Testamento vital

CFM prepara documento para garantir dignidade na morte

Nos dias 26 e 27 de agosto, o Conselho Federal de Medicina (CFM) realiza em São Paulo um evento que poderá ser um marco na humanização não só da saúde, mas da vida: médicos e juristas vão discutir a criação do testamento vital. Previsto em vários países do mundo, o documento expressa o desejo do paciente diante de uma doença sem possibilidade de cura. Enquanto está consciente, a pessoa determina, por escrito e com testemunhas, quais são os limites do seu tratamento. Tem, assim, a possibilidade de encerrar sua vida com autonomia, respeito e dignidade. Como um ser humano ativo. E não como um objeto passivo amarrado a tubos numa unidade de terapia intensiva – sozinho, sem voz e sem afeto.

Explico melhor dando meu próprio exemplo. Tenho um pacto com meu irmão do meio. Quem sobreviver terá a responsabilidade de garantir o cumprimento da vontade do outro no encerramento de sua vida. Para nós, é muito importante morrer com dignidade, porque entendemos que morrer é o último ato da vida. É, portanto, viver. E queremos viver até o fim com respeito e coerência, na integridade do que somos. Se for eu que tiver uma doença sem chances de cura, caberá ao meu irmão garantir que eu não sofra intervenções cirúrgicas ou invasivas. Em resumo: não quero ser submetida a exames nem procedimentos desnecessários. Aquilo que hoje é chamado de “tratamento desproporcional” ou “obstinação terapêutica”.

Da equipe de saúde, espero que cuide para que eu me mantenha consciente, não sinta dor física e tenha o maior conforto possível até que minha hora chegue – nem prolongada nem abreviada. Pretendo aproveitar o tempo que me resta para revisitar minhas lembranças, conversar com aqueles que amo, acertar o que tiver de acertar. Quero morrer de preferência na minha casa, perto das pessoas importantes. Se possível, contando histórias da minha vida. Se por algum motivo estiver inconsciente, que alguém conte histórias para mim, coloque as músicas que eu gosto, leia os trechos de meus livros preferidos, ria e chore lembrando da melhor vida que pude ter. Se tiver que ser num hospital, só aceito encerrar minha vida numa enfermaria de cuidados paliativos.

Esta é a minha vontade. E tenho convicção de que só eu posso decidir sobre como quero me despedir da vida no caso de uma doença sem cura. Apesar da clareza da minha decisão, mesmo que eu escreva um documento, assine, arrole testemunhas e registre em cartório, não há hoje nenhuma garantia de que eu seja respeitada no meu desejo de morrer com dignidade – coerente com o que é dignidade para mim.

Diferentemente de outros países, como Estados Unidos, Uruguai e várias nações europeias, no Brasil o testamento vital ainda não existe na legislação. Assim, caso eu hoje tenha uma doença que se revele incurável, corro o risco de morrer sozinha, amarrada aos tubos de uma UTI, naquilo que para mim é uma cena de filme de terror e contraria minhas crenças mais profundas. Basta que o médico decida que é dono da minha vida ou, pior, que sabe o que é melhor para mim. E, pronto, estou condenada à morte que nunca quis.

O respeito à dignidade da vida humana é a preocupação que motiva o Conselho Federal de Medicina a promover este debate e propor a criação do testamento vital. O documento poderá nos dar a garantia de sermos respeitados também no último ato de nossas vidas. O psiquiatra espanhol Diego Gracia, um dos maiores nomes da bioética mundial, está entre os conferencistas convidados a debater a questão em agosto.

Para nos ajudar a compreender a importância do debate que se inicia publicamente no Brasil, entrevistei para esta coluna o cardiologista José Eduardo de Siqueira, 68 anos, doutor em medicina, professor de clínica médica e bioética da Universidade Estadual de Londrina e membro da comissão de cuidados paliativos do Conselho Federal de Medicina. Eles nos fala sobre o que está em jogo na discussão do testamento vital. E também sobre a paisagem na qual este debate se desenrola.

É uma conversa sobre os limites e equívocos da medicina, a deficiência do currículo das faculdades e a premência de se formar um novo médico – um que trate não as doenças das pessoas, mas as pessoas com doenças. José Eduardo de Siqueira, um médico com larga formação humanista, nos mostra que o testamento vital não é apenas um documento, mas uma discussão profunda sobre o que é ser médico e o que é ser paciente, sobre a morte e, principalmente, sobre a vida.

ÉPOCA – Vivemos um momento histórico onde a prática médica é determinada por um aparato altamente tecnológico, os médicos são especializados em pedaços cada vez menores do corpo e a prática corriqueira é estender a vida o máximo possível, com todo o tipo de tratamento, ainda que seja invasivo e doloroso para o paciente e mesmo que ele esteja além da possibilidade de cura. Por que, justamente neste momento, o Conselho Federal de Medicina decide propor um documento que coloca limites no tratamento e que respeita a autonomia e o desejo do paciente?

José Eduardo de Siqueira – Tudo o que você falou sobre o exercício da medicina hoje é verdadeiro. Estamos vivendo um momento em que há um fascínio pela tecnologia. Este fascínio levou a uma situação de medicalizar a vida e medicalizar a morte. A tecnologia chegou a tal ponto que podemos dizer que o indivíduo que está na unidade de terapia intensiva (UTI) de um hospital de ponta, se os médicos quiserem, pode ter sua vida prolongada por muito tempo. Até a primeira metade do século XX o domínio que tínhamos sobre a morte era muito pequeno. A partir dos anos 60, a tecnologia passou a se desenvolver muito. E nós perdemos a noção. Não só os médicos, mas a sociedade toda perdeu a noção da finitude da vida. Há um texto muito bonito no qual Rubem Alves (psicanalista e escritor) diz que antes nós sabíamos ouvir a voz da morte. E, portanto, éramos sábios na arte de viver. Agora que nosso poder cresceu de uma maneira enorme com a tecnologia nós imaginamos que estamos imunes ao toque da morte. E perdemos a possibilidade de aprender com ela. Isso é muito verdadeiro. Há um livro chamado “A arte perdida de curar”, do Bernard Lown, que talvez seja o maior cardiologista do século XX. Ele diz que nós estamos, nas escolas de medicina, formando “gerentes de biotecnologias complexas”. Veja que coisa forte isso. Profissionais que perderam a noção do que é a arte da medicina. Bernard Lown diz textualmente: “A realidade mais fundamental é que houve uma revolução biotecnológica que possibilita o prolongamento interminável do ato de morrer”. A preocupação que nos move agora é a seguinte: é preciso ter bom senso. E é complicado este debate porque, se você olhar a grade dos cursos de medicina, vai constatar que estamos formando pessoas especializadas em doenças: sabem tratar doenças de pessoas, mas não sabem tratar pessoas.

ÉPOCA – Me parece que a maioria dos médicos hoje só vê corpos ou, pior, pedaços de corpos…

Siqueira – Exatamente. É uma visão biologicista. Perdemos a noção do ser humano completo. Aí você coloca o doente na UTI, oculta tudo dele. Existe uma coisa que se chama “conspiração do silêncio”. Fica o médico conversando com os familiares. E o paciente sozinho na UTI. A morte hoje é realmente uma coisa fria, sofrida e que não corresponde à dignidade humana. Nossa preocupação neste momento é resgatar a nossa dignidade. E isso de alguma maneira é uma mudança de paradigma. Porque o paradigma imperante é o da tecnociência. E a tecnociência não só por parte dos médicos, mas da população de um modo geral. Eu estou cansado de testemunhar isso no meu consultório. Depois de uma longa entrevista com o paciente, eu não peço exames ou peço poucos exames. Aí o paciente diz: “Mas, doutor, você não vai pedir um ecocardiograma?”. Ou seja. O fascínio pela tecnologia é muito grande. E está disseminada entre a população, também, a ideia de que se você está colocando o doente numa UTI e fazendo tudo até o último suspiro, você está fazendo um benefício. E, na realidade, você está fazendo um malefício. Está realmente tratando aquele ser como objeto – e não como sujeito.

“Precisamos admitir que estamos equivocados e
que temos usado a tecnologia de forma insensata.”

ÉPOCA – De que incômodo surge esta necessidade de discutir um documento que possa dar mais dignidade à morte? Para você, por exemplo, de que incômodo surge a sua necessidade de colaborar para este debate?

Siqueira – Eu comecei a dar aulas nos anos 70. E eu tive esta trajetória fortemente cartesiana. A minha experiência docente nasce nos anos 70 já herdeira das primeiras unidades de terapia intensiva. A visão que nós tínhamos era a de olhar o monitor. Não víamos a cara do doente. Olhávamos a sonda urinária para ver quanto tinha de xixi, olhávamos as variáveis bioquímicas. Com o tempo a coisa se transformou em algo macabro. Se você entrar hoje em qualquer unidade de terapia intensiva desse país, vai ver que um grande percentual dos leitos está ocupado com doentes que não têm possibilidade de cura. É dramático, porque você vê o indivíduo numa decadência progressiva e tudo o que você faz por ele é simplesmente intervir com tecnologia. E o médico sabe que não tem condições de mudar aquilo. Os cuidados paliativos vieram para demonstrar que não, que podemos fazer muita coisa por este paciente. Mas podemos fazer numa unidade de cuidados paliativos, onde ele é respeitado naquilo que é. Nossa preocupação, se eu tiver de resumir numa palavra, é, em primeiro lugar, admitir que estamos equivocados. Que o uso da tecnologia está sendo feito de maneira inadequada, insensata. Segundo, que nós temos de dar o protagonismo de nossas ações ao nosso paciente. Terceiro, que temos de ter respeito pelo ser humano. Em quarto, eu acho que privar o ser humano deste momento decisivo da vida dele é uma coisa cruel. Porque neste momento a pessoa tem muita coisa para contar, para perdoar, para acertar. Há um texto do (Rabindranath) Tagore, um poeta indiano, lindíssimo. Ele diz que morrer pertence à vida, assim como nascer. Para andar você tem de dar um passo. Levanta o pé e o abaixa até o chão. A vida é um movimento. Nascer e morrer. E nós, médicos, temos cortado esse movimento de maneira abrupta, inadequada e desumana, privando as pessoas de viver isso. E o que damos em troca? Damos em troca simplesmente uma coisa que é esta obstinação pelas variáveis biológicas.

ÉPOCA – O que é uma morte digna?

Siqueira – A Elisabeth Kübler-Ross (psiquiatra suíço-americana que se tornou uma referência na abordagem da morte na segunda metade do século XX) fala disso. Morrer com dignidade é morrer com os meus valores, cercado das pessoas que eu amo. Na unidade de terapia intensiva você morre absolutamente anônimo, morre sozinho. Eu cansei de entrar numa UTI e um doente me agarrar a mão e não largar. Aí eu chego perto dele. Ele diz: “Por favor, fica para conversar comigo alguma coisa”. Chegamos a um ponto que percebemos que estamos fazendo a coisa errada. Não estamos tratando o indivíduo como ele deve ser tratado. Como diz a Elisabeth, eu quero morrer com os meus valores, com a minha dignidade, cercada pelos que eu amo. Tem um livro que é muito interessante, escrito por duas enfermeiras americanas que fazem cuidados paliativos em atendimento domiciliar nos Estados Unidos. Em português, o título é “Gestos finais”. Em inglês, é “Final Gifts”, ou seja, “Presentes finais”. Elas contam casos onde fica muito clara a incrível capacidade deste momento, de perdoar, acolher, rever a vida. E as pessoas estão sendo privadas disso.

ÉPOCA – Sendo roubadas do último ato de suas vidas. Porque é um roubo, não?

Siqueira – É um sequestro e muito cruel. Vou contar um caso que eu vivi. Tive um doente que tinha uma traqueostomia e não conseguia falar. Todo dia que eu ia à UTI, eu dava uma tabuinha para ele escrever. E um dia ele escreveu: “Doutor, vamos parar com isso? E vamos fazer o meu descanso?”. É isso. Agora, a maioria dos doentes não tem a possibilidade de ter com quem conversar. Sobretudo os da UTI. Primeiro, o médico não tem formação. A educação dele é para curar. Durante todo o curso ele imagina que isso é possível. E isso só é possível eventualmente. Nós curamos, mas há um aforismo antigo que diz assim: “O dever do médico é curar às vezes, aliviar e confortar sempre”. E nós estamos fazendo só a primeira parte. Ensinamos os meninos a fazer o diagnóstico. E imaginamos que ensinando esta tecnologia de ponta estamos fazendo grande coisa. E não estamos fazendo grande coisa. Por outro lado, há trabalhos que demonstram claramente a pobreza da grade curricular do curso de medicina, no que se refere a conversar sobre a morte: não a biológica, mas a de um ser humano. Há, portanto, muito que fazer para mudar essa situação.

ÉPOCA – Me chama a atenção quando você fala em “nós”. A “nossa preocupação”. Mas quem são este “nós”, já que não me parece que essa seja uma preocupação central para a maioria dos médicos?

Siqueira – Você tem razão. O “nós” ao qual me refiro é uma geração como a minha, que viu essa coisa avançar, que viu o nascimento das primeiras unidades coronárias. E a gente lutava… Você percebe como a palavra “luta” é uma coisa curiosa nesse contexto? Porque o médico, quando perde um doente, acha que perdeu uma batalha. Aliás, há outras palavras curiosas referentes a isso. Eu tenho um “arsenal” na UTI… Arsenal é aquela coisa tremenda, de guerra…

ÉPOCA – É verdade. E o elogio que dão ao paciente é de que é um lutador. Fulano lutou até o fim, foi um guerreiro… Mas, às vezes, é mais sábio aceitar os limites, parar de “lutar” e viver o melhor possível o tempo que ainda tem.

Siqueira – Minha geração viu o nascimento e o apogeu da utilização inadequada da tecnologia e teve a possibilidade de fazer um exercício crítico. Sobretudo porque nós formamos os atuais médicos que estão na unidade de terapia intensiva. Nós somos culpados pelo que está aí. O aparelho formador, às vezes, é deformador. Há vários estudos mostrando que, quando o indivíduo entra no curso de medicina, ele entra imbuído de um altruísmo, da ideia de ajudar o próximo. E na medida em que o curso vai passando, nós vamos colocando cada vez mais informações técnicas dentro dele. E, no final, aquele indivíduo que entrou altruísta sai um técnico frio, que só sabe olhar como um gerente de tecnologias complexas. Depois da nossa, há uma geração primorosa, na faixa dos 50 anos, de paliativistas como Maria Goretti Maciel e Cláudia Burlá, que tiveram a possibilidade de conhecer essa realidade fora do país. A Cicely Saunders (enfermeira inglesa) começou o movimento de cuidados paliativos nos anos 60. A Elizabeth Kübler-Ross publicou seu primeiro livro em 1969. Eu acho que esta geração que eu citei começou a tomar conhecimento de que existe uma outra medicina, uma outra maneira de abordagem, que existe a possibilidade de tratar o indivíduo com dignidade, respeitando o momento da morte. E isso não tem nada a ver com aquela história com que alguns fazem confusão, de que se não há nada para fazer vamos entregar ao paliativista. Não, os cuidados paliativos são uma prática ativa. Os paliativistas dão qualidade de vida aos pacientes.

“O testamento vital é um documento que expressa a vontade da pessoa no momento
em que ela está lúcida. Não pode ser descumprido nem pelo médico nem pela família.”

ÉPOCA – Como você definiria o testamento vital?

Siqueira – Testamento vital é o nome mais popularizado. Surgiu na Califórnia, nos Estados Unidos, em 1976: “living will”. Estamos pensando em chamar de “Declaração Prévia de Vontade do Paciente Terminal”, mas ainda estamos discutindo. Terminal é um termo, por exemplo, que não me agrada muito. É uma herança do raciocínio cartesiano de que é o fim. Sim, é o fim, mas é um fim que pode durar meses, anos. E há muito o que fazer com esse paciente, que merece todo o nosso cuidado.

ÉPOCA – Mas como é, na prática, o testamento vital ou a “Declaração Prévia de Vontade do Paciente Terminal”?

Siqueira – É um documento escrito, tem de ser obrigatoriamente escrito, por um paciente maior de idade e capaz. E com testemunhas. Esse documento deve conter orientações a respeito dos cuidados médicos em situação de terminalidade da vida. Especificando, também, se no caso de tornar-se incapaz de expressar esta vontade, o doente terá um procurador. É um documento para especificar que aquele paciente está descartando o tratamento desproporcional.

ÉPOCA – E como determinar o que é “tratamento desproporcional”?

Siqueira – Tratamento desproporcional é a intervenção médica efetuada em pacientes terminais, que consiste na utilização de métodos diagnósticos ou terapêuticos cujos resultados não trazem benefício ao paciente. Ao contrário, podem trazer mais sofrimento. São inúteis, pois não promovem alívio e conforto nem modificam o prognóstico da doença. Ou seja, o benefício almejado é muito menor que os inconvenientes provocados. Os profissionais de fala hispânica a denominam de “encarniçamento terapêutico”. E os anglo-saxões, mais comedidos, de “futilidade terapêutica”.

ÉPOCA – Vocês pretendem especificar o que são tratamentos desproporcionais no testamento vital?

Siqueira – Alguns juristas acham que deveríamos especificar o que é desproporcional, mas é complicado. O que é desproporcional para um paciente, pode não ser para outro. Depende do caso. Acredito que vamos fazer um texto mais genérico. E a definição será feita com o paciente, com os profissionais que fazem cuidados paliativos ou com o médico do paciente, e com a família. Deverá ser uma decisão deste núcleo. Outra questão, a do prazo. Os americanos, por exemplo, determinam que o documento seja válido por cinco anos e então precisa ser refeito. Nós achamos que não é necessário ter um prazo de validade. No texto podemos deixar claro que ele pode ser revogável a qualquer momento, caso o paciente mude de ideia.

ÉPOCA – O testamento vital é mais importante para os casos em que a pessoa perde a consciência?

Siqueira – Não só. De um modo geral os pacientes passam por um longo período em que estão conscientes. É neste momento que o testamento vital dever ser feito. Ele deve ser uma expressão da vontade da pessoa, feita no momento em que ela está lúcida, especificando o que ela quer. No documento dos americanos está dito, inclusive, que ninguém pode tomar decisão contrária: nem o médico, nem a família. Eu insisto que é importante especificar que nem o médico pode decidir o contrário porque não há uma visão homogênea. Existem médicos – e acho que é o caso da maioria – que consideram a ortotanásia adequada. Mas existem médicos que consideram a ortotanásia um tipo de eutanásia. Acho importante determinar no testamento vital que ninguém poderá botar uma cláusula diversa daquela que o indivíduo estabeleceu no momento da declaração.

ÉPOCA – Acho que seria importante definir aqui o que é ortotanásia, para nenhum leitor ficar com dúvidas…

Siqueira – Ortotanásia refere-se aos cuidados ativos aos pacientes portadores de enfermidades que não respondem a qualquer tratamento curativo.Tem como objetivo controlar a dor e outros sintomas,assim como oferecer atenção médica ao ser humano enfermo e sua família,expressando-se por cuidados de ordem física,psicológica,social e espiritual.Consiste em um sistema de apoio prestado por equipe multidisciplinar de saúde empenhada em ajudar o paciente a viver tão ativamente quanto possível até o momento de sua morte,prestando adicionalmente apoio à família do paciente na elaboração do luto. A ortotanásia se contrapõe ao que a gente chama de distanásia (o prolongamento da vida do paciente sem chances de cura por meios artificiais).

“Estamos diante de uma faculdade de medicina paquidérmica, imobilizada.”

ÉPOCA – Imagino que a resistência, entre os médicos e também fora, é muito grande. E será grande nesse debate sobre o testamento vital. Qual é a sua avaliação?

Siqueira – Há muita resistência, com certeza. A estrutura curricular no curso de medicina é extremamente rígida. Aqui em Londrina conseguimos implantar, desde 1998, um ensino baseado em problemas. Nesta metodologia, o aluno passa a ser o protagonista, e o professor o auxilia a buscar o conhecimento. Mas a maioria das escolas ainda segue aquele modelo tradicional de que vai um professor lá e fala “a verdade”. Ainda estamos diante de uma universidade que é paquidérmica, imobilizada. Para você introduzir alguma coisa nova, demanda tempo. Cuidados paliativos, por exemplo, ainda não tem espaço na grade curricular. Nós conseguimos um espaço para bioética. Mas ainda insatisfatório.

ÉPOCA – E a resistência, no geral? Imagino que, mesmo dentro do Conselho Federal de Medicina, não deve ter sido uma discussão fácil, até chegar a um evento sobre testamento vital. E, é claro, sempre aparecem aqueles que usam de má fé e tentam distorcer dizendo que, no fundo, o que vocês propõem é uma autorização para eutanásia. O que você diria a quem tentar relacionar o debate com eutanásia?

Siqueira – Eutanásia ativa é pegar e injetar cloreto de potássio ou outra coisa no paciente. Eutanásia passiva é você deixar de tratar a pessoa. Ora, nos cuidados paliativos você trata a pessoa, é ativo. A ortotanásia não está nem na categoria da eutanásia ativa nem da passiva. Simplesmente não é eutanásia.

ÉPOCA – De onde você espera maior resistência, dos médicos ou da sociedade, em geral?

Siqueira – Talvez tenhamos de enfrentar uma resistência generalizada, a começar pelo poder judiciário. Explico. O que está acontecendo hoje é uma coisa dramática. Se nós medicalizamos a vida, também estamos jurisdicionalizando a morte. Não todos os operadores de direito, claro, mas parte deles. O que eu quero dizer com isso é o seguinte. A gente teme que os operadores de direito comecem a colocar tantas regras que vai ficar impossível fazer um testamento vital. Vou te dar um exemplo: no sistema brasileiro, teria de ser feito com um cartório, um notário. Isso obrigaria o indivíduo a ir a um cartório, com duas testemunhas. Temo que, se burocratizar o testamento vital, ele vai se tornar um documento complicado. Espero estar equivocado. No conselho estamos cercados de juristas extraordinários, que dizem que operadores de direito vão compreender, mas não sei.

ÉPOCA – Como você imagina que deva ser colocado em prática?

Siqueira – Acredito que a forma como eu vejo não vai vingar. Mas, para mim, o ideal seria que no prontuário do doente no hospital tivesse um documento chamado testamento vital ou outro termo que vamos definir. Faria parte do prontuário, em casos de doenças que ameaçam a vida. E teria de ser apresentado ao paciente. Isso envolveria um avanço cultural muito grande, porque é o médico, e não o assistente social, que vai ter de fazer. O médico conversando com o doente. Ele se sentaria com o doente e, com todo o tempo necessário, explicaria aquele documento. E o doente o preencheria, com duas testemunhas, como parte do prontuário.

ÉPOCA – Isso seria uma mudança de paradigma muito grande, já que, para fazer isso, o médico teria de realmente olhar para o paciente e escutá-lo.

Siqueira – É um salto muito grande. O médico teria de sentar com ele, conversar o tempo que for necessário, segundo o ritmo do doente e não o do médico. Não é: “Vamos preencher agora, eu tenho dez minutos”. Não. O médico vai ao paciente para conversar não uma, mas muitas vezes, sem o papel na mão. No momento em que perceber que o indivíduo está em condições de mexer com esta questão, então preenche. Se isso se passar no consultório do médico do paciente, estaria lá, no prontuário dele. Ficaria uma cópia com o médico, outra com o paciente. Depois precisa reunir a família e dizer: “Olha, isto aqui é a vontade dele, vocês podem conversar, mas é a vontade dele”. Porque esta coisa de deixar a família resolver é, no meu ponto de vista, muito complicado. Nós vivemos situações em que os filhos de pessoas idosas querem mandar na decisão, decidir pelo paciente.

ÉPOCA – E como evitar a burocratização, especialmente com os pacientes do SUS? Ou seja, o médico passa correndo pelo leito do paciente, usa uma linguagem técnica e diz que precisa preencher em cinco minutos e assinar para que ele possa permanecer no hospital e seguir sendo tratado… Mais difícil ainda quando sabemos que muitos brasileiros têm dificuldade de ler e escrever e alguns documentos médicos são indecifráveis até para quem tem pós-doutorado…

Siqueira – É uma preocupação absolutamente pertinente. Por outro lado, temo burocratizar demais a realização do testamento vital, se formos pelo caminho cartorial. Temos de encontrar um meio termo. Por isso este evento em agosto, onde discutiremos com excelentes juristas. Espero que encontremos um meio termo que garanta um documento que revele a verdade, que proteja a autonomia daquele ser humano, mas sem burocratização demasiada, para não se tornar inviável. Sabemos que, no Brasil, ainda estamos no Casa Grande e Senzala. O Brasil tem ilhas em que o ser humano é respeitado na sua autonomia e dignidade, mas muito mais gente não tem a possibilidade de exercer sua cidadania. É difícil. Mas acho que temos de fazer isso. Colocar essa questão na pauta.

“Um estudo mostrou que 33% dos pacientes do SUS não são
chamados pelo nome e 30% nem sequer são examinados”

ÉPOCA – Como fazer a discussão do direito de ter uma morte digna numa sociedade que não consegue falar sobre a morte, que acredita que deve ser jovem para sempre e não morrer nunca? Esta é uma barreira difícil de transpor, não?

Siqueira A sociedade capitalista induziu as pessoas a pensar na juventude eterna. A morte é um tabu e ninguém quer pensar nela. A sociedade de mercado incluiu dentro dos valores esta coisa de que “consigo adiar minha morte” ou “eu não quero discutira a morte, eu quero discutir a vida”. Porque permanece este hedonismo, esta coisa de “não vou envelhecer porque velho é feio”. Ou seja. Nós temos várias barreiras, culturais, de formação profissional etc. Vivemos numa sociedade absolutamente individualista, na qual não existe ouvir o outro, a alteridade, aquilo que diz (Emmanuel) Lévinas (filósofo francês): “Quero olhar o rosto do outro e me curvar diante dele”. Isso não existe. E me deixa muito triste. Fizemos um estudo em Londrina com 324 pacientes, comparando o atendimento de um convênio e do SUS. Foi apresentado no VI Congresso Mundial de Bioética, em Brasília, no ano de 2002. Mostramos que, no SUS, a pessoa fica esperando um absurdo de tempo por uma guia. Em algumas especialidades, seis meses. Então recebe um papel e vai a uma sala onde há um banco de cimento, com um monte de gente. Descobrimos que 53% esperam lá por mais de uma hora. E constatamos que 33% dos pacientes não são chamados pelo nome. Não são chamados pelo nome! Cerca de 70% deles permanecem dentro do consultório menos de 10 minutos e 30% nem sequer são examinados.

ÉPOCA – O que você está dizendo – e que pode ser paradoxal para alguns profissionais – é que cuidar é respeitar o desejo do paciente e que ajudar a morrer também é um ato médico. É isso?

Siqueira – Sem dúvida. Cuidar é ter a percepção do ser bio-psíquico-social-espiritual. Ter na sua frente todas estas dimensões. O problema é que hoje prevalece a fatia biológica. Eu aprendo a tratar um fígado doente, um coração doente, mas não aprendo a tratar o ser humano em toda a sua dimensão. E um ser humano é essa realidade complexa. Cuidar significa atender esta pessoa com os valores dela, com a história, a biografia, as crenças dela. Cuidar é isso. É dizer: “Você é o protagonista e eu vou te auxiliar neste momento difícil da tua vida. Mas é você quem vai determinar quais são os passos que vamos dar. E não eu”. O médico paternalista hipocrático já era. Precisamos formar um médico habilitado para ver essas dimensões todas. E não simplesmente a dimensão biológica.

ÉPOCA – Como você explicaria para um estudante de medicina que ajudar a morrer também é um ato médico?

Siqueira – Hoje, com a formação que nós temos, é muito difícil. Você não vai encontrar um médico capaz de acolher esta argumentação porque ele acha que esta não é a missão dele. A missão dele é salvar. O que temos de fazer? Temos de criar condições para que este indivíduo tenha educação continuada e tenha possibilidade de refletir sobre outros valores. Na situação atual, talvez o conselho tenha de fazer isso. Tenha de se desdobrar para ir a todos os lugares do Brasil para conversar sobre o que queremos fazer, para conversar com os médicos. Porque a realidade do Brasil é muito diferente da que está na nossa cabeça. É um trabalho muito grande, mas é um trabalho que vai significar algo importante na medicina. A medicina precisa aprender a tratar o ser humano como ele é, no seu sofrimento, no que Cicely Saunders chamava de “dor total”. Os médicos precisam ser preparados para a iminência da morte. Se você conversar com a (Maria) Goretti (Maciel) sobre os que fazem estágio na enfermaria de cuidados paliativos do Hospital do Servidor Estadual, em São Paulo, ela vai te contar que eles não sabem o que fazer, porque não tiveram no curso ninguém que conversasse com eles sobre isso. Com frequência entram em parafuso porque percebem que não estão preparados e não conseguem fazer aquilo. Temos esperança de que, com o tempo, os paliativistas consigam fazer com que essas pessoas se motivem. Porque é muito gratificante. Quando você visita uma unidade de cuidados paliativos como esta, você sai de lá com a certeza de que a medicina é o que eles fazem lá – e não lidar com aparelhos. Ali está o exercício mais digno da medicina. Isso implica ter a consciência de que tratar de um ser humano é também reconhecer que o que você pode fazer é limitado. Nesta limitação você vai acolher, olhar e cuidar. Mudar esta mentalidade para que os médicos possam entender isso demanda tempo, é um horizonte para nós. Ao longo dos anos é enfiado goela abaixo do médico uma coisa de formação técnica. Mas dentro dele ainda vive o menino altruísta que entrou no curso porque queria ajudar o ser humano. Sócrates (filósofo grego) dizia algo mais ou menos assim: “Eu não ensino nada a eles, o que eu faço é simplesmente provocar, para que tirem de dentro deles a coisa mais bonita, o parto das almas”. Acho que a gente vai conseguir. Tenho convicção de que é um caminho longo, mas vamos conseguir.

ÉPOCA – Vou dar um exemplo pessoal. Eu e meu irmão temos um pacto para cuidar um do outro quando chegar a nossa hora de morrer. Nosso compromisso mútuo é garantir que a vontade do outro seja cumprida, no sentido de que não queremos estar numa UTI nem amarrado a aparelhos nem ter nossa vida prolongada artificialmente. Estamos preparando este documento e vamos registrá-lo, com testemunhas. Hoje, este documento seria aceito? Ou, perguntando de outra maneira, conseguiríamos que nosso desejo de uma morte digna, a partir do que é digno para nós, fosse respeitado?

Siqueira – Hoje, seu irmão teria de ter um poder de persuasão muito grande para que os médicos aceitem isso. Não há nenhuma garantia porque não está expresso em lei. Não existe ainda este documento no Brasil, esta figura do testamento vital. Eu mesmo tenho um trato com um amigo meu, médico também, neste sentido. Mas não existe nada que hoje nos garanta que nosso desejo será respeitado. Se você e o seu irmão registrarem em cartório e um dos dois levar esse documento ao médico, tenho a impressão de que o médico vai ter sensibilidade para acolher. Mas ele não é obrigado a isso. Ele pode dizer: “Você vai me desculpar, mas isso não está previsto, e eu não posso ser acusado de omissão de socorro. Eu acho que seu irmão precisa de uma intervenção assim e assado, e vou fazer o que eu acho. Se você quiser entrar na justiça, entre”.

ÉPOCA – Mas, se eu tenho o direito constitucional de viver com dignidade, eu também tenho o direito de morrer com dignidade, na medida em que o morrer faz parte da totalidade da vida, é o ato final da vida, está abarcado dentro da vida. E só eu posso dizer o que é dignidade para mim. Não seria inconstitucional me privar disso?

Siqueira – Enquanto nós não tivermos um reconhecimento através de legislação de que o indivíduo tem efetivamente este direito, que está prevista a figura do testamento vital, o médico pode dizer não ao seu desejo. Não digo que vá dizer não, mas digo que pode dizer não. Este é o objetivo do debate que estamos iniciando. Precisamos de um documento que ampare a autonomia do paciente também nesse momento final.

ÉPOCA – Em que países existe o testamento vital e como funciona?

Siqueira – Na Califórnia, o “living will” existe desde 1976. Em 1991, foi estendido a todos os estados americanos e chamado de “Patient Self Determination Act” – ou, traduzindo, “Ato de Autodeterminação do Paciente”. Vários países da Europa possuem algo semelhante. Aqui na América do Sul, o Uruguai é um dos poucos países que tem a figura do testamento vital.

“Quando chegar a minha hora, eu não quero um técnico
dizendo que vai prolongar minha vida com aparelhos.”

ÉPOCA – Como é o testamento vital acertado com seu colega?

Siqueira – Este colega é cardiologista também. E conversamos muito. Estamos vivendo isso há muito tempo e testemunhamos as barbaridades que são feitas com doentes terminais. Nós combinamos que, na situação em que um de nós tenha uma doença que ameace a vida, o outro vai procurá-lo e vamos fazer o documento naquele momento. Eu não quero ser internado numa UTI, a não ser que tiver uma doença aguda. Mas, se eu tiver uma doença que vai acabar com a minha vida, eu não quero ser internado numa unidade de terapia intensiva. Eu não quero receber suporte com aparelhos, eu não quero receber nada além do cuidado de tirar a dor, de aliviar a minha respiração, algo que me ajude a ter consciência, lucidez, pra fazer o que tenho de fazer. E que isso seja feito no ambiente que eu escolher. Ou numa unidade de cuidados paliativos ou na minha casa, com cuidado ambulatorial. Vou querer receber cuidados paliativos. E não quero um técnico me dizendo que vai fazer isso ou aquilo, que pode prolongar minha vida com aparelhos.

ÉPOCA – Este é o mesmo testamento do seu amigo?

Siqueira – É a mesma visão do meu amigo. Na realidade, ele é um hemodinamicista. Lida com situações agudas de infarto do miocárdio. Tem essa mesma percepção: vamos nos livrar desta coisa que estamos vendo e que está sendo cruel, de desrespeito grave à dignidade, à vontade, à personalidade daquela pessoa.

ÉPOCA – Você já viveu isso com algum paciente?

Siqueira – Eu tive um doente que tinha uma coronariopatia muito grave. Isso aconteceu uns oito anos atrás. A possibilidade cirúrgica dele era pequena. Este paciente era um dentista, um professor, muito meu amigo. Estava separado da mulher, com uma parte da família em Londrina, outra em Brasília. Veio conversar comigo, queria saber de sua doença. Eu falei: “Acho que, do ponto de vista cirúrgico, as chances são pequenas”. Ele perguntou sobre os números. Eu disse: “Olha, não tem números, só posso dizer que é uma chance pequena”. Ele perguntou: “Quanto tempo de vida eu tenho?”. Eu disse: “Não sei, não sou Deus. Mas posso te dizer, pela literatura médica, que a gente consegue que você tenha pelo menos seis meses de vida”. Ele decidiu não fazer nenhuma intervenção cirúrgica. Queria resolver seus problemas existenciais, com a família que teve, com a família que tinha. Um de seus filhos, dentista também, soube que nós tínhamos conversado. Ligou para mim: “Você está louco? Meu pai tem de ser operado, ele tem chance”. Tentei explicar para ele, mas ele ficou muito bravo. Achava que não podia ser decisão só do paciente. Filhos e netos começaram a pressionar meu amigo para que se submetesse à cirurgia, mas ele se manteve firme na sua decisão. Acabou morrendo em Brasília, numa morte súbita na casa de uma filha, nessa peregrinação de acertar suas coisas. Hoje, passados oito anos, seu filho, aquele que havia ficado muito bravo, me agradece. Ele disse: “Olha, naquela época eu tinha uma visão muito equivocada. Eu tinha uma visão egoísta. Eu queria que o meu pai estivesse vivo de qualquer jeito porque eu não concebia a morte dele. Eu não conseguia imaginar a morte dele. Agora que passou esse tempo todo acho que tudo aconteceu da melhor maneira. Se ele tivesse passado por uma intervenção cirúrgica teria sofrido muito mais”.

ÉPOCA – Sempre achei que deixar algo por escrito ajudaria minha família a ter tranquilidade no momento tão difícil da minha morte, porque teria a serenidade proporcionada pela certeza de estar cumprindo a minha vontade. Mas a família pode ser um grande problema, não é?

Siqueira – Pode ser muito complicado, porque entramos num universo meio freudiano. O ser humano também não é uma ilha, tem estes vínculos todos. Minha experiência é a seguinte: o problema mais difícil é abordar isso com a família. Vivemos essa cultura de que as pessoas acham que podem determinar o que o outro tem de fazer. E, às vezes, o que parece ser um benefício é, na verdade, um malefício. Testemunhei um caso na UTI de um rapaz de 28 anos de idade, que tinha o vírus HIV. Ele já tinha tido todas as evoluções possíveis e estava com uma broncopneumonia. Chamou a médica que o atendia e disse: “É o seguinte, doutora, eu sei que meu negócio é grave. Eu quero deixar claro: eu não quero ser entubado e eu não quero traqueostomia. Se eu começar uma crise quero que a senhora apenas me alivie, tire a dor, use máscara de oxigênio se for o caso”. A médica disse que sim. Aí chegou a hora da visita da família e ela disse: “Olha, eu preciso conversar com vocês. Ele está em tal situação e acabou de me dizer que não quer isso e aquilo”. Os pais disseram: “Negativo, doutora, a senhora vai fazer. Se tiver que entubar, vai entubar. E se não fizer, vamos dizer que a senhora omitiu socorro”. Esta médica me procurou para perguntar o que ela deveria fazer. Eu disse: “Acho que você tem de se curvar diante da vontade do paciente. Se você entubar, depois vai ter de fazer traqueostomia e este cara vai sofrer”. Ela me disse: “Muito bem, mas você vai lá tomar essa decisão, porque eu não vou tomar”. Lamentavelmente esse rapaz foi entubado, traqueostomizado e ficou mais ou menos uns 20 dias assim até morrer. Teve a morte que ele não queria, a morte que, quando lúcido, disse claramente que não queria ter.

ÉPOCA – O testamento vital o salvaria desta morte?

Siqueira – Exatamente. Se tivesse o documento a médica poderia dizer: “Vocês vão me desculpar, mas está escrito aqui e eu vou cumprir a vontade do paciente”. No texto da Califórnia está dito que esta instrução não será desobedecida nem pelo médico nem pela família. Será respeitada por ser expressão da vontade do paciente. Nós podemos incluir um item como este, que tem de ser cumprido. Acho que temos de fazer isso porque, em um número muito grande de casos, a família poderá intervir no sentido de que não seja cumprida a vontade do paciente. Por dificuldades emocionais do tipo: “Puxa, nós não fizemos tudo”. Por isso essa discussão é tão importante, para que todos possam começar a compreender a importância da dignidade na morte. Para que essas famílias possam entender o que é uma morte digna, que aquilo que parece um benefício pode não ser e que o paciente tem de ser respeitado no seu desejo.

O maior problema das UTIs hoje é que uma parte significativa de
seus leitos está ocupada por pacientes que não deveriam estar lá.”

ÉPOCA – Falando em família, seu filho é um intensivista, trabalha na unidade de terapia intensiva de um grande hospital. Como é a sua relação com ele?

Siqueira – Este filho está em São Paulo, é um intensivista muito bom. Quando comecei a fazer bioética encontrava com ele, e ele falava assim: “Pai, você largou de ser médico, não gosta mais da medicina?”. Naquela época, ele achava que esta era uma reflexão de abstração, que não tinha nada a ver com a realidade, que realidade é a doença que tem de tratar. Agora, ele me diz o seguinte: “Olha, pai, acho que estamos fazendo muita coisa equivocada na UTI”. E ele tenta conversar com os colegas. Mas o ambiente de UTI ainda é de muita tecnologia. Se chegar a um hospital acadêmico e começar a argumentar, chamam um psiquiatra. Neste ano meu filho está se formando também em direito e o tema da monografia dele é: “Os direitos dos pacientes internados em Unidades de Terapia Intensiva”. Mas ainda é difícil para a maioria dos intensivistas. Eles estão vivendo uma coisa dramática. Tem médico que cuida do doente e, quando começa a complicar, manda para a UTI. Aí alguém liga do pronto-socorro dizendo: “Olha, chegou aqui um cara com infarto do miocárdio, que está com pressão 3 por zero, e eu preciso que você me arrume um leito com monitor, com tudo”. E o intensivista tem de dizer: “Isso eu não tenho”. Dizer isso dói, mas dói muito, porque o cara sabe que ele poderia ter aquele leito e não tem. Ou seja. Os leitos de UTI estão sendo usados de maneira inadequada.

ÉPOCA – Há estudos mostrando que um percentual significativo dos leitos das UTIs está ocupado com pessoas sem possibilidade de cura, que deveriam estar em unidades de cuidados paliativos. Como é isso?

Siqueira – Este é um problema muito sério hoje. Pacientes que sofreram um acidente vascular hemorrágico, por exemplo. Vão entrar num estado vegetativo e vão viver muito. Estão na UTI, mas a UTI não é o lugar deles. O neurologista, claro, quer que ele fique lá, porque é muito mais confortável para ele. E a família também quer, porque a UTI, de alguma maneira, dá uma segurança equivocada de que o doente está sendo cuidado. E não está. É duro isso. A rigor existe um número muito expressivo de leitos ocupados indevidamente. Este talvez seja o maior problema das UTIs hoje, o número de doentes que não deveria estar lá. Por prolongamento da vida a qualquer preço e por uso indevido da tecnologia.

ÉPOCA – Nesta visão que vocês estão propondo, com o testamento vital, os médicos perdem o poder de decidir sobre a vida e a morte do paciente, o que é, desde sempre, uma ilusão, mas muito difundida na categoria. Como é esta relação horizontal que você defende?

Siqueira – É difícil para os médicos, mas acho que toda decisão deve ser dialogada com o paciente. Não só perto da morte, mas toda. E se o paciente entender que deve ser feita uma coisa que não é a decisão que eu, como médico, tomaria, eu tenho de me curvar diante disso. Claro que para o médico isso é difícil. Porque o médico tem a arrogância do saber: “Eu sei que o melhor para você é isso”. Ele não sabe nada, quem sabe é aquela pessoa.

ÉPOCA – Proporcionar dignidade na morte é uma espécie de causa da sua vida?

Siqueira – Olha, a bioética mudou minha vida. Eu comecei a trabalhar com ela em 1996. Estou com 68 anos. Tive um momento da minha vida muito cartesiano, muito arrogante, achava que sabia e resolvia tudo. Na medida em que o tempo vai passando, o cabelo vai ficando branco, começamos a ter a percepção de que o que Sócrates falava é de uma solidez tremenda: “Só sei que nada sei”. E aí o que eu fiz foi começar a estudar filosofia, essa coisa toda. Entrei num mundo muito curioso, porque comecei a observar que os textos dos grandes pensadores me falavam muito mais como médico do que os textos médicos, propriamente ditos. Eu preferia ler Foucault, ler Heidegger, ler Habermas do que ficar lendo textos que, meu deus do céu, só falavam de coisas técnicas. E acho que agora é isso mesmo que vou fazer. Eu não acredito nessa coisa de missão na vida, acredito que a gente tem tarefas. Acho que posso colaborar no sentido de fazer com que exista uma reflexão sobre as coisas erradas que vi na medicina. Posso colaborar para que possamos fazer uma medicina que respeite o ser humano, que tenha como núcleo central olhar aquela pessoa na totalidade do sofrimento dela, com um médico que saiba que ela é vulnerável e que proponha um relacionamento o mais horizontal possível. Embora tenha crescido muito o fascínio pela tecnologia, cresceu também a percepção de que o médico precisa ler filosofia, ler outras coisas, precisa ter sensibilidade e não simplesmente achar que tratar uma pessoa é tratar uma doença. Eu acho que esta é a nossa tarefa e acho que estamos conseguindo. Eu sou otimista.

(Publicado na Revista Época em 12/07/2010)

Dois andares abaixo do meu

Ela vivia lá e eu desconhecia, ela morria lá e eu não sabia

Eu nunca tinha ouvido falar dela. Vivo neste edifício de 70 apartamentos há alguns anos. A maioria dos moradores só encontro na reunião de condomínio. Há o velho que toma sol pela manhã e que me cumprimenta sorridente porque lá em casa a gente se dá tchau na janela quando alguém sai. Ele acha curiosíssimo e acompanha o ritual enternecido. Há as mulheres que passeiam com os cachorros, e as que fiscalizam o crescimento das roseiras do jardim. Existe a vizinha que sempre tenta me vender produtos de beleza. E o Pedrão, um aumentativo irônico para um cachorro tão pequeno, tão desmilinguido e cego pela idade, que sobe e desce o elevador comigo, protegendo com olhos erráticos um dono que é quase um gigante. Há o vizinho de passo marcial que não cumprimenta ninguém. E ela, que morava lá havia uma eternidade, mas a quem eu nunca vira.

Numa tarde vêm o chaveiro, os bombeiros e a polícia. Arrombam a porta do apartamento. E somos todos lançados para dentro de uma paisagem muito semelhante à nossa, mas que era dela. As histórias de sua vida me alcançam aos farrapos. Aos 82 anos ela vivia só. Tinha sido médica, com consultório no centro de São Paulo. Era uma mulher independente, que veio do interior para vencer na cidade grande quando as mulheres de sua geração apenas recolhiam os passos até a casa do marido. Viajou o mundo, falava várias línguas, expressas nos livros espalhados pela casa. Não sei de seus amores, ninguém ali sabe. De repente, ela descobriu-se só. Não queria morrer, só não sabia como seguir vivendo. Resistiu viva – morrendo.

Há dois anos ela estacionou sua Brasília vermelha meticulosamente limpa e bem conservada numa vaga tamanho G. E nunca mais a tirou de lá. Poderia ter sido um sinal, mas um sinal só se torna um sinal se for decodificado. Este gerou apenas uma multa do condomínio. O carro deveria estar numa vaga M. Talvez P. Há pouco mais de um ano ela deixou de pagar a conta do condomínio. O acúmulo da dívida virou um processo judicial e uma primeira audiência a qual ela não compareceu. Outra pista não decifrada.

A vizinha do lado percebeu que ela não mais saía de casa. Insistiu com o síndico, com o zelador, algo estava errado. Ela nem atendia mais a porta, e um cheiro novo se impregnava no corredor. Mas a lei não escrita da cidade grande determina não perturbar a privacidade de ninguém. Cada um é uma ilha – ou um apartamento. Proprietário-indivíduo de seu número de metros quadrados aéreos no mundo. Os funcionários do condomínio devem avisar pelo interfone quando vão entregar uma correspondência que precisa ser assinada porque, do contrário, muitos moradores sequer abrem a porta. E ela era conhecida como “a doutora”, o título um abismo que ela e tantos se esforçam para cavar. Ninguém ousou perguntar se algo diferente, algo pior, estava acontecendo com ela.

Naquela tarde a conhecida de uma associação onde ela trabalhava como voluntária veio procurá-la, preocupada com seu sumiço. Ela então conseguiu se arrastar e sussurrar que não tinha forças para abrir a porta. Quando a porta caiu, e os fossos foram transpostos, descobriu-se que havia dois meses ela vivia no escuro, à luz de velas primeiro, nada depois. A energia elétrica tinha sido cortada por falta de pagamento. Há semanas ela não comia. Já não podia andar. A doutora estava morrendo de fome em meio a centenas de pessoas na cidade de milhões. Em sua própria sujeira.

Num prédio de classe média de São Paulo, ela estava mais isolada que qualquer ribeirinho dos confins da Amazônia. Não queria que descobrissem que havia perdido o controle da sua vida. E quando quis pedir ajuda, já não teve forças. Imagino quanto desespero sentia para conseguir romper as amarras de toda uma existência, se arrastar até a porta e admitir que não era mais capaz de abrir. Foi levada ao hospital, onde agora briga para viver.

Ela morava dois andares abaixo do meu. Quando eu soube, fiquei rememorando os últimos meses. Enquanto eu trabalhava, cozinhava, bebia vinho, tomava chimarrão, gargalhava, assistia a filmes, me emocionava com livros, me indignava com acontecimentos, conversava, namorava, sonhava, fazia planos, escrevia esta coluna e às vezes chorava, dois andares abaixo do meu, num espaço igual ao meu, uma mulher de 82 anos morria de fome nas trevas, em abissal solidão.

Enquanto eu ria, ela morria. Enquanto eu comia, ela morria. Enquanto eu sonhava, ela morria. No escuro, ela morria no escuro enquanto eu abanava da janela, o velho sorria ao sol, uma vizinha tentava me vender um novo creme antirrugas e Pedrão rosnava cegamente no elevador sob o olhar terno de seu gigante.

Não consegui dormir por algumas noites porque me via arremessada ao outro lado da rua, tentando imaginar os enredos que se passavam atrás das cortinas daqueles outros 69 apartamentos. Que vidas são aquelas, que dores se escondem, quais são os dramas que sou impotente para estancar? Anos atrás, antes de eu morar no prédio, um homem se lançou pela janela e morreu estatelado na laje. Como tantos o tempo todo. Um soluço apavorante na rotina e depois o esquecimento. Como agora, nesse morrer sem sangue e sem alarde.

Numa fissura do tempo algo que não pode mais ser oculto se revela – revelando também o nosso medo. Portas são derrubadas, cortinas rasgadas por um corpo que se lança para o nada, para nós. E, talvez pior, por um corpo que se esconde até ser exposto pelo cheiro da decomposição ainda antes da morte, corroendo os muros de nossa privacidade protegida com tanto empenho. Como a dela.

Depois precisamos esquecer para seguir vivendo. Mas não consigo esquecer. O que aconteceu com ela está acordado dentro de mim como um bicho. Dentro de nós também há um condomínio onde portas se fecham, chaves se perdem e o suicida que nos habita se lança no vazio enquanto outros em nós se decompõem em vida pela morte dos dias que não acontecem. Mergulho então, além dos dois que nos separavam, vários andares em mim. E lembro-me de Mário Sá-Carneiro, escritor português: “Perdi-me dentro de mim porque eu era labirinto. E hoje, quando me sinto, é com saudades de mim”.

Acredito que todos no prédio ficaram chocados, cada um à sua maneira. Porque ninguém percebeu a tempestade logo ali. Porque tudo se passou enquanto no avesso de cada janela tentávamos viver. Mas também – e talvez principalmente por isso – porque a tragédia se desenrolou no mesmo cenário onde tecemos o enredo de nossos dias.

O apartamento dela é igual ao nosso. Esta semelhança de condições e de arquitetura, de portas e de janelas, nos provoca um incômodo difícil de dissipar. Poderia ser nós a morrer de fome no escuro. Mesmo com uma história diversa, lá no fundo cada um de nós sabe que a solidão nos espreita. Que não estamos tão protegidos como gostaríamos. Seria mais fácil afastar nosso horror se fosse um assassino, uma morte por ciúme, uma violência cometida por um psicopata. Isto está sempre mais longe. Mas não. A doutora morria logo ali por solidão. E isto está bem perto.

Ela não viveu uma vida à toa. Ou uma vida egoísta. Ela apenas viveu mais tempo do que a maioria de seus amigos, que deve ter sepultado um a um. Mais tempo que os pacientes que tantas vezes salvou, e então o consultório ficou vazio. Ela tinha bens que poderia ter vendido quando ficou restrita a uma renda que não lhe permitia manter o padrão. Mas não tinha mais saúde para fazer o que era preciso. Com o tempo, não conseguia mais nem caminhar até o banco para buscar o dinheiro da aposentadoria ou pagar a conta de luz ou qualquer outra. Lentamente os fios de sua vida foram lhe escapando das mãos. E, no fim, quando percebeu que precisava romper o pudor cimentado nela e pedir ajuda, já não era capaz de andar pela casa para abrir a porta da rua e escancarar sua miséria. A doutora não queria morrer, só não tinha forças para viver neste mundo.

Por um tempo fiquei acordada pelas madrugadas, dormindo nas auroras, aterrorizada com as vidas desconhecidas abaixo e acima de mim, com os socorros que eu não sabia que precisava prestar, com o monstro de olhos abertos em mim. Devagar, comecei a pensar nas minhas escolhas. E agora tento aprender a amar melhor, para além das paredes de meus metros quadrados de mundo, mais iguais às dela do que eu e todos gostaríamos.

(Publicado na Revista Época em 21/06/2010)

A mãe órfã

Lutos mal elaborados também matam

Nesta semana, publiquei uma reportagem na revista impressa chamada “O filho possível”. Eu e o fotógrafo Marcelo Min contamos a história – e as histórias – de uma UTI neonatal que também cuida dos pais. A Divisão de Neonatologia do Centro de Atenção Integral à Saúde da Mulher (Caism), da Universidade de Campinas (Unicamp), é talvez o único berçário do Brasil que pratica os cuidados paliativos. Como toda unidade neonatal, trabalha com algo ao mesmo tempo terrível e delicado: a morte de quem acabou de nascer. O fim abrupto de uma vida que existia no imenso desejo dos pais – e que não teve tempo de se realizar.

Na maioria das unidades neonatais do país, como na maioria dos hospitais gerais, os profissionais acreditam que seu trabalho termina quando não há como curar um paciente. Na neonatologia do Caism, a equipe de saúde acredita que cuidar da saúde é bem mais do que curar. Muitas vezes não dá para curar. Mas sempre dá para cuidar. E cuidar também salva.

Salva a vida breve do bebê que se vai, ao empreender todos os esforços para que não sinta dor, ao suspender qualquer tratamento invasivo e desnecessário, ao permitir que fique no colo da mãe, do pai, da avó. E salva a vida dos que ficam, ao compreender a dimensão dessa perda para cada família. Ao cuidar com delicadeza dessa morte – e do luto.

Essa prática de saúde entra oficialmente na agenda da medicina brasileira nesta semana. O novo Código de Ética Médica inclui os cuidados paliativos entre as normas que devem ser seguidas pelos médicos no exercício da profissão. É o início de um caminho de retorno a uma medicina que enxerga uma pessoa – e não uma doença. Capaz de reconhecer limites e suspender procedimentos invasivos quando eles só servem para causar dor aos pacientes ou lhes roubar a consciência. Os profissionais perdem onipotência – e ganham humanidade.

Os cuidados paliativos surgiram na Inglaterra nos anos 60. No Brasil, é um movimento cada vez mais forte, levado adiante por um punhado de médicos, psicólogos e enfermeiros idealistas, mas ainda distante do cotidiano da maioria dos hospitais. As equipes que trabalham nessa perspectiva cuidam, em geral, de pacientes adultos com câncer e outras doenças com escassas chances de cura.

Em unidades neonatais, é uma raridade. Se é difícil enfrentar a morte no fim da vida, o fim da vida logo no início é dor condenada ao silêncio. A forma que a sociedade encontra para mascarar seu horror é minimizar a importância dessa perda, dizendo às mães variações de frases como estas: “Não se preocupe, logo você vai ter outro filho” ou “Ainda bem que não deu tempo de se apegar, assim você supera rápido”.

O que pouca gente parece compreender é que a vida do bebê, para os pais, não começou no seu nascimento. Iniciou muito antes, quando aquele casal sonhou com um filho, concebeu sua existência. E nele depositou suas melhores esperanças e desejos de continuidade. É uma vida muito mais longa do que horas, dias, semanas, meses. Antes de um bebê existir como indivíduo, para os pais ele já é. E é da forma mais cara para os humanos – como desejo. Quando tudo isso é arrebentado por uma morte precoce, se a família não é bem cuidada, ela se arrebenta inteira.

Para fazer a reportagem, acompanhei famílias nesse processo da doença e da perda. Escutei também mães e pais depois de alguns anos dessa tragédia pessoal. Queria compreender esse momento para poder dar aos leitores a dimensão da importância de cuidar bem do luto. E entender a diferença que a prática dos cuidados paliativos pode fazer nesse fim precoce da vida. O que significa para uma família sepultar um bebê e como uma equipe de saúde pode ajudá-la a seguir adiante.

Na reportagem, contei a história de outros. Aqui, conto a minha. Acredito que nós, repórteres, que pedimos aos outros a generosidade de compartilhar suas histórias mais íntimas e dolorosas com o mundo, temos de ter a grandeza de nos expor em nossa própria humanidade doída. É o exercício que faço algumas vezes nesta coluna.

Algumas pessoas acham que me exponho demais. Eu sempre pedi aos outros que se expusessem demais. Não saberia como continuar fazendo este pedido se não fosse capaz de retribuir a generosidade. Não faço pedidos que não possa fazer a mim mesma. Não peço a ninguém algo que eu mesma não possa dar. É como estabeleci meus limites na profissão.

Sou filha de uma família profundamente marcada pelo luto de uma morte precoce. Minha irmã, a terceira filha dos meus pais, depois de dois meninos, morreu aos cinco meses. Sobre esse momento, minha mãe sempre diz. “Eu chamei o pai para vê-la brincando no banho à tarde. À noite ela estava com febre e com manchas pelo corpo. No outro dia, estava morta”.

Acho que hoje, prestes a completar 75 anos, minha mãe ainda não compreende como é possível perder uma filha assim. Ainda mantém no rosto aquela expressão confusa, de alguém que, de repente, teve uma parte de si mesma roubada com uma violência desproporcional. No velório, ela surpreendia a si mesma olhando no relógio para ver se não estava na hora da mamadeira. Só então se dava conta de que era seu bebê que estava no caixão.

Minha irmã esteve neste mundo, de fato, por cinco meses – mas sua morte vive com minha mãe e com todos nós há quase cinco décadas. Eu fui a quarta e última filha. Não conheci minha irmã. Para mim, ela sempre pareceu mais viva do qualquer outra pessoa. Penso, com tudo o que sei hoje, que esta presença tão forte foi causada por um luto insepulto. Minha irmã morreu de meningite meningocócica. Mas o diagnóstico só chegou dez anos depois de sua morte. Até então, os médicos não entendiam o que a havia matado. De repente, tão rápido.

Minha mãe passou anos se perguntando o que havia feito de errado. Hoje, ao conversar com mães que perderam seus bebês, percebo que elas também se perguntaram. E se culparam. Só superaram porque tiveram a sorte de encontrar profissionais conscientes de seu lugar nesse luto. Uma das missões mais importantes de uma boa equipe de saúde é exatamente dar acesso a todos os exames e a toda possibilidade de investigação, para que não paire nenhuma dúvida sobre o diagnóstico. Esclarecer a causa da morte com o maior número de informações qualificadas é fundamental para que a perda possa ser superada. E que culpas infundadas não se instalem como pedras pelo resto da vida.

Em Ijuí, no início dos anos 60, os médicos não tinham nenhuma ideia do que havia acontecido com minha irmã. E a cidade pequena, como a literatura conta tão bem, pode ser o mais cruel dos mundos diante da fragilidade do outro. Logo circularam pela cidade as mais variadas versões sobre o que tinha matado minha irmã. Em uma delas, minha mãe havia deixado leite estragado na mamadeira. Como se não bastasse toda a dor e as perguntas sem respostas, minha mãe era apontada como culpada por alguns. Permaneceu mais de um ano em depressão profunda.

Quando o diagnóstico finalmente chegou, já era tarde para preencher o buraco que se abriu dentro dela. E nós, que sobrevivemos, estávamos acostumados demais a conviver com uma filha para sempre perfeita que, infelizmente, nunca teve a chance de errar. A dor dos irmãos daquele que morre ainda é um capítulo nebuloso na história do luto. Ainda hoje, eles são esquecidos na hora de cuidar da família. Nasci com a missão impossível de apagar a dor da minha mãe, de todos. Logo eu, tão imperfeita. Passei boa parte da vida culpada por fracassar e sobreviver.

Acho que só agora, depois desta reportagem, compreendo minha mãe por inteiro. Ela foi massacrada demais para ter a chance de sepultar minha irmã. Da forma que lhe foi possível, empreendeu seus melhores esforços para mantê-la viva. O que aconteceu com nossa família ainda acontece muito nos dias de hoje, nas pequenas e nas grandes cidades. Acontece sempre que a dimensão dessa perda não é compreendida ou tratada. Sempre que uma equipe de saúde se equivoca – e pensa que seu trabalho acaba quando o bebê morre, apesar de todos os esforços de cura.

Numa visão mais larga da saúde, a função de uma equipe é ajudar essa família a sepultar – também simbolicamente – esse bebê. É importante que essa vida seja não esquecida – mas lembrada como uma história que, apesar de curta, teve bons e maus momentos, como todas as vidas. Lembrada em fotos e recordações como parte da trajetória daquela família. Uma trajetória que segue.

Para isso, é necessário abarcar a dimensão dessa perda. Passei parte da minha vida sem entender como alguém que só tinha vivido cinco meses, que morreu antes de falar uma única palavra, pudesse ser tão importante. Quando, depois de adulta, testemunhei amigas que perderam seus bebês, ainda na gravidez, também não entendia por que sofriam tanto. Afinal, aquela criança nem tinha existido.

Só agora alcanço o tamanho da minha ignorância. A vida de um bebê começa sempre muito antes, na cabeça de cada pai, de cada mãe. E inicia por suas mais caras esperanças. Quando termina, é óbvio que só pode ser avassalador. Se esses pais, essa família, não forem cuidados, perdem partes essenciais de si mesmos – partes sem as quais não conseguem viver por inteiro.

Sempre acreditei que meu pai havia sofrido menos que minha mãe por essa morte. Ele raramente falava no assunto. Minha irmã não parecia tão presente em sua vida, o que me dava enorme alívio. Há dois anos, resolvi registrar a história dos meus pais. Eles me contam a vida, eu gravo. Tenho feito descobertas extraordinárias nesse processo. Uma delas foi a dor do meu pai.

Ele me contou, rosto contraído e voz embargada, que o maior sofrimento de sua vida foi a morte da minha irmã. Fiquei paralisada. Aquele homem, que ficara órfão de pai e mãe antes dos 15 anos, que havia perdido quatro irmãos ainda na infância, me dizia que a maior dor de sua vida foi perder seu bebê.

Só então comecei a compreender. Ao fazer esta reportagem, testemunhei o lugar ambíguo dos homens na morte de um bebê. Há um reconhecimento social de que, por ter gerado, a mulher é, se não a única, a maior sofredora. Muitas vezes seu sofrimento é tão aniquilador que não deixa espaço para a dor do homem, do pai daquele bebê.

O homem, que foi educado para suportar a dor em silêncio, para proteger a mulher, para ser o provedor e o esteio – e ainda hoje estes papéis são mais cimentados do que parece – aceita esse lugar menor no luto. Como dor não se joga para debaixo do tapete impunemente, essa incompreensão mútua costuma gerar muita confusão e conflitos. E às vezes até o fim do casamento.

Acho que meu pai, à sua maneira, deu um lugar para essa morte, para o seu luto. Ele tem uma caixinha de madeira, com chave, bem antiga, onde mantém a salvo pequenas preciosidades de uma vida inteira. Dia desses descobri que lá dentro, junto com as medalhas do colégio, ele guarda a participação de falecimento da minha irmã. Impecavelmente recortada e até hoje em perfeito estado, como tudo que é dele. Minha irmã é lembrança, parte de sua travessia.

Ao terminar esse texto, enviei aos meus pais para que eles me autorizassem a contar uma história que também é minha – mas é deles. Algumas horas depois meu pai me ligou. Profundamente comovido, ele queria me contar um pouco mais. Para que eu pudesse alcançar. “Na noite após o enterro houve um temporal terrível em Ijuí, com raios e trovões”, disse. “Nós queríamos protegê-la e não podíamos. Ela estava lá, sozinha, e não podíamos cuidar dela”. Prestes a completar 80 anos, meu pai ainda sofre com sua impotência diante da morte da filha. Seu bebê enterrado, debaixo da tempestade.

Conto tudo isso aqui porque acredito que, se minha família tivesse tido a chance de ser bem cuidada na sua perda e no seu luto, teríamos sido poupados de muita dor e desencontros. Ao fazer a reportagem, não pude deixar de pensar como nossa vida teria sido diferente se, num rasgo do tempo e do espaço, tivéssemos encontrado a pediatra Jussara Lima e Souza, da neonatologia do Caism, e a equipe dos cuidados paliativos.

Destinos são alterados para melhor quando uma equipe de hospital compreende que saúde é algo bem mais amplo do que tentar curar alguém de vírus, bactérias, tumores e doenças variadas. Infelizmente, a medicina nunca vai conseguir curar tudo. Médicos honestos sabem que se cura muito pouco ainda. Infelizmente, homens e mulheres, a cada ano, vão continuar perdendo bebês. Se, depois de todas as tentativas, não houver como salvá-los, é preciso compreender que, pelo menos, é possível salvar aquela família. Cuidando dela.

Conto esta história na esperança que, agora e no futuro, homens e mulheres possam ter a chance de ser compreendidos na enormidade da sua perda e fazer um luto que torne possível seguir a vida. Transformar a dor em algo ativo é parte da superação da perda. De certo modo, é o que tento fazer aqui. Escrevo para transformar. E sou transformada pelo que escrevo. Pego meu luto por tantos desencontros e o transformo em história contada, na esperança de dar a contribuição que me é possível para o início de uma mudança mais profunda do nosso olhar sobre a morte. E sobre a vida.

(Publicado na Revista Época em 12/04/2010)

O filho possível

Acompanhamos uma UTI neonatal que trabalha com cuidados paliativos. Nela, a medicina faz diferença mesmo quando não há cura

AMOR DE MÃE  Cristiane Nascimento e seu filho Lucas, na UTI da Divisão de Neonatologia do Caism, na Unicamp. Ela sussurra palavras de amor, e o coração dele acelera (Fotos: Marcelo Min)

AMOR DE MÃE: Cristiane Nascimento e seu filho Lucas, na UTI da Divisão de Neonatologia do Caism, na Unicamp. Ela sussurra palavras de amor, e o coração dele acelera (Fotos: Marcelo Min)

A fotografia acima mostra Cristiane Nascimento minutos depois de saber que não há cura para seu filho. Lucas tem câncer. O tumor no cérebro nasceu com ele. Na cirurgia, não foi possível arrancá-lo por completo. No dia desta foto, 22 de janeiro, Lucas completava 2 meses. As imagens eternizam sua história. Não a história com que Cristiane sonhou. Mas a história possível.

Ao dar à luz, mulheres como ela precisam se desprender do filho sonhado para alcançar o filho real. Com a ajuda da equipe de cuidados paliativos, Cristiane aprende a valorizar cada detalhe da vida de seu bebê, não importa o tamanho que ela tenha. Como neste momento, ao aconchegar o filho no colo e sussurrar que o ama. O aparelho da UTI mostra que, mesmo em coma, ao ouvir a voz da mãe o coração do filho bate mais rápido.

Lucas está numa UTI diferente. A Divisão de Neonatologia do Centro de Atenção Integral à Saúde da Mulher (Caism), da Universidade de Campinas (Unicamp), pratica os cuidados paliativos no tratamento de bebês malformados ou com doenças graves. Todos os esforços são empreendidos para curar. Quando não é possível, a equipe suspende tratamentos invasivos e dolorosos – e amplia os cuidados com a família e com o luto. Cada bebê tem uma história. E é preciso cuidar bem dela.

Nesta semana, entra em vigor no Brasil o novo Código de Ética Médica. Pela primeira vez, a prática dos cuidados paliativos foi incluída entre as normas que os médicos devem seguir na profissão. Se é novidade no tratamento de doentes terminais adultos, nas unidades neonatais a prática dos cuidados paliativos é uma raridade ainda maior. A experiência da Unicamp tem derrubado preconceitos – e alterado destinos.

A cada ano, 45 mil brasileiras perdem seus filhos antes que eles completem 365 dias de vida. A essas mulheres, os profissionais de saúde costumam afirmar, com a força das verdades absolutas: “Você é jovem, vai ter outro filho”. Ou: “Você nem teve tempo de se apegar, vai superar”. Parentes e amigos repetem a toda hora essas frases. Omitem- se de escutar a dor. E calam o luto de quem precisa vivê-lo para seguir adiante.

A morte nos assombra a todos. Mas a perda de um bebê é o avesso da lógica. Ninguém espera que quem acabou de nascer possa morrer. Um filho não é apenas uma combinação única dos genes dos pais, mas a soma de seus melhores desejos de continuidade. Isso faz com que essa morte seja a menos aceita – e a mais silenciada.

Até 2001, a neonatologia do Caism era mais uma das unidades do país a acreditar que a função de profissionais de saúde limitava-se a curar doenças. Centro de referência para 42 municípios paulistas, ele acolhe os casos mais graves de malformação fetal e bebês prematuros. A morte, portanto, não é uma estrangeira em seus corredores. Mas só por descuido da recepcionista os médicos encontravam-se com os pais após a perda dos filhos. Era no setor de óbito que a família recebia a notícia, da boca de desconhecidos.

Quem mudou essa prática e transformou a unidade em algo novo no Brasil foi um bebê. Ele parava de respirar dezenas de vezes por dia. A cada uma, era preciso reanimá-lo. A equipe passou a conviver com a iminência de sua morte – e com o medo do plantonista de não conseguir revivê-lo. Não havia cura. Mas ninguém queria que ele morresse em seus braços.

Como cuidar desse bebê? Deveriam parar de reanimá-lo ou continuar prolongando seu sofrimento? A quem caberia decidir? E como conversar com os pais? As perguntas infiltraram-se no cotidiano da enfermaria. Tanto que exigiram respostas que ninguém ali tinha, apesar dos muitos diplomas e das décadas de experiência.

Sem poder conviver com tantos pontos de interrogação, a equipe buscou ajuda. Convidou a psicóloga Elisa Perina para dar uma palestra sobre a morte. Elisa trabalha há quase 30 anos no Centro Infantil Boldrini, em Campinas, uma referência no tratamento de crianças e adolescentes com câncer. É uma das precursoras da prática dos cuidados paliativos no Brasil.

Com Elisa, a equipe descobriu que a questão era mais difícil do que poderiam supor. Os profissionais não poderiam lidar com a morte de um bebê se antes não lidassem com a perspectiva da própria morte. “Antes de abrir espaço externo, é preciso abrir o interno”, diz Elisa. Foi um longo caminho até a equipe estar preparada para cuidar de bebês como Lucas para além da perspectiva da cura.

A conversa de Cristiane

Cristiane torce as mãos, nervosa. Na sala a esperam duas pediatras, psicóloga e assistente social. Estão ali para explicar a Cristiane que o câncer de Lucas não tem cura – e que a família pode contar com elas para garantir conforto. Não apenas emocional, mas prático.

A primeira preocupação da equipe é iluminar as dúvidas da mãe, para que a dor não seja agravada por incertezas de diagnóstico. É importante que a família esteja segura de que todos os recursos da medicina foram usados na tentativa de curar o bebê. A certeza de ter feito tudo o que era possível é essencial para a saúde dessa família no presente – e no futuro.

Cristiane faz muitas perguntas. Todas são respondidas com informação – e com afeto. “Se não tiver jeito de curar, eu e meu marido preferíamos que nosso bebê não fizesse outras cirurgias”, diz ela. E engole soluços.

Ela conta que não consegue cuidar de seu filho mais velho. Que tem poupado os familiares das informações mais duras e sente que pode implodir de dor. Que o marido tem vindo pouco ao hospital porque estava desempregado e só tinha conseguido trabalho fazia duas semanas. Que a vida está muito, muito difícil.

A pediatra Jussara de Lima e Souza, coordenadora do grupo, diz: “Você precisa deixar os outros cuidarem de você. Você está cuidando de todo mundo, e eles não sabem quanto você está sofrendo. Sem saber, não podem ajudar. Nós podemos cuidar para que o Lucas não sinta dor, mas não podemos fazer com que sobreviva. O que podemos é ajudar você e sua família a passar por isso”.

A conversa dura duas horas. Cristiane decide levar o filho mais velho ao hospital, para que ele possa conhecer o bebê e entender aonde a mãe vai todos os dias. Até então, o menino pensa que a mãe o abandona para se divertir com um irmão desconhecido. A assistente social coloca-se à disposição para conversar com o patrão do marido e encontrar uma forma de liberá-lo por algumas horas. A mãe pode passar a noite num dos alojamentos quando quiser ficar mais com Lucas. Cristiane é estimulada a pensar sobre tudo o que lhe daria conforto. Médicos, enfermeiras, assistentes sociais e psicóloga podem ser contatados a qualquer momento.

É uma conversa entre uma equipe de saúde e a mãe de um bebê com câncer. É uma conversa entre pessoas dispostas a alcançar a dor do outro. A informação mais importante para Cristiane é que ela não está sozinha. “Você está cuidando do Lucas da melhor maneira possível”, diz a assistente social Elaine Salcedo. “Vocês têm uma história, que vai ficar com você, seja o que for que aconteça.”

Quando a conversa termina, Cristiane decide almoçar. Nos últimos dias, só comia quando passava mal. A equipe mostra a ela que precisa comer para ser capaz de cuidar de Lucas. E que é importante – e não errado – cuidar de si mesma.

Cristiane coloca Lucas no colo. É a foto que abre esta reportagem. Lucas morreu em 15 de março. Esta foto é, para Cristiane, a lembrança de que ele viveu.

Duas histórias de vida

filho possivel 6

DEPOIS DO LUTO: Janaína Bueno de Moraes perdeu suas gêmeas, ambas chamadas Vitória. Ela afirma só ter conseguido superar o luto e seguir em frente pela forma como foi tratada no hospital. Hoje, Janaína é mãe de Gabriel

No Caism, os pais podem ficar o tempo que quiserem com seus bebês, dia e noite. Aprendem a cuidar deles, a ministrar os medicamentos. O toque e a voz são estimulados. Os bebês ouvem, sentem, às vezes melhoram com esse contato tão próximo. “É importante que as mães possam se sentir mães – e não visitas. Os bebês estão doentes, mas não são nossos. São dos pais, da família”, diz Jussara. “Quando têm pouca chance de cura, não há nenhuma razão nem para procedimentos invasivos e dolorosos nem para não permitir que a família fique com eles no colo pelo tempo que quiser. Permitimos que os irmãos visitem, para que possam entender o que está acontecendo e também construir suas lembranças. É uma história de vida, não importa o tamanho que essa vida tenha. Nosso trabalho é cuidar bem dessa história. Da vida.”

Em 2004, Janaína Bueno de Moraes teve duas Vitórias. Perdeu ambas. Hoje, aos 27 anos, ela tem um bebê de 1 ano, Gabriel. “Só consegui seguir adiante por causa do cuidado que tiveram comigo”, diz. “Foi uma experiência muito dolorosa. Ao mesmo tempo, eu me sentia amparada, respeitada, ouvida. Pude cuidar das minhas gêmeas. E ensinar outras mães a cuidar de seus filhos.”

Júlia Vitória e Jaíne Vitória nasceram com 25 semanas de gestação. Janaína já tinha perdido, ainda na gravidez, outros dois bebês. Na cesariana, o médico disse: “A chance de gêmeas nascerem vivas com esse tempo de gestação é de uma em 1 milhão”. A primeira Vitória, com 580 gramas, morreu com 29 dias. A segunda, com 640 gramas, resistiu até os 8 meses.

Janaína viveu as mortes das gêmeas em mundos distintos. Testemunhou as duas formas de tratar a perda de um bebê no sistema de saúde. A primeira Vitória morreu na Unicamp. A segunda permaneceu lá por oito meses, mas morreu seis dias depois de ser transferida para outro hospital de referência. Janaína viveu dois lutos, duas lembranças. Esta é a primeira delas:

– Quando cheguei à UTI, o médico disse que minha filha estava morrendo. Outra médica perguntou se eu queria pegá-la. No meu colo, a Júlia abriu aquele olho pequeno e me olhou. Eu disse que ela fosse em paz, que tudo o que tinha de fazer na vida da mamãe e do papai já tinha feito. Fiquei segurando a mão dela. Depois, desci para um culto. Quando voltei, ela estava morta. Eles puseram roupinha nela, a botaram num bercinho e a deixaram numa sala, para que a gente pudesse se despedir. Parecia que estava dormindo. Precisei contar para a Jaíne que sua irmã tinha morrido, porque ela começou a ter uma parada cardíaca atrás da outra. Eu disse: “Você está sentindo falta de sua irmãzinha, né, fia? Sabe o que é? Lá no céu precisavam de mais uma florzinha. Jesus veio buscar a Júlia porque lá não tinha uma tão bonita. Só deixou você porque, se levasse as duas, a mamãe ficaria muito triste”.

A segunda lembrança de Janaína é de quase oito meses mais tarde:

– A Jaíne foi transferida para um hospital de Ribeirão Preto, mais perto da minha cidade. Ela não enxergava, mas, quando ouvia a minha voz, mexia a mãozinha. Acho que não tinha morrido ainda porque eu não a entregava. Eu falava assim: “Você vai ficar bem, você é a Vitória da mamãe”. Quando chegamos ao outro hospital, não me deixaram cuidar dela. Eu tinha sido treinada para cuidar dela. Então fui explicando os medicamentos para a médica, os procedimentos todos. Mas só me deixavam ficar uma hora com a minha filha. O resto do dia eu passava lá fora, angustiada. Só nos chamaram quando ela estava morrendo. Botei a mão sobre ela e entreguei minha filha a Deus, disse que ela fosse em paz. Quando acabei, uma lágrima rolou do olho dela. Eu disse a meu marido: “Você está vendo, ela estava se segurando aqui por nossa causa”. Então nos mandaram sair. Quinze minutos depois, ela morreu. Quando meu marido foi buscar nossa filha, ela estava no necrotério. Nua, com etiqueta e código de barras. Como se fosse mercadoria. Meu marido tirou a camiseta do corpo e enrolou a filha nela.

Quando foi buscar o atestado de óbito, Janaína exigiu falar com o responsável.

– Para mim, não adianta mais. Mas vocês precisam ter cuidado para lidar com a morte. Minha filha estava nua, no necrotério, com etiqueta e código de barras.

O médico respondeu:

– Calma, mãe, você é jovem, vai ter outro filho.

– Não é essa a questão – disse ela. – A questão é que eu tenho sentimentos. Minha outra filha também morreu. Mas, na Unicamp, puseram roupinha nela, botaram num bercinho. Nós nos despedimos.

– Mas lá é um hospital escola…

– É escola para que vocês possam aprender. Como você acha que vou me lembrar de minhas filhas? Da que morreu lá, eu me lembro dela dormindo, em meu colo. Da que morreu aqui, lembro com uma etiqueta e um código de barras. Como vou viver com essa imagem?

Os pais nascem antes

A cada bebê que nasce, nasce também uma família. Poucos percebem, porém, que homens e mulheres se tornam pais e mães bem antes do nascimento do filho. “É preciso entender o que significa a perda de um bebê para ser capaz de cuidar da família. Aquela criança não viveu apenas aquelas horas, dias ou meses”, diz a psicóloga Elisa. “Para os pais, no momento em que conceberam a possibilidade de um filho, ele passou a existir. Já contém nele a continuidade de um projeto de vida. É uma história mais longa que parece. Quando é rompida por uma morte, a perda é enorme.”

Ao compreender a dimensão dessa perda, o grupo de cuidados paliativos criou um espaço para a despedida. Ali, a família começa a viver seu luto com privacidade. Só depois o corpo segue para o necrotério.

A equipe procura mostrar às mães e aos pais que eles estão construindo uma história com seus bebês. Com momentos de dor e de alegria, como são todas as vidas, curtas ou longas. As mães são estimuladas a prestar atenção também a outras dimensões do cotidiano. Ir ao cinema, jantar com o marido, arrumar o cabelo, passear com os outros filhos. A perda é elaborada para transformar-se naquilo que é: numa história, parte da travessia daquela família.

Aos 34 anos, Luciana Roberto recorda o dia mais feliz de sua vida: “Foi quando eu trouxe o Lucas para casa pela primeira vez”. O menino era fruto de sua quinta gestação. Nas outras quatro, perdera os bebês na gravidez. “Eu queria muito ser mãe”, diz ela. Ao saber que o bebê nasceria com o intestino exposto e que ela entraria em coma no parto, desejou-o mesmo assim. “Pelo menos, eu saberia o que é ser mãe.”

Luciana viveu mais de um ano no hospital. Lucas passou por dez cirurgias. Um dia a equipe fez uma surpresa. Pagou uma enfermeira para que ela pudesse passar o Dia das Mães em casa, em Itu, no Estado de São Paulo. “Era um dia tão ensolarado, eu pude mostrar tudo a ele: ‘Olha, filho, este é o céu. Olha, filho, isto é uma árvore. Olha, filho, estamos chegando a Itu’”, diz ela. “Era a primeira vez que meu filho sentia o sol. Mostrei a ele o bairro onde nasci, a cidade que amo. Minha família nos esperava. Foi muito grande isso para mim.”

Lucas morreu nos braços de Luciana, com 1 ano e 4 meses. Na pequena casa onde vive com a filha de 3 anos, nascida depois do luto, ela guarda sua história com o filho em fotografias. “Olha, aqui fizeram uma festinha para ele no hospital, com bexiga e tudo”, diz. “Ele colocou um cateter, muito difícil de conseguir, que vinha lá dos Estados Unidos. Pôde então tomar nutrição parenteral. Todo mundo comemorou.”

A trajetória narrada por Luciana não é uma vida em suspenso, à espera da cura ou do fim. É um dia de cada vez, uma história em movimento. É importante que a vida de Lucas tenha se transformado em lembranças, guardadas num álbum de fotos, para que sua mãe possa viver no presente.

Conflitos no limite da vida

Não se veem muitos pais entre os berços aquecidos. As mães estão por toda parte. Com as mais variadas justificativas, a maioria dos homens deixa suas mulheres lidar com o cotidiano da UTI. Eles assumem – por pressão social, mas também por vontade própria – o lugar tradicional do homem, ao cuidar da vida prática e da vida pública. Deixam a mulher lidar com a vida privada, não mais no lar, mas no hospital.

Às vezes, a dor da mãe é tão avassaladora que não deixa espaço para o sofrimento do pai. É como se, por ter gerado o filho, a mulher tivesse um lugar maior – e fosse natural que sofresse mais. Aos pais, restaria calar uma dor supostamente menor. As mães procuram ajuda para seus dilemas, a maioria dos pais não. Se o casal consegue conversar sobre suas dificuldades e amparar-se mutuamente, tem mais chance de superar o sofrimento. Mas a doença de um bebê, seguida ou não de morte, às vezes pode levar ao fim do casamento. “Se o casal já estava fragilizado antes da doença e da perda, há um risco grande de separação”, diz a psicóloga Elisa. “Se já não dava conta das dificuldades cotidianas, na hora de uma adversidade tão profunda, o laço pode se desfazer.”

Ao falar de seus sentimentos, algumas mulheres afirmam-se não mais como um ser humano inteiro, com várias dimensões na vida, mas reduzidas a “um útero defeituoso”. “Eu sentia que havia falhado como mulher. Nem conseguia mais transar com meu marido”, contou uma mãe. “Também sentia vergonha de minhas amigas que tinham filhos saudáveis. Me sentia menor.”

Na outra ponta, alguns pais tomaram a iniciativa da separação depois da doença do bebê. Em geral, com a justificativa de ter se apaixonado por outra mulher. Uma que pudesse lhes dar filhos saudáveis. Foi o que fez o marido da mulher citada no parágrafo anterior. Além de assumir uma suposta culpa pela morte do filho, ela achou que, ao deixá-la, o marido teria razão. Afinal, ela não era uma “mulher completa”.

Enquanto algumas mulheres assumem a “responsabilidade” pelos problemas congênitos do bebê ou da gestação, há homens que parecem se eximir de qualquer participação na existência de um bebê que, em vez de alegria, causa dor. Para alguns, gerar um bebê malformado põe a masculinidade em dúvida. A saída óbvia, já que lhes faltam recursos psíquicos para resolver a questão de forma mais sofisticada, é abandonar a mulher que lhes faz lembrar o assunto. E provar, por meio de outra, que são potentes.

Uma das mães descobriu no enterro do filho que, enquanto estava no hospital, o companheiro teve um caso. Outra soube, por meio de um telefonema anônimo, que o marido mantinha uma relação fora do casamento – e que a amante estava grávida. Ela o perdoou. Mais tarde, diria: “Não há nada mais triste que ver seu marido com um filho morto nos braços”.

Não se trata aqui de generalizar. Nem de julgar os homens que traíram ou se separaram depois da doença ou da perda de um bebê. É preciso, apenas, apontar a importância de um espaço para tentar lidar com os conflitos e a dor. Esse é também o papel dos profissionais quando se olha para a saúde de uma forma mais ampla.

Numa conversa entre uma mãe e a equipe, ocorreu um episódio significativo. A mãe contava que o marido queria fazer sexo, e ela não tinha vontade, massacrada pelo cotidiano na UTI. Sentia-se ofendida pelo desejo do marido. Levou a questão até para o pastor de sua igreja. “Como é que pode?”, disse ela à equipe. “Não se preocupa. Não é só seu marido, são todos. Ouvimos muito isso aqui”, afirmou a pediatra. E a assistente social esclareceu: “São só maneiras diferentes de lidar com a dor. Para você e a maioria das mulheres, é preciso estar bem para transar. Para seu marido e a maioria dos homens, é preciso transar para ficar bem”. Era um momento terrível. Quando perceberam, estavam todas, inclusive a mãe, quase chorando. Desta vez, de tanto rir.

A dor do pai

Quando a família perde o bebê, o desafio da equipe de saúde é, ao mesmo tempo, ajudar no luto e garantir acesso aos exames que podem detectar as causas dos problemas. Informação qualificada é a melhor maneira de eliminar culpas imaginárias e de garantir que a próxima gestação, se houver, sofrerá um risco menor de repetição.

O grupo de cuidados paliativos faz uma reunião com os familiares depois de três meses da perda. Nela, os exames são discutidos com os médicos, e as dúvidas são eliminadas. O espaço também é usado para que os pais possam falar sobre suas dificuldades e ser encaminhados para tratamento psicológico ou algum outro tipo de assistência cuja necessidade seja detectada.

O empresário Antonio Bastos, de 46 anos, marcou a equipe pela presença. Sua filha viveu menos de três dias. Nesse tempo tão curto, mas intenso, Antonio foi um ótimo pai. “A dor para o pai é tão grande quanto para a mãe. Ou maior”, diz. “Porque nós, pais, não geramos. Então, me parece que perdemos mais. Minha mulher sentiu nossa filha se mexer dentro dela, mas eu só podia conversar com a barriga.”

Quando a menina morreu, Antonio pegou-a no colo. E a beijou muito. Olhava para o bebezinho com um amor tão profundo que ninguém será capaz de esquecer a cena. “Foi uma alegria poder tocar em minha filha. E uma tristeza saber que ela não vai viver com a gente”, diz ele. De mãos dadas com a mulher e o filho, Antonio rezou em torno do berço da UTI até que, 15 minutos depois, sua filha cessou suavemente de respirar.

Na reunião do luto, três meses depois, Antonio e sua mulher precisavam compreender. “Como o problema era na placenta, minha mulher ficava se perguntando se tinha feito algo errado”, diz ele. “Tirar todas as dúvidas foi muito importante para nós. Por saber que fizemos tudo certo, dá para seguir vivendo. Esquecer, jamais. Superar, sim.”

A fotografia

A foto que encerra esta reportagem foi uma escolha difícil. Ela simboliza um profundo respeito pela morte – e pela vida. O retrato mostra o casal Josiane e Giovani Pereira ao se despedir da filha que acaba de morrer. É um momento triste, mas digno. A cena revela a diferença entre uma UTI neonatal com cuidados paliativos e outra sem. Se fôssemos registrar a prática tradicional, a imagem seria mesmo impublicável: um bebê nu, com uma etiqueta, numa mesa de necrotério.

A fotografia é uma prática cotidiana da neonatologia do Caism. No início, os pais ficam surpresos com a oferta de fotografar seus bebês. Depois, trazem sua própria câmera. “Incentivamos os pais a tirar fotos dos filhos. É uma forma de entender que é uma história. Alguns bebês poderão ver as fotos mais tarde, outros não”, diz a pediatra Jussara Souza. “Quando a história não continua, para os pais é uma lembrança desse filho que teve uma vida curta, mas ainda assim uma vida. Nunca tivemos nenhum pai arrependido de ter tirado uma foto. Só pais que se arrependeram por não ter essa lembrança.”

Quando as mães perdem um filho, costumam dizer: “Deus me tirou um filho”. Jussara responde: “Sim, mas antes de tirar ele deu”. Essa é a função da fotografia como registro. “As pessoas precisam lembrar que tiveram um bebê”, afirma Jussara. “Mesmo que seja por um período curto, elas foram pais e mães, cuidaram do seu filho, fizeram todo o possível. E há uma imagem desse amor.”

A foto de adeus mostra por que a morte deve ser tratada como parte da vida. “A morte de um filho é uma ferida. Ela dói. Se cuidarmos dela, vai virar uma cicatriz. Vai continuar lá, como lembrança do vivido, mas não vai mais doer”, diz Jussara. “Mas, se não tratarmos dela, vai se tornar uma ferida incurável, para sempre aberta. Quando não conseguimos curar o bebê, temos de cuidar da ferida. Não posso ser Deus, como me ensinaram na faculdade de medicina. Mas posso ser humana e cuidar.”

A fotografia é o final de uma história. Não a história sonhada, mas a possível. E o possível nunca é pouco.

RETRATO DE ADEUS  Josiane Pereira despede-se de sua filha Ana Luiza. A menina viveu apenas sete horas. Na sala de luto, na unidade de neonatologia, o marido, Giovani, a ampara e acaricia. É dele a mão que afaga  (Foto:Marcelo Min)

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Depois de cinco meses de UTI, Luciana levou sua filha prematura para casa

MÃE DE UTI  Durante cinco meses esta foi uma cena corriqueira na enfermaria: Luciana Patrício com as mãos pousadas sobre seu bebê, prematuro e com complicações de saúde. Hoje, ela cuida de Marcela em casa (Foto: Marcelo Min)

MÃE DE UTI: Durante cinco meses esta foi uma cena corriqueira na enfermaria: Luciana Patrício com as mãos pousadas sobre seu bebê, prematuro e com complicações de saúde. Hoje, ela cuida de Marcela em casa (Foto: Marcelo Min)

Quando viu Marcela pela primeira vez, Luciana Patrício, de 35 anos, sentiu medo. “Ela era tão frágil, parecia que não ia aguentar”, diz. Moradores de Sorocaba, ela e o marido alugaram uma quitinete perto do hospital. E Luciana não saiu mais de perto da criança. A qualquer hora do dia, lá estava ela. Sempre com a mão sobre seu bebê. Pareciam carnalmente ligadas, ela e a filha. A mão substituindo o cordão umbilical, rompido de forma abrupta.

Luciana passava os dias na UTI. As noites ficava sozinha. Teve um pesadelo. Nele, um gato entrava e pegava a filha. “Ela é tão pequena.” A certa altura, chegou a pensar que o melhor para Marcela seria morrer. Não suportava a ideia de ter colocado um bebê no mundo para ser espetado por agulhas. Religiosa, entregou a filha a Deus.

Quando Marcela piorou, a equipe de cuidados paliativos conversou com Luciana. “Eu precisava decidir o que fazer se a situação dela se agravasse. Eles queriam saber se eu queria que entubasse, se queria que ela fosse reanimada”, diz. “Foi importante falar sobre isso. Se a situação piorasse, eu não queria que ela sofresse mais. Eu tinha uma ideia diferente dos cuidados paliativos. Achava que não investiriam mais na minha filha. Pelo contrário, continuaram fazendo tudo o que era preciso.”

Marcela começou a melhorar. Luciana passou para a próxima etapa. Dentro da unidade, há um apartamento onde as mães ficam com seus filhos perto de ter alta. Lá, começam a cuidar dos bebês sozinhas, mas, a qualquer aperto, podem pedir ajuda. É uma forma de adquirir segurança para um momento tão desejado, mas difícil. “Foi maravilhoso saber que ela iria para casa, mas também deu muito medo. Ela precisa de muitos cuidados”, diz Lucia-na. “É estranho, mas eu sinto saudade do hospital. Por muito tempo, a equipe foi meu pai, minha mãe, meu marido, meus amigos, minha família, tudo. Se eu não estivesse num lugar assim, teria enlouquecido.”

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