drama, eu também quero me despedir dele sem choro. Só quero dizer: “Muito obrigada, seu Valentim, por me ensinar a morrer”.

(Publicado na Revista Época em 16/12/2009)

Dólar na fralda

Quando se vive desejando. Até o fim

Aconteceu na semana passada. Ele tem 84 anos e está morrendo de câncer. A auxiliar de enfermagem do serviço de cuidados paliativos do Hospital do Servidor Público Estadual, em São Paulo, entrou no quarto para trocar sua fralda. Ele não permitiu. Ela insistiu. Precisava trocar a fralda, dar banho, fazer a higiene. De onde ele tirava forças para reagir com tanta veemência?

O dele era um não profundo.

Quando ela tentou mais uma vez, quase bateu nela. Ninguém tocaria nas suas fraldas.

Foi uma confusão. Até que a verdade se revelou.

Na fralda, ele guardava os mil reais da aposentadoria. Doze andares abaixo, no saguão, uma moça de 25 anos tentava subir para uma visita especial. Há algum tempo ela o ajudava com os afazeres domésticos, por assim dizer, duas vezes por semana.

Nunca antes na história do Brasil alguém escondeu dinheiro nas partes íntimas por uma causa legal. E tão inspiradora.

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Esta história real não é só curiosa. Ou divertida. É profunda. A enfermaria de cuidados paliativos trabalha com a ideia de que é possível viver intensamente até o fim. Da forma que é possível para cada um, com aquilo que é importante para cada um, no respeito à singularidade de cada um. Lá, não se morre sedado ou amarrado a tubos e fios, como acontece em tantos hospitais, em que os pacientes são alienados do fim da sua vida e nem mesmo conseguem se despedir de quem amam.

A equipe atua para deixar o doente sem dor, numa arquitetura delicada em que a medicação atenua os sintomas sem alijar a consciência. Cada decisão é tomada levando em consideração não apenas os aspectos médicos, mas a história de vida, sempre única e intransferível. Levando em consideração aquilo que é o que faz viver e tem sido tão esquecido pela prática médica tradicional: o desejo.

Não estamos vivos porque respiramos. Estamos vivos porque desejamos. E estaremos vivos enquanto desejarmos. Um pão de queijo, o calor do sol sobre o rosto, a voz de um filho, o amor de uma moça bonita.

Por isso essa história é tão excepcional. Seu simbolismo é explícito, uma literalidade. O homem que está morrendo – e que por toda vida desejou moças bonitas – deseja encerrar sua vida desejando.

Sobre uma cama de hospital, ele guarda o dinheiro na fralda. Fragilizado, ele ainda mantém o poder e a autonomia escondidos no que lhe restou de privacidade. O dinheiro que vai pagar a moça que lhe faz feliz aninhado junto à parte do corpo que lhe faz feliz.

Não havia mesmo como trocar aquela fralda, onde estava guardado o que sempre deu sentido à vida que se encerra. E que dará sentido, até o fim.

Quando chegar a minha vez de morrer, também espero estar conciliada com meu desejo – e com sua expressão mais profunda. Seja ela qual for.

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Nesta terça-feira, 15 de dezembro, faço minha estreia na TV. Depois de mais de 20 anos como repórter-canetinha, como são chamados os jornalistas dos meios impressos, sempre empunhando um bloquinho e uma caneta, peguei num microfone pela primeira vez. Fazia tempo que não me dava tanto frio na barriga, o que é sempre ótimo.

Fui convidada pela equipe do Profissão Repórter, da TV Globo, a voltar à enfermaria de cuidados paliativos do Hospital do Servidor Público Estadual para contar a história – e as histórias – desse lugar extraordinário. Eu não poderia começar em melhor companhia: Caco Barcellos, um dos maiores repórteres do Brasil e uma das pessoas mais generosas que já conheci, dispensa apresentações; Thais Itaqui, uma jovem jornalista extremamente sensível e talentosa; e Mikael Fox, que além de ótimo repórter cinematográfico é um grande companheiro de trabalho. Ao contar essa história por imagens, não só ri e chorei, como às vezes ri e chorei ao mesmo tempo.

No ano passado, eu passei quase quatro meses no 12º andar do hospital, acompanhando a rotina da equipe de cuidados paliativos para uma reportagem de Época. Esta história pode ser lida nos seguintes links: A enfermaria entre a vida e a morte, A mulher que alimentava e Minha vida com Ailce. Agora, é a primeira vez que uma equipe de TV entra na enfermaria chefiada por Maria Goretti Maciel – uma médica que, tenho certeza, todos nós gostaríamos de ter por perto –, para acompanhar os surpreendentes enredos que se desenrolam naquele corredor.

Vivemos tempos estranhos. Basta ligar a TV ou acessar a internet para assistirmos a uma sequência sem fim de mortes violentas no noticiário, muitas vezes com detalhes escabrosos, sangue e vísceras. Mas a morte por doença ou velhice, a morte que a maioria de nós terá, esta se tornou um tabu. Para muitos, deve permanecer escondida, de preferência no ambiente asséptico dos hospitais.

Não é preciso ser Freud para perceber que as pessoas que não conseguem entrar em contato com o tema da morte são aquelas menos resolvidas com a vida. Agarram-se à ilusão de que se não enxergarem, se ficar bem escondido, pode ser que não aconteça.

O temor da morte é uma realidade atávica para uma espécie que tem consciência do fim. Mas a forma como encaramos o morrer é determinada pela cultura. Desde o século XX a morte foi se tornando cada vez mais oculta no Ocidente, como se fosse possível esconder que a vida termina.

As conseqüências desse silêncio que grita ecoam – mal – na vida social – e na de cada um de nós. Não só nos tantos exageros com que as pessoas tentam espichar a juventude a preços que seguidamente acabam custando muito caro, às vezes a própria vida, como na impossibilidade de cuidar de quem está doente e pode morrer. Para cuidar, é preciso primeiro enxergar.

É também esse medo que faz com que vivamos sem valorizar cada segundo, desatentos aos detalhes que tecem uma existência. Quando se faz de conta que a vida dura para sempre, esquecemos de prestar atenção na delicadeza que habita cada momento, na possibilidade irrepetível contida em cada segundo. Quando deixamos de olhar para a morte, deixamos de olhar para a vida. Parece-me que é um preço alto demais. Devemos aceitar nosso medo. Mas não podemos permitir que ele nos paralise, porque isso nos mataria antes do tempo.

A proposta da enfermaria de cuidados paliativos é poder olhar para o encerramento da vida como parte da própria vida. Natural e não necessariamente doloroso. Os enredos que se desenrolam naquele corredor comprido do 12º andar mostram que o fim também contém possibilidades se for vivido com verdade. Muito vale o perdão, as palavras finalmente pronunciadas, a reconciliação com os erros e acertos que existem em toda vida, um abraço apertado. Ou mesmo aquele prazer inesperado numa xícara de café.

A imprensa tem sido ágil ao mostrar a morte violenta. Às vezes com bastante propriedade, porque é preciso denunciar as muitas guerras não declaradas que vitimam especialmente os brasileiros mais pobres. Mas a imprensa tem se omitido ao tratar da morte mais prosaica, a morte da maioria, que não vai ter sua vida encerrada por tiro ou acidente.

Ao propor um programa sobre a morte em uma TV aberta, o diretor do Profissão Repórter, Marcel Souto Maior, foi corajoso. E eu me sinto honrada por participar deste momento. Quem assistir vai ter a oportunidade de aprender alguma coisa. E, melhor que isso, refletir para viver melhor.

Não existe bom jornalismo sem ousadia. Embora seja sustentada por anunciantes, a imprensa só sobrevive e conquista credibilidade se for além das imposições de audiência, no caso da TV e da internet, do número de leitores, no caso dos jornais e revistas. Do contrário, deixa-se reduzir a pão e circo.

Contar a história cotidiana da nossa época significa ter a coragem de tocar nos temas difíceis – aqueles que são difíceis exatamente por serem os mais importantes. Para um jornalista, ser corajoso não é uma escolha, mas uma responsabilidade. Com o público, com os leitores.

O ocultamento da morte, em nosso tempo, é um tema que repercute em todas as esferas não só da vida privada, mas também da pública, da política ao meio ambiente. Parece-me, por exemplo, que se conseguíssemos olhar com mais naturalidade para nossa morte, não teríamos consumido o planeta com a voracidade de quem precisa acreditar que a vida – a nossa e a da Terra – dura para sempre.

Também nós, jornalistas, não estamos vivos enquanto respiramos. Mas enquanto ousamos. Deixar de ousar, acomodar-se aos temas mais fáceis e palatáveis ao público, é a morte simbólica de um repórter, de uma publicação, de um programa de TV.

Para nós, fazer um programa sobre a morte foi um ato de vida. Em todos os sentidos.

Ninguém precisa se lembrar de respirar ao acordar. Mas é preciso lembrar, a cada manhã, de desejar. Este é o ato que nos humaniza. E que nos manterá vivos, até o fim.

(Publicado na Revista Época em 14/12/2009)

Comprei meu túmulo

Cuidar da minha morte deixou minha vida mais leve

O ano de 2008 ficará marcado na minha vida como o ano em que confrontei a morte. Como a maioria, eu tinha muito medo dela. Quando minha mãe falava em morrer, eu ficava brava. Ao receber o papel do auxílio-funeral da empresa, rasgava e botava no lixo. Sentia vontade de bater nos vendedores de seguro de vida. Se algum incauto começasse a falar em morte, eu já cortava: “Eu não vou morrer”. Quando pequena, nas orações noturnas, nunca pedi a Deus que me enviasse um anjo-da-guarda. Implorava por um vampiro que mordesse meu pescoço e me garantisse a vida eterna. Era uma fé meio heterodoxa a minha, mas era isso o que eu pedia, além de acordar com olhos azuis.

No ano passado, a morte foi a maior presença na minha vida. Não havia como escapar dela. Ela me cercava por todos os lados, na doença de pessoas queridas. Decidi fazer uma reportagem sobre o fim da vida. Escrever é minha principal estratégia para lidar com os monstros que me assombram. Passei 115 dias acompanhando diariamente uma mulher com um câncer além da possibilidade de cura. Além disso, todas as manhãs de sexta-feira, durante quase quatro meses, testemunhei o trabalho da equipe da Enfermaria de Cuidados Paliativos do Hospital do Servidor Público Estadual de São Paulo, um lugar onde o tempo de morrer é respeitado: nem abreviado, nem prolongado. Quem se interessar, pode ler a reportagem nos seguintes links:

Eu queria compreender a morte. Foi um mergulho tão profundo que perdi alguns pedaços pelo caminho. E ainda sangro um pouco em alguns dias. Algumas vezes acho que cheguei perto demais dos meus demônios todos, sem estar preparada para vê-los de tão perto. Depois percebo que valeu a pena. E continua valendo. A experiência me deu algo muito libertador e muito raro: perdi o medo de morrer. Quero viver o máximo que puder, mas não tenho medo de morrer. Demorou, custou, mas compreendi que a morte é parte da vida. Compreendi não apenas com meu cérebro, mas também com meu fígado, meu estômago, meu coração, minha alma. Com toda a inteireza do que sou.

Para isso, tive de lidar com questões sempre adiadas. Aprendi a aceitar limites, compreendi que qualquer ideia de controle é ilusória, percebi a importância de se reconciliar com a vida. É a vida, afinal, que faz diferença no fim. Ao acompanhar tantas pessoas morrendo e ouvir tantas histórias, percebi que morre em paz quem está em paz com sua vida, quem foi capaz de olhar com generosidade para suas memórias – e ressignificá-las. Vi gente rica e intelectualizada morrer agoniada e gente pobre e com pouco estudo encerrar a sua vida serenamente. Passarinhando, como se diz na enfermaria dos que vão se apagando lentamente, sem alarde. E vice-versa. Saber morrer, assim como saber viver, é uma sabedoria que não depende nem de escolaridade nem de conta bancária. Mas é uma sabedoria. Uma das grandes.

Talvez eu descubra, no parapeito da morte, que ainda tenho muito medo. É possível. Como se vive só se sabe vivendo. Como se morre, também. Aprendi a abrir mão da soberba e não julgar a dor do outro. Da dor, só sabe quem sente. Mas não tenho dúvida de que hoje estou mais preparada para morrer do que estava antes. E estou mais preparada para cuidar de quem está morrendo. Porque hoje estou mais preparada para viver. E mais preparada para cuidar de quem vive.

Depois de encerrar a reportagem, decidi comprar meu túmulo. Em diferentes momentos, testemunhei muita confusão nessa hora em que o sofrimento é explorado de todos os modos por quem vive deste comércio. Ninguém consegue tomar decisões acertadas no meio de uma dor tão dilacerante como a da perda de quem ama. Queremos chorar e viver nosso luto, mas temos de enfrentar a foice da burocracia que nos exige papéis. Nesta hora, não é fácil negociar com agentes funerários e nem mesmo com vendedores de flores. Nos sentimos mal de discutir o preço de um caixão, mesmo sabendo que estão nos roubando. Vi algumas cenas que ficariam perfeitas em romances de Gabriel García Márquez, mas que me fizeram mal na vida real.

Decidi cuidar da minha morte. Percebi que era um jeito de cuidar da minha vida. Não sei se vou morrer de enfarte, de acidente, de câncer, de tiro ou de velhice. Mas sei que vou morrer um dia, seja daqui a pouco, quando terminar essa coluna e atravessar a rua, ou daqui a uns 50 anos, como gostaria. Não posso controlar o quando nem o como. Mas posso decidir como e onde serei enterrada. Sim, porque espero ser enterrada e não cremada. Gosto da ideia de me misturar à terra depois de morta. E, ao contrário da maioria das pessoas, a ideia de que virarei comida de vermes me parece interessante, porque me manterá viva de alguma maneira, nessa eterna transformação da matéria que faz nosso universo tão fascinante.

Escolher as circunstâncias do ritual de minha morte me levou a uma profunda reflexão sobre a história da minha vida. Onde eu queria ser enterrada? Percorri meus inícios para descobrir. Não gosto do cemitério da minha cidade porque éramos levados lá todos os anos para chorar diante do túmulo da minha irmã, morta por meningite aos cinco meses. Eu sabia que todo dia de finados seria obrigada a ir ao cemitério, levar flores e entristecer. Nunca precisei fingir melancolia. Nenhum filho consegue escapar da tristeza ao ver sua mãe vivendo uma dor que estará sempre longe do seu alcance aplacar.

Esta era a parte tenebrosa do feriado de finados. Em seguida, vinha a redenção. Depois de passar pelo cemitério de Ijuí para prantear nossa irmã, nós íamos ao Barreiro, o lugarejo rural onde meu pai nasceu, onde ainda viviam seus tios e seus irmãos, onde brincavam nossos primos. Lá o dia de finados era uma festa. Minha tia Nair, uma agricultora com duas mãos grandes povoadas de calos, as mais generosas que eu conheci, torcia o pescoço de meia dúzia de galinhas e abria a casa para os parentes que vinham dos arredores e também de longe para homenagear os finados. O dia dos mortos era uma data para celebrar o reencontro dos vivos e relembrar as velhas histórias que nos constituía a todos.

Quando eu chegava, minha tia já me carregava para dentro do bolicho (armazém). Para mim, era como entrar na caverna de Ali Babá. Mentalmente, eu pronunciava um Abre-te Sésamo. Com um sorriso de orelha a orelha, minha tia enfiava suas duas mãos mágicas no baleiro de onde saíam doces de formatos e cores variadas que só existiam ali. No balcão escuro e ensebado do bolicho, com cheiro de fumo e salame, eu revivia minhas esperanças. E de novo era feliz.

Então, seguia meu pai ao cemitério no alto da lomba, onde deveriam estar todos os cemitérios, e íamos parando de túmulo em túmulo. Meu pai relembrava histórias, sempre as mesmas, que todo ano eu pedia que repetisse. Fazíamos uma visita guiada por um passado onde não estive, mas que habitava minhas células. Visitávamos os mortos para festejar suas vidas. Meus avós que haviam morrido quando meu pai era pequeno, minha tia fulminada por um raio, quando dormia numa cama de ferro entre duas irmãs, a outra tia que morrera criança quando uma vizinha lhe dera uma colher de querosene para melhorar de uma dor de estômago. E assim até chegar ao meu túmulo-história preferido.

O de Luzia de Figueiredo Neves, a primeira professora do meu pai. Nunca se passou um dia de finados sem que meu pai, filho de analfabetos, levasse flores ao túmulo dela. Aprendi ali, que fora aquela mulher solitária, filha do amor ilícito de uma escrava com o filho do dono da fazenda, que abrira para todos nós o mundo das letras. Diante do túmulo dela, as lágrimas que eu me recusara a derramar e que de mim eram esperadas no outro cemitério, enchiam meus olhos e rolavam alegremente pelas minhas sardas. Eu amava Luzia, essa mulher com nome de destino, que dera luz ao meu pai, aos seus filhos, aos netos que ele ainda teria. E até hoje visito o túmulo da professora Luzia sempre que passo por lá. Tenho lá minhas conversas com ela. E minhas gratidões.

Não foi difícil concluir onde eu queria ser enterrada. E assim despachei meu pai para o Barreiro, com a missão especial de negociar meu lugar no cemitério. Por telefone, ele me anunciou que havia vagas, mas que o preço tinha dobrado: de R$ 5 para R$ 10 por ano. Fechei logo o negócio. Como manda a etiqueta, em novembro comprei uma vaca por R$ 600 e doei à festa da padroeira, Nossa Senhora da Conceição. Em troca de uma vaca que virou churrasco, já tenho onde cair morta.

No início de fevereiro, tirei uns dias de férias para acertar os últimos detalhes da minha morte. Fui ao cemitério escolher minha cova. Meu primo Gilberto havia oferecido alguns lugares mais nobres, bem no centro, perto do portão de entrada. Recusei. Sempre fui uma mulher dos cantos. Havia outra vaga bacana, mas era perto de uma tia muito fofoqueira. Sou cética, em geral, mas achei que não custava me precaver e evitar uma condenação à falação eterna. Acabei escolhendo uma cova entre a cerca e a lavoura de soja, embaixo de uma árvore, com vizinhos desconhecidos, mas que pareciam boa gente.

Por parte de mãe, venho de uma família de mortos que andam. Quando a gente menos esperava, minha tia Emi gritava para o nada: “Graúna (nome do meu tio-avô e de um passarinho preto)! Vai-te embora daí! Sempre te disse que não te queria andando ao meu redor depois de morto! Chispa!”. Falecido, e ela ainda mandava nele. As histórias de nossos mortos, contadas pela minha avó Terezinha, me deram a esperança de que ainda vou sair do meu túmulo para, finalmente, fazer umas visitas sem pressa. Quando me cansar do silêncio do cemitério de lomba do Barreiro, um lugarejo cada vez mais abandonado e sem gente, pretendo assombrar meus futuros netos com passos furtivos por suas casas. Espero que vivam em lugares interessantes.

Deixei instruções precisas, por escrito. Quero que sobre mim plantem flores que se regenerem, espero ter raízes se alimentando de meu corpo. E, se não for permitido me enterrar diretamente sobre a terra, quero um caixão de madeira que apodreça depressa. E nenhum material sintético. Desejo morrer ecológica, com as minhocas abrindo viadutos pelo meu corpo. Já disse a todos que amo que, se morrer a qualquer momento, podem chorar de saudade, mas não sintam pena de mim. Vivi intensamente o que me foi possível viver. Que sigam suas vidas, sem olhar para trás. Ou olhando só às vezes, para recosturar as histórias.

Sei que para muitos leitores meus planos de morte soarão como coisa de gente louca. Quando falo nisso, até amigos queridos mudam de assunto. E conhecidos me olham como se houvesse algo errado comigo. A morte é um tabu numa sociedade que a esconde no ambiente asséptico do hospital, esperançosa de um dia conquistar não só a vida, mas a juventude eterna. Mas eu escolhi a morte ensolarada de um cemitério de lomba na zona rural das minhas raízes, na esperança de que alguém mate uma galinha para alimentar meus descendentes no dia de finados. Sei que é pedir demais, mas eu ficaria feliz de saber que no meu velório fizeram uma festa, com muito chimarrão, muita pinga e muita comida gorda, como eu gosto, e contassem histórias sobre a minha vida. Espero morrer bem velha, povoada por rugas que traçam a geografia de minhas aventuras. Uma uva passa, consumida por uma existência vivida com verdade.

Alguns acham que sou mórbida. Estão enganados. Encarar a morte com naturalidade é o mais longe da morbidez que se pode estar. Só espero ter sabedoria para viver minha vida com intensidade até o último suspiro. E sabedoria para morrer, sem tentar espichar a vida nem abreviá-la. Não gostaria de morrer de repente, como tantos desejam. A curiosidade sempre moveu meus passos. Quando a morte chegar, não quero perder a única chance de olhar no seu olho. Quero saber o que é morrer. Quero me lambuzar de morte como me lambuzei de vida. Quero viver. Até o fim.

(Publicado na Revista Época em 02/11/2009)

Carta de adeus

Minha vida no primeiro ano de sua morte

Querida Ailce,
na semana que passou, acordei pensando em você. E, várias vezes por dia, me pegava com alguma cena sua na cabeça. Voltei à reportagem em que contei os últimos 115 dias de sua vida e percebi que completava um ano de sua morte. Você entrou no hospital para morrer em 15 de julho. Nesse dia, na cama asséptica do apartamento, você me pediu para tirar suas meias dos pés. Você nunca gostou de meias nos pés, sentia-se presa. E você não gostava de nada que lhe prendesse, porque muitas vezes se sentia aprisionada numa vida que não sonhou. Mas nos últimos tempos da doença, você sentia muito frio. Na cama do hospital, tirei suas meias e descobri que você estava morrendo com as unhas dos pés pintadas de cor de rosa. Dei um meio sorriso triste. Era tão você, morrer de unhas feitas. Quantas vezes me alertou que uma mulher só podia sair de casa bem vestida, maquiada, com brincos e de salto alto. Então, com os pequenos pés ao sol, você me olhou e disse: “Acho que a história que você está escrevendo sobre mim está chegando ao fim”.

Só naquele instante eu abarquei a grandeza do que você tinha me dado. Você permitiu que eu testemunhasse o fim da sua vida e contasse uma história que jamais leria. Você me deu a história de sua vida – e a de sua morte. Era minha a narrativa de sua existência, a marca escrita de sua passagem no mundo. Ninguém nunca havia confiado tanto em mim. “Eu vou escrever uma história linda sobre você”, eu disse. Foi nossa última conversa. Mais tarde, naquela mesma noite, você ainda acordou e perguntou se eu e o fotógrafo Marcelo Min havíamos comido. De novo, era tão você. Estar morrendo e preocupada se estávamos bem alimentados.

Era você a mulher que alimentava. A merendeira de escola que alimentou por décadas crianças famintas de comida e afeto nas escolas de periferia. O câncer – palavra que você nunca pronunciou – a impedia de comer, envenenava seu sangue. Então, você comia pela minha boca, me engordando com bolos e pães de queijo. E, dia após dia, enquanto lembrava dos cheiros da cozinha de sua mãe, no interior de Minas Gerais, me transmitia receitas, lambuzando-se de recordações. Naquelas conversas telefônicas de cada dia, você na sua casa, eu na revista, comíamos por lembranças. E, pelas suas memórias, minha vida povoou-se de sabores de um fogão de lenha desconhecido.

Na tarde de 18 de julho de 2008, seus olhos erraram pelo quadrilátero do quarto do hospital. Eram dois oceanos agitados de saudade salgada. Então a derradeira tempestade amainou e você fixou sua última cena.

No último sábado, completou-se um ano de sua morte. Eu comi uma feijoada por você. O arroz do restaurante estava como você gostava e, com paciência, me ensinou dezenas de vezes a preparar. A percepção de que a comida nos dá vida e metáforas foi algo que sempre nos uniu. Pela manhã, ao me vestir, eu hesitei diante de um par de tênis, tão mais confortável. Mas quando vi, estava enfiando nos pés um salto alto que você aprovaria. Por que você está tão arrumada?, amigos me perguntaram. Eu respondia com a metade de um sorriso secreto. Essa data era só nossa.

Ailce, aconteceu muito nesse ano. Um pouco mais até do que minha sanidade era capaz de suportar. Você sabe, a vida é sempre mais faminta do que supomos. Logo que a conheci, eu descobri que a narrativa da sua história seria a reportagem mais difícil da minha trajetória. Como fazer uma reportagem cujo fim era a sua morte? Só foi possível porque aprendemos a amar uma a outra. Você, a personagem de uma vida. Eu, a narradora de uma morte. Você morreu e eu contei a sua história. Apalpei cada palavra na busca daquelas que dessem a dimensão real de sua passagem pelo mundo. Como contadora de histórias reais, sempre que escrevo meu maior medo é reduzir a vida de alguém. Com você, essa preocupação pesava ainda mais sobre meus ombros doloridos, já que você nunca leria a escritura de sua vida. Eu precisava merecer em cada linha o poder amoroso que você tinha me dado.

Você acreditava em Deus, embora tenha brigado com ele em alguns momentos. Brigava porque acreditava. E porque não entendia como ele fora capaz de deixá-la morrer quando você finalmente planejara viver. Quando você havia jogado o relógio fora e dançava e viajava, os olhos bem abertos para não perder nada, devorando o ar em grandes bocados como se ele fosse acabar de repente. Espero que você esteja no lugar para onde acreditava ir. Eu, que sou bem mais cética, de algum jeito armei dentro de mim a convicção de que você leu meu texto e se reconheceu. Não há como saber se é uma fantasia que precisei criar. Só por essa vez, abracei o mistério sem questionar.

O que eu não adivinhava, Ailce, era que o luto por você seria tão prolongado. Eu sempre soube que não entramos na vida do outro impunemente. Sempre acreditei que uma reportagem só acontece, de verdade, quando transforma a vida do personagem e do narrador. Eu compreendia que ao entrar na sua vida você faria parte da minha para sempre. Ao contar sua história você estaria na minha. Mas eu não adivinhava que doeria tanto – e por tanto tempo.

Depois que você morreu, um caminhão atingiu o carro em que eu viajava, em seguida sofri um assalto com tiros e duas pessoas queridas receberam o diagnóstico de câncer. Em janeiro, perdi alguém que também amava, pela mesma doença. Em seguida, alguém que amo precisou me deixar. Seis meses depois de você morrer, eu não conseguia mais comer nem dormir. Perdi oito quilos. Eu estava encharcada de morte. Do fundo da minha fragilidade exposta, eu buscava sinais de que a vida persistia em algum canto. Mas era afogada pela névoa espessa dos tantos fins e quase-fins.

Em abril, retalhos de sol começaram a aparecer aqui e ali. E eu voltei a dormir uma noite inteira sem remédios. Eu havia entendido a grande lição que sua vida tinha me dado. Tinha compreendido o que sempre soube em teoria. Meses antes de conhecer você eu tive uma profunda experiência de meditação, em outra reportagem. A partir dela, comecei a viver a experiência, ao mesmo tempo brutal e libertadora, de que na vida só há uma certeza: a de que não temos nenhum controle. Mas essa, me parece, é a lição mais difícil de aprender. Pode levar uma existência inteira para entendermos a que talvez seja a maior de todas as verdades humanas. Ou podemos morrer sem alcançar a essência da matéria de que somos feitos.

A morte é essa falta de controle levada à máxima radicalidade. Qualquer pretensão de controle é ilusão. A vida é risco. Não há nenhuma garantia, como você aprendeu de forma tão dura. Apavorada com a doença, o acidente, o assalto, o abandono, a morte de quem amava, me parecia impossível dormir. Se acordada, vigilante, tudo isso acontecia à minha revelia, como eu poderia dormir? Toda vez que saía de casa me sentia na iminência de uma catástrofe.

A partir da sua morte, em seis meses todos os pesadelos de quem vive se materializaram em mim como vida vivida. Tomada de desespero, eu me agarrava a uma das tantas imagens famosas de Guimarães Rosa: “O correr da vida embrulha tudo. A vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem”.

Em alguns momentos dessa queda brutal no precipício da verdade, acho que até a coragem me faltou. Mas um dia, depois de tantas ilusões arrancadas de minhas entranhas como pedaços de onde brotava sangue vivo, eu finalmente entendi. A falta de controle sobre o vivido não é uma maldição. Ao contrário, ela nos liberta. Se não ficamos perdendo tempo tentando antecipar e planejar cada passo, podemos nos dedicar apenas a viver. Sem postergar, sem adiar, sem deixar para depois. Se é impossível controlar, para que gastar tempo tentando? O mais sensato é enfiar o pé no mundo, sabendo que vamos nos lambuzar. É a incerteza do que nos espera na próxima esquina o encanto da vida.

Analisei então, Ailce, os grandes e pequenos momentos da minha trajetória e descobri que os melhores capítulos haviam sido os inesperados, não os planejados. A filha que nasceu aos 15 anos, numa gravidez adolescente que tantos viram como tragédia, o professor que me mostrou que ser repórter era a melhor profissão do mundo quando eu já tinha decidido seguir outra profissão, o grande amor que apareceu numa festa que eu pretendia não ir porque estava com sono. Minhas melhores reportagens aconteceram quando tudo parecia dar errado. As histórias mais fascinantes que contei foram aquelas em que ouvi algo totalmente diferente do previsto. Se nos fechamos para o imprevisível, como a vida poderia ser menos do que um tédio? É o que ainda não sabemos, o que está para acontecer, que contém o germe da vida.

Quantas vezes não percebemos, depois de algum tempo, que a suposta catástrofe se revelou o melhor que poderia ter nos acontecido? Como a demissão de um emprego que detestávamos, mas achávamos que era preciso manter porque nos garantia segurança. O casamento que nos aniquilava, mas que pensávamos ter de segurar porque era garantido. A viagem de férias para o mesmo lugar para não nos arriscar nem mesmo à possibilidade de algo novo acontecer. Todas aquelas coisas que soam seguras, mas que matam nosso desejo.

O que aprendi com sua vida e sua morte, Ailce, é que a segurança não é uma bênção, é um perigo. Ter maturidade, tornar-se adulto, não é, como tantos dizem, acatar o manual, seguir o rebanho, fugir do risco. Ao contrário. A sabedoria é abraçar o risco, aceitar a impossibilidade de controlar a vida como possibilidade, compreender que só o inesperado pode nos levar a algum lugar. O planejado é o território do previsível, se já sabemos o que vai acontecer, qual é o sentido? O que ganhamos indo sempre ao mesmo lugar, do mesmo jeito, evitando qualquer surpresa? O melhor do humano é a capacidade de se espantar. É pelo espanto que tudo se inicia.

Na semana que passou, quando um tempo inconsciente assinalou dentro de mim o primeiro ano de sua morte, eu atendi ao chamado de uma reportagem daquelas impossíveis de prever o quanto vai exigir de mim. Bati na porta de uma vida e entrei num mundo que vai me revirar pelo avesso. Desde que vivi com você a sua morte, minha alma em carne viva tocava a dor do outro e recuava. Dava os primeiros passos e voltava para trás. Dentro de mim, as cicatrizes ainda eram frágeis e se abriam ao primeiro toque. No primeiro sinal de sangue, eu corria.

Precisei de muito mais tempo do que imaginava para viver meu luto por você, para aceitar a sua morte e todo o imponderável da minha vida que ela continha. Para entender, de verdade, a frase que você me disse no nosso primeiro encontro: “Quando eu tive tempo, descobri que meu tempo tinha acabado”.

Algo se libertou nessa semana dentro de mim. Você é parte da minha história, vive dentro de mim como de todas as pessoas que a amaram, nas células de todas as crianças que salvou da desnutrição. Mas agora vou me deixar viver – e deixar você partir. Parto também eu para todas as vidas possíveis que me esperam. De salto alto e batom vermelho, torcendo pelo desconhecido que me aguarda na virada de cada uma das esquinas do mundo.

Obrigada. Adeus.

(Publicado na Revista Época em 20/07/2009)

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