Sarney e Manezinho

Será que alguns são mais comuns do que outros? Não acredite em Lula

“Sarney tem história no Brasil suficiente para que não seja tratado como se fosse uma pessoa comum.”

Esta foi a frase mais terrível já dita por Lula desde que ele iniciou uma trajetória pública que deu esperança a milhões de pessoas comuns no Brasil. Para mim, 17 de junho de 2009, a data em que foi pronunciada essa sentença, lá do outro lado do mundo, no Cazaquistão, tornou-se histórica. Nela, o homem comum que chegou ao poder afirma que: 1) há brasileiros, como Sarney, que não são comuns; 2) porque seriam supostamente incomuns mereceriam tratamento diferenciado; 3) ser comum é desimportante.

É com essa frase – mais do que qualquer outra coisa que tenha dito ou feito – que Lula pisoteia sua extraordinária biografia. E, ao fazê-lo, esmaga 190 milhões de brasileiros comuns. Como muitos, eu sempre admirei Lula – antes mais do que até há pouco, é verdade. Na campanha presidencial de 2002, coube a mim fazer as reportagens sobre a vida de Lula e de sua grande família. Tive a alegria de conhecer todos os irmãos de Lula, os meio-irmãos, os primos, os tios, os amigos. Não só os irmãos que mais freqüentam as páginas da imprensa, como Frei Chico e Vavá, mas também outros, como Jaime, que trabalhava como metalúrgico, e Tiana, merendeira de escola. Eles são extraordinariamente comuns, como Lula e como todos nós.

O que Lula deu ao país como capital simbólico ao tornar-se presidente do Brasil era enorme. Vi nas ruas, fazendo reportagem, o aumento da auto-estima de brasileiros que até então acreditavam que ser comum era desimportante, que o poder não era para o homem comum. Gente que descobria, com Lula, que também era habitada pelo extraordinário. Grande, muito grande. E agora Lula diz essa frase. Ela mesma tão comum na boca das elites que precisavam se diferenciar para justificar seus desmandos e seus privilégios desde o Brasil colônia.

Todos esses dias eu esperei que Lula dissesse que errou, que pedisse desculpas públicas, que lembrasse de si mesmo como um homem comum, que merece tratamento de homem comum, como todas as pessoas que o elegeram e como todas as pessoas que não votaram nele, mas cujo país é governado por ele. Não aconteceu. Ao que parece, o pragmatismo do político prevaleceu sobre os ideais do homem comum.

Acho que vamos demorar muito tempo até conseguir alcançar não só o significado, mas as enormes consequências da mais terrível frase já pronunciada por Lula. Tão terrível porque ela destrói um valor simbólico que não pertence ao operário que virou presidente, mas, num momento histórico determinado, foi encarnado por ele. O de que ser comum não é banal, não é trivial, não é óbvio. O de que somos, sim, todos comuns e, ao mesmo tempo, extraordinários.

Comuns e singulares. Alguns mais bonitos, outros mais inteligentes, outros ainda engraçados. Alguns, como eu, não conseguem recortar um pedaço de papel em linha reta e derrubam sorvete na roupa, mas são capazes de escrever uma frase interessante. Há aqueles que tocam música ou pintam lindamente sem nunca ter estudado, os que cozinham com um tempero só deles, os que contam histórias sem saber ler nem escrever. Há de tudo, ainda bem.

Nunca encontrei ninguém que não fosse habitado pelo extraordinário. Mas só a igualdade permite que sejamos singulares cada um a sua maneira, só a igualdade concilia a enorme riqueza de nossos diferentes modos de ser e de estar no mundo. Essa é a diferença que nos aproxima. Não aquela, forjada, que nos afasta. A singularidade que nos permite perceber que, na beleza da nossa humanidade, somos mais iguais do que diferentes. Que a diferença serve para alargar a riqueza da nossa vida comum, em comum.

O que quero dizer aqui é: não acredite nessa frase de Lula.

Vou fazer a minha parte nesse ato cotidiano de resistência. E contar não a história de Sarney, mas a de Manezinho. Eu o conheci na mesma semana em que Lula pronunciou A frase. Não ele, mas os fragmentos do final de sua história. Fazia uma reportagem sobre a única família que resistiu à destruição da favela Jardim Edite, na Zona Sul de São Paulo. Uma única casinha pintada de azul em meio aos escombros que até o final de maio eram habitados por mais de 800 famílias, em meio ao que hoje é uma zona imobiliária em expansão, ao lado do mais novo cartão postal da capital paulista, a ponte estaiada. A matéria foi publicada neste site com o título de Marcão da Pipoca contra a expansão imobiliária.

Manezinho também morava ali. Separado da mulher e da filha, sozinho no seu barraco. Todo dia esse migrante nordestino puxava sua carrocinha, juntando sucata pela cidade. Sobrevivia disso. Seguidamente bebia além da conta, mas sem causar grandes incômodos. Quando a favela foi despejada, depois de uma longa batalha judicial e de um acordo entre a prefeitura e a associação de moradores, Manezinho disse: “Só saio daqui morto”. Era uma frase de efeito. Virou destino.

Num dia de maio, Manezinho estava sentado diante de seu barraco, enquanto as máquinas destruíam a favela. Avistou uma calha de latão. Foi pegá-la para vender ao ferro-velho. Um muro inseguro, como muitas das ruínas ali, desabou sobre ele. Manezinho foi socorrido por Marcão da Pipoca, seu filho e os trabalhadores da empreiteira. Ainda disse: “Eu pedi”. Talvez, confuso, tenha achado que a dor se devia a um castigo por ter pegado a telha. Não sei. Manezinho morreu. Enquanto era enterrado no Cemitério São Luiz, “num caixão bonito pago pela empreiteira”, como diz Marcão da Pipoca, o barraco de Manezinho foi demolido pelos homens e pelas máquinas. Não havia mais nada dele no mundo.

Tudo isso se passou atrás da montanha de terra em que se transformou a favela. Da bela ponte estaiada, nada se vê. A demolição de centenas de casas, rotinas de vida, sonhos de gente, é sempre uma morte simbólica. A de Manezinho foi literal. Mas quase ninguém viu. Menos ainda ligou. Tentei descobrir na internet o que sites ligados ao Jardim Edite diziam sobre Manezinho. Em um dos poucos que faziam referência a sua morte, ele era um bêbado sem nome. Como se o alcoolismo de Manezinho justificasse que um muro desabasse sobre ele, sepultando sua vida. Uma das lideranças comunitárias mais importantes disse que “coisas assim acontecem”. Ninguém quer “criar caso”, à espera do conjunto habitacional que a prefeitura prometeu construir ali para apenas 240 das mais de 800 famílias.

Entre Sarney e Manezinho há muitas diferenças. A mais simbólica delas não é a de que Manezinho era um homem comum e Sarney supostamente não seja. Mas a de que a Manezinho foi oferecido R$ 8 mil pela sua única casa ou R$ 500 de aluguel por dez meses. E a Sarney era dado, irregularmente, R$ 3,8 mil de auxílio-moradia todo mês, mesmo ele tendo casa fixa em Brasília.

Da frase de Lula pode-se inferir que algumas mortes são menos importantes que outras. Algumas mortes são visíveis, outras não. Por quê? Porque algumas vidas supostamente valeriam mais a pena do que outras. Algumas vidas seriam supostamente mais importantes do que outras.

Não acreditemos nisso. Meu ato de resistência é devolver a Manezinho não a sua vida, porque isso é impossível, mas a história de sua vida. Me comprometo aqui a resgatá-la. E contá-la nessa coluna. Se você puder ajudar, se souber algum detalhe, uma informação que seja, sobre Manezinho, me ajude, escreva nesse espaço ou me envie um email.

Toda vida é comum, toda vida é extraordinária. Toda vida vale a pena.

O fotógrafo Marcelo Min enviou duas fotos de Manezinho. Agora ele já tem, pelo menos, uma imagem

O fotógrafo Marcelo Min enviou duas fotos de Manezinho. Agora ele já tem, pelo menos, uma imagem

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(Publicado na Revista Época em 22/06/2009)

Como medimos nossa vida?

A lei antifumo de José Serra, que vai proibir o cigarro em quase todos os ambientes fechados do estado de São Paulo, me faz pensar na medida da vida. O cigarro faz mal, causa câncer e outras doenças, o tratamento custa dinheiro público do SUS, sem contar o inventário de mortes. Bani-lo dos bares e restaurantes, dos locais de trabalho, de quase tudo menos a casa do fumante (por enquanto), em tese é pensar na defesa da vida. É também estar adequado a esses tempos em que a saúde tornou-se um valor absoluto para uma espécie que lida de forma cada vez pior com a certeza da morte.

A questão que a lei evoca em mim, porém, é outra. É a da vida condenada não pela doença, mas pela saúde. A cada manhã, fingimos que nunca vamos morrer. Queremos esticar a vida a qualquer preço – e não apenas a vida, mas a juventude. Envelhecer e morrer nos aterroriza. As cirurgias plásticas, os cosméticos, as vitaminas, os medicamentos ortomoleculares, os alimentos orgânicos, os lights e os diets, as academias movimentam uma gigantesca indústria alimentada pelo nosso medo da decadência e do fim. Crescem e multiplicam-se pela força de nossa ilusão de que a velhice e a morte podem ser burladas.

Um número cada vez maior de pessoas consome seus dias numa rotina de cuidados para preservar saúde e juventude. Exercícios e pílulas. Cremes e vitaminas. Alimentos orgânicos. Carnes margas. Nada de fritura. Mais exercícios. Cigarro, jamais. Álcool, cada vez menos. Ovos, consulte a pesquisa do momento. Gorduras trans, fuja.

Tomamos todos os cuidados, olhando para os lados para nos assegurar que o fim não nos espreita. Sempre com medo de que a doença, a decrepitude e a morte nos descubra distraídos em alguma esquina de prazer roubado. Quando transgredimos, nos sentimos culpados, algo catastrófico vai nos acontecer. Seremos punidos pela nossa ousadia de nos entupir de chocolate ou nos exceder no bar. Corremos para o espelho para ver quantas gramas aumentamos ou se não surgiu uma ruga nova. Estamos mais velhos? Estamos mais mortos? – é o que perguntamos o tempo todo, mesmo que não pronunciemos a palavra fatal.

Mas será que temos de não viver para viver? Ou melhor: qual é a medida da vida?

Há pouco tempo, revi o filme sobre a trajetória do Cazuza – Cazuza, o tempo não pára (2004.) Herói dos anos 80, Cazuza contraria todos os valores de uma vida plena de saúde física. Nada mais distante de Cazuza do que essa cidadania cheia de proibições. Aquele que talvez tenha sido, como disse Caetano Veloso, o maior poeta de sua geração, morreu jovem, de Aids, ao fim de uma vida de muito sexo, álcool, drogas, amores e poesia. Mas não foi essa morte precoce que me impactou. E sim a intensidade de sua vida. É a vida de Cazuza – e não a morte – que evoca perguntas e inquietação.

Fiquei pensando sobre o que esse anti-herói teria a nos dizer nesses tempos obstinados pela saúde. Percebi que, com sua vida intensamente vivida, Cazuza questiona um valor que nos é muito caro: a duração da vida. Não é por acaso que diante de uma doença sem chances de cura as pessoas tentam esticar a vida a qualquer preço, submetendo-se a todo tipo de tratamento invasivo, doloroso e alienante. Submetem-se à imagem clássica do doente furado por agulhas, amarrado a tubos, privado de sua própria morte, por consequência privado de sua vida na última cena.

Esse é só o desfecho, na morte, de um valor que regeu a vida inteira daquela pessoa. Esticamos o comprimento da vida pela vida toda – e não apenas na doença. Não é essa a questão do momento? Proibir o fumo não é um pouco isso? Eliminar as gorduras trans não é um pouco isso? Evitar qualquer excesso não é um pouco isso?

Diante de nossa vida longa, Cazuza nos confronta com sua vida breve. O que Cazuza faz, ao nos confrontar com sua poesia contundente também na literalidade dos dias vividos, é propor um outro valor para medir a vida: não mais o comprimento da vida, mas a largura. Quando assisto ao filme de sua vida, o que vejo não é uma vida desperdiçada, mas uma vida sem um segundo desperdiçado.

Cazuza aponta seu dedo atrevido para a nossa vida condenada não pela doença, mas pela saúde. Para a nossa vida que não bebe, não fuma, corre quilômetros numa esteira sem chegar a lugar algum, não come feijoada nem churrasco por causa do colesterol, dorme pouco e trabalha a maior parte do tempo em que está acordado para poder comprar todos aqueles artigos de consumo que supostamente vão tapar o buraco existencial deixado por essa vida sem vida.

A vida que nossa sociedade propõe como um valor é uma vida com saúde. E com uma compreensão do que é saúde determinada por contingências históricas – e mercadológicas. Mas pagamos caro por essa vida que nos prometem longa. Talvez seja uma longa vida sem vida mesmo antes da doença e da morte. E aí, sim, diante da doença e da morte é preciso, de novo, espichar a vida a qualquer preço porque não fomos capazes de alargar a vida quando tínhamos saúde.

E com isso não estou defendendo que tenhamos todos de nos matar de overdose numa grande orgia sexual. Muito menos fumar até aparecer um câncer no pulmão. O conceito de intensidade só pode ser dado por cada um de nós. Como vivemos nossa vida – ou nossa morte – é livre arbítrio. Apenas, talvez, podemos parar para pensar com qual medida queremos viver a nossa vida desde já. O comprimento ou a largura?

(Publicado na Revista Época em 20/04/2009)

A lista de Aracy

Enquanto namorava Guimarães Rosa, ela enganou a diplomacia de Getúlio Vargas para salvar dezenas de judeus na Segunda Guerra Mundial

Eliane Brum (texto) e Frederic Jean (fotos)

O ANJO DE HAMBURGO Funcionária do consulado brasileiro, Aracy Moebius de Carvalho Guimarães Rosa arriscou a vida para salvar judeus na Segunda Guerra Mundial. Em 20 de abril, ela completará 1 século

O ANJO DE HAMBURGO
Funcionária do consulado brasileiro, Aracy Moebius de Carvalho Guimarães Rosa arriscou a vida para salvar judeus na Segunda Guerra Mundial. Em 20 de abril, ela completará 1 século

Adolf Hitler queria matar Günter Heilborn. Se tivesse conseguido, Luiza, de 4 anos, não contaria histórias mirabolantes para a família com ares de heroína trágica, Marina não teria criado uma taturana para descobrir como ela virava borboleta e Juliana, ao ouvir uma amiga da mãe dizer que era baiana, não teria declarado: “Eu sou mamífera”. Não teria existido futuro para Günter. E não haveria presente para suas bisnetas trigêmeas. O assassinato num campo de extermínio poderia ter interrompido não apenas a história de Günter, mas toda a teia de acontecimentos, piqueniques, lágrimas, dentes de leite, decepções, joelhos esfolados e perguntas sem resposta que sua vida gerou.

É com essa fita métrica que a História vai medir a estatura de Aracy Moebius de Carvalho Guimarães Rosa, a funcionária do consulado brasileiro em Hamburgo que enganou a diplomacia de Getúlio Vargas para ajudar dezenas de judeus a conseguir vistos para fugir da perseguição nazista na Segunda Guerra Mundial. Ela completará 100 anos no domingo 20 de abril. Separados em tudo, Aracy e Hitler compartilham a mesma data de aniversário. Quando ela nasceu, a mais de 10.000 quilômetros da Alemanha, em Rio Negro, no Paraná, ele completava 19 anos e sonhava em ser artista. Décadas mais tarde, ela viria a tornar-se o anjo de Hamburgo. Ele, o carrasco de 6 milhões de judeus. Em meio ao horror inventado por ele, Aracy descobriu quem era ela.

O que faz alguém decidir que o único modo de salvar também a si mesma é desobedecer a ordens que prometeu cumprir? Que para ser uma boa pessoa é preciso ser uma má funcionária? A mulher sentada numa poltrona do apartamento do filho, em São Paulo, não pode mais responder. Ela sofre de Alzheimer. Os fios de sua memória são como um novelo que escorregou do colo e se perdeu.

Quando a trajetória de Aracy cruzou a de Günter, ela era jovem. E era linda. E não era vista com bons olhos. Em 1934, Aracy era uma mulher desquitada. Naquela época, para a maioria das mulheres, o máximo de ousadia era comprar um fogão a gás. Filha de uma imigrante alemã, Aracy pegou o filho de 5 anos pela mão e embarcou num navio para a Alemanha. Tinha 26 anos, era fluente em várias línguas e decidira ser a dona de sua história.

A vitória da vida Karl Franken sobreviveu a Hitler graças a Aracy. No Brasil, ele encontrou outra fugitiva do nazismo, Gertraud (acima, ela segura sua foto). E com ela Karl iniciou uma família...

A vitória da vida
Karl Franken sobreviveu a Hitler graças a Aracy. No Brasil, ele encontrou outra fugitiva do nazismo, Gertraud (acima, ela segura sua foto). E com ela Karl iniciou uma família…

Depois de uma temporada na casa de uma tia, Aracy conseguiu emprego no consulado brasileiro em Hamburgo. Os judeus haviam sido expulsos de universidades, repartições públicas e do Exército. Foram obrigados a entregar seus negócios a arianos. Do Itamaraty eram desferidas “circulares secretas” para embaixadas e consulados. Nelas, a ordem era dificultar a entrada de judeus no Brasil. O Estado Novo de Vargas flertava com o nazismo.

O dentista Günter Heilborn não conhecia nem Aracy nem o Brasil. No fim de 1938, ele foi preso num campo de concentração com milhares de homens judeus. Para não morrer de fome, contou à família que tinha de comer as próprias fezes. Enquanto Günter padecia em Buchenwald, Aracy fazia sua escolha. Com a ajuda de Hardner, antigo guarda civil e proprietário da auto-escola onde aprendera a dirigir seu Opel Olympia, ela forjava atestados de residência falsos para que judeus de qualquer parte da Alemanha pudessem pedir vistos em Hamburgo. Conseguia também passaportes sem o J vermelho que assinalava os documentos. Misturava os pedidos à papelada que levava ao cônsul. Ele assinava os vistos, possivelmente sem saber que despachava judeus para o Brasil.

Parece fácil fazer a coisa certa. Mas só é fácil para quem vê os fatos iluminados pelo julgamento da História. Aracy era uma mulher sozinha com um filho pequeno num país à beira da guerra. Suas ordens eram fechar a porta para os judeus. Anos atrás, quando lhe perguntaram por que fez o que fez, ela disse: “Porque era o justo”. Em 1982, Aracy foi reconhecida como “Justa entre as Nações”, título conferido pelo Museu do Holocausto, em Jerusalém, aos não-judeus que arriscaram sua vida na Segunda Guerra Mundial para salvar a de judeus. Seu nome figura ao lado de Oskar Schindler e do então embaixador do Brasil em Paris, Luiz Martins de Souza Dantas, outro brasileiro entre as 22 mil pessoas que já receberam a homenagem.

Inge, a noiva de Günter, ouviu rumores sobre o “anjo de Hamburgo”. Naquele momento, ainda era possível conseguir a libertação de judeus que tivessem vistos para deixar a Alemanha. Os nazistas se contentavam em vê-los longe. Em breve, só se satisfariam com eles mortos.

O difícil era conseguir um visto. Na sala do consulado, Inge juntou-se a dezenas de judeus que haviam batido em muitas portas diplomáticas sem conseguir abri-las. Aracy aconselhou Inge a trocar os passaportes de suas cidades – Breslau e Gleiwitz – pelos de Hamburgo para que pudesse ajudá-los. Inge pode ter cruzado ali com Grete e Max Callmann, acuados num canto da sala. “Eu me lembro como se fosse ontem”, diz Grete. “Meu marido viajou para todas as cidades da Alemanha onde existia consulado do Brasil e dos Estados Unidos. Um dia me ligou dizendo que havia chance em Hamburgo. No dia seguinte, estávamos num canto, esperando nossa vez na sala cheia. De repente, uma moça nos chamou. Era a dona Aracy. Ela nos arrumou visto para viajar para o Brasil. Nós quisemos pagar. Mas ela disse: ‘Vocês não me devem nada’.” Na noite de 9 de novembro de 1938, Grete era recém-casada com Max, 22 anos mais velho. Ele havia sido diretor de uma grande loja de departamentos. Como todos os judeus, perdera o posto por um decreto nazista. Sobreviviam agora com uma fábrica de aventais. Grete não conseguia dormir porque Max roncava. Pegou travesseiro e cobertor e transferiu-se para o sofá da sala. “Acordei às 5 horas da madrugada, com um barulho terrível na rua. Os nazistas quebraram tudo o que era de vidro, as janelas das lojas”, diz. Ela sacudiu o marido: “Algo muito ruim está acontecendo”. No dia seguinte, o mundo saberia que os nazistas haviam assassinado dezenas de judeus, incendiado, saqueado e destruído sinagogas, lojas e empresas hebraicas, confinado quase 30 mil homens em campos de concentração. A “Noite dos Cristais” inaugurou o que a História chamaria de Holocausto.

Karl Franken, funcionário de uma loja de roupas para senhoras em Hamburgo, embarcou às pressas num trem para Essen. Pretendia se esconder na casa da mãe. Quando se acomodou numa mesa do vagão-restaurante para jantar, havia ainda um lugar vago. Minutos depois, sentou-se diante dele um oficial da SS. Karl ouviu impassível o nazista discursar. “Foi a única vez na minha vida que tive de levantar e estender a mão. Tive de fazer Heil Hitler”, disse a ÉPOCA, pouco antes de morrer. Tinha 99 anos e ainda vivia a insanidade daquele momento.

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‘‘O que Aracy significou para nós? A vida’’ Grete Callmann, de 94 anos, fugiu da Alemanha com o marido, Max, graças a um visto de Aracy

O oficial desceu em Bremen sem desconfiar que o jovem alto, olhos azuis, era judeu. Essa história será contada em um livro do Núcleo de História Oral Gaby Becker, do Arquivo Histórico Judaico Brasileiro. Karl escapou e, com a ajuda de Aracy, embarcou no vapor Cap Norte com 10 marcos no bolso. Seu pai, o alfaiate Alex Franken, morrera em Verdun, na França, combatendo pela Alemanha na mais longa batalha da Primeira Guerra Mundial. Em Moers, sua cidade natal, uma placa saudava-o como herói.

Com o visto dado por Aracy, Inge arrancou Günter do campo de concentração. Casaram-se antes de embarcar para o Brasil no navio Monte Sarmiento. A noiva estava de preto – um luto profético. Para muitos, partir significava viver, mas abandonar os pais para morrer. “No trem para Hamburgo, vi pela janela minha mãe quase desmaiar”, diz Grete. “Foi a última vez que eu a vi.” Aos 94 anos, Grete chora sem soluçar. Suas lágrimas deslizam com a mansidão de quem nunca parou de chorar.
Enquanto o povo alemão envergonhava a si mesmo, Aracy desobedecia ao cônsul-geral, Joaquim Antônio de Souza Ribeiro. E apaixonava-se pelo adjunto, João Guimarães Rosa. O jovem diplomata ancorou na Alemanha em maio de 1938. Tinha 30 anos, trocara a medicina pela diplomacia, havia vencido um concurso literário e perdido outro. No Brasil, deixara sua primeira mulher, Lygia, e as duas filhas, Vilma e Agnes.

Aracy era uma morena com mais curvas que o Reno, capaz de fazer os alemães gingar ao virar a cabeça para vê-la passar a caminho do consulado. Para sorte dos judeus, também tinha uma personalidade capaz de azedar um Apfelstrudel. Um dia deu uma bronca tão grande num policial que queria revistá-la que ele se encolheu diante de sua baixa estatura. Aracy, então, atravessou calmamente a fronteira com um judeu no porta-malas do carro.

ROMANCE DE NÃO-FICÇÃO Para Aracy, Guimarães Rosa escreveu mais de uma centena de cartas de amor

ROMANCE DE NÃO-FICÇÃO
Para Aracy, Guimarães Rosa escreveu mais de uma centena de cartas de amor

Entre 1938 e 1942, Rosa registrou as impressões de um diplomata brasileiro na Alemanha nazista. No diário, ele é contundente ao narrar a perseguição aos judeus – e parcimonioso nas referências ao romance com Aracy: apenas 16 menções. Mesmo assim, a publicação desse diário é barrada pelas filhas do escritor. Agnes e Vilma desejariam reduzir o tamanho de Aracy na biografia do pai. Procuradas, não quiseram dar entrevista.

O romance está bem documentado nas cartas que “Joãozinho” escreveu para “Ara”. “Deixa que eu diga que você estava linda, linda, na hora de partir. (…) Dormi abraçado com a camisolinha cor-de-rosa, toda impregnada do aroma do corpo maravilhoso da dona de meu amor. (…) Serei absolutamente fiel, não olhando para as alemãzinhas, as quais, por sinal, todas viraram sapos!”, escreveu em 24 de agosto de 1938.

A declaração integra um acervo de 107 cartas e 44 cartões, bilhetes e telegramas escritos por ele. Com base no material, as historiadoras Neuma Cavalcante e Elza Miné preparam uma biografia de Aracy. Rosa registrou sem pudor quanto era feliz aos pés de Aracy – pés que eram objeto de fetiche. “Agora vou para a cama, para dormir com a camisolinha cor-de-rosa, depois de conversar um pouco com os chinelinhos chineses, que me falarão dos lindos pezinhos da sua dona”, escreveu no dia seguinte.

Enquanto a Alemanha se incinerava em ódio, Ara e Joãozinho queimavam de amor. O que em nada atrapalhou as atividades subversivas de Aracy. O casal nunca viveu debaixo do mesmo teto em Hamburgo. Ela chegou a esconder judeus em casa. “Ele dizia que eu exagerava, mas não se metia muito”, contou Aracy, anos atrás. “Nunca tive medo de nada nem de ninguém.”

Getúlio Vargas passou os primeiros anos da guerra fazendo um agrado ao Eixo pela manhã, piscando para os Aliados à tarde. O ataque japonês a Pearl Harbor derrubou-o do muro. Em janeiro de 1942, o Brasil rompeu relações com o Eixo. Rosa e Aracy foram confinados no balneário de Baden-Baden por quatro meses. Na viagem de volta ao Brasil, casaram-se por procuração no México. Em quase 30 anos ao lado de Aracy, Rosa inventou um mundo e reinventou a língua portuguesa. Ao lançar sua obra-prima, Grande Sertão: veredas, escreveu: “A Aracy, minha mulher, Ara, pertence este livro”.

Quando Rosa e Aracy desembarcaram no Brasil, a filha mais velha de Günter e Inge começava a falar. Deram a ela o nome da mulher que lhes deu uma segunda vida. A pequena Marion Aracy só falava em alemão – e o governo havia proibido o uso do idioma. “Eu quero descer do bonde”, gritava a menina na língua do Führer. E Günter precisava fugir correndo com a filha no colo. Se fosse preso, só poderia dizer em alemão que também não gostava de Hitler.

A solteirice de Karl Franken durou pouco no Brasil. Logo se encantou por uma fugitiva do nazismo, Gertraud. O primeiro dos três filhos nasceu no ano em que o Brasil declarou guerra à Alemanha. Karl trabalharia por toda a vida na mesma empresa, a Mueller, de brinquedos e botões. Ele e Gertraud se tornariam uma referência na história da Congregação Israelita Paulista.

A única jóia que Grete Callmann conseguiu trazer foi roubada pelos funcionários brasileiros quando o navio ancorou no Rio de Janeiro, em fevereiro de 1939. Era seu anel de casamento. Grete era pianista. Tinha estudado desde os 6 anos para interpretar Beethoven, Mozart, até Wagner, conhecido por ter sido o compositor preferido dos nazistas. “Quando chegamos, eu sentia em mim todas as doenças que existem. Mas os médicos não encontravam nada”, diz. “Era medo.”

Quando as cartas da Alemanha chegavam, Grete tremia tanto que não conseguia ler. Seus pais estavam num campo de concentração. Ela sabia que um dia as cartas se calariam. Quando a guerra acabou, em 1945, a Alemanha estava coberta de cinzas humanas. Hitler teria dado um tiro na cabeça. Vargas foi deposto. Ao apoiar a democracia lá fora, não dava mais para manter a ditadura aqui. Karl Franken, Grete e Max Callmann, Günter e Inge Heilborn estavam vivos. Assim como as dezenas de judeus salvos por Aracy.

O RECOMEÇO Karl e Gertraud casaram-se no Brasil e iniciaram a família ao lado: três netos e três bisnetos não estão na foto porque vivem em Israel

O RECOMEÇO
Karl e Gertraud casaram-se no Brasil e iniciaram a família ao lado: três netos e três bisnetos não estão na foto porque vivem em Israel

…Karl e Gertraud tiveram três filhos. Da esq. para a dir., Arnaldo, casado com Rosana, Claudio, com Tamara, e Roberto, com Siona…

…Karl e Gertraud tiveram três filhos. Da esq. para a dir., Arnaldo, casado com Rosana, Claudio, com Tamara, e Roberto, com Siona…

...Nos anos 70, Karl e Gertraud tiveram os primeiros dos nove netos. Alguns deles se casaram e....

…Nos anos 70, Karl e Gertraud tiveram os primeiros dos nove netos. Alguns deles se casaram e….

aracy bisnetos

…lhes deram cinco bisnetos. A seqüência de fotos da família Franken foi feita uma semana após a morte de Karl. É uma homenagem a ele e a Aracy

Quando a guerra acabou, Grete soube que os pais estavam mortos. Karl descobriu que pouco tinha restado da família. Günter e Inge foram informados de que seus pais tinham sido incinerados. Os “judeus de Aracy” teriam de viver num país tropical, do outro lado do Atlântico com essa herança. Viver era sua vingança. E foi o que fizeram.

Günter e Inge tiveram três filhos – Marion Aracy, Miguel e Ruth – durante a guerra. Günter levou uma década para ter reconhecido seu diploma de dentista. Nos primeiros anos, sustentou a família com a ajuda de prostitutas. Tratava os dentes das mulheres num quartinho de prostíbulo. Quando um policial aparecia, elas diziam que o quarto era usado para fins comerciais. Inge costurou para fora, teve malharia, fez congelados, criou uma colônia de férias em Campos do Jordão. Parecia suportar melhor o peso da vida partida, sorria mais. Günter proibiu o filho de usar marrom, cor do terno que vestia quando foi preso pelos nazistas. Nunca teve bigode. Era chamado pelos netos de “biblioteca ambulante”, porque discorria sobre qualquer tema, de mitologia grega a botânica. Menos sobre o Holocausto.

Em 19 de novembro de 1967, Vera Tess, a neta preferida de Guimarães Rosa, buscava o avô em passos claudicantes pelo apartamento do Rio. Encontrou-o no escritório, tendo um infarto. Aracy perdeu seu grande amor, mas não perdeu a si mesma. No fim de 1968, Geraldo Vandré começou a ser perseguido pelo regime porque a canção “Caminhando” virou um hino de protesto contra a ditadura. Enquanto a repressão o caçava, Vandré compunha, todo refestelado num sofá do apartamento de Aracy.

O prédio era repleto de oficiais e tinha vista para o Forte de Copacabana. Os netos de Aracy, que passavam as férias no Rio, foram incumbidos pela avó de alertar sobre qualquer movimento verde-oliva. Vandré ficou por lá tocando violão, jogando conversa fora. Depois viajou para São Paulo numa Kombi, com o neto mais velho de Aracy, Eduardo Tess Filho. E de lá para o exílio.

Karl Franken morreu no último dia 1o de março. Faltavam menos de seis meses para completar 1 século. Anos atrás, ele voltou à Alemanha. Não encontrou a placa que homenageava seu pai como herói de guerra. Karl Franken afirmou a ÉPOCA, cinco dias antes de morrer: “Eu sou só brasileiro”.

Günter Heilborn criou uma espécie nova de orquídea. Deu a ela o nome de sua mãe, queimada num forno crematório. Selma tinha pétalas brancas e amarelas. Günter apoderou-se por completo da vida que Hitler queria tomar. Morreu quando quis, em 1992. Inge o seguiu em 2000. Todas as tardes, ele e Inge sentavam-se para ouvir música clássica. Jamais ouviram Wagner. E nunca viram filmes sobre o Holocausto.

Grete Callmann tentou ver um filme sobre o nazismo. Começou a gritar dentro do cinema. Não voltou. Quando seu marido morreu, Grete comprou um piano usado. Seus dedos já não reconheciam as teclas. Aos 94 anos, Grete liga seu radinho ao acordar e atravessa o dia embalada por pianistas cuja vida não foi interrompida.

Aos 80 anos, Aracy acabara de retirar dinheiro no banco quando tentaram lhe arrancar a bolsa. Deu tantas bolsadas no ladrão que o deixou estirado na calçada de Nossa Senhora de Copacabana. De lá para cá, a cidade que mais amava no mundo foi se tornando campo minado também para ela. E com relutância, bem devagar, Aracy foi aceitando São Paulo. Nos últimos anos, enquanto saboreava um cigarro, foi cortando um a um os fios que a ligavam ao mundo de fora. Um dia levantou âncora e partiu inteira para dentro de si mesma.

Aos 4 anos, as bisnetas trigêmeas de Günter Heilborn queriam saber por que posavam para fotos. A mãe explicou: “Homens muito maus prenderam seu bisavô, e uma moça muito boa, chamada Aracy, ajudou ele a fugir. Em homenagem a ela, a vovó se chama Aracy”. E por que prenderam?, foi a pergunta seguinte. “Porque não aceitavam que eles eram diferentes.” A família se uniu então no exercício de lembrar de todas as pessoas de diferentes “cores, crenças, tipos e tamanhos” que amavam.

Aracy Guimarães Rosa esqueceu-se de si mesma, mas jamais será esquecida.

O legado de Aracy

POR UM TRIZ Com o visto, Inge tirou Günter do campo de concentração

POR UM TRIZ
Com o visto, Inge tirou Günter do campo de concentração

Marion Aracy (sentada) é a filha mais velha de Günter e Inge Heilborn. Seu nome é uma homenagem à mulher que salvou a vida dos pais e tornou a sua possível. Ela teve dois filhos, Selma e Paulo. Selma (de azul), casada com Jorge (de listrado), teve as trigêmeas Marina, Juliana (de rosa) e Luiza (de braços cruzados) e Alexandre, de 2 anos. Paulo, casado com Ana Cintia, é pai de Carolina, de 3. “Sem Aracy, nem eu nem minha família existiríamos. Simplesmente não teríamos acontecido”, diz Paulo Heilborn.

aracy familia

Duas mulheres contra Hitler

Margarethe Bertel Levy e Aracy Moebius de Carvalho foram protagonistas de uma aventura cinematográfica na Alemanha nazista. Tornaram-se amigas para sempre

“Entre mim e Aracy foi um golpe de amor. Só que entre duas mulheres”, ela diz a ÉPOCA. Tem 99 anos, quase não caminha, não enxerga e não ouve. Mas a mente está límpida – o que faz do corpo uma prisão. Em nenhum momento sua situação vira lamúria. Maria Margarethe Bertel Levy prefere a auto-ironia. É uma mulher impressionante. Como sua grande amiga, Aracy. A aventura dessas duas mulheres extraordinárias na Alemanha nazista é um roteiro de cinema pronto.

“Eu era sexy”, ela diz. E Aracy? “Muito sexy, linda, provocante, um corpo maravilhoso, os moços saltavam.” Elas eram tudo isso mesmo. As fotos ao lado (Margarethe de chapéu, Aracy de ombros nus) documentam a afirmação. Conheceram-se porque Aracy precisou salvar Margarethe. Encontraram-se no consulado de Hamburgo, em 1938. Até hoje estão juntas. Margarethe visita Aracy, que não mais a reconhece. O filho único de Aracy, Eduardo, cuida de Margarethe, que é viúva e não quis ter filhos “porque gostava muito de viajar”.

Os muitos significados dessa amizade improvável são tema de investigação da historiadora Mônica Raisa Schpun, do Centro de Pesquisas sobre o Brasil Contemporâneo, da École des Hautes Études en Sciences Sociales, em Paris. “Enquanto as pessoas eram separadas pelo nazismo, essas duas mulheres se encontraram”, diz Mônica. “Sua amizade vai muito além de gratidão.” Sobre elas, Mônica publicou um artigo chamado “História de um happy end transatlântico”.

Margarethe pertencia a uma família rica e liberal. Aprendeu sete línguas viajando. Conheceu o marido, o dentista Hugo Levy, no consultório dele. Ela era sua bela paciente, 16 anos mais jovem. Margarethe e Hugo eram cidadãos do mundo. Quando o cerco nazista apertou, Margarethe procurou Aracy, que escondeu Hugo em casa. Depois, emprestou o carro diplomático para que Margarethe o levasse ao interior. Aracy incluiu uma observação nos documentos do casal: “Transformar em visto permanente na chegada”. Cobriu essas letras miúdas ao levar o visto para o cônsul assinar.

É nesse ponto que a história fica ainda mais cinematográfica. Uma rede de alemães – arianos – ajudou os Levys. Um dia, um oficial da SS, Zumkley, bateu na porta do consultório para contar que a mãe de Hugo salvou sua vida ao amamentá-lo. “Agora chegou a minha vez de salvá-lo”, disse. Zumkley avisou o momento certo de partir. Um paciente, Plambeck, escondeu Hugo em sua casa por 12 dias. Outro paciente, funcionário público, conseguiu convencer um colega a encarregá-lo da letra “L” e, assim, fez o inventário – subavaliado – do patrimônio dos Levys. Eles partiram para o Brasil com todos os bens, do consultório aos dois cachorros. Um terceiro paciente garantiu a eles o conforto de quatro cabines no navio Cap Ancona.

Ao desembarcarem em São Paulo, com dinheiro e visto permanente, Margarethe e Hugo integraram-se logo ao Brasil. Margarethe, porém, não escapou da tragédia. “Pegaram minha mãe em Varsóvia. Puseram minha mãe no forno. Ela queimou”, diz. Margarethe crava uns olhos perfurantes, que ela jura que não enxergam direito, e diz: “Com o tempo, a gente não esquece”.

Aracy foi uma católica fervorosa. Margarethe, uma judia sem religião. “Eu não tenho esse apoio. Nasci judia e vou morrer judia, mas não sei nada de religião”, diz. Seu testemunho foi decisivo para que Aracy ocupasse seu lugar histórico no Museu do Holocausto, em Israel. Margarethe ainda visita Aracy, mas não consegue alcançá-la. Aracy esqueceu-se dela. À beira dos 100 anos, as duas mulheres e sua extraordinária amizade só resistem na memória de uma delas.

‘‘Com o tempo, a gente não esquece’’ Acima, as duas amigas quando jovens: Margarethe, à esquerda, e Aracy, à direita Margarethe Levy, de 99 anos.

‘‘Com o tempo, a gente não esquece’’
Acima, as duas amigas quando jovens: Margarethe, à esquerda, e Aracy, à direita Margarethe Levy, de 99 anos.

(Publicado na Revista Época em 10/09/2008)

A mulher que alimentava

Fotos: Marcelo Min

Eliane Brum e Marcelo Min (fotos)

É tão estranho”, ela diz. “Passei a vida inteira batendo ponto, com horário pra tudo. Quando me aposentei, arranquei o relógio do pulso e joguei fora. Finalmente eu seria livre. Aí apareceu essa doença. Quando tive tempo, descobri que meu tempo tinha acabado”.

Ela está intrigada com essa traição da vida. Sua expressão é de perplexidade. Ailce de Oliveira Souza não é uma filósofa, é uma merendeira de escola. Toda sua vida havia sido de uma concretude às vezes brutal. E agora a morte chegava exigindo metáforas.

Lá fora faz sol, e os vizinhos vivem na primeira parte do poema de Manuel Bandeira. Quando o enterro passou/Os homens que se achavam no café/Tiraram o chapéu maquinalmente/Saudavam o morto distraídos/Estavam todos voltados para a vida/Absortos na vida/Confiantes na vida. Lá dentro, sentadas uma diante da outra, eu e ela vivemos o segundo ato. Um no entanto se descobriu num gesto largo e demorado/Olhando o esquife longamente/Este sabia que a vida é uma agitação feroz e sem finalidade/Que a vida é traição.

Ailce nunca deixou de se sentir traída por “essa doença”, como se expressa na maior parte das vezes, ou “o tumor”. Não pronuncia a palavra câncer. Quando nos conhecemos, em 26 de março, faz quase um ano que sua pele amarelara e ela se enchera de náuseas. Ailce se revolta contra Deus. É dele a traição.

Seu câncer é uma pedra no meio do caminho das vias biliares. O tumor obstrui a passagem e, sem ter por onde escoar, a bile é lançada no sangue, e a deixa inteira amarela. Quando ganha essa cor solar, Ailce ainda não tem 66 anos. E acredita viver o melhor tempo de sua vida. “Sem filhos, sem marido, aposentada, livre”, diz. Ela planeja conhecer as obras de Aleijadinho, nas cidades históricas de Minas Gerais, e a Espanha dos filmes de Sarita Montiel. Quando a paisagem passa veloz pela janela do ônibus, sente que está indo para um lugar que sempre quis, não importa o destino. “Você já reparou como a gente muda quando viaja? Parece que me liberto de tudo”.

Ailce anda de ônibus por todo lado, dança em bailes da terceira idade, vive um romance com um homem mais jovem. “Você acredita que, quanto mais eu danço, mais tenho vontade de dançar?” Ela dança sozinha pela liberdade de rodopiar pelo salão sem que ninguém a conduza. Sempre quis conduzir ela mesma sua vida. Escolhe seus passos no salão de baile enquanto suas células a traem no silêncio de seu corpo.

Se câncer é a palavra que não diz, liberdade é a palavra que repete. Ailce está presa, literalmente. Sua vida depende de duas mangueiras fincadas dentro dela. Elas drenam a bile para fora de seu corpo. O líquido amarelo escoa em dois recipientes de plástico que ela carrega numa sacola de supermercado nas andanças dentro de casa, numa bolsa decorada com as princesas da Disney quando passeia. Um dia um segurança olha feio para sua bolsa achando que ela está furtando produtos da prateleira. E devagar Ailce vai deixando de sair. Desliga a música dentro de casa. E não dança mais.

Estar presa a horroriza. Passou a vida esperneando para escapar de uma prisão metafórica. E agora está amarrada não aos fios invisíveis que a ligam às convenções do mundo, como a todos nós, mas às duas mangueiras de material sintético que drenam o rio poluído de seu interior. “A gente não vale nada. Olha o que sai de mim”.

Quando entrou na sala de cirurgia, achava que faria apenas um exame complicado. “Lembro que o médico cantava pra me acalmar. Não lembro a música. Eu dormi com a anestesia e quando voltei estava numa maca, no corredor. Eu sentia um frio muito grande. Tremia. Vi os drenos e descobri que estava presa”.

Ela logo descobre que sou um terceiro fio na vida dela. Ela nunca tinha falado muito de si mesma. Desse dreno de palavras ela gosta. “A gente fica guardando coisas por toda a vida. Quando eu falo, parece que elas vão se soltando dentro de mim. Me liberto”.

Ailce é uma mulher comum. Nunca pensou que sua vida dá um romance. Nem mesmo uma reportagem. Ela não alcançou o Pico do Everest, nem desvendou a espiral do DNA ou compôs uma sinfonia. Também não queimou sutiã em praça pública. Ailce viveu.

Na narrativa de sua história, ela começa a decifrar pequenas singularidades despercebidas numa existência em que o tempo foi devorado em turnos de trabalho. Ailce percebe que não há como dar sentido à morte, mas ela pode dar sentido à vida. Só assim poderá suportar a superfície fria de um fim que já toca com as mãos. Para viver tão perto da morte, ela precisa adivinhar a tessitura da vida. Do contrário, só lhe restam aquelas mangueiras sintéticas.

Ailce sempre desejou se “libertar” e, como muitos de nós, nunca conseguiu definir muito bem de quê. “Eu gosto de ir pra frente”, diz. Descobre então que terá de enfrentar não a Medicina, mas a Poesia: Temos, todos que vivemos/Uma vida que é vivida/E outra vida que é pensada/E a única vida que temos é essa que é dividida/Entre a verdadeira e a errada.

Intuitivamente ela sabe que sua sanidade depende de enfrentar o caos da vida, mais do que o da morte, que é só um ponto final em geral improvisado. E então, com esforço e não sem sofrimento, ela poderá se reconciliar com os pontos soltos, os padrões interrompidos, as costuras tortas da trama do vivido. Para ela, o mais difícil é aceitar que alguns bordados ficarão por fazer. Ou, pior, serão tecidos sem ela.

Ela é a quarta filha de nove, a penúltima com o nome iniciando por “a”. Ailton, Amilton, Adailton, Ailce… “Eu sentia falta de espaço, de um canto só meu”. No final de sua vida, ela tem não apenas um canto, mas uma casa só sua. Ampla, dois andares, é a encarnação em concreto de seus esforços. Pela casa ela sacrificou muito. Mas quando adoeceu descobriu que a casa transformara-se numa prisão. Agora quer se libertar da casa. Mas, a cada semana, a cada mês, seu espaço encolhe. Primeiro, o portão da rua marca a fronteira de seu mundo. Depois, a porta da frente. Em seguida, seu território é circunscrito ao 2º andar. E, por fim, tudo o que tem é o quarto.

Ailce então fecha a janela na cara do sol e não sai mais da cama. Nessa época, ela descobre que é possível viver na memória. E refaz o itinerário de sua vida. Ela nascera em São Romão, cidadezinha mineira forjada em histórias de sangue. E sua infância cabia num vão entre a largueza do São Francisco e um riacho de nome Escuro, que banhava a fazenda da família. Crescera cercada de água por todos os lados, mas tinha medo de nadar. Seu pai havia sido capitão de porto, delegado de polícia, juiz de paz. Sua mãe fora uma mulher forte, que fugira do primeiro casamento, aos 13 anos, com a pequena Maria pela mão. Mantinha a casa e os filhos asseados, as toalhas bordadas bem alvas, a cozinha mergulhada numa névoa de vapores perfumados.

Essa memória olfativa feita de temperos, toicinho e doçura engendrada nas panelas da mãe acompanhou Ailce por toda a vida. Perto da morte tornam-se mais vivas. Quando as toxinas liberadas pelo tumor envenenam o corpo, e ela enjoa de tudo, lembra o feijão gordo, o pão de queijo, os biscoitos de polvilho. E sua boca castigada é afagada por uma saliva de infância. Ailce, que já não consegue comer, lambuza-se em banquetes de lembranças. Mais tarde, 18 quilos mais magra, e já sem forças para andar até o banheiro, ela ainda suspira por uma broa de dona Santa.

Ailce deixou a casa dos pais aos 18 anos. Diante de suas ânsias de mulher jovem, a cidade criara paredes. “Eu queria conhecer coisas novas”, diz. “Ser independente”. Escorregou no mapa e desembarcou em Guarulhos, São Paulo, na casa de um irmão. E de novo sentiu-se confinada. Mudara de geografia, mas não de sina, e para ela os 60 não foram anos loucos. Costureira, moça de fábrica, entre linhas, agulhas e bobinas teve as primeiras revelações sobre sexo, quando ao voltar da lua-de-mel uma colega relatou que não só doía como jorrava um líquido branco do membro do homem. Ailce arquivou a informação para não fazer cara de surpresa quando sua hora chegasse.

Nessa época, Ailce se apaixonou por um rapaz de olhos verdes, e ela, que sempre foi muito prática, deu para devaneios. Espremida na cama de armar que dividia com uma amiga, falava de amor e ria à toa. No sábado, anunciava: “Vamos ao baile de vestido novo”. Costurava então uma saia bem rodada para cada uma, orgulhosa da cintura de 54 centímetros. Muito mais tarde, Ailce vai esquecer os fios sintéticos fincados em seu fígado ao lembrar de seu vestido de organza azul. Mas o moço bonito não queria saber de casamento, e Ailce chaveou o coração.

Desde aqueles dias, Ailce jamais deixou de sair de casa impecável. “Ailce vem à consulta muito bonita, cabelos pintados, brincos, salto alto”, escreve a médica Maria Goretti Maciel no prontuário da Enfermaria de Cuidados Paliativos do Hospital do Servidor Público Estadual de São Paulo, em 2 de abril. Mais de uma vez Ailce entra no hospital com as pernas bambas, mas sobre saltos. E, quando ainda não pronuncia a palavra morte, usa a metáfora “cair”. “Eu não aceito cair”.

“Você acredita que, quanto mais eu danço, mais sinto vontade de dançar?”

Aos 23 anos, ela tomou uma decisão pragmática. Casou-se com um operário chamado Jaime, rapaz alinhado que não botava a cabeça fora de casa sem brilhantina, sem um lustro nos sapatos. “Eu queria ter uma casa só minha”, diz Ailce. “Ele era honesto, trabalhador, andava de terno e gravata, tinha uma família boa. Casei”. Ailce não adivinhou que um moço tão distinto teria ganas de beber além da conta. Nem que uma parte do futuro seria gasta nas tribulações de mulher de alcoólatra. No caso dela sina ainda mais triste porque nada tinha da originalidade que planejara para si. Assinou o livro do cartório convencida de que romance era incompatível com a vida adulta. E essa foi sua primeira capitulação diante de seus sonhos.

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DO FIM Ailce no quintal de sua casa, em abril, um ano depois dos primeiros sintomas do câncer

Esse marido “era da raça de espanhol, tinha sangue quente”. E esse fogo acabou incinerando Ailce, que já casou com o primeiro filho aconchegado numa curva da barriga. Só mais tarde ela soube que havia um nome para o que sentiu quando Marcos nasceu de cesariana. “Eu não queria aquela vida, queria uma vida diferente”, ela diz. “Então rejeitei”. Ailce chorou, envergonhada de seus pensamentos. Só décadas depois, perdoou a si mesma ao descobrir que tivera uma depressão pós-parto, comum a muitas mulheres, e não uma crise existencial em que questionava o que fora feito de suas grandes esperanças. Quando as primeiras semanas viraram meses, foi tomada por um amor tão grande por aquele filho que, perto do fim, ainda acredita que ninguém cuida tão bem dele quanto ela.

Quando a segunda vida pediu passagem dentro dela, Ailce chorou de novo. O marido bebera demais e escalara a cama para deitar-se com ela. Ailce agarrou um cobertor e enrolou-se no chão. Sentia-se presa numa teia que não planejara tecer. “Chorei. Não era essa vida que eu queria pra mim”, diz. “Pensei então que meu bebê poderia ser uma menina e me acalmei”. Luciane nasceu miúda, alérgica a leite e com o gênio forte das mulheres da família. Menina estranha, desde os 7 anos escondia-se na cama da mãe para não ser assaltada por coisas do outro mundo.

Esses dois filhos dão a Ailce as duas pontas com as quais ela amarra o final de sua vida. Marcos, funcionário de escola como ela, cuida das feridas do corpo. Aos 42 anos, é um homem quieto, que tranca as emoções em algum lugar entre o coração e o estômago. Ao entrar numa sala, ocupa um canto. Quando a mãe adoece, ele aprende a fazer os curativos e a limpar os drenos, administra seus remédios e prepara o café-da-manhã. Quando ela se torna mais fraca, passa a lhe dar banho. “Não fica com vergonha da mãe”, diz Ailce. “A mãe também deu muito banho em você”. É esse filho silencioso, com a coragem de enfrentar a carne da mãe, que transforma o horror da doença num carinho cotidiano. Pelo toque, ele torna possível para Ailce suportar um corpo em que a bile escorre no lado externo.

Ao igualar-se a um corpo infantil para vencer a interdição entre mãe e filho, Ailce assinala a perda do feminino nela. “O tumor me tirou tudo. Eu perdi peito, bunda, cintura, tudo”, diz. Ailce agora se preocupa cada vez menos com a nudez de um corpo que a trai de todas as maneiras possíveis. E que parece pertencer somente à doença.

A figura miúda de Luciane está sempre no centro. Como a mãe, ela encontra sentido na ação. Depois de crescida, apaziguou-se com o sobrenatural virando mãe-de-santo no candomblé. Luciane vasculhou a história da família e descobriu que a avó materna era cigana. No Rio de Janeiro, onde vive com o marido, Jorge, faz uma festa anual em homenagem a uma ancestral chamada Carmen que fala espanhol pela sua boca. Ailce aceita o mistério. E ela, que nunca aprendeu espanhol, conversa com a cigana como uma velha amiga.

Luciane dá à mãe essa dimensão mística da vida. Pelas mãos dessa filha ela encontra significados para um estar no mundo que para ela foi sempre tão concreto. Luciane lhe dá uma história que avança além da sua, e lhe dá um lugar nessa história. Perto do fim, sua pequena vida faz sentido numa trama maior. A cada novembro é ela quem acende a fogueira da ancestralidade, vestindo saias coloridas, e sua figura se reveste de uma solenidade que resiste ao comezinho de uma vida de cartão de ponto. Depois, ela rodopia ao som do violino cigano e ali, finalmente, apalpa com os pés no ar uma liberdade que até então ela só pressentira. E, por ter um passado antes do nascimento, terá um futuro depois da morte.

Do meu lugar de observadora de um quadro familiar, ora na cena, ora fora dela, me pergunto se esses filhos, cada um a seu modo, compreendem o tamanho do que dão à mãe. Ailce precisa do que cada um deles pode dar, até o fim.

Ela só descobriu o tumor quando foi enviada para a Enfermaria de Cuidados Paliativos, depois de enfrentar sete meses de tratamento em outro setor do hospital. Ailce suspeitava do diagnóstico, mas preferia não ter certeza. Na Enfermaria, a verdade a encurrala. “Antes, os médicos falavam lá na língua deles. Eu escutava a palavra tumor, mas não perguntava. No Paliativos, me contaram que eu tinha um tumor num lugar que não podia ser mexido. Fizeram um desenho. Eu pensei que faria quimioterapia e ficaria boa. Então disseram que eu não poderia fazer. Me revoltei. Achei que Deus não existia. Eu sempre quis ir além e agora não posso mais ir a lugar algum”.

Ailce conta – e imediatamente “esquece” o diagnóstico. Nas visitas seguintes, ela me testa: “Acho que não tem nada dentro de mim”. Ela deseja muito que eu confirme seu pensamento mágico. Nessas horas, eu sinto dor na garganta, pelas palavras que não posso pronunciar, mas que gostaria muito de dizer.

Incapaz de enfrentar meu silêncio, ela contemporiza. “Ainda bem que eu não tenho dor”. Lourdes, que limpa a casa, cozinha e cuida dela, a socorre: “Você não tem câncer. Eu tinha uma tia com câncer e ela gritava de dor. E tinha um cheiro tão horrível que ninguém chegava perto. Você não tem cheiro nenhum”. São duas mulheres sozinhas na casa – e uma delas tem uma sentença de morte. Elas me observam com o canto do olho, temerosas de que eu desmanche com palavras o frágil equilíbrio de seu milagre.

É início de abril, e Ailce está feliz porque o apetite voltou. É resultado do tratamento paliativo, que ameniza os sintomas. “Repeti o prato na hora do almoço”, anuncia. Ailce mima suas orquídeas, conversa com as plantas, comparece às festas de família, quer comprar roupas novas. Suspira por atos banais, mas que agora se enchem de raridades: um banho de chuveiro sem preocupação com os fios; dormir de bruços, que já não pode mais. Ailce vive dias ensolarados. Está comendo, está curada.

E eu também preciso comer. Ela não permite que eu saia de sua casa sem antes repetir o bolo. Criada no interior, esse é um ritual que compreendo. Só mais tarde percebo que, para Ailce, oferecer comida é a chave de uma vida. Ela tornou-se merendeira de escola depois de passar num concurso público com nota 9,5.  Por 27 anos ela alimentou crianças carentes. Na segunda-feira, acolhia-as com uma caneca de leite, para que tivessem forças de entrar na sala de aula. Era dela a missão de mantê-las vivas, era ela quem operava o milagre de fazer crianças quase desmaiadas correr pelo pátio.

Ailce adorava isso. Seu pai queria pagar seus estudos de professora, ela não quis. Queria ser enfermeira, não conseguiu. Encher a barriga de crianças famintas emprestava grandeza a sua vida. “Nunca cheguei atrasada, trabalhava doente porque precisavam de mim. Eu fazia sopa, leite com cacau, sagu. Às vezes, fazia seis caldeirões de 40 litros. E as crianças comiam tudo, com tanto gosto. Ficavam sábado e domingo sem se alimentar e na segunda-feira muitas desmaiavam. Eu não podia fazer nada fora da escola, mas dentro elas comiam à vontade”.

Antes de ser enviada para a Enfermaria de Cuidados Paliativos, um médico, sem coragem de contar a ela a verdade, lhe disse: “Você precisa comer bastante para ganhar peso. Então, quando estiver mais forte, vamos operá-la”. Ele não sabe o que fez. Comer, ficar forte e melhorar é o mantra de Ailce. Entre um médico que lhe acenou com a possibilidade de cura e todos os outros que só têm a verdade para dar, é óbvio que ela acredita no primeiro.

Em meados de maio, Ailce piora. Os enjôos retornam, a comida não passa na garganta. A equipe de visita domiciliar do Serviço de Cuidados Paliativos é cada vez mais assídua. Desentope os drenos, faz curativos, resolve o que é possível para que Ailce não gaste seus dias no hospital. Os medicamentos são substituídos em consultas ambulatoriais, mas ela está numa fase crítica. O desespero por não conseguir comer a consome, pede às médicas que lhe dêem remédio “para abrir o apetite”. Mas nenhuma comida é preparada do jeito que ela instruiu, não há tempero que não se torne amargo em sua boca. Culpa então a mulher que ocupa seu lugar na cozinha por não conseguir fazer por ela o que passou a vida fazendo pelas crianças desmaiadas. Na intimidade da casa é um tempo de grandes dramas para as duas mulheres. Ailce está num lugar insuportável: ela, que sempre alimentou a todos, morrerá porque não consegue comer.

Ailce mede 1,40 metro, mas briga como se tivesse tamanho de jogadora de vôlei. Em junho, é difícil para ela botar uma perna na frente da outra. Mas caminha. Tremendo, cheia de fúria. “Tira a mão do meu braço que eu ando sozinha”, diz. “Mas a senhora cai”, preocupa-se a filha. “Não caio”.A filha tenta lhe dar café. Ela fecha a boca. “Eu mesma tenho de tomar”. Derruba, mas é ela quem segura a xícara. Pergunto porque isso é tão importante. “Eu tenho de ser eu”, diz ela.

Nessa época, Ailce beira o impossível: tinha “esquecido” a doença, mas a doença não a esquecera. Culpa os médicos porque não vê “progresso”. A família cogita consultar outros profissionais. Em seguida, desiste. Teme o que ouvirá no final da consulta.

Então a tempestade chegou. Na manhã de 19 de junho, depois de uma noite de sonhos desencontrados, Ailce anuncia que quer morrer. Não acredito que queira. O que está dizendo, pelo avesso, é que quer viver. Do jeito dela, pede ajuda. Nos encontramos na lanchonete do hospital. Ela tem os olhos cheios de lágrimas, as mãos tremem. Duas desconhecidas lhe falam de Deus. Invocam o “deus do impossível”.

À espera da consulta no ambulatório, Ailce revolta-se: “Quero uma definição. Não vejo melhora. Por que não amarram isso dentro de mim?”. Ailce não só esquecera o que os médicos lhe explicaram muito tempo antes, como esquecera também o que havia contado a mim menos de dois meses atrás. Pela primeira vez, interfiro: “Fale tudo o que está sentindo nessa consulta. Tire todas as suas dúvidas”.

“A história que você está escrevendo sobre mim está chegando ao fim?”

A médica abraça Ailce com carinho. O sol atravessa a janela e bate diretamente nas duas mulheres sentadas uma diante da outra, iluminadas como num palco. Ailce começa: “Eu não sei o que eu tenho”. Goretti Maciel responde: “Você não lembra a nossa primeira conversa?”. Ailce não lembra. “Eu lhe contei que tinha uma pedra no meio do caminho.” Ailce ouve a explicação de novo – e de novo seus olhos acompanham a mão da médica riscando no papel a arquitetura da morte dentro dela. Ela diz: “Mas não dá para pular aqui por cima e juntar aqui?”. Goretti diz: “Infelizmente não dá para fazer um viaduto”. Dessa vez, Ailce não recua: “Então não tem cura? Então isso vai até quando…”. E interrompe a frase.

Toca o celular da médica. A música é a trilha do filme Missão: Impossível. Ela desliga.

“Paliativo vem de palium, que quer dizer manto”, diz a médica. “É o que a gente faz aqui: jogamos um manto sobre a doença. O tumor vai lançando toxinas pelo corpo e isso provoca sintomas. Os medicamentos disfarçam os sintomas. Mas um dia não vamos mais conseguir amenizá-los. Quando esse dia chegar, meu compromisso é que a gente nunca vai abandoná-la. Vamos cuidar de você até o fim.”

Ailce deixa o consultório ereta, os olhos secos. Está de salto alto. Dessa vez, se apóia no meu braço. Mas ainda é ela: “Será que se eu engordasse um pouco não daria para fazer cirurgia?”. Desta vez, me sinto autorizada a falar: “Ouvi tudo o que a médica disse. Não importa se a senhora está gorda ou magra. Não é culpa sua. O tumor é que está num lugar do qual não pode ser retirado”. Ela então me olha com a esquina do olho e diz: “Acho que já tinham me contado. Mas não dá pra lembrar de tudo”.

Em julho, Ailce não sai mais da cama, nem mesmo abre a janela. Mergulhada numa escuridão que não depende da rotação do planeta, ela prefere deixar o sol do lado de fora. Usa fraldas porque não alcança o banheiro, tem frio mesmo quando faz calor. Mas ainda conta histórias e não me deixa sair de sua casa sem repetir o bolo.

Na segunda-feira 14 de julho, seu quarto tem cheiro de morte. E seu corpo parece menor sobre a cama. “Meu tempo está acabando”, ela diz. E eu sei que é verdade porque ela parou de brigar. A revolta se extingue dentro dela, a voz se suaviza. Quando ela toma água, ainda segurando o copo, o gosto é amargo. Ela sempre temera a dor, e a dor havia chegado. “Estou ferida por dentro. Sinto cheiro de podre.”

Ailce descreve todas as mortes da família. Do pai, que morreu em casa, da mãe, no hospital, do marido, de doença de Chagas, do irmão, num acidente. Depois desse inventário do fim, ela conclui: “Agora sou eu que estou no finzinho”.

À noite, a dor aumenta. Ailce pede à filha que chame o Preto Velho. Quando a entidade que assume muitos nomes nas religiões afro-brasileiras se manifesta, pela boca de Luciane, Ailce pede: “Me leva. Nada mais me prende neste mundo”. O Preto Velho brinca com ela. “Não é tão fácil assim, minha filha. No céu tem fila. Vou ver se consigo uma vaguinha para você cuidar das crianças”. Nesse contrato místico, PretoVelho promete a Ailce que a levará ainda naquela semana.

Cenas do Viver

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Ailce passou seus últimos meses circunscrita à casa que construiu com sacrifício. Às vezes, a casa se torna uma prisão, como na foto acima. Em outras, testemunha pequenas delicadezas, como nas duas fotos logo abaixo: a filha, Luciane, dança para a mãe num ritual cigano em sua homenagem, e Ailce cozinha para o único neto, Ramom

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Cenas do Morrer

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Em 14 de julho, Ailce percebeu que seu tempo tinha acabado. No dia seguinte, foi levada ao Hospital do Servidor Público Estadual para morrer sem dor na Enfermaria de Cuidados Paliativos. Na foto acima, seu filho, Marcos, mostra a imagem da mãe num espelho. Abaixo, parentes e amigos contam histórias de sua vida

ailce 7Pensei muito em como descrever essa noite. Cheguei à conclusão que a morte é dela. Ailce tem uma fé bem ecumênica. Desde que adoecera, ela nunca recusou ajuda espiritual. Toda semana recebia hóstia de voluntárias católicas, e sempre abriu a porta para padre e pastor. Mas é quem ela chama de Preto Velho que a conforta na noite mais longa de sua vida. “Eu vou, mas volto”, diz. “Vou segurar sua mão e preparar um caminho de lírios pra você passar. Nós estamos velhinhos. Empresto minha bengala e meu banquinho. Quando eu cansar, você levanta e eu sento. Quando você cansar, eu levanto e você senta. Seu corpo está doente, sua alma está limpa. Você é uma flor”.

Na manhã seguinte, Ailce despede-se de sua casa. Desce a escada carregada, seus pés estão descalços e não mais encostam no chão. Lourdes soluça. E promete fechar bem a porta. A papagaia já não come. E o cachorro Dunga, chorando, se esconde dentro da casinha. Na despedida da mulher que a habitava, a casa parece agonizar.

No hospital, Ailce me pede que arranque suas meias do pé. “Não gosto de me sentir presa”, afirma. Ela está morrendo e suas unhas estão pintadas de cor-de-rosa. Pergunta: “A história que você está escrevendo sobre mim está chegando ao fim?”. Eu me acovardo: “Não sei”. Seus olhos amarelos me perfuram. “Não sabe?” Eu minto: “Acho que não falta mais nada”. Ambas sabemos que falta a morte.

Eu preciso dizer: “E é uma vida bonita”. Ela pede confirmação: “Você acha?”. Eu asseguro: “A senhora brigou pelo que queria, criou seus filhos, construiu sua casa, matou a fome de tantas crianças. A senhora viveu”. Ela conclui: “E nunca pedi nada para ninguém”.

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MORTE Enquanto a filha lhe sussurra palavras de amor, ela fixa o olhar em sua última cena. Às 15h50 de 18 de julho, o tempo de Ailce acaba

Os remédios fazem efeito e ela escorrega para um sono tranqüilo. A médica Veruska Hatanaka esforça-se para que ela não sinta dor, mas que consiga se despedir. É uma arquitetura química delicada. Luciane tem 40 graus de febre, Marcos traz a mulher para se reconciliar com a sogra. Ailce pergunta pelo único neto, Ramom. Às vezes, acorda para pedir água e faz questão de segurar o copo. “A água está mais doce agora”, diz. Ailce já não come. E isso não mais a machuca. Mas, ao abrir os olhos, tarde da noite, ela pergunta se eu comi.

Na quarta e na quinta-feira, Ailce quase só dorme. Ao redor dela se alternam os irmãos, os vizinhos, os amigos. Eles contam histórias da vida dela. Seu irmão caçula coloca uma mão grande sobre seu rosto e chora: “Eu te amo muito. Você quer que eu traga um café para você?”. Ela abre os olhos, balbucia: “Eu também te amo”. E volta a dormir. “A gente dormia na mesma cama de armar, na cozinha”, conta uma amiga. “Eu namorava um rapaz que era a cara do Elvis Presley e ela namorava o Maurício, um loiro de olhos claros”. Ri e chora. “Meu pai era muito apaixonado por ela”, diz Luciane.

Uma fotografia desse momento mostra Ailce na cama e a família ao redor. Há um movimento em cada um deles, nela nenhum. Eles falam dela, mas ela não está lá. Ailce se retira do palco, e a vida de todos seguirá sem ela. Fragmentos de sua vida esvoaçam a seu redor em forma de lembranças enquanto ela morre. Mas Ailce ainda escuta. Abre os olhos sempre que alguém pronuncia o nome do neto. E, quando ficamos sozinhas, eu digo: “Muito obrigada por ter me contado sua história. Eu vou escrever uma história linda sobre sua vida. E nunca vou me esquecer de você”. Percebo então que ninguém confiara tanto em mim. Muitas vezes eu fui a única testemunha de sua vida. Eu escreveria sua história, e ela estaria morta.

Na sexta-feira 18 de julho, Ailce desperta depois do banho. Está inquieta. É difícil entender o que diz. Pede água, mas agora é preciso umedecer um pedaço de gaze e colocar entre seus lábios. Já não há movimento nos drenos, seu corpo está parando de funcionar. Ailce se contorce, começa a arrancar a roupa. Fica nua. No final da manhã, a médica Juliana Barros a liberta dos fios sintéticos de sua vida, agora inúteis. Ailce finalmente está livre.

Quando os filhos chegam, Ailce os reconhece. Ela esperava por eles. Então volta a dormir. Às 15h50 ela abre os olhos de repente. Está lúcida. Enquanto seus olhos erram pelo quarto, Luciane diz: “Vamos dançar, mãe. Vamos botar nossa roupa pra gente dançar. A senhora está linda vestida de cigana. Já curou, mãe. Não tenha medo, eu estou segurando a sua mão. Vou lhe ajudar a atravessar. Está todo mundo esperando pela senhora. Eu te amo tanto, mãe. Muito obrigada por tudo”.

A filha desenha com pétalas brancas o contorno do corpo da mãe. O olhar de Ailce é de infinita tristeza. Seus olhos vagam pelo quarto e se cravam na câmera. E sua respiração apaga devagar.

(Publicado na Revista Época em 14/08/2008)

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