Dilma compôs seu réquiem em Belo Monte

O julgamento mais rigoroso da presidente e do PT, no tempo da História, será feito por brasileiros como João da Silva

Carolina Reis (Foto: ISA/Divulgação)

Carolina Reis (Foto: ISA/Divulgação)

Na quinta-feira, 5 de maio, Raimunda desligou a TV na casa da periferia de Altamira, no Pará. O noticiário local começava a transmitir a inauguração da usina hidrelétrica de Belo Monte por Dilma Rousseff (PT). Era um gesto pequeno, o de desligar o botão da TV. Era o esforço de Raimunda para proteger João da voz da presidente. Deitado na rede, sem movimento nas pernas, ele já não é capaz de proteger a si mesmo. Em Belo Monte, Dilma discursava, ovacionada por uma claque de movimentos sociais, denunciando o “golpe” para tirá-la do poder. Mas a palavra final sobre o legado da presidente não será do Congresso. O réquiem de Dilma Rousseff, no tempo da História, é o silêncio de João da Silva.

No aeroporto de Altamira, Liviane, uma das sete filhas de João e de Raimunda, erguia um cartaz: “De mulher para mulher. Dilma – você me deixou órfã de pai vivo”.
Dilma Rousseff não viu. Ela deu apenas uns poucos passos em terra. Em seguida pegou um helicóptero para o território seguro da hidrelétrica de Belo Monte. A presidente sobrevoou a cidade e o rio. Mas era no chão que o drama se desenrolava.
Se João tivesse escutado o discurso de Dilma, ele saberia qual foi a palavra escolhida pela presidente para definir Belo Monte:

– Essa usina é do tamanho desse povo. É grandiosa. É uma usina grandiosa. A melhor forma de descrever Belo Monte é essa palavra: grandiosa.

As palavras, João descobriu há pouco mais de um ano, podem matar. É por isso que ele não consegue escutar nem “Norte Energia”, a empresa concessionária que materializou a usina no amazônico Xingu. Nem “Belo Monte”. Nem “Dilma Rousseff”. E ninguém conhecerá sua opinião sobre o adjetivo escolhido pela presidente: “grandiosa”.

Quando sua filha escreve, no cartaz que Dilma não leu, que é órfã de pai vivo, ela conta de uma morte que começou em 23 de março de 2015. João era um dos milhares de atingidos por Belo Monte. Ele vivia com Raimunda numa ilha do Xingu, a Barriguda. Nas palavras da Norte Energia e do governo federal, ele era um dos milhares de “removidos”. Mas as palavras não são as mesmas para todos.

Para João, ele foi “expulso”. Naquela data, ele e Raimunda estavam no escritório da empresa esperando o veredicto. João, que trabalhava desde os oito anos de idade, e só na ilha encontrara um lugar sem fome, acreditava receber um valor que lhe permitisse recomeçar a vida, mais uma vez. Mas o preposto da empresa foi taxativo: 23 mil reais. João percebeu ali que, aos 63 anos, estava condenado à miséria. No momento da revelação, ele quis matar o dono das palavras que o esfaqueavam. Mas João da Silva não é homem que mata. Paralisou por inteiro. A fala, as pernas. E teve de ser carregado para fora do escritório. Foi naquele momento que João começou a morrer. Para Raimunda e as filhas, foi naquele momento que João começou a ser “assassinado”.

Mais tarde, quando recuperou as palavras e voltou a dar alguns passos, bem devagar, João disse:

– Se eu fizesse um dano com um grande, um grande lá de dentro, talvez melhorasse para os outros. Eu sacrificava a minha vida, mas a dos outros melhorava. (…) O país brasileiro não tem justiça.

Raimunda Gomes da Silva e João Pereira da Silva (Foto de Lilo Clareto)

Raimunda Gomes da Silva e João Pereira da Silva (Foto de Lilo Clareto)

Quando disse isso, João ainda podia escutar as palavras. Agora, já não pode. Em breve, saberemos por quê. Como as três palavras se tornaram proibidas para ele, João não pôde ouvir o que Dilma Rousseff afirmou em seguida:

– Sabemos que essa usina foi objeto de controvérsias. Muito mais pelo desconhecimento do que pelo fato de ela ser uma usina com problemas. As pessoas desconheciam o que era Belo Monte.

Se João não estivesse proibido de escutar, teria ouvido que pessoas como ele “desconhecem” Belo Monte. O que isso faria com João?

O que Dilma Rousseff define como “controvérsias” seriam as 25 ações movidas pelo Ministério Público Federal, uma delas acusando o Estado e a Norte Energia pelo etnocídio – morte cultural – de povos indígenas? Ou a controvérsia seria a mesada de 30 mil reais em mercadorias que as aldeias atingidas receberam por dois anos da empresa, como se o Brasil estivesse fixado no ano de 1500, ao trocar vida por espelhinhos? Ou o aumento de 127% da desnutrição infantil nas aldeias neste período? Ou os milhares de atingidos abandonados em total desamparo pelo seu governo, “negociando” diretamente com a Norte Energia, já que a Defensoria Pública da União só conseguiu alcançar Altamira quando a obra já estava perto da conclusão? Ou todos aqueles que assinaram com o dedo papéis que não eram capazes de ler, mas que os condenavam ao desterro?

Talvez não. É possível que “as controvérsias” citadas pela presidente sejam as delações premiadas de executivos de empreiteiras no curso da Operação Lava Jato. Como dirigentes da Andrade Gutierrez, que teriam afirmado a existência de propinas no valor de 150 milhões de reais vindas de Belo Monte para financiamento de campanhas do PT e do PMDB. Dilma Rousseff não especificou o que entendia por “controvérsias”.

É possível afirmar que a presidente desconhece João. Se o conhecesse, e ele ainda pudesse usar as palavras proibidas, Dilma Rousseff saberia que João da Silva conhece Belo Monte. E que sua mulher, Raimunda da Silva, conhece inclusive o perfume de Belo Monte. Para ela, Belo Monte tem cheiro de queimado. Em 31 de agosto de 2015, a Norte Energia botou fogo na casa deles. Quando Raimunda alcançou a ilha para retirar seus pertences, encontrou cinzas. Um técnico da Norte Energia já tinha dito que a casa dela não era uma casa, mas um “tapiri”. Raimunda sabe que as palavras violentam. E reagiu: “Na sua linguagem ela pode ser tudo isso aí, moço. Mas, na minha, é minha casa. E eu me sentia bem nela, viu?”.

Dilma Rousseff desconhece João da Silva, mas ele a conhece tanto que não pode escutar o seu nome, ou sua voz. Se pudesse, João ouviria mais uma parte do discurso da presidente.

– Quero dizer que esse empreendimento de Belo Monte me orgulha muito pelo que ele produziu de ganhos sociais e ambientais.

No momento em que Dilma discursava, quatro crianças indígenas já tinham morrido de gripe no período de dois dias, entre 29 e 30 de abril. É importante lembrar de seus nomes em tão curta vida: Kinai Parakanã, 1 ano; Irey Xikrin, sete meses; Kropiti Xikrin, 11 meses; Kokoprekti Xikrin, 1 mês e 22 dias. Em documento datado de 1 de maio, o Distrito Sanitário Especial Indígena de Altamira relata a gravidade do surto de síndrome gripal nas aldeias, com a ocorrência de diarreia, especialmente para as crianças de até cinco anos. Assim como a deficiência da estrutura para combater a ameaça à saúde indígena. Mostra também que o quadro se agravou após as comemorações relativas ao Dia do Índio, em Altamira, quando aldeias que ainda não haviam sido atingidas foram contaminadas após a volta dos indígenas da cidade. Naquela semana, a Norte Energia promoveu o I Festival de Cultura Indígena Asurini e Araweté, com a presença de dezenas de pessoas dessas etnias. O surto de gripe em curso foi ignorado nos festejos. As homenagens ameaçam virar morte.

Desde que a construção da usina começou, a circulação de indígenas na cidade é muito maior, o que facilita o contágio. O hospital que faz parte das condicionantes da obra está pronto, mas não foi inaugurado nem está equipado. A reestruturação da saúde indígena, uma das obrigações previstas na contrapartida pela obra de Belo Monte, com postos abastecidos e equipes treinadas nas aldeias, para que os indígenas não precisem ir até a cidade em busca de atendimento, não foi concluída.

Em reunião no dia 6 de maio, com a participação de várias instituições, foi criada uma Força Tarefa de Ações Articuladas e deliberada a necessidade da vinda da Força Nacional do SUS, com apoio do Exército para execução de um Plano de Ações emergenciais. “Diante do pronunciamento dos agentes de saúde local de que trazer essas crianças para Altamira e bater nas portas dos hospitais é escolher aonde elas vão morrer, o pedido formulado ao Ministério da Saúde de intervenção da Força Nacional do SUS é, em verdade, um apelo para que o Governo Federal atue para reverter o quadro atual com a mesma rapidez e eficiência com que, nesses últimos anos, atuou para que Belo Monte fosse concluída, mesmo sem a implementação das condicionantes que hoje poderiam evitar novas mortes”, afirma Thais Santi, procuradora da República em Altamira que há anos denuncia o etnocídio indígena causado pela construção da hidrelétrica.

Como Dilma Rousseff apenas sobrevoou a cidade, sem caminhar por suas ruas, não testemunhou o desespero dos indígenas em busca de ajuda. Nem a impotência dos profissionais de saúde diante da falta de estrutura para salvar vidas. Assim como não viu que a rede de esgoto até hoje não está funcionando, e que a contaminação do Xingu só aumenta. Ao festejar os “ganhos ambientais”, ela deve ter esquecido das 16 toneladas de peixes mortas quando o lago da usina encheu. Da infestação de mosquitos nas aldeias em que a vazão do rio baixou. Assim como as denúncias do Dossiê Belo Monte, lançado pelo Instituto Socioambiental, mostrando que construção da usina fez disparar o desmatamento e o comércio ilegal de madeira. Ou que a Terra Indígena Cachoeira Seca, uma das afetadas pela obra, foi a mais desmatada do país em 2013. Ou que dela saiu em 2014 o equivalente a 13 mil caminhões carregados de madeira em apenas um ano.

Como não pisou nas ruas de Altamira nem jamais navegou entre as ilhas incendiadas do Xingu, Dilma Rousseff se autoriza a festejar “ganhos sociais e ambientais de Belo Monte”.

E como em seu discurso celebra “o povo brasileiro”, mas desconhece João da Silva, a presidente não sabe que, em 4 de Setembro de 2015, ele chamou a família para que se matassem na ilha queimada. Naquele momento, as palavras ainda não estavam proibidas para João. Ele explicou por que queria se matar:

– Quero que o mundo saiba que Belo Monte me matou.

Raimunda o impediu: “Tirei a canoa dele. Em qualquer parte do rio ele vai a remo, nadando. Mas na rua ele se perde”. E João restou perdido. Hoje, mais do que ontem.
Se João pudesse escutar a voz de Dilma, ele saberia como ela continuou a discursar:

– Acho importante destacar que, com Belo Monte, nós não levamos só energia para o resto do Brasil. Criamos aqui uma riqueza única, que é colocar à disposição das empresas que quiserem vir aqui, colocar o seu negócio aqui, participar desse estado que tem grandes reservas minerais, grande potencial agrícola, podem vir aqui, porque não vai faltar energia.

Belo Monte costuma ser apresentada como a terceira maior hidrelétrica do mundo, com 11.233 megawatts do que no jargão técnico se chama de “capacidade instalada”. O que o governo costuma esquecer de citar é que, na temporada de seca do Xingu, a produção de energia baixa drasticamente. Assim, na média, Belo Monte vai produzir de fato 4.571 megawatts, o que a coloca como uma das hidrelétricas menos produtivas na relação entre capacidade instalada e energia firme. É por essa razão que alguns pesquisadores da área energética sempre repetiram que nem mesmo sob o ponto de vista da produção de energia o empreendimento se justifica.

Nesta parte do seu discurso, Dilma, a guerrilheira torturada pela ditadura, reproduz como presidente a mesma ideologia para a Amazônia defendida por seus algozes. Para a ditadura civil-militar (1964-1985), a região era vista como um território para exploração, a floresta era também um corpo a ser violado e torturado. Dilma faz ressoar a propaganda do “Brasil Grande” dos generais, do progresso representado pelas grandes obras, pelos projetos gigantescos de mineração, pela ideia de transformar a mata em soja e pasto pra boi, como se isso fosse desenvolvimento e como se isso fosse sustentável. É como se a presidente tivesse ficado congelada no século 20.

Um dos buracos artificiais de Belo Monte. LILO CLARETO

Um dos buracos artificiais de Belo Monte (Foto de Lilo Clareto)

A repetição do discurso do opressor pela oprimida que chega ao poder e, no ponto de vista de parte dos povos da floresta se torna a opressora, é fascinante no que revela sobre o demasiado humano. Mas é um desastre para o Brasil. Neste discurso, Dilma ignora os desafios da mudança climática, assim como os desafios de um presente que só tem chance de alcançar o futuro se aprender com os povos tradicionais, se valorizar a biodiversidade em vez da destruição. Dilma Rousseff ignora a época em que vive, assim como os debates mais profundos dessa época.

Dessa ignorância resultam obras como Belo Monte, tão deslocadas no Xingu quanto no século 21. E resulta outra sombra gigantesca que avança sobre a região neste exato momento: Belo Sun. A mineradora canadense pressiona para protagonizar “o maior programa de exploração de ouro do Brasil”, bem ao lado da hidrelétrica. Está prevista a extração de mais de 37 milhões de toneladas de ouro nos primeiros 11 anos, um número tão “grandioso” que se torna difícil traduzi-lo numa imagem. Belo Sun chegou a ter a cerimônia de liberação marcada para abril, mas o governo do estado do Pará voltou atrás. Belo Sun poderá ser um flagelo ainda maior do que Belo Monte. Para o Xingu, para o Brasil, para o mundo. Que as duas tenham “belo” no nome é a prova do cinismo que fez João da Silva passar a temer as palavras.

Ele, que foi um dos operários da hidrelétrica de Tucuruí, construída na Amazônia pela ditadura, passou a acreditar que a barragem de Belo Monte vai se romper. Desde que a tragédia de Mariana assombrou o mundo, João teme essa outra catástrofe. A imagem é uma representação da destruição produzida por Belo Monte na vida de João.
A tragédia de João e Raimunda foi documentada na reportagem “Vítimas de uma guerra amazônica”. A Norte Energia negou ter queimado a casa deles na ilha, assim como ter cometido qualquer ilegalidade. Em seguida, procurou Raimunda para um acordo extrajudicial. Nos termos do documento: “A fim de evitar a propositura de ações judiciais indenizatórias recíprocas, ou ações judiciais de qualquer outra natureza, haja vista uma polêmica instaurada, inclusive com repercussão na mídia internacional”. Ofereceram um “complemento” de R$ 108. 856,97aos R$ 23.046,00 pagos no início do ano, totalizando um valor de R$ 131.902,97.

A defensora pública federal Mariana Carraro alertou Raimunda de que não era uma indenização justa. Como a casa dela havia sido incinerada, Raimunda poderia ganhar um valor maior se entrasse com uma ação por danos morais. Por outro lado, a defensora informou que uma ação judicial poderia se arrastar por até dez anos. Na casa onde agora vivem, na periferia de Altamira, Raimunda disse a João: “Meu velho, a gente não vai mais ter o leite e a panela. O que a gente faz?”.

Raimunda decidiu, em suas palavras, “ficar com a panela e tentar colocar leite dentro”. O acordo foi assinado em dezembro de 2015. “Foi terrível, um peso enorme”, diz. “Mas eu pensei que, se fosse esperar pela Justiça, meu velho já poderia ter partido para outra dimensão, deixando pra trás esse caso sem solução.” Em janeiro deste ano, a Norte Energia foi autuada pelo IBAMA por queimar a casa de Raimunda e de João, com uma multa no valor de 310 mil reais.

Raimunda fez o acordo por acreditar que precisaria do dinheiro para buscar tratamento para João. Naquele momento, ele afirmava “só enxergar escuridão” e caminhava apenas uns poucos passos antes de precisar se sentar. Às vezes um vizinho avisava: “Seu João está sentado no meio do nada, debaixo do sol. Vai acabar morrendo ali”. O abismo se alargaria no final de janeiro. A filha mais velha de João e Raimunda tentou se suicidar ingerindo veneno de rato. Ficou em coma por oito dias, mas se salvou. Não explicou por que quis acabar com a própria vida. As sete filhas têm o nome iniciado pela letra “L de liberdade”.

Quando Dilma inaugurou Belo Monte, a escuridão dos dias de João já era maior do que quando ele começou a morrer.

– Para concluir, eu quero dizer a vocês que eu tenho imenso orgulho das escolhas que eu fiz. Uma delas, que eu quero destacar mais uma vez, é a construção de Belo Monte como um legado para a população brasileira dessa região, para o povo de Altamira e o povo de Xingu. Mesmo que não seja dos municípios diretamente impactados por Belo Monte, toda essa população vai ser beneficiada direta e indiretamente. Tenho orgulho das escolhas que fiz.

Uma das ilhas do Xingu, desmatada e queimada para o enchimento do lago de Belo Monte/ Fotos: Lilo Clareto

Uma das ilhas do Xingu, desmatada e queimada para o enchimento do lago de Belo Monte (Foto de Lilo Clareto)

Semanas antes dessa demonstração de orgulho da presidente pelo seu legado no Xingu, em 15 de abril, Raimunda se manifestou numa reunião sobre o destino dos ribeirinhos “removidos” por Belo Monte. Falavam muito em “critérios”. Raimunda então disse: “Quero saber qual foi o critério para os defuntos que vocês mataram mas não enterraram”. E lembrou de João, seu marido, “um dos mortos-vivos de Belo Monte”.

Na manhã de 18 de abril, Raimunda conta que três mulheres do serviço social da empresa bateram na porta de sua casa. Como havia sido combinado, as funcionárias não mencionariam que eram da Norte Energia. Ao final da conversa, porém, João desconfiou. E Raimunda foi obrigada a confirmar. João sentiu-se enganado por Raimunda. “Já disse que não quero ninguém dessa empresa na minha casa”, ele gritou. E se fechou. Raimunda achou que João estava “mais estranho” por causa da raiva. E não tentou mais falar com ele.

No dia seguinte, João amanheceu “com o corpo todo enrolado”. Raimunda buscou tratamento em Altamira, onde ouviu que ele teve “um começo de derrame”. Resolveu então procurar uma cidade com mais recursos e o levou para Teresina, capital do Piauí, numa penosa viagem de ônibus de quase dois dias. Uma filha a ajudou, já que João precisava ser carregado. Hospedaram-se numa pensão. A médica diagnosticou que João teve um segundo AVC. O primeiro, segundo ela, teria sido quando João paralisou no escritório da Norte Energia. Se ocorrer um terceiro, João poderá não resistir. No final de abril, Raimunda carregou João de volta para a periferia de Altamira. Na viagem de retorno, o ônibus ficou cinco horas parado na estrada porque uma ponte havia quebrado. Raimunda foi pedir leite numa casa para dar a ele. Deixou João escutando a música “Imagine”, de John Lennon, que ela tem traduzida e gravada no celular para ouvir quando a vida dói. “Imagine todas as pessoas vivendo a vida em paz”.

Raimunda conta: “A médica me disse que não posso estressar ele. Perguntou o que tinha causado essa raiva toda. Expliquei. Ela disse que não podia mais falar essas palavras perto dele, porque ele pode morrer se tiver mais um AVC. Mas eu disse pra ela que não tem como deixar essas palavras de banda em Altamira. Norte Energia, Belo Monte, essas palavras aí tão na cara de todo mundo na cidade. Aí a doutora falou que era para eu dar o meu jeitinho brasileiro. Por isso desliguei a TV pra ele não ouvir a Dilma falar”.

Em 5 de maio, dia em que Dilma Rousseff inaugurou Belo Monte, João da Silva completou 64 anos. Ele não anda mais. Também não come mais sozinho. Ainda fala. Mas não pronuncia as palavras proibidas. Antonia Melo, a maior liderança popular do Xingu, e outras mulheres do Xingu Vivo, um dos poucos movimentos sociais que não foi cooptado pelo governo e se manteve na resistência à Belo Monte, levaram a ele um bolinho de aniversário. Elas tinham acabado de escrever uma carta de resposta ao discurso de Dilma Rousseff: “Hoje você se rebaixou a inaugurar a mais nefasta das obras do governo petista, aquela que manchou a imagem do Brasil em todo o mundo. Uma iniciativa que você herdou das mesmas mentes doentias que te torturaram na prisão”.

Era um encontro de pessoas destroçadas pelo 5 de maio de 2016. Mas ninguém tocou no assunto para não ameaçar a vida de João. “Não tem nada pra comemorar”, João disse. Antonia respondeu: “O senhor tá vivo”. João chorou.

Perto do encerramento do seu discurso, Dilma Rousseff afirmou:

– Qualquer processo que tenta dar um golpe para garantir que os sem votos cheguem à presidência nós devemos repudiar. Temos de afirmar de alto e bom som que a democracia é o lado certo da História.

Em Altamira, Belo Monte é chamada de “Belo Golpe” por aqueles que denunciam o massacre aos direitos constitucionais que a implantação da usina promoveu. Para eles, é no Xingu que o governo do PT consumou o rompimento do Estado de Direito. Não há nenhuma esperança com um governo Temer. Ao contrário. O programa anunciado no documento “Uma Ponte Para o Futuro” é para eles uma ponte para um passado que conhecem bem. O setor elétrico no Brasil, neste governo e em governos passados, tem as digitais do PMDB, como a Operação Lava Jato já começou a mostrar.

A presidente afirmou ainda que o “grande juiz é o povo brasileiro”. E assim despediu-se em Belo Monte:

– Não haverá perdão da História para os golpistas.

A última palavra, porém, não é de Dilma Rousseff. Nem será do Congresso. A derradeira palavra, aquela com que Dilma, Lula e o PT terão de se haver na História, é aquela que João da Silva já não pode mais pronunciar.

João da Silva (Foto de Lilo Clareto)

João da Silva (Foto de Lilo Clareto)

(Publicado no El País em 10 de maio de 2016)

Sobre aborto, deficiência e limites

Não há respostas fáceis. Só consigo enfrentar a complexidade do debate com dúvidas

barriga-gravida

A possível ligação entre o zika vírus e a microcefalia obrigou o Brasil a encarar seus tabus

Uma doença nunca é só uma doença. Ela nos conta de desigualdades e falências, e também de paixões. O zika vírus, desde que foi associado à microcefalia, tem revolvido as profundezas do pântano em que a sociedade brasileira esconde seus preconceitos e totalitarismos, muitas vezes trazendo-os à superfície cobertos por uma máscara de virtude. É dessa matéria fervente o debate sobre a permissão do aborto em casos de microcefalia. Diante da crise sanitária revelada pelo Aedes brasilis, como o mosquito vetor já foi chamado de forma tão oportuna, o futuro próximo depende de que sejamos capazes de pensar, mesmo que isso signifique chamuscar as mãos. Pensar e conversar, o que implica vestir a pele do outro antes de sair repetindo os velhos clichês usados como escudos contra mudanças. Se não formos capazes de superar o comportamento de torcida de futebol nem mesmo diante de uma epidemia considerada “emergência global”, o mosquito é o menor dos nossos problemas.

(…)

Escutar é justamente debater. Aqueles que não querem debater aborto no Brasil precisam assumir que não se importam com a prisão e a morte de mulheres jovens e pobres, a maioria delas negras, já que estes são os fatos. Precisam assumir também que não se importam que o acesso ao aborto reproduza a desigualdade racial e social do Brasil, ao tornar-se acessível e seguro para quem pode pagar e criminalizado e mortífero para quem não pode. Quem se importa, debate os fatos. E escuta a posição do outro, mesmo que seja muito diferente da sua. Viver é mover-se.

(…)

Assim, as crianças que nascerem com microcefalia por conta do zika, uma ligação que ainda não está totalmente esclarecida, não estão condenadas a uma vida sem vida. Mas podem estar condenadas a uma vida muito menos autônoma, muito menos cidadã, muito mais restritiva por conta das barreiras sociais que já deveriam ter sido derrubadas e não foram. São vítimas, neste caso, de duas falências: a das políticas sanitárias, que permitiram a proliferação do mosquito, e a das políticas de inclusão.

Neste caso, assim como acontece com o aborto, também são os mais pobres os que mais sofrem as consequências da precariedade das políticas públicas, assim como os efeitos da discriminação que permite a desigualdade de direitos. E os mais pobres no Brasil, como se sabe, são em sua maioria negros. A maior parte dos casos de microcefalia estão entre mulheres pobres do Nordeste, e são elas as que mais sofrerão com a epopeia que será incluir uma criança com deficiências num sistema de saúde pública precário e numa sociedade que discriminará seus filhos em todos os espaços e oportunidades.

Quando o zika vírus provoca um debate sobre a deficiência, é fundamental que todos nos esforcemos para qualificá-lo. Diante de um cenário dramático, o melhor caminho é fazer da crise uma oportunidade para tornar o país mais justo.

(…)

EL PAÍS/NACHO DOCE (REUTERS)

EL PAÍS/NACHO DOCE (REUTERS)

Leia o texto completo na minha coluna no El País

1500, o ano que não terminou

Quem chorou por Vitor, o bebê indígena assassinado com uma lâmina enfiada no pescoço?

Estava quase terminando um texto mais “filosófico” para esse início de ano. Percebo que minha escrita mudou, que desde 2013 escrevo com lâminas. E sinto falta de outros temas e espaços. Sinto falta das delicadezas também na escrita. E pensei que não era possível que na virada do ano, quando até São Paulo esvazia, não conseguisse.

Soube então do assassinato do Vitor. Sua morte não virou notícia, para além da imprensa local, que também não deu tanto espaço assim. Como algo assim acontece com tão pouco espanto. Como é possível que o país não pare por causa da morte dessa criança, que não seja notícia no mundo inteiro, que a gente não passe dias chorando. Que a gente não se mova.

Um bebê.

Dizem que a gente não deve escrever com o fígado. Eu sempre escrevo (também) com o fígado.

Continue lendo no El País.

Garoto estava com a mãe na rodoviária (Foto: Gabriel Felipe/RBS TV)

Foto: Gabriel Felipe/RBS TV

Leia outros artigos, reportagens e entrevistas sobre a questão indígena e socioambiental:

REPORTAGENS

22/09/2015
Vítimas de uma guerra amazônica
Expulsos por Belo Monte, Raimunda e João tornam-se refugiados em seu próprio país

14/09/2015
O dia em que a casa foi expulsa de casa
A maior liderança popular do Xingu foi arrancada do seu lugar pela hidrelétrica de Belo Monte, a obra mais brutal –e ainda impune– da redemocratização do Brasil

16/02/2015
O pescador sem rio e sem letras
À beira de Belo Monte, uma história pequena numa obra gigante. Que tamanho tem uma vida humana?

15/09/2014
A não gente que não vive no Tapajós
A extraordinária saga de Montanha e Mangabal, da escravidão nos seringais à propaganda do governo que pretende botar uma hidrelétrica na terra que habitam há quase 150 anos

28/01/2012
A Amazônia, segundo um morto e um fugitivo
Dois homens denunciaram a quatro órgãos federais e dois estaduais uma milionária operação criminosa que rouba ipê de dentro de áreas de preservação da floresta amazônica, no Pará. Depois da denúncia, um foi assassinado – e o outro foge pelo Brasil com a família, sem nenhuma proteção do governo. A partir do relato desses dois homens, é possível unir a Amazônia dos bárbaros à floresta dos nobres

25/11/2005
À espera do assassino

Como vivem os brasileiros ameaçados de morte na fronteira paraense, onde o futuro da Amazônia é decidido à bala

04/10/2004
O Povo do Meio
Esses brasileiros não votam, são analfabetos e oficialmente não existem. À margem do país, estão jurados de morte

08/04/2013
À margem do pai
Na floresta amazônica, um homem confronta sua solidão quando um filho seu é picado por uma cobra, o outro por escorpião. Como salvá-los sem nenhum acesso à saúde? O dia a dia dos protetores da Terra do Meio, onde não morrer é um golpe de sorte

ENTREVISTAS

31/10/2011
Belo Monte, nosso dinheiro e o bigode do Sarney
Um dos mais respeitados especialistas na área energética do país, o professor da USP Célio Bermann, fala sobre a “caixa preta” do setor, controlado por José Sarney, e o jogo pesado e lucrativo que domina a maior obra do PAC. Conta também sua experiência como assessor de Dilma Rousseff no Ministério de Minas e Energia

05/09/2011
Um procurador contra Belo Monte
Conheça o homem que se tornou o flagelo do governo ao lutar contra a maior e mais polêmica obra do PAC

04/06/2012
Dom Erwin Kräutler: “Lula e Dilma passarão para a História como predadores da Amazônia”
O lendário bispo do Xingu, ameaçado de morte e sob escolta policial há seis anos, afirma que o PT traiu os povos da Amazônia e a causa ambiental. Afirma também que Belo Monte causará a destruição do Xingu e o genocídio das etnias indígenas que habitam a região há séculos. Há 47 anos no epicentro da guerra cada vez menos silenciosa e invisível travada na Amazônia, Dom Erwin Kräutler encarna um capítulo da história do Brasil

29/9/2014
Diálogos sobre o fim do mundo
Do Antropoceno à Idade da Terra, de Dilma Rousseff a Marina Silva, o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro e a filósofa Déborah Danowski pensam o planeta e o Brasil a partir da degradação da vida causada pela mudança climática

01/12/2014
Belo Monte: a anatomia de um etnocídio

A procuradora da República Thais Santi conta como a terceira maior hidrelétrica do mundo vai se tornando fato consumado numa operação de suspensão da ordem jurídica, misturando o público e o privado e causando uma catástrofe indígena e ambiental de proporções amazônicas

ARTIGOS DE OPINIÃO

30/11/2015
A lama
Com o rompimento da barreira entre metáfora e concreto, a catástrofe torna o Brasil irrepresentável

06/06/2011
Se a Amazônia é nossa, por que não cuidamos dela?
Para boa parte dos brasileiros, a floresta não passa de uma abstração

26/09/2011
Devemos ter medo de Dilma Dinamite?
As mulheres que a primeira presidente prefere não escutar

17/10/2011
A pequenez do Brasil Grande
A ditadura acabou, mas a palavra “desenvolvimento” continua sendo torturada para confessar o que o governo deseja que o povo acredite

22/10/2012
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A declaração de morte coletiva feita por um grupo de Guaranis Caiovás demonstra a incompetência do Estado brasileiro para cumprir a Constituição de 1988 e mostra que somos todos cúmplices de genocídio – uma parte de nós por ação, outra por omissão

26/11/2012
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O que move um brasileiro urbano, não índio, a agregar “guarani kaiowa” ao seu nome no Twitter e no Facebook?

02/07/2013
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A dificuldade de uma parcela das elites, da população e do governo de reconhecer os indígenas como parte do Brasil criou uma espécie de xenofobia invertida, invocada nos momentos de acirramento dos conflitos

31/03/2014
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O imaginário sobre a Amazônia e os povos indígenas, forjado pelo regime de exceção, é possivelmente a herança autoritária mais persistente na mente dos brasileiros de hoje, incluindo parte dos que estão no poder. E a que mais faz estragos na democracia

13/04/2015
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07/07/2015
Belo Monte, empreiteiras e espelhinhos
Como a mistura explosiva entre o público e o privado, entre o Estado brasileiro e as grandes construtoras, ergueu um monumento à violência, à beira do Xingu, na Amazônia

1500, o ano que não terminou

Quem chorou por Vitor, o bebê indígena assassinado com uma lâmina enfiada no pescoço?


Um menino de dois anos foi assassinado. Um homem afagou seu rosto. E enfiou uma lâmina no seu pescoço. O bebê era um índio do povo Kaingang. Seu nome era Vitor Pinto. Sua família, como outras da aldeia onde ele vivia, havia chegado à cidade para vender artesanato pouco antes do Natal. Ficariam até o Carnaval. Abrigavam-se na estação rodoviária de Imbituba, no litoral de Santa Catarina. Era lá que sua mãe o alimentava quando um homem perfurou sua garganta. Era meio-dia de 30 de dezembro. O ano de 2015 estava bem perto do fim.

E o Brasil não parou para chorar o assassinato de uma criança de dois anos. Os sinos não dobraram por Vitor.

Sua morte sequer virou destaque na imprensa nacional. Se fosse meu filho, ou de qualquer mulher branca de classe média, assassinado nessas circunstâncias, haveria manchetes, haveria especialistas analisando a violência, haveria choro e haveria solidariedade. E talvez houvesse até velas e flores no chão da estação rodoviária, como existiu para as vítimas de terrorismo em Paris. Mas Vitor era um índio. Um bebê, mas indígena. Pequeno, mas indígena. Vítima, mas indígena. Assassinado, mas indígena. Perfurado, mas indígena. Esse “mas” é o assassino oculto. Esse “mas” é serial killer.

A fotografia que ilustrou as poucas notícias sobre a morte do curumim mostra o chão de cascalho e concreto da estação rodoviária. Um par de sandálias havaianas azul, com motivos infantis. Uma garrafa pet, uma estrelinha de brinquedo, daquelas de fazer molde na areia, uma tampa de plástico do que parece ser um baldinho de criança, uma pequena embalagem em formato de tubo, um pano florido amontoado junto à parede, talvez um lençol. É apresentada como “local do crime” ou como “os pertences do menino”.

Essa foto é um documento histórico. Tanto pelo que nela está quanto pelo que nela não está. Nela permanece o descartável, os objetos de plástico e de pet, os chinelos restados. Nela não está aquele que foi apagado da vida. A ausência é o elemento principal do retrato.

Os indígenas só podem existir no Brasil como gravura. Apreciados como ilustração de um passado superado, os primeiros habitantes dessa terra, com sua nudez e seus cocares, uma coisa bonita para se pendurar em algumas paredes ou estampar aqueles livros que decoram mesas de centro. Os indígenas têm lugar se estiverem empalhados, ainda que em quadros. No presente, sua persistência em existir é considerada inconveniente, de mau gosto. Há vários projetos tramitando no Congresso para escancarar suas terras para a exploração e o “progresso”. Há muitos territórios indígenas devidamente reconhecidos que o governo de Dilma Rousseff (PT) não homologa porque neles quer construir grandes obras ou porque teme ferir os interesses do agronegócio. Há uma Fundação Nacional do Índio (Funai) em progressivo desmonte, tão fragilizada que com frequência se revela também indecente. No passado, os índios são. No presente, não podem ser.

Como diz o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, os indígenas são especialistas em fim de mundo, já que o mundo deles acabou em 1500. Tiveram, porém, o desplante de sobreviver ao apocalipse promovido pelos deuses europeus. Ainda que centenas de milhares tenham sido exterminados, sobreviveram à extinção total. E porque sobreviveram continuam sendo mortos. Quando não se consegue matá-los, a estratégia é convertê-los em pobres nas periferias das cidades. Quando se tornam pobres urbanos, chamam-nos de “índios falsos”. Ou “paraguaios”, em mais um preconceito com o país vizinho. No passado, os índios são alegoria. “Olha, meu filho, como eram valentes os primeiros habitantes desta terra.” No presente, são “entraves ao desenvolvimento”. “Olha, meu filho, como são feios, sujos e preguiçosos esses índios fajutos.” Os índios precisam ser falsos porque suas terras são verdadeiras – e ricas.

Se Vitor era um entrave, esse entrave foi removido. Por isso essa foto é um documento histórico. Se houvesse alguma honestidade, é ela que deveria estar nas paredes.

Parece não bastar que Vitor, um bebê de dois anos, passasse semanas no chão de uma rodoviária porque a violência contra seu povo foi tanta e por tantos séculos e ainda hoje continua que seus pais, Sônia e Arcelino, precisam deixar a aldeia para vender artesanato. A preços baixos, porque desvalorizados são os artesãos. É importante perceber o nível de desamparo que leva alguém a considerar rodoviária um lugar seguro e acolhedor. Terminais rodoviários são locais de passagem, e a família de Vitor, assim como a de outros indígenas, abriga-se lá porque há movimento. Rodoviária é lugar de ninguém. E por isso nela costumam caber os mendigos, os meninos de rua, os bêbados, as putas, os loucos, os párias. E os índios. Ou cabiam. E já não cabem mais.

Rodoviárias são espaços de circulação de estranhos, e por serem “os outros”, os estrangeiros nativos, os indígenas acreditam que neste não lugar têm chance de escapar da expulsão. Mas seguidamente são expulsos. Parte da população dos municípios em que os indígenas aparecem com seu artesanato acha que a rodoviária é boa demais pra índio. Ou pra “bugre”, como são chamados em algumas regiões do sul do país. “A rodoviária é o cartão postal da cidade, período que tem tanta gente viajando, chegando. Que imagem vão levar da cidade?”, justificou um comerciante de São Miguel do Oeste, também em Santa Catarina, para justificar a expulsão dos indígenas do local antes do Natal.

Vitor já não estraga nenhum cartão postal. Dele não há nem mesmo um rosto. A foto de sua ausência não comoverá milhões pelo planeta como aconteceu com o menino sírio trazido pelas ondas do mar. A morte dos curumins não muda nenhuma política.

Antes que me acusem de precipitação, exagero ou injustiça, é preciso dizer: os “cidadãos de bem” não querem que crianças indígenas tenham seus pescoços perfurados. De jeito nenhum. Apenas que elas fiquem longe da vista. Em outro lugar em que não contaminem, sujem ou enfeiem. Mas também não nas suas terras, se estas forem ricas em minérios, férteis pra soja ou boa pra gado pastar. Aí também é abuso. Desapareçam, apenas. Mas matar, não, matar é maldade.

2015 foi o ano em que esse discurso deu ao Brasil o bicampeonato. O deputado estadual Fernando Furtado, do Partido Comunista do Brasil (PCdoB), foi reconhecido como “Racista do Ano” pela organização Survival International por seu pronunciamento antológico, ao se manifestar numa audiência pública: “Lá em Brasília, o Arnaldo viu os índios tudo de camisetinha, tudo arrumadinho, com flechinha, tudo um bando de viadinho, que tinha uns três que eram viado, que eu tenho certeza, viado. Eu não sabia que tinha índio viado, fui saber naquele dia em Brasília… Tudo viado. Então é desse jeito que tá, como é que índio já consegue ser viado, boiola, e não consegue trabalhar e produzir? Negativo!”.

O parlamentar se referia aos Awá-Guajá, considerados um dos povos mais vulneráveis do planeta. A conquista de Fernando Furtado, porém, não é inédita. Outro parlamentar, Luis Carlos Heinze, este deputado federal pelo Partido Progressista (PP) do Rio Grande do Sul, já tinha subido ao pódio em 2014, com a seguinte declaração: “O governo… está aninhado com quilombolas, índios, gays e lésbicas, tudo o que não presta”. Tudo indica que o Brasil é quase imbatível para o tricampeonato. Fala-se tanto em país polarizado, mas a premiação prova que os indígenas são um raro ponto de unanimidade entre certa direita e certa esquerda dessa grande nação.

Vitor, o bebê assassinado, vivia na aldeia Condá, no município de Chapecó, no oeste de Santa Catarina. Os crimes cometidos pelo Estado contra o povo Kaingang da região sul do Brasil estão registrados no Relatório Figueiredo, um documento histórico que se acreditava perdido e que foi descoberto no final de 2012. O relatório, datado de 1968, documentou o tratamento dado aos povos indígenas pelo extinto Serviço de Proteção aos Índios (SPI). No total, o procurador Jáder Figueiredo Correia dedicou 7.000 páginas para contar o que sua equipe viu e ouviu. Quem quiser compreender por que Vitor se abrigava no chão da rodoviária de Imbituba em vez de passar os meses de verão seguro, saudável e feliz na sua aldeia, tem uma rica fonte de informações no documento disponível na internet. Vai descobrir, entre outras atrocidades, como antepassados de Vitor chegaram a ser torturados e a viver em condições análogas à escravidão para que suas terras fossem desmatadas e exploradas pelos não índios, em pleno século 20. É possível que alguns destes “empreendedores” sejam avós daqueles que hoje acham que indígenas como Vitor sujam o cartão postal de suas cidades.

Depois do assassinato do bebê, a Polícia Militar prendeu o suspeito de sempre. Um rapaz pobre, em liberdade provisória, com “uma pequena quantidade de maconha e cocaína na mochila”. Como não havia nenhum indício contra ele, foi liberado. Em seguida, foi preso outro jovem, hoje considerado o principal suspeito. A polícia procurava alguém bastante genérico: com mochila e boné e tipo físico semelhante ao que aparece num vídeo gravado por uma câmera de segurança. A suspeita de policiais militares é de que o assassino estaria “incomodado com a presença dos indígenas no local”. A Polícia Civil mencionou como possíveis motivações “preconceito”, “surto” e “problemas psicológicos”. Em nota, o CIMI afirmou: “O Conselho Indigenista Missionário manifesta preocupação com o clima de intolerância que se propaga, na região sul do país, contra os povos indígenas. Um racismo – às vezes velado, às vezes explícito – é difundido através de meios de comunicação de massa e em redes sociais”.

Quem de fato assassinou Vitor talvez seja investigado, julgado, condenado e punido, o que já é uma raridade em mortes de indígenas no Brasil, marcadas pela impunidade. Mas é preciso fazer perguntas mais complicadas. Quem armou essa mão? Que encruzilhada histórica permitiu que Vitor fosse o bebê escolhido pelo assassino, independentemente de sua sanidade ou insanidade – e não o meu filho ou o seu? Onde estamos nós nesta foto em que estamos sem estar?

Tem se dito que 2015, um ano de crise no Brasil e horror em todas as partes, é o ano que não terminou. 2016 seria apenas um looping. Faz sentido. Na véspera deste Natal, Antônio Isídio Pereira da Silva, líder rural e ambientalista no Maranhão, foi encontrado morto. Era mais um assassinato anunciado. Há um ano foi arquivado o pedido de inclusão do agricultor no programa federal de proteção aos defensores de direitos humanos. Ele se preparava para denunciar mais um desmatamento ilegal numa região com graves conflitos de terra quando foi assassinado. Também no Natal, cinco jovens denunciaram policiais militares do Rio por tortura e roubo. Segundo seu relato, eles voltavam em três motos de uma festa quando foram detidos por PMs da Unidade de Polícia Pacificadora de Coroa, Fallet e Fogueteiro. Além de torturas com faca quente, isqueiro e socos, um deles teria sido obrigado a fazer sexo oral no amigo. Em São Paulo, levou apenas dois dias para ocorrer a primeira chacina de 2016, com quatro mortos na periferia de Guarulhos. Suspeita-se de vingança pela morte de um PM dias antes na região.

Começamos como acabamos. Nada, portanto, nem começou nem acabou. Quem continua morrendo de assassinato no Brasil, em sua maioria, são os negros, os pobres e os índios. O genocídio segue diante da indiferença, quando não aplauso, do que se chama de sociedade brasileira. Começamos 2016 como acabamos 2015. Obscenos. Os fogos do Ano-Novo já fracassam no artifício. Estamos nus. E nossa imagem é horrenda. Ela suja de sangue o pequeno corpo de Vitor por quem tão poucos choraram.

Dizem que 2015 é o ano que não acaba. Ou que 2013 é que não chega ao fim.

Para os indígenas é muito mais brutal: o ano de 1500 ainda não terminou.

(Publicado no El País em 4 de janeiro de 2016)

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