ECA do B

Diante da naturalização do horror, tentei um outro caminho.

herinaldos

Para que criança vai correr, me diz? Não tem nada que correr. Onze anos de idade e correndo? Vai trabalhar! O policial se assusta com aquele corpinho escuro e mirrado vindo na sua direção e atira. Pronto, a bala acha. Aconteceu agora, na semana passada, com o Herinaldo. Peraí, preciso rir um pouco. Ah, onde esses pobres acham esses nomes? Herinaldo, vê bem se alguém tem futuro com um nome desses. O Herinaldo correu, levou bala. Bum, um tiro no peito. Dizem que estava indo comprar uma bolinha de pingue-pongue. Sei! Desde quando preto sabe jogar pingue-pongue? Tava era indo comprar fumo na boca. Ou era aviãozinho. E eraviadinho o moleque. Em vez de lidar com a situação como homem, ficou gritando: “Quero a minha mãe!”. Afe. O que importa é que por causa dessa falta de atenção do Herinaldo, meu SUV ficou parado no trânsito. Favelado adora trancar rua, deve ser por inveja de quem tem carro. Em vez de ensinarem aos seus abortos que criança pobre não pode correr, fazem protesto. Brasileiro é muito subdesenvolvido, mesmo. Eita país que não vai pra frente. Por sorte a PM distribuiu umas bombas de gás e botou a macacada pra correr. Deu pra chegar pro jantar a tempo, mas foi por pouco. E a Rosinete faz uma comida muito boa, essa é uma negra de alma branca, praticamente da família. Depois vi no Balanço Geral o apresentador entrevistando a mãe do estropício. O jornalista foi na veia mesmo. Onde a senhora tava quando aconteceu? A mulher disse que tava cuidando de um idoso, vê bem. Em vez de cuidar do filho, mantê-lo em casa, tava batendo perna na casa dos outros. Disse que trabalhando, mas vá saber o que essa gente anda fazendo! Depois o repórter perguntou se o Herinaldo era metido com tráfico. A mãe negou, mas na cara que era. Se não fosse, tava correndo por quê? Por acaso criança de 11 anos corre na rua?

Está aqui.

Reprodução/Arquivo Pessoal

Reprodução/Arquivo Pessoal

ECA do B

As crianças negras e pobres do Brasil só são achadas por bala perdida porque não sabem ler o verdadeiro Estatuto da Criança e do Adolescente

Se as crianças negras e pobres tivessem aprendido a ler, não ficariam interrompendo o tráfego com seus corpinhos escuros. Mas vão para escolas públicas bem equipadas, em prédios planejados, cercados por jardins e quadras de esporte, com professores bem pagos e preparados, em tempo integral, alimentadas com comida nutritiva e balanceada, e nem assim conseguem ler direito. Só desperdiçam os impostos pagos por pessoas de bem, como eu. Preferem ficar em seus barracos sufocantes, em ruas esburacadas e sem árvores, por mau gosto. Impressionante o mau gosto das crianças pobres e negras, uma coisa que vem de berço, mesmo, basta ver como se vestem mal. Por isso, não compreendem o Estatuto da Criança e do Adolescente. Não a bobajada aprovada nos anos 90, por aquele monte de babacas que ficam choramingando até hoje porque a ditadura torturou e matou uns milhares de comunistas. Matou foi pouco! Estou falando do verdadeiro Estatuto da Criança e do Adolescente, o que não foi feito por gente que ficou desperdiçando anos estudando para proteger direitos humanos de bandidinhos. Como se crianças negras e pobres fossem humanas! Estou falando do ECA que vale, o das ruas, a lei na prática, mesmo. O outro, o oficial, é só pra botar na biblioteca daqueles intelectualoides de esquerda, pra encherem aquela boca mole de porcaria politicamente correta e se exibirem em reunião da ONU. Se os moleques soubessem ler e soubessem o seu lugar, estariam aí, vivos, pra ficar chapinhando no esgoto, como gostam. Como não tenho estômago pra sujeira na via pública, resolvi sistematizar a lei em vigor e fazer o manual de 2015, versão atualizada, para ver se param de emporcalhar o chão com seus miolos. Uma coisa bem didática, bem simples, pra que mesmo uma raça inferior consiga entender. Vou botar nome em cada uma delas, pra ver se fica mais fácil de entrar nessas cabecinhas cheias de maconha. Tipo, lembra do caso, associa com a lei, não faz merda, tudo resolvido. Como no ano que vem tem Olimpíada e não quero que os gringos pensem que aqui não tem lei, me restringi ao Rio de Janeiro. Se cada um fizer a sua parte pra higienizar a cidade, o Brasil ainda pode brilhar:

1) Lei Herinaldo: criança preta não pode correr na rua

Para que criança vai correr, me diz? Não tem nada que correr. Onze anos de idade e correndo? Vai trabalhar! O policial se assusta com aquele corpinho escuro e mirrado vindo na sua direção e atira. Pronto, a bala acha. Aconteceu agora, na semana passada, com o Herinaldo. Peraí, preciso rir um pouco. Ah, onde esses pobres acham esses nomes? Herinaldo, vê bem se alguém tem futuro com um nome desses. O Herinaldo correu, levou bala. Bum, um tiro no peito. Dizem que estava indo comprar uma bolinha de pingue-pongue. Sei! Desde quando preto sabe jogar pingue-pongue? Tava era indo comprar fumo na boca. Ou era aviãozinho. E era viadinho o moleque. Em vez de lidar com a situação como homem, ficou gritando: “Quero a minha mãe!”. Afe. O que importa é que por causa dessa falta de atenção do Herinaldo, meu SUV ficou parado no trânsito. Favelado adora trancar rua, deve ser por inveja de quem tem carro. Em vez de ensinarem aos seus abortos que criança pobre não pode correr, fazem protesto. Brasileiro é muito subdesenvolvido, mesmo. Eita país que não vai pra frente. Por sorte a PM distribuiu umas bombas de gás e botou a macacada pra correr. Deu pra chegar pro jantar a tempo, mas foi por pouco. E a Rosinete faz uma comida muito boa, essa é uma negra de alma branca, praticamente da família. Depois vi no Balanço Geral o apresentador entrevistando a mãe do estropício. O jornalista foi na veia mesmo. Onde a senhora tava quando aconteceu? A mulher disse que tava cuidando de um idoso, vê bem. Em vez de cuidar do filho, mantê-lo em casa, tava batendo perna na casa dos outros. Disse que trabalhando, mas vá saber o que essa gente anda fazendo! Depois o repórter perguntou se o Herinaldo era metido com tráfico. A mãe negou, mas na cara que era. Se não fosse, tava correndo por quê? Por acaso criança de 11 anos corre na rua?

Uso: a aplicação mais recente da lei número 1 do ECA do B ocorreu em 23 de Setembro de 2015. Herinaldo Vinicius Santana, de 11 anos, levou um tiro no peito, no Caju, zona portuária do Rio de Janeiro.

Tá com pena? Leva pra casa!

2) Lei Cristian: adolescente preto não pode jogar futebol

Para que jogar futebol? Vê bem o que um sonso desses têm na cabeça. Se o moleque tem 13 anos e mora num favelão cheio de traficantes, vai fazer o quê? Jogar futebol? Não! Vai ficar trancado no barraco, sei lá, vendo Netflix na TV ou jogando no tablet, já que não gosta de estudar. Não se gabaram tanto que viraram Classe C, comprando TV de tela plana bem grande? Então, aproveita. Faz 40 graus dentro de casa? Toma um banho de hidromassagem pra baixar os hormônios! Mas não, o projeto de bandido pensa que é o Neymar e vai lá jogar futebol. Desde quando moleque joga futebol no Brasil? Aí a polícia tá lá, fazendo o seu serviço, atrás de um animal que tinha matado um PM, um pai de família, um trabalhador, e uma bala acaba achando o moleque. É culpa de quem? Da polícia? Só na cabeça de bagre desses direitos humanos. Se o moleque tivesse trabalhando numa hora dessas, não tinha acontecido nada. Mas não, tava lá, jogando futebol, antes do meio-dia. Tem deputado de esquerda aí dizendo que quando ouviu os tiros o moleque até parou pra ajudar uma idosa a se proteger. Ah, tá, agora virou santo. O fato é: como é que a polícia vai botar ordem na bagaça com esses vagabundos no meio do caminho? E a mãe do moleque? Fazendo teatro no enterro: “Meu filho, acorda, meu filho, acorda…”. Patético, por acaso a mulher não consegue juntar o tico e o teco e perceber que aquele ali já tava no inferno? É só um, pra que tanto escândalo? Do jeito que é esse povo deve ter mais uns 13 pretinhos em casa, tudo da mesma laia, que é pra ter bastante Bolsa Família. Mas aí a pobraiada protesta, mais confusão. Aquela Anistia Internacional, que deveria estar lá na Síria, cuidando daqueles meninos branquinhos, faz nota falando em “lógica de guerra”. Que guerra? É lei. ECA do B pra limpar o Brasil! Jogou futebol em hora errada, a bala acha. Simples assim. Quer que eu desenhe?

Uso: a aplicação conhecida mais recente da lei número 2 do ECA do B foi em 8 de Setembro de 2015. Cristian Soares Andrade, de 13 anos, foi baleado e morto na região de Manguinhos, no Rio de Janeiro.

Tá com pena? Leva pra casa!

3) Lei Jesus: criança pobre não pode ficar sentada na frente de casa

O que é que um moleque de 10 anos tem na cabeça pra se sentar no batente da porta de casa se mora numa das favelas do Complexo do Alemão? Não, sério, me diz. Nada, não tem nada na cabeça. Ou melhor, não tinha. Agora tem uma bala. Os policiais lá, fazendo o seu trabalho, que é matar bandido, e o moleque lá, atrapalhando a operação. Aí a mãe, mais uma tipinha daquelas, começa a berrar com o policial. Se a mulher fica fazendo arruaça, o agente da lei tem mesmo é de apontar a arma pra ela. Vai aguentar calado, que nem mulherzinha? Aí a vagabunda grita: “Pode me matar! Pode me matar que você já acabou com a minha vida!”. Mulher é um bicho histérico mesmo, né? E essas aí, de favela, então, bem mostram que nasceram no esgoto. Sou eu, que tenho cabeça quente, já dou logo um tiro e aproveito pra enterrar mãe e filho na mesma cova, que o cemitério já não tá dando mais conta daquela plantação de pretos a meio palmo do chão. Se aquela uma não estivesse aboletada no sofá vendo televisão, tinha reparado que o filho tava sentado onde não devia. Ou porta de casa é lugar de uma criança se sentar pra brincar? Mas não, tá lá, distraída com novela ou alguma outra bobagem, e depois faz aquela choradeira. “Quando eu vi, uma parte do crânio do meu filho tava na sala”. Se tivesse cuidado, não estaria, simples assim. Disse que trabalha como doméstica…. Tava fazendo o que em casa num final de tarde, então? E mais pobre interrompendo o trânsito pra fazer protesto. Mais direitos humanos enchendo o saco. Esse país tá ficando inviável. Se eu não fosse tão patriota, ia logo pra Miami e até votava no Donald Trump, um homem que vai botar as coisas no lugar depois de desinfetar a Casa Branca daquela negrada. Mas, não, sou do Brasil, com muito orgulho, e vou fazer a minha parte pra varrer essa pretaiada daqui. Sem contar que, e eu não tenho medo de dizer, eu falo a verdade mesmo, na cara de quem precisar: se esse moleque não tivesse levado um tiro, mais dois anos e já era bandido. A mãe falou que queria ser bombeiro. Aham. Dois anos no máximo e já era aviãozinho. Se ia morrer de qualquer jeito, pelo menos morreu sem ter feito mal pra nenhum cidadão de bem. Nesse caso não é bala perdida nem achada: é bala preventiva.

Uso: A última aplicação conhecida da lei número 3 do ECA do B ocorreu em 2 de abril de 2015. Eduardo de Jesus Ferreira, de 10 anos, foi baleado na cabeça, na porta da sua casa, no conjunto de favelas do Complexo do Alemão, na zona norte do Rio de Janeiro.

Tá com pena? Leva pra casa!

4) Lei Alan: adolescente pobre não pode brincar com celular

Esse aí é outro caso de óbvio ululante. Mas como a gente precisa explicar tudo, vamos lá. Três moleques brincando com um celular numa favela, em cima de bicicletas. O que um policial pensa? Tão fazendo coisa errada, claro. Com certeza as bicicletas são roubadas e o celular também. Aí um deles corre. O que um policial bom faz? Atira, claro. E não vai atirar pra aleijar, que não é um homem cruel, atira logo pra matar, que o Estado não tá podendo arcar com tanto benefício por invalidez assim. Aliás, é o sonho dessa gente. Ter um filho aleijado pela polícia pra ficar mamando nas tetas do Estado sem precisar trabalhar. Aí o moleque cai. O policial, bem educado, pergunta pro amigo que ficou vivo: “Por que vocês estavam correndo?”. O moleque, um desses vendedores de chá mate que ficam assediando os turistas na praia, diz: “A gente tava brincando, senhor”. Pronto, os direitos humanos fazem um escarcéu com essa frase, vai até parar em jornal estrangeiro. Por isso que não pode ter celular na mão de preto. Começam a se achar gente e ficam gravando tudo. Tou aqui, pensando se não é melhor fazer logo um parágrafo extra pra essa lei, proibindo preto e pobre de usar celular. A ver.

Uso: A última aplicação conhecida da lei número 4 do ECA do B ocorreu em 20 de fevereiro de 2015. Alan de Souza Lima, de 15 anos, foi morto pela polícia na favela da Palmeirinha, em Honório Gurgel, subúrbio do Rio de Janeiro.

Tá com pena? Leva pra casa!

5) Lei de Circulação de PP: Pobre e Preto de menor não pode pegar ônibus para ir às praias da Zona Sul

Nessa aí nem botei um nome, porque os marginalzinhos são tantos que a lista ia ter quilômetros. Quem gosta de lei comprida é intelectual. O ECA do B é simples, branco no preto. Em cima do preto! Qualquer mané consegue entender. O cara entra num ônibus com nenhum dinheiro no bolso, mal vestido ou até sem camisa, o que calor nenhum justifica, lá na PQP onde ele mora, e quer ir pras praias da Zona Sul do Rio de Janeiro. Vai fazer o que lá? Arrastão, obviamente. Aí vem aquele papinho de que é uma minoria que faz arrastão, que o resto da pretaiada só quer se divertir na praia. Tenha dó. Mesmo que seja, como vai saber? Não dizem sempre que tem de prevenir o crime? Então, taí. Se não é a polícia, é pessoa de bem como eu que tem de fazer a justiça valer. Levo filho, sobrinho, tudo uns meninos fortes, de academia, menino bom, e tiro essa molecada pelo pescoço de dentro do coletivo. Jogamos tudo lá, de volta à cloaca de onde nunca deveriam ter saído. Depois tomamos um banho de álcool zulu pra descontaminar. O que é que preto tem pra fazer no Leblon, Ipanema, Copacabana, me diga? Nada! No máximo vender um coco, um biscoito Globo, mas assim, controlado, número restrito. Vai querer tomar banho de mar, jogar um vôlei, curtir? É muita falta de ferro no lombo. Desde quando a senzala pega praia? Mesmo que os moleques não assaltem, vão estragar o cartão-postal do Rio com aquelas caras achatadas. Gringo vem aqui gastar seus dólares pra ver garota de Ipanema, loirinha, olho azul. E as mulatas lá naquele outro lugar que a gente sabe bem onde é e pra que serve. Se cada um soubesse o seu lugar, aliás, tava tudo resolvido. O problema do Brasil hoje é que as criaturas não sabem mais o seu lugar. Mas a gente explica pra elas, bem direitinho, numa chave de pescoço, colaborando com o trabalho da polícia, que já não dá mais conta de tanto pobre querendo pegar praia. Preto sai, branco fica. Inverti o nome daquele filme! Pessoalmente, inclusive, eu faria um parágrafo único aqui nesta lei número 5: ônibus pra pobre sair da favela só se for pra trabalhar. O cara mostra a carteira de trabalho registrada pra um policial, na porta do 474, e pode embarcar, com carimbo pra sair e carimbo pra voltar, assinado pelo patrão. Horário determinado, tudo ali certinho, na ponta do lápis, como se diz. Fora daí, se o negão for pego zanzando na Zona Sul, cadeia nele. Nessa aí preciso tirar o chapéu pros paulistas. Não gosto muito de paulista, mas eles sabem fazer as coisas direito quando querem. Não teve lá aquele, como é o nome mesmo? Ah, sim, Rolezinho, só preto pra inventar um nome tão idiota. Então. A ralé queria passear no shopping. E em bando, como se fosse moda adolescente andar em grupo. Polícia neles! Mais de três moleques pretos num shopping é assalto e pronto. Volta pra favela! Vai querer usar grife? Te enxerga, mané! Não tem grife que limpe a tua cara preta, não tem tênis de marca que te faça ficar igual a nós. Repressão neles e tudo resolvido. No Rio o povo de bem também sabe resolver as coisas, esse final de semana foi uma beleza. Revista na pobraiada!

Uso: a mais recente aplicação da Lei de Circulação de PP foi nesse último final de semana, mas pode estar sendo usada agora mesmo. Lei que brasileiro concorda é que nem gripe, pega na hora e se espalha.

Tá com pena? Leva pra casa!

E aqui encerro o ECA do B, um conjunto de cinco leis simples, claras e objetivas. Espero ter colaborado para tranquilizar os turistas que virão para a Olimpíada 2016 ver nossas belezas, conhecer o nosso povo cordial e as maravilhas da nossa terra alegre e hospitaleira. Como é mesmo o lema da Olimpíada mesmo? “Somos Todos Brasil!!!” Uhú!

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O texto acima foi escrito a partir dos fatos reais ocorridos neste ano no Rio de Janeiro e de uma pesquisa sobre os comentários postados nos sites e redes sociais sobre esses fatos, por aqueles que se apresentavam como “cidadãos de bem” ou termos similares. Criar esse texto na primeira pessoa, juntando numa só voz os principais argumentos em circulação, foi uma tentativa de tornar esse discurso de ódio visível. Não da forma habitual, já banalizada, mas a partir do seu deslocamento para um lugar onde ele é estranho. E, assim, produzir estranhamento e incômodo.

Ao deslocar esse discurso de ódio, colocando-o neste espaço, talvez se torne mais difícil banalizar o horror que sai da boca de brasileiros nas ruas virtuais e reais, com espantosa facilidade. Também fica mais complicado aceitar como liberdade de expressão um discurso que legitima um Estado que age acima da Lei, ao criminalizar pobres e negros, naturalizando as suas mortes e a violação de seus direitos pelas forças de segurança pública que também deveriam protegê-los. Enquanto o Estatuto da Criança e do Adolescente é a legislação criticada por setores da sociedade e nunca implementada por completo, o ECA do B é a lei não escrita, mas entranhada no sistema e assumida pelas polícias e por parte da população, a lei fora da lei que rege a prática cotidiana do país.

Dizem que anunciar a ironia estraga a ironia. Até um tempo atrás, eu concordaria de imediato com essa afirmação. Não mais. Hoje, é preciso avisar, porque como já aconteceu com outros colunistas, há quem se identifique tanto com esse discurso que vai fazer dele uma leitura literal e acreditar que eu finalmente “vi a luz”. Para essas pessoas, assim como para seus pares, o que é denúncia se converterá em defesa do ódio e do racismo e do linchamento e da execução. E assim será replicada. Não posso correr esse risco em tempos tão agudos. Usando os instrumentos da ironia e da paródia, busco denunciar quem acredita nesse discurso e o dissemina. Se você se identificou com o texto, é também você que estou denunciando. E talvez uma das frases seja a reprodução de um dos seus comentários na internet. Neste caso, espero que tenha restado algo vivo em você para que tenha a chance de se envergonhar.
Esses quatro meninos foram assassinados no Rio de Janeiro só neste ano de 2015: correndo, brincando, jogando futebol, sentado na porta da casa. E estes foram apenas os que viraram notícia na imprensa. Herinaldo, Alan, Cristian, Jesus. A imagem do corpinho do menino sírio carregado para a praia pelas ondas do Mediterrâneo obrigou a Europa a enxergar a tragédia daqueles que fugiam da guerra em busca de refúgio. E, ao enxergar, comprometer-se com essa dor. Implicar-se. O choque de humanidade teve impacto político.

A imagem do corpo arrebentado à bala de Herinaldo, Christian, Jesus e Alan, porém, parece não ter força para impedir a continuidade do genocídio das crianças e jovens negros e pobres no Brasil. Seus corpos são esvaziados de humanidade e viram objetos, restos cotidianos que já não provocam espanto, para além dos mesmos de sempre. No máximo protestos das comunidades, recebidos a bombas de gás pela polícia e com demonstrações de irritação pelos motoristas, que não querem corpos de criança atrapalhando o tráfego.

Fico pensando: em que praia os pequenos corpos desses brasileiros precisam chegar para serem vistos? Nas praias da Zona Sul carioca já sei que não adianta.

 

(Publicado no El País em 28 de setembro de 2015)

 

Rodopiando em Min

Minha despedida de Marcelo Min, fotógrafo que amarrou as pontas da vida. Meu amigo não queria morrer, mas morreu como quis: vivo.

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Lembro-me primeiro de uma noite de inverno. Marcelo Min e eu testemunhávamos, como repórteres, os últimos dias da vida de Ailce de Oliveira Souza, a mulher que nós dois aprendêramos a amar, ao acompanhar o seu morrer por 115 dias. Naquela noite, Ailce parecia ter começado a partir. Ela só abria os olhos para olhar o mundo do qual se despedia e para pedir água. Nós molhávamos os lábios dela e ficávamos olhando o mundo com ela. Nem Min nem eu conseguimos deixá-la naquela noite. Nos enfiamos num quarto vago na enfermaria de cuidados paliativos do hospital, onde seu último inquilino acabara de se ir. Eram duas camas e não havia lençol. Deitamos sobre o plástico e Min, sempre generoso, me deu o único cobertor fino para atravessar uma madrugada gelada. Até ancorarmos no dia seguinte, ele ficou repetindo que não sentia frio, mas tiritava. Naquela noite do inverno de 2008, ficamos ali, no escuro, dois passageiros clandestinos daquela enfermaria entre a vida e a morte. Conversando para costurar a madrugada e a dor com palavras. Min me contou que queria morrer como seu Antônio, um homem que ele tinha fotografado em outro quarto, seu Antônio que o recebia com uns olhos brilhantes, molhados de vida, mais vivo que todos, e de imediato contava uma história. Min foi o primeiro a perceber que seu Antônio acreditava que, enquanto emendasse uma história na outra, estaria vivo. E um dia apenas fechou os olhos para anunciar que sua história tão cheia de “um tudo” havia chegado ao fim.

Antônio Walter Correia abriu o sorriso antes de começar a contar uma das muitas histórias de sua vida. (Foto: Marcelo Min)

Antônio Walter Correia abriu o sorriso antes de começar a contar uma das muitas histórias de sua vida. (Foto: Marcelo Min)

Três dias depois, o contador de histórias encerrou a sua suavemente (Foto: Marcelo Min)

Três dias depois, o contador de histórias encerrou a sua suavemente (Foto: Marcelo Min)

Marcelo Min morreu na última quinta-feira (27/8). E eu ainda não posso afirmar que isso de fato aconteceu. Aqueles que amamos morrem devagar dentro da gente, e a qualquer momento eu sinto que ele vai chegar com aquele jeito meio tímido, com aquele sorriso inteiro bom, e dizer: “Oi, Eliane”. E depois faríamos alguma reportagem em que invariavelmente alguém o chamaria de “japonês”. E nós dois riríamos por causa dessa sina de que no Brasil todos os descendentes de orientais viram “japonês.” Min era descendente de coreanos. Mas ele morreu. E quando me pediram para escrever um texto sobre ele, minha reação imediata foi dizer: “não consigo”. Como escrever sobre o Min quando a morte dele me rouba todas as palavras? Naquele momento, eu me sentia como uma criança que ainda não sabia onde as palavras moravam. Agora, algumas horas depois, volto a ser adulta. Sei onde as palavras moram, mas sei também algo que jamais vou superar: as palavras são faltantes, não dão conta da vida. Então, Min, me perdoa por me faltarem palavras para contar da falta que você nos faz.

Na manhã de terça-feira (25/8), Min deixou os filhos na escola que ele e Luciana Benatti, sua companheira, ajudaram a criar. Sim, juntos eles eram assim, o Min e a Luciana. Criavam um mundo melhor, inventavam o que precisava existir. A gente nem sabia que precisava, mas eles sabiam. E inventavam. Min se despediu de Arthur, 7 anos, e de Pedro, 4, e foi ao Parque Villa-Lobos para fazer algo bem Min. Nos últimos dois anos ele tinha decidido aprender a patinar. E quando Min decidia fazer alguma coisa, fosse um gesto ou uma aventura arriscada, ele fazia. Ficou assistindo a tutoriais na internet e acabou por se tornar um artista da patinação. Luciana olhava para ele: “Aos 46 anos, Marcelo?”. Luciana sabia que Min era livre. E o amava livre. Min então rodopiava. Ele rodopiava quando se sentiu mal. Não houve queda, nem nada assim. Era um aneurisma no cérebro, um inimigo silencioso dentro dele. Logo Min perdeu a consciência. Dois dias depois, os médicos anunciaram sua morte cerebral.

Marcelo Min foi meu companheiro em todas as reportagens sobre a morte. E foram várias. Entre 2008 e 2010 empreendemos juntos essa travessia. Acho que só ele seria capaz de olhar para a morte da maneira revelada por suas fotos. Com tanta delicadeza. Tem gente que escreve com a ponta dos dedos. Min fotografava com a ponta dos dedos. Foi assim quando registrou uma mãe com seu bebê morto nos braços. Era uma foto tão difícil. Estávamos contando a rotina de uma UTI neonatal com cuidados paliativos, narrativas de mães que pariam filhos já condenados à morte próxima. A foto era um ritual que dava memória a um momento da vida daquelas mães e pais, uma certeza de que tinham cuidado da melhor forma que puderam, haviam feito todo o possível. Tinham sido mães e pais, ainda que por um curto espaço de tempo. A foto era o registro de uma história, ainda que essa história fosse um sopro. Mas só Min poderia fazer esse retrato para publicar numa revista de circulação nacional.

Josiane Pereira despede-se de sua filha Ana Luiza. A menina viveu apenas sete horas. Na sala de luto, na unidade de neonatologia, o marido, Giovani, a ampara e acaricia (Foto: Marcelo Min)

Josiane Pereira despede-se de sua filha Ana Luiza. A menina viveu apenas sete horas. Na sala de luto, na unidade de neonatologia, o marido, Giovani, a ampara e acaricia (Foto: Marcelo Min)

Nessa travessia reportera por contar o morrer, Min era mais sábio do que eu. Ele compreendia melhor a matéria da vida. No mesmo período em que peregrinávamos por camas onde a existência se encerrava, ele se dedicava com Luciana a um outro projeto, o de contar o nascimento. Ativistas, ele e Luciana, do parto natural e humanizado, Min ora era chamado para registrar estreias de bebês no palco do mundo, ora era chamado para documentar a despedida de quem deixava a cena. Vivia sob o imperativo de dois gritos, às vezes quase simultâneos: “Vai nascer!” ou “Está morrendo!”. Partia para ambos os destinos com a mesma serenidade e a mesma entrega desbragada. Nascer e morrer era muito semelhante, no ponto de vista dele, eram partes de um mesmo processo. O olhar amendoado de Min amarrava as duas pontas da vida. Nunca consegui confirmar o autor dessa frase que estou sempre repetindo, por perfeita que é, mas o legado fotográfico de Min deu uma imagem definitiva a esse aforismo: “A morte não é o contrário da vida. A morte é o contrário do nascimento. A vida não tem contrários”.

Denise, Lauro e a pequena Alice (Foto: Marcelo Min)

Denise, Lauro e a pequena Alice (Foto: Marcelo Min)

Arthur, o primeiro filho de Luciana e Min, fez sua estreia no mundo numa banheira de hospital e foi devidamente fotografado pelo pai. Pedro nasceu numa piscininha inflável, decorada com alegre fauna marinha e abastecida por uma mangueira e um velho chuveiro Lorenzetti, na sala do apartamento. Quando sentiu a primeira contração, Luciana achou que era a lasanha de berinjela do jantar se manifestando. Não era, e logo o porteiro do prédio foi ficando alarmado com as mulheres que chegavam de malinha no meio da noite para ajudar no parto em casa. Piorou a situação do porteiro quando Luciana começou a dar aqueles berros primais e libertadores na madrugada. Antes de começar a gritar nas contrações mais fortes, avisou ao pequeno Arthur: “Filho, para o irmãozinho sair da barriga, a mamãe vai ter que dar uns gritos de leão”. Arthur adorou. E a partir daí, sempre que sua mamãe leoa berrava, ele ria e batia palmas na maior empolgação. Foi assim, no estilo Luciana e Min de ser, que Pedro nadou para a vida. Marcelo e Arthur, pai e filho, cortaram o cordão umbilical. Quando Luciana acordou no dia seguinte, Marcelo serviu pão com requeijão. Eles eram assim. Eles serão sempre assim, juntos na memória da gente.

Luciana Benatti no parto de Arthur (Foto: Marcelo Min)

Luciana Benatti no parto de Arthur (Foto: Marcelo Min)

Luciana Benatti e Arthur (Foto: Marcelo Min)

Luciana Benatti e Arthur (Foto: Marcelo Min)

Na véspera do dia em que perdeu a consciência, Min levou os dois filhos para o estúdio e passou a tarde fotografando-os. À noite, uma amiguinha foi dormir na casa deles. Min botou as crianças na cama e, de novo, fotografou-as. Depois, ele e Luciana abriram uma cerveja e ficaram conversando sobre a vida. Eles sentiam-se num grande momento, “plenos” foi a palavra escolhida por Luciana. Viviam segundo suas próprias escolhas. Min disse a Luciana sobre como se sentia feliz por ter escolhido trabalhar menos para poder colocar os filhos na cama, como acabara de fazer. Min tinha escolhido uma vida viva. E sabia disso.

Nascer e morrer não foram os dois únicos temas da fotografia de Marcelo Min. Ele documentou muitos Brasis, vários mundos. Alguns deles comigo, muitos com outros repórteres. Várias vezes sozinho. Min não era um fotógrafo que esperava. Era ele mesmo um desbravador de histórias. Se o principal instrumento do repórter é a escuta, Min escutava com os olhos. Dentro daquele semblante sereno, habitava uma vontade indomável. Min era apaixonado e obcecado por suas paixões. E uma delas era a justiça. Foi assim na desocupação do Jardim Edite, em 2009, quando a especulação imobiliária expulsou 800 famílias depois que o metro quadrado daquela região de São Paulo se valorizou, entre a Avenida Berrini e a Ponte Estaiada. Alguns jornalistas acreditaram na versão oficial e deram a notícia de que todos os moradores haviam deixado o lugar. Mas Min estava lá, onde um repórter deve estar, por sua própria conta, sem que nenhum chefe tivesse mandado ou pedido. Ele acompanhava há meses o cotidiano da favela para contar o mundo invisibilizado, ainda que gigantesco, escancarado para todos que passavam pela avenida, mas preferiam não vê-lo. Min provou que havia restado uma casa, uma resistência. Registrou os últimos gauleses, Marcão da Pipoca e sua família, diante de uma casa pintada com “a cor do céu” entre os escombros do inferno de uma cidade que mastiga os mais pobres. Depois, me chamou para contar a história.

O casal José Marcos, conhecido como Marcão da Pipoca, e Maria Aparecida, sua filha Késia e o neto Miguel Isaías, diante de sua casa, numa favela que não existe mais, na Zona Sul de São Paulo (Foto: Marcelo Min)

O casal José Marcos, conhecido como Marcão da Pipoca, e Maria Aparecida, sua filha Késia e o neto Miguel Isaías, diante de sua casa, numa favela que não existe mais, na Zona Sul de São Paulo (Foto: Marcelo Min)

Na noite em que ele partiu, Luciana reuniu os amigos e os familiares que haviam ido ao hospital esperar com ela a confirmação da morte cerebral. Ela já era querida naqueles corredores, a mulher que chegara lá com o homem que amava, dizendo: “Se ele tiver que ir, deixa ele ir. Nós falamos muito sobre isso, não queremos nada invasivo, nenhum tratamento doloroso e inútil. Vamos respeitar o tempo dele”. Numa roda de amor, foi lido um texto escolhido por ela. E Luciana depois contou um pouco do Min. Ela disse muito. Disse também: “O Marcelo queria mudar o mundo. E acho que ele mudou”. Sim, ele mudou. O mundo e cada um de nós que o carregaremos no lado de dentro. Sei que sou um pouco o que Min fez de mim em nossas andanças. Pedaços de Min em mim. Em nós.

Ailce, a mulher que acompanhamos no seu morrer, nos ensinou que pensar sobre a morte é pensar sobre a vida. E pensar sobre a vida é pensar sobre o tempo. Ailce havia adiado demais e um dia descobrira que seu tempo tinha acabado. Ensinou, a mim e a Min, que o tempo é a delicadeza inegociável. Acho que Min aprendeu esse ensinamento essencial, talvez o mais profundo, melhor do que eu, que agora me resto a lamentar todas as vezes em que adiei para o dia seguinte o encontro que me levaria até ele. Não há dia seguinte. Não há nem mesmo hoje. Há esse instante, agora, em que tecemos nosso tempo. E sobre isso não podemos negociar, não há o que vender ou comprar. O tempo nem mesmo se aluga. O tempo tem de ser nosso. Já. Tomado de quem nos tomou, para ser tecido em nossos próprios termos.

Min morreu. E Min sempre me soou um nome – sobrenome – tão enigmático. Lembro-me agora da poesia de Drummond. E a adapto para o Min que nela é: “Por muito tempo achei que a ausência é falta. E lastimava, ignorante, a falta. Hoje não a lastimo. Não há falta na ausência. A ausência é um estar em Min. E sinto-a, branca, tão pegada, aconchegada nos meus braços, que rio e danço e invento exclamações alegres, porque a ausência, essa ausência assimilada, ninguém a rouba mais de mim”.

Min partiu. Obedecendo ao seu desejo, claramente pronunciado em tantos dias, seus órgãos foram doados para fazer outros seguirem vivos. Min partiu-se para continuar íntegro. Antes, ele escreveu com Luciana um livro chamado Parto com amor. Min agora parte com amor.

Em um vídeo sobre a reportagem da morte, Min contou que Antônio, o contador de histórias, o ensinou a morrer: “Eu quero morrer que nem o seu Antônio. Até o último momento bem-humorado, até o último momento cheio de vida”.

Marcelo Min não queria morrer, mas morreu como quis. Rodopiando em seus patins, voando.

Min morreu vivo.

Morte Sem Tabu – Entrevista com Eliane Brum

Por CAMILA APPEL/Folha de S.Paulo – Uma pensadora dos nossos tempos, uma artista das palavras, mestre da capacidade de emocionar contando histórias reais. Uma escutadeira que escreve, como gosta de dizer. Alguém que se apodera da sua voz e da sua presença no mundo.

É a jornalista Eliane Brum. O m originalmente era n. Foi amputado num registro errado do tetravô italiano ao desembarcar no Brasil. Essa perna a mais assinala para si tanto uma presença, quanto uma ausência, como ela conta no livro “meus desacontecimentos” (ed. Leya, 2014). A palavra é fundamental para Eliane. “A palavra é outro corpo que habito. Não sei se existe vida após a morte. Desconfio que não, sei que para mim não existe vida fora da palavra escrita. Só sei ser – por escrito. No meu nome carrego o que sou e o que não sou, sustento o que busco e não alcanço, assim como o vazio entre as letras, o incapturável em mim. O indizível também me constitui”.

Ela tem uma voz suave com leve sotaque de Ijuí (Rio Grande do Sul), sua cidade natal. Seu celular está sempre desligado ou no mudo, por não se considerar imprescindível para ser encontrada de imediato, e sentir que nosso tempo perdeu a noção de urgência – “Estamos vivendo como se tudo fosse urgente. Urgente o suficiente para acessar alguém. E para exigir desse alguém uma resposta imediata” (aspas da coluna “É urgente recuperarmos os sentido de urgência) .

Após vinte anos respirando no tempo da rotina de uma redação jornalística, ela decidiu dar um mergulho no seu próprio tempo. Foi descobrir, por exemplo, qual era seu tempo de acordar. Por um período, passou a dormir das 19h às 2h30 da manhã. A mudança no seu modo de viver tem inspiração numa frase de Ailce, protagonista da reportagem “A mulher que alimentava” (“O Olho da Rua, ed. Globo, 2008 – esgotado no impresso mas disponível no Kindle. Será reeditado no final de outubro pela ed. Arquipélago) – na qual acompanhou os últimos 115 dias de vida de Ailce, tocada por um câncer sem chances de cura. Ailce diz: “quando eu tive tempo, descobri que meu tempo tinha acabado”. Esse tecido da vida, como Eliane chama o tempo, é a grande questão da atualidade.

Eliane começou a escrever e a estudar a morte em 2008. Na entrevista abaixo, ela fala sobre “a morte silenciada”. E, principalmente, sobre a oportunidade única que vivemos, de testemunhar a quebra desse silêncio, impulsionada pelos tempos confessionais das redes sociais. Ver o que será dito a respeito da morte agora que se fala sobre ela, é o que fascina Eliane Brum.

Conversamos sobre morte (a última experiência da vida, como diz), o tempo e a medicalização da vida, num restaurante com jeito de sala de estar e LPs à venda na entrada. Um casal na mesa ao lado se agarrava numa paixão admirável, enquanto partíamos da morte para falar sobre a vida, sobre o momento histórico em que vivemos e sentindo talvez certa emoção em poder testemunhar o que está acontecendo, além de uma curiosidade pelo o que está por vir.

Sobre seu futuro, Eliane diz que qualquer coisa pode acontecer, inclusive voltar para uma redação, por que não? Afinal, “a vida cimentada é uma vida morta”.

O que você quer dizer com o que chama de silenciamento da morte nos nossos tempos?

Eu acho que a imprensa, em geral, fala muito de uma morte especificamente – que precisa ser falada também – que é a morte violenta, a morte por assassinato, a morte por acidente de trânsito, a morte por catástrofe… Essa é uma morte frequente no noticiário. E acho até que algumas dessas mortes são menos faladas do que deveriam, como a questão do assassinato de parte da juventude negra. Os números de jovens negros assassinados são um escândalo. E deveria ser um escândalo na imprensa também. Então, apesar de a imprensa, em geral, falar da morte violenta com frequência, fala pouco das mortes que têm cor, têm classe social, para além das estatísticas. Eu fiz algumas matérias sobre isso, como as mães que enterram seus filhos assassinados, mulheres que são submetidas a essa dor inominável – e não nomeável. Porque é uma dor sem nome. O marido que perde sua companheira é viúvo, os que perdem os pais são órfãos, mas quem perde os filhos não tem nome.

Eu acho que a gente viveu, especialmente no século 20, o silenciamento da morte por velhice e por doença, que é a morte da maioria. A maioria não vai morrer de bala perdida, de acidentes de trânsito ou por assassinato. A maioria vai morrer por velhice e doença. Essa morte, que costuma ser vivida dentro dos hospitais, passou a ser vista no século passado quase como um fracasso. No momento em que passamos a valorizar o prolongamento da vida a qualquer preço e a juventude se tornou um valor em si, o morrer passou a ser algo clandestino.

Também se passou a falar pouco sobre o luto. Uma prova disso é a quantidade de dias que a legislação garante de licença para alguém que perde um familiar (segundo a CLT, são dois dias consecutivos com algumas variações dependendo do grau de parentesco e da profissão. Para servidores públicos são oito dias). Como essa morte é ignorada, nem se precisa dar tempo para que ela seja superada, já que é como se não tivesse acontecido.

Mas eu acho que isso está começando a mudar. Por uma série de questões históricas e também com as redes sociais. Acho que estamos num tempo muito confessional. As pessoas estão falando sobre tudo. O antropólogo britânico Geoffrey Gorer escreveu no ensaio “Pornografia da Morte”, de 1955, que a morte do século 20 passou a ter o mesmo caráter que tinha o sexo no século 19, na era vitoriana. Ela teria se tornado obscena e feia e por isso deveria ser escondida. E o luto passou a ser tão secreto quanto a masturbação.

Neste século 21, com as redes sociais da internet, as pessoas passaram a falar sobre seus desejos sexuais, e formas de experimentá-los. Muita gente que não tinha espaço para falar daquilo que não era convencional, encontrou seus pares na internet. Encontrou seu grupo. Claro que eu estou falando de adultos e de sexo consentido – é sempre bom sublinhar isso.

A morte começa a aparecer aí também, com grupos como o “Mães sem Nome” (e “Mães para Sempre”), e plataformas do tipo “Vamos Falar Sobre o Luto”. As pessoas também começaram a falar sobre como elas se sentem ao envelhecer. Não da forma como a propaganda vende, entre aspas, a terceira idade, mas sim da forma como elas se sentem realmente. Parece que a internet abriu espaço para relatos confessionais que começam a dar conta também da morte, do luto e do envelhecimento e que, com frequência, saem do lugar comum e do campo da publicidade e do marketing.

Especialmente neste século 21, e com cada vez mais frequência, têm surgido muitos livros e relatos sobre o assunto, de pessoas passando pela experiência da morte ou do luto ou do envelhecimento, também aqui no Brasil. Uma das frases que me parece mais exata sobre isso é que “a morte não é o contrário da vida, a morte é o contrário do nascimento. A vida não tem contrários”. A morte está dentro da vida, o morrer é a última novidade que todos nós teremos sobre a vida. A nossa última experiência viva em uma vida é o morrer.

Oliver Sacks (neurologista e escritor anglo-americano) tem escrito belíssimos textos sobre o morrer vivo. E outros vêm contando de outras maneiras. É múltiplo, não tem um jeito certo ou errado de dizer as coisas. Tem o jeito de cada um. Mas acho que estamos testemunhando, nesse início de século especialmente, a quebra desse silêncio. E eu estou muito curiosa para saber quais são as narrativas que virão. Tanto de pessoas conhecidas, como o Oliver Sacks, quanto de anônimas.

Acho que é um momento interessante esse que a gente vive. Agora que esse silenciamento está sendo quebrado, minha grande curiosidade é: agora que podemos falar, o que falaremos? Essa é uma grande questão que para mim é fascinante. Mas sem esquecer que é importante respeitar também quem quer silenciar. Não o silenciamento que é opressor, que é uma imposição. Mas sim a escolha pelo silêncio, a escolha pelo recolhimento. Nem todo mundo precisa contar, nem todo mundo precisa confessar. Nem todo mundo precisa se expor. É importante que cada um possa viver da maneira que lhe for possível e da maneira que desejar esse momento tão crucial da vida.

Você acha que a mudança na estrutura etária da sociedade está interferindo na nossa visão da morte?

Acho que sim. Quando eu fiz a matéria sobre os últimos 115 dias de vida da Ailce, algumas pessoas achavam que era mórbido fazer essa escolha de contar o processo da morte dela. Acho que hoje, talvez, menos pessoas achassem isso, e se passou menos de dez anos. Nossa época é acelerada, em vários sentidos. Mórbido é o não poder contar. É aquilo que paralisa, que não pode ser dito. Contar uma vida é o contrário de ser mórbido.

Você comenta que essa reportagem impactou muito seu modo de viver. Olhando para trás, hoje, você ainda vê impactos daquele momento?

Sim. Fiz várias reportagens sobre o morrer e sobre os diferentes sentidos do morrer. Mas essa em que acompanhei os últimos 115 dias da vida da Ailce me impactou muito porque acho que foi o ato de maior confiança que alguém já me deu como repórter. Porque eu ia escrever uma história que ela jamais leria. E eu queria muito contar essa morte silenciada. Eu escolhi fazer essa matéria, mas no momento em que me vi diante da Ailce, na casa dela – ela morava na periferia de Guarulhos – me dei conta da situação impossível em que eu tinha me colocado.

Por um lado, eu queria que essa reportagem acabasse o mais rápido possível, porque era muito duro lidar com isso, e por outro, eu queria que ela nunca acabasse. Porque o fim dessa reportagem era o fim da vida dela. Então eu tinha me colocado numa situação impossível.

Percebi que a única maneira de fazer essa reportagem era – como é em qualquer reportagem – pela escuta. Logo no início dessa escuta, Ailce me disse algo que vai me marcar para sempre: “Quando eu tive tempo, descobri que meu tempo tinha acabado”.

Ela estava num momento muito particular. Tinha sido merendeira de escola a vida toda. Aí se viu aposentada, com uma casa própria, começando a fazer as coisas sempre adiadas, como tanta gente faz, com os filhos já grandes, com tempo para ela – ela estava começando a viajar, a ir dançar, a ir em bailes, a experimentar outras coisas… Nesse momento, ela descobre um câncer sem chances de cura.

Ela nunca pronunciou a palavra câncer. Eu falava todos os dias com ela e ela nunca pronunciou essa palavra. Eu também nunca a pronunciei, senão jamais saberia que ela não a pronunciava. Uma parte da minha escuta era saber como ela nomeava aquilo que a mataria.

Mas quando ela disse essa frase, eu percebi que falar sobre a morte era falar sobre o tempo. E o que a gente perdia quando calava sobre a morte era justamente uma oportunidade única de pensar sobre a vida. Falar sobre a morte é pensar sobre a vida, é qualificar a vida. E especialmente, falar sobre o tempo.

Tem uma outra frase que eu adoro, do professor Antônio Cândido, em que ele diz que tempo não é dinheiro. Essa seria uma brutalidade que o capitalismo faz em se considerar o senhor do tempo. Tempo é o tecido das nossas vidas.

Pensar sobre a morte pela reportagem me fez questionar o tecido da minha vida, o tempo da minha vida. Várias das minhas escolhas que vieram a seguir, até hoje, surgiram dessa compreensão profunda. Eu queria me apropriar do meu tempo. Viver nos meus próprios termos. Isso me fez tomar decisões maiores como sair do dia a dia da redação impressa.

Eu já estava há mais de vinte anos dentro de redações e queria saber como era viver no meu tempo. A vida dentro da redação era muito significativa, eu sempre procurei fazer da minha vida algo com significado para mim e para as pessoas, algo com sentido. Sou muito grata pelo tempo que eu vivi nas redações, foi uma vida muito viva. Mas eu estava com 44 anos e queria experimentar um outro tipo de vida. Não quer dizer que eu não vá voltar um dia, porque a vida é movimento, e eu busco não cimentar nada. Uma vida cimentada é uma vida morta.

Fui buscar outro jeito de viver mesmo nas coisas mais banais. Eu queria saber, por exemplo, qual era o meu tempo de acordar. Nunca tinha pensado sobre isso. Uma coisa simples assim. Desde criança, sempre tive hora para acordar. Primeiro era o colégio, depois era o tempo do jornal, que era diário, depois o tempo da revista, que era semanal, o tempo do fechamento, e o tempo do mundo. Porque a gente vive num mundo que lida de determinada forma com o tempo, e essa forma de lidar não é um dado da natureza, é também um dado do campo da política. Então, eu queria saber quando eu gostava de acordar e quando eu gostava de escrever. Comecei a acordar às 2h30 da manhã, naturalmente. E passei a dormir muito cedo, por volta das sete da noite. Sempre gostei desse momento da madrugada, quando está todo mundo dormindo. Hoje eu durmo cedo, mas não tão cedo, então posso ter algo próximo a uma vida social, como ir ao teatro, jantar com os amigos, e acordo às 5h da manhã, sem despertador. Deletei o despertador da minha vida, exceto em casos obrigatórios.

Escolhi também, por exemplo, não usar celular. Eu tenho um para emergências. Ele fica no mudo ou, em geral, desligado.

As pessoas perderam o sentido da urgência. Tudo virou urgente. E quando tudo vira urgente, nada é urgente. Essa também é uma questão do tempo. Saber o que é importante e o que é urgente. E, portanto, o que é prioritário. Quando se perde esse sentido do prioritário na vida de cada um, se perde muito. Eu tenho a consciência de que não sou imprescindível. As pessoas podem viver perfeitamente sem me acharem de imediato. Eu não tenho a arrogância de pensar que todo mundo precisa me encontrar.

Se você ligar para meu celular, vai encontrar uma gravação assim: “não uso o celular, por favor me mande um e-mail”. Para mim, a melhor maneira de me comunicar é o e-mail. Para muita gente é antiga, eu gosto porque escolho a hora de ler e sei que não estou invadindo o espaço do outro, porque ele também pode escolher quando quer abrir e quando quer me responder. Às vezes, a gente precisa pensar para responder. Não precisa ser de imediato. Não existem repostas imediatas para as pessoas. Acho que o tempo é a grande questão. Ser acessível a qualquer momento é, para mim, insuportável. Então, eu não uso telefone fixo e não uso celular.

Você escreveu várias colunas sobre a medicalização da vida. Porque é um tema que te mobiliza?

Acho que a medicalização da vida é uma marca, um traço do nosso tempo histórico. É claro que há casos de depressão severa e situações em que a medicação pode ser muito importante – não se pode esquecer disso. Mas acredito que estamos vivendo uma espécie de doping generalizado. É um doping, legalizado (com drogas lícitas), e que acontece cada vez mais cedo. Esse doping já começa na infância, com as crianças, com a massificação de diagnósticos como os de síndrome de hiperatividade e déficit de atenção – que eu acho no mínimo questionáveis. O que tem acontecido com frequência é que as crianças fora da caixa, que não se enquadram no modelo, têm sido diagnosticadas e medicalizadas cada vez mais cedo, e com remédios cujos efeitos a longo prazo não conhecemos. E as crianças dependem da responsabilidade dos adultos, são indefesas diante desse processo. Acho que deveríamos ter um debate maior sobre o doping das crianças por medicamentos. Basta andar por aí, especialmente em grupos na internet, para perceber que essa geração, ao chegar à adolescência, muitas vezes se une e se define pelo diagnóstico, como se isso fosse tudo o que são. É um mundo bem complexo e acredito que precisamos pensar mais sobre isso.

Se um adulto usa drogas, seja quais forem, me parece que é uma escolha dele. Mesmo no caso das drogas lícitas, ele pode aceitar ou não o diagnóstico do médico, ele pode buscar outras formas de encarar seus sentimentos e o que se chama de sintomas, ele deve ter garantido o acesso às várias formas de lidar com o que é do humano. Mas se uma criança é obrigada a usar drogas porque a escola antecipou um diagnóstico e o médico avalizou esse diagnóstico, seja com a justificativa que for, é mais complicado, porque ela não tem escolha e essa imposição terá consequências. Muitas vezes, e há várias pesquisas bem conceituadas sobre isso, o diagnóstico e drogas como a ritalina podem servir para tentar calar algo que deveria estar sendo discutido dentro da família, dentro da escola, com aquela criança. O tratamento, nestes casos, pode estar a serviço de um silenciamento. É preciso discutir mais esse fenômeno e todos os atores desse processo – pais, professores, médicos, psicólogos, etc – tem de ser mais responsáveis e mais responsabilizados por suas escolhas. Não há verdades únicas em nenhum campo da vida.

Estamos vivemos numa sociedade dopada por medicamentos, na qual a grande autoridade é o médico. Temos agido como se tudo o que é da vida fosse uma patologia, transformando, por fim, a própria vida numa patologia. Como se a tristeza fosse uma patologia, como se a angústia fosse uma patologia, como se a ansiedade fosse uma patologia. E no lado oposto, há o imperativo de felicidade de consumo. De certa maneira, eu sou uma defensora do mal-estar. Nesse momento histórico que estamos vivendo, ser feliz e saltitante como um carneiro de desenho animado é o que deveria ser preocupante, é o que deveria fazer tocar a sirene. Eu defendo o mal-estar como um movimento, como algo ativo, algo transformador. Porque o grande risco de silenciar com medicamentos aquilo que é da vida é não elaborar, não pensar, não reagir, não transformar, não fazer marca do vivido. E com isso a gente perde muito. Acho que, em parte, as séries, os filmes, a literatura de zumbis, fazem tanto sucesso porque o mundo está cheio de mortos vivos, paralisados e anestesiados, não só, mas também por medicamentos. Acho que o mais triste é essa vida morta.

Há tanta histeria com as drogas que são proibidas, mas as que me preocupam são essas legalizadas, vendidas massivamente como remédio, exatamente porque são muito pouco questionadas, como se não tivessem efeitos colaterais variados. Principalmente com as crianças, que não têm formas de se defender desse processo, nem escolha. E começam a ser silenciadas desde cedo por não caberem num determinado modelo de comportamento. Não sou contra as drogas, nem sou contra os medicamentos. Só acho que esse olhar disseminado, que patologiza a vida e tudo o que é da vida, e que se tornou uma característica tão presente nessa sociedade, não é uma verdade única e serve a muitos interesses, como aos da indústria farmacêutica. Acho que precisamos discutir mais e não naturalizar uma vida em que é preciso tomar um remédio para ficar acordado e ser produtivo, outro para dormir, outro para não ficar ansioso, outro para não ficar triste, outro para ter desejo sexual e assim por diante. Acho que a gente precisa voltar a exercitar o espanto e a dúvida também sobre a patologização da vida e a medicalização massiva, o espanto e a dúvida como algo que nos impulsiona a ter uma vida mais interessante. E por mais interessante eu entendo não uma vida necessariamente feliz, mas uma vida viva. E uma vida viva tem de tudo. Tem, especialmente, movimento.

Em alguns artigos, eu usei o termo “boa morte”. Na sua coluna “Morrendo na primeira pessoa”, você faz a consideração de que não seria um conceito correto, por considerar que não existe morte boa ou ruim. Mas o que seria, para você, uma morte que gostaria de viver?

O que eu critico é trocar um tabu por outro. Ou trocar um imperativo por outro. Passamos boa parte do século 20 silenciando sobre a morte, e agora, quando ela começa a ser falada, seria muito triste que se criasse outros dogmas para isso.

Eu não acho que tem um jeito certo ou errado de morrer. Tem o jeito de cada um. Algumas pessoas acham melhor morrer em casa, cercadas pelas pessoas que amam, pelos objetos que fazem parte do seu mundo, contando histórias e ouvindo histórias. Outros vão achar melhor morrer no hospital. Tem quem vai tentar tratamentos invasivos, mesmo sabendo que têm pouca ou nenhuma chance de ter resultado, outros vão preferir não. O importante é que os desejos sejam respeitados, que esse último ato da vida de alguém seja vivido nos termos dessa pessoa. Que a pessoa possa escolher e não que escolham por ela. Hoje em dia, muita gente é submetida a tratamentos invasivos, dolorosos e inúteis, condenadas a morrer sozinhas numa UTI. Acho que se é uma escolha daquela pessoa, tudo bem. Mas, em geral, não é uma escolha. Por isso, considero muito importante o testamento vital. Nesse documento é possível decidir e informar os familiares das suas decisões, como, por exemplo, se deseja ser ressuscitado ou não…

Se eu adoecer, ou tiver um acidente, e ficar impossibilitada de manifestar as minhas escolhas, as minhas opiniões, eu gostaria de morrer em casa, com as pessoas que eu gosto, cercada com as coisas que fazem parte da minha vida. Com as músicas que eu gosto, se eu for capaz de ouvir. Com os meus livros mais queridos. Sem dor física ou com o melhor que possam fazer para minimizar minhas dores e desconfortos físicos. Se não houver chance de cura, eu não quero tratamentos invasivos, não quero ir para uma UTI, não quero ser entubada sem necessidade, ou ressuscitada… Já deixei esses desejos claros para a minha família. Mas pode ser que na hora de morrer, eu descubra que quero outras coisas. Isso não será mais certo ou mais errado, mais digno ou menos digno. Eu acho que a dignidade está em respeitar a escolha daquele que está morrendo.

Eu já comprei meu túmulo porque quero escolher o lugar onde vou ficar. Gostaria de ser enterrada e não cremada porque eu gosto da ideia de me misturar à terra depois de morta. Ao contrário da maioria das pessoas, a ideia de que virarei comida de vermes me parece interessante, porque me manterá viva de alguma maneira, nessa eterna transformação da matéria que faz nosso universo tão fascinante.

Eu tenho uma amiga, Debora Noal, que trabalha no Médico Sem Fronteiras, que diz que ela tem raízes aéreas. Eu me identifico com isso. Gosto muito de estar em trânsito, o meu lugar é um lugar de estrangeira – não de turista. Mas eu queria ser enterrada num local onde a minha família tem uma história, por isso escolhi um cemitério no Barreiro (RS) – povoado rural onde meu pai nasceu, no interior de Ijuí, e onde está enterrada a primeira professora do meu pai, Luzia, a mulher que, com esse nome profético, nos arrancou simbolicamente da escuridão e da cegueira das letras, já que meu pai foi o primeiro a estudar depois de uma longa série de gerações à margem das letras. Para morrer, quero replantar as minhas raízes, que, na minha vida, tratei de deixar voando pelo mundo.

Mas eu queria mesmo era não morrer. Tem uma frase do Woody Allen na qual ele diz que a única imortalidade que o interessa é não morrer. Adoro essa frase. Mas como morrer é inescapável, o que eu quero é me apropriar do meu tempo, para que quando a morte chegar, eu morra sabendo que o tempo foi meu, que eu teci esse tempo. Uma vida boa é uma vida cheia de marcas. Marcas do vivido. Eu quero morrer cheia de marcas. No sentido da poesia de Adélia Prado, como um vitral – fazer das minhas marcas um vitral bem colorido. Eu quero morrer sabendo que eu tive uma vida viva, então essa morte também vai ser viva. Se existe uma “boa morte”, talvez seja a de morrer sabendo que eu fui viva.

“Alguns acham que sou mórbida. Estão enganados. Encarar a morte com naturalidade é o mais longe da morbidez que se pode estar. Só espero ter sabedoria para viver minha vida com intensidade até o último suspiro. E sabedoria para morrer, sem tentar espichar a vida nem abreviá-la. Não gostaria de morrer de repente, como tantos desejam. A curiosidade sempre moveu meus passos. Quando a morte chegar, não quero perder a única chance de olhar no seu olho. Quero saber o que é morrer. Quero me lambuzar de morte como me lambuzei de vida. Quero viver. Até o fim” – Eliane Brum na coluna “Comprei meu túmulo”.

Lilo Clareto/Divulgação

Lilo Clareto/Divulgação

Quando a periferia será o lugar certo, na hora certa?

A maior chacina de 2015, em São Paulo, mostra que as palavras começam a matar antes da morte e seguem assassinando os vivos depois

Foto: UJS Osasco

Foto: UJS Osasco

Leia na minha coluna no El País:

As fotos do 13 de agosto mostram mulheres lavando o sangue dos mortos com rodo, como nos filmes B de terror. Se o rio vermelho escorre pelos degraus, as palavras ecoam para além da extensa fila de cadáveres. Elas matam lentamente, como balas em câmera lenta, que perfuram os corpos, se espatifam por dentro e vão corroendo os órgãos. Dia após dia, dia após dia, dia após dia. Mata-se e morre-se também na linguagem. As palavras silenciam os mortos para além da morte. E calam os vivos, mesmo quando eles pensam gritar.

(…)

“Estava no lugar errado e na hora errada” foi o comentário mais frequente dos familiares dos 18 mortos, seis feridos, na periferia de Osasco e Barueri, na Grande São Paulo, na maior chacina de 2015. A expressão dá conta de uma máxima: “na periferia há preto ladrão, branco ladrão e aquele que está no lugar errado e na hora errada”. A frase também culpa, ainda que indiretamente, aquele que morre.

Por que, afinal, ele estava aonde não deveria de estar, do lado de fora, na rua? Não tinha nada de estar ali. Para não estar na hora errada, no lugar errado, é preciso ficar trancado dentro de casa. Se estivesse trancado dentro de casa, estaria vivo. Comentários como estes são escutados o tempo todo nas periferias, tanto que se tornaram um clichê. Cada vez mais acuados, aqueles que não querem morrer se resignam a desistir do espaço público.

É a vida dos escravos, sonhada por seus senhores: de casa pro ônibus lotado, do ônibus lotado pro trabalho, do trabalho pro ônibus lotado, do ônibus lotado pra casa. Gente pobre não precisa de lazer ou o lazer é ver TV em casa, preferencialmente programas em que apresentadores, alguns deles com ambições eleitorais, criminalizam pobres e ofertam a imagem de seus corpos no altar midiático. Quem frequenta bar, sabe que pode morrer, é este o recado. Como na noite de 13 de agosto, como em tantas outras noites.

Leia o texto inteiro aqui.

Foto: reprodução Facebook "Mâes de Maio"

Fotos: reprodução Facebook “Mâes de Maio”

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