A guria dos 7

Sobre o desamparo de ser criança e viver na rua

23.973 crianças vivendo nas ruas de 75 cidades brasileiras com mais de 300 mil habitantes. Os números foram divulgados na semana passada pelo jornalista Bruno Paes Manso, do jornal Estadão, e são resultado de um censo nacional encomendado pela Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República (SDH) e pelo Instituto de Desenvolvimento Sustentável (Idesp). Pelo menos 63% destes meninos e meninas chegaram às ruas por causa de brigas em casa. A pesquisa mostra que 72,8% se identificam como pardos ou morenos e negros, e 71,8% são do sexo masculino. Apenas 6,7% concluíram o ensino fundamental. O censo deverá ser usado para a construção de uma política nacional.

Eu lembro, porque trabalhava como repórter nessa área, de que no final dos anos 90 havia 192 meninos de rua na capital gaúcha. Cento e noventa e dois. E ninguém soube o que fazer com eles. E se multiplicaram. Lembro, antes disso, de quando fui cobrir uma coletiva na prefeitura de Porto Alegre numa manhã de 1993 e encontrei no caminho garotos saindo dos bueiros do centro da cidade. Eram 12 e dormiam nos esgotos. A reportagem publicada no jornal Zero Hora repercutiu dentro e fora do país, e a foto ganhou o Prêmio Esso naquele ano. A prefeitura mandou fechar os bueiros e pouco mais. Lembro de quando já vivia em São Paulo e o repórter Carlos Etchichury, de ZH, investigou o paradeiro destes meninos dez anos depois. Ao localizar nove deles, descobriu que quatro estavam mortos.

Como repórteres nós mostramos, apontamos, denunciamos. É a nossa parte. E às vezes – muitas vezes – nada acontece. Fico contente que tenha sido feito um censo nacional de meninos e meninas de rua para que se possa enfrentar o problema com o necessário conhecimento da realidade. Mas me pergunto: por que só depois de 20 anos da criação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), o tempo de uma geração de rua morrer antes de se tornar adulta? E por que só agora, após oito anos de Lula e outros oito anos de FHC, talvez seja debatida e construída uma política pública integrada para dar conta dessa realidade?

Mesmo sem censo, há muito basta andar pelas grandes cidades – e também pelas pequenas e médias – para desconfiar que estivesse na ordem dos milhares o número de crianças de rua. Por que nunca se tornou uma questão urgente de fato para qualquer governo, em todas as instâncias? E por que boa parte de nós acha suficiente fechar o vidro do carro e colocar insulfilm para não ser alcançado pelo olhar destas crianças?

Até hoje não vi essa tragédia ser tratada com a seriedade e a urgência necessárias em nenhum nível de governo, por nenhum partido. Existiram alguns programas e políticas nas últimas décadas, a partir do trabalho e da pressão da sociedade organizada, mas estiveram longe de se tornarem centrais e suficientes. Espero que, desta vez, as ações – muito mais do que as boas intenções – provem que o enfrentamento do problema é prioridade.

Porque, quando se é uma criança na rua, o tempo é escasso. A violência espreita do minuto seguinte. O número encontrado pelo censo só não é maior porque nas ruas meninos e meninas morrem com facilidade assombrosa. Os enredos de suas vidas interrompidas são contados no jornal Boca de Rua e Boquinha, de Porto Alegre, da ONG ALICE, feito por jovens e crianças sem teto da capital gaúcha. Há dez anos o jornal é um testemunho deste drama: muitos dos que registraram sua vida ali hoje estão mortos. E aquele que hoje denuncia o assassinato de um colega teme virar notícia amanhã.

Quero aqui contar uma história pessoal, que me ajudou a compreender o desamparo que é ser criança e viver na rua, exposta ao mundo. Acredito que é preciso fazer o exercício de vestir a pele do outro para alcançar o significado da tragédia que só é nossa na medida em que é do outro – e que é nossa exatamente porque é do outro. Depois de adulta, eu faço esse exercício por decisão racional, como já escrevi aqui em textos anteriores. E o faço com o cuidado de não perder pedaços vitais no caminho. Mas na história que vou contar eu não tive essa escolha. Fui enfiada na pele do outro à força.

Ijuí, a cidade gaúcha onde eu nasci e vivi até os 17 anos, não está na lista do censo nacional das crianças de rua. Tem hoje menos de 80 mil habitantes, mais do que na minha infância. Naquele domingo de 1975 fazia sol, eu lembro bem. Pedi à minha mãe para ir ao cinema na matinê. Naquele tempo, havia dois cinemas em Ijuí. Um passava pornochanchadas e bangue-bangue (a relação até hoje me parece das mais interessantes), e o outro exibia os filmes, digamos, de família. Para crianças, a única possibilidade eram as matinês de sábado e domingo. Eu adorava cinema, mas meus pais e irmãos já tinham outros planos. Não era comum uma menina ir sozinha ao cinema, mas também não era impossível. Eu tinha nove anos.

A sessão acabou às 16h, e eu voltei para casa. Algo como quatro quarteirões. Toquei a campainha muitas e muitas vezes. Nada. Meus pais imaginaram que eu compreenderia que tinham precisado sair e iria à casa da minha tia, a duas quadras de distância. Na minha cabeça a coisa se passava diferente: era óbvio que em algum momento alguém abriria a porta e me resgataria da rua. Então esperei.

Ainda hoje sou capaz de me ver com exatidão, aos nove anos, enfiada no meu melhor vestido, azul com flores coloridas bordadas no peito e saia de preguinhas. A rua da minha casa era comercial, e a nossa era praticamente a única casa. Ao lado havia uma construção e em frente um terreno baldio. Aos domingos, as ruas da cidade eram desertas. Eu os vi chegando e pensei em correr, mas já não dava tempo. Acho que nem conseguiria porque me sentia algemada ao chão. Eram três crianças de rua. Dois meninos e uma menina de pele morena numa cidade de colonização europeia. E me cercaram.

Estou lá agora. Há um menino menor, de uns 7 ou 8 anos, e um maior, de uns 11 ou 12. A menina parece ter a minha idade. Os três me apontam seringas com agulhas certamente recolhidas do lixo das farmácias. Dizem muitas coisas. Que vão me furar, que vão me machucar. Que se me derem uma injeção eu vou morrer. Que devo dar a eles tudo o que tenho. E o que tenho são 7 cruzeiros amassados na minha carteira, o troco do cinema.

Eu dou. Mas eles não vão embora. Eles querem mais. Continuam me aterrorizando e dizendo que querem tudo o que tenho. Eu olho para a menina do meu tamanho que me aponta sua arma. Ela não tem um vestido. Ela só tem a parte de baixo de um vestido, algo que naquela época se chamava de anágua. Branca e velha e meio transparente. Eu posso sentir a sexualidade precoce dela. E sinto que o que eles querem de mim é algo que vai me matar de outro jeito. E por sorte alguém passa na esquina, do outro lado da avenida, e eles fogem.

Fiquei ali, paralisada por um momento. E depois, sim, corri até a casa da minha tia. E cheguei lá coberta de manchas vermelhas por todo o corpo. Uma reação emocional que teria pelo resto da minha vida, até hoje. Daquele domingo em diante, eu me tornei “a guria dos 7”. Eles me esperavam na porta do colégio e me perseguiam pelas ruas gritando meu novo título.

Contei à minha família sobre o assalto com seringas, até porque cheguei à casa da minha tia em estado de choque, mas não contei que era perseguida depois. Na minha infância não se falava em trauma. Nós éramos mais ou menos consolados, e a vida seguia sem muito espaço para dramas. Fazia parte do processo educativo aprender a resolver os próprios problemas desde cedo. Me virei como pude. Depois de algumas semanas de terror, minhas colegas de escola me ajudaram a enfrentá-los, e os três pararam de me esperar na porta do colégio.

Mas Ijuí era uma cidade pequena. E só muito mais tarde compreendi que havia criado uma relação de espelho com a menina de rua. Nós acompanhávamos a vida uma da outra sem jamais termos nos falado novamente. Apenas nos cruzando pelas esquinas do centro. E nos olhando de longe. Foi ao testemunhar seu destino ano após ano – e compará-lo ao meu – que compreendi o que é desigualdade. A mais abjeta delas, a de origem. Compreendi que ela tinha me tirado 7 reais e a inocência, mas que a nossa queda de braço ela já tinha perdido ao nascer.

Em nossa relação silenciosa e secreta, no início eu sentia por ela um ódio intestino. A menina encarnava a minha humilhação, os meus piores temores e a causa dos desmaios que passei a ter a cada vez que via uma agulha e dos quais só consegui me livrar depois de adulta. Mas sempre que nos cruzávamos ela estava pior. E seu olhar agora não era mais desafiador nem jocoso, mas envergonhado e acuado. Eu crescia protegida – e ela era mastigada pela rua.

A última vez que a vi nós tínhamos uns 15 anos. Eu usava uma trança e levava alguma coisa para a minha avó, que morava perto da praça. Era início da noite de um dia de semana. Ela estava lá numa esquina, menos vestida do que no dia em que nos conhecemos, e um homem ria e passava a mão no seu peito. Eu olhei para ela, e ela baixou os olhos.

Nunca mais nos vimos. Eu não sei o seu nome, e é grande a probabilidade de que ela esteja morta. Mulheres de classe média como eu tentam aprender a envelhecer. Mulheres como ela tentam não morrer antes dos 20. Pode ser que hoje ela só viva em mim – e a memória é a única vida que eu posso lhe dar.

Conto esta história aqui porque compreendi algo que posso compartilhar. Naquele momento, aos nove anos, aqueles meninos de rua me colocaram, à força, na pele deles. Naqueles minutos eternos em que me ameaçaram de morte com seringas e agulhas, eu vivi exatamente o desamparo não de um, mas de todos os seus dias. Na rua, diante de uma casa onde eu não podia entrar, sem uma família que me protegesse. Para mim, era apenas um instante. Para eles era a vida inteira.

Naquele domingo de 1975, a menina desnudada em uma anágua, ainda que com uma seringa na mão, era eu. Ela me enfiou na marra no seu lugar. E, de certo modo, parte de mim nunca mais deixou a sua pele. E eu vi, nós duas vimos, o que aconteceu comigo. E o que aconteceu com ela. A diferença de nossos destinos se desenrolando num enredo mudo nas ruas da cidade pequena.

Se você chegou até aqui, talvez tenha uma ideia mais próxima do que sente cada uma destas quase 24 mil crianças que neste exato momento estão nas ruas, expostas à violência do mundo apenas com suas peles e as armas que eventualmente conseguem. E que, no final, de nada servem. Porque já foram derrotadas muito antes. Estas crianças não têm o tempo das reuniões, da política e das boas intenções para esperar. Os dentes do mundo estão sobre seus corpos. E acredite. Não há nada pior – nada – do que ser criança e viver (e morrer) no desamparo.

(Publicado na Revista Época em 28/02/2011)

A Igreja do Livro Transformador

O escritor Luiz Ruffato conta como foi salvo pela literatura

Luiz Ruffato costuma contar que é filho não do primeiro, mas do segundo pipoqueiro mais importante da cidade mineira de Cataguases. O primeiro fazia ponto na Praça Ruy Barbosa, perto dos cinemas e bares. Já seu pai assentava o carrinho na Praça Santa Rita, a da igreja. A pipoca ornava mais com o footing do que com a reza, portanto o concorrente faturava mais. A história serve como uma fita métrica capaz de mensurar a lonjura do salto que fez do filho do segundo pipoqueiro mais importante de Cataguases um dos escritores mais interessantes do Brasil de hoje, com vários prêmios e livros traduzidos em países como França, Itália e Portugal. Quase um milagre, num país tão desigual. Mas, como lembra Ruffato, um milagre da Igreja do Livro Transformador.

Desde que ouvi Luiz Ruffato contar sua história, em Paraty no ano passado, que ficava ensaiando o convite para que ele a compartilhasse com vocês aqui nesta coluna. Há escritores cujos livros a gente ama, mas quando os conhece encarnados, são tão arrogantes e mesquinhos que dá nhaca da obra. Por isso, em geral até prefiro não conhecer os autores dos livros que amo para não misturar as almas – e perder os livros que já possuem um pedaço da minha. No caso de Ruffato, o risco não existe. Ele é uma das pessoas mais encantadoras e generosas que já conheci. Encontrá-lo é como chegar em casa.

Nesta entrevista ele nos conta a história de como foi salvo pela literatura. Se fosse uma igreja mesmo, a do livro transformador, seria o que os religiosos chamam de “testemunho”. Mas a literatura nos salva pelo avesso: porque nos enche de perguntas em vez de respostas, nos inquieta, nos dá comichão e insônia, perturba mais que pernilongo e nos transtorna para todo o sempre ao mostrar que o mundo é grande e sempre além. A literatura acaba nos salvando exatamente porque nos põe a perder dos destinos determinados.

No caso de Ruffato, o destino idealizado pelos pais era de que subisse na vida virando operário especializado, o que ele até foi por uns tempos. O que ele vai nos contar aqui é como de entregador, balconista e torneiro mecânico terminou virando jornalista e depois escritor. Por quais caminhos acabou migrando para Juiz de Fora, entre outras paradas, e depois desembarcando em São Paulo, onde chegou a morar na rodoviária do Tietê por um mês. E também vai nos contar por quê. Sim, porque Ruffato só admitia escrever se encontrasse uma boa razão. Uma forte o suficiente para alimentar o homem e a busca.

Ao perseguir seus porquês, ele tornou-se um dos poucos escritores brasileiros a escrever sobre o universo da classe média baixa. Carrega para as páginas da ficção a subjetividade do trabalhador urbano, até então praticamente um exilado da literatura brasileira. E, para contar essa saga, buscou uma forma que pudesse dar conta desses personagens desenraizados, fragmentados no movimento imposto pela sobrevivência.

Eles eram muitos cavalos (Record) é o livro que deu reconhecimento a Ruffato, pelo qual recebeu os prêmios Machado de Assis e APCA (Associação Paulista de Críticos de Arte). Agora, ele escreve o quinto e último volume da saga que chamou de Inferno Provisório (Record), dos quais quatro já foram publicados: Mamma, son tanto Felice, O mundo inimigo, ambos premiados pela APCA, Vista parcial da noite, pelo qual ganhou um Jabuti, e O livro das impossibilidades.

Dividi sua história em tópicos, para facilitar a leitura. Como nos romances de Ruffato, é possível começar pelo fim ou mesmo pelo meio. E depois ir ao começo. Ou seguir a trajetória mais ou menos linear. Cada leitor descobre seu rumo. Abusei um pouco do fato de a coluna ser minha e marquei as partes que achei mais lindas.

Boa leitura. Espero que você também faça parte desta Igreja!

A bibliotecária que estava lá

“Na minha casa não tinha livros. Meu pai, Sebastião, um pipoqueiro semianalfabeto, e minha mãe, Geni, uma lavadeira de roupas analfabeta, sabiam da importância da educação para o futuro dos três filhos, mas lutavam com muitas dificuldades pela sobrevivência cotidiana.

Antes dos 12 anos, eu lia algumas coisas que por acaso caíam em minhas mãos, revistas em quadrinhos, bulas de remédio, jornais que embrulhavam verduras, até mesmo algum livro (lembro-me, por exemplo, de um título, Os últimos dias de Pompeia, de Lord Bulwer-Lytton, avidamente consumido numa tarde de calor, às escondidas, no quarto de uma vizinha costureira, sombrio e abafado…).

Mas, um dia, meu pai e eu estávamos trabalhando numa das praças de Cataguases, minha cidade natal, num domingo após a missa das sete horas, quando um senhor se aproximou e, após comprar um pacotinho de pipoca, perguntou se eu estava estudando e onde. Meu pai respondeu que sim e declinou o nome de uma péssima escola, em fama e ensino. Ele perguntou por que eu não estava no Colégio Cataguases, uma ótima escola pública, onde estudava a elite econômica. Meu pai explicou que todos os anos tentava uma vaga, mas nunca conseguia. O homem, talvez condoído, naquele momento, pela postura humildemente decepcionada do meu pai, falou que era diretor lá e que no ano seguinte ele garantiria minha matrícula.

E assim foi. Em fevereiro, aos 12 anos, eu, de uniforme novo, estreava a minha timidez nos corredores do Colégio Cataguases. Mas tudo era tão diferente! Até então, eu estudava à noite no Ginásio Comercial Antônio Amaro, uma escola mantida pela comunidade, que nem sede tinha, todo ano alugava o imóvel de uma escola pública para o curso noturno, e trabalhava de dia. Além de ajudante do meu pai, entregava as trouxas de roupa que minha mãe lavava e passava, e já havia sido caixeiro em um botequim.

No Colégio Cataguases as aulas eram de manhã e os colegas estranhos. Fui designado para uma classe de repetentes (a maioria por indisciplina) e não consegui me adaptar ao novo ambiente. Comecei então a, nos intervalos, me afastar para os cantos. Até que um dia descobri, maravilhado, que existia um lugar tranquilo, silencioso, pouco frequentado… E passei a fazer daquele espaço, a biblioteca, o meu refúgio.

Só que, após me ver várias vezes por ali, sentado sem fazer nada, a bibliotecária provavelmente pensou que eu quisesse o empréstimo de um livro, mas que, por algum motivo, vergonha talvez, eu não tivesse coragem de me dirigir a ela. Então, tomando a iniciativa, ela me chamou um dia, preencheu uma ficha, colocou um livro em minha mão e disse: Leva esse, leia e me devolva daqui a tantos dias… Eu, muito tímido, não contestei. Enrubescido, peguei a brochura, enfiei na pasta e carreguei para casa.

Quando cheguei, a primeira coisa que meu pai perguntou, como ele fazia sempre que aparecíamos com algo diferente em casa, foi: O que é isso, menino? Eu respondi, sem graça: Um livro. E ele: Onde você pegou isso, menino? Eu: Peguei não, pai, foi a moça lá que me deu… Ele: Deu? Eu: É, ela falou pra eu ler e devolver pra ela. Ele: Se ela falou pra você ler, vai ler então!

Dias depois, levei-o de volta, e a bibliotecária perguntou, desconfiada: Leu o livro? Respondi: Sim, senhora. E ela, exultante, falou: Que bom! Então, tome este. Eu, obediente, levei-o para casa, li, devolvi, e ela, achando que havia conquistado um novo leitor, passou o ano inteiro me emprestando livros. Lembro, por exemplo, que li todos os volumes do Tesouro da Juventude…

Ao fim daquele ano, inadaptado ainda, saí do Colégio Cataguases e voltei para o Antônio Amaro, onde, estudando à noite, retomei o trabalho durante o dia (balconista de armarinho, operário têxtil). Mas, de alguma maneira, havia sido contaminado pelo vírus da leitura.”

O livro que foi um abalo sísmico

“Aquele primeiro livro, que não sei por que estava naquela biblioteca e muito menos porque a bibliotecária achou que eu iria gostar, me mudou completamente. O livro se intitulava Bábi Iar, do escritor ucraniano, à época soviético, Anatoly Kuznetsov, e era um documentário ficcionalizado de um massacre de judeus pelo exército alemão em Kiev.

Foi quando, pela primeira vez, tomei consciência de várias coisas ao mesmo tempo: de que o mundo era mais amplo que eu imaginava (até então eu conhecia, fora de Cataguases, apenas Ubá e Rodeiro, onde moravam meus parentes, e Santos Dumont, onde meu pai permaneceu durante um ano internado num sanatório para tuberculosos); e que neste mundo amplo havia outras línguas, outros povos, outras religiões, outros climas, outras geografias; e que neste mundo amplo havia também a perversidade, a violência, a estupidez extremadas – ao fim e ao cabo, descobri que o mundo era barbárie e era civilização…

E em pleno outono cataguasense (modo de dizer, porque lá é sempre verão…) eu senti o frio glacial da Ucrânia, e senti medo e compaixão, e percebi que mais dia menos dia teria de deixar o conforto, ainda que precário, mas conforto, da casa dos meus pais, da minha cidade, para, atravessando os morros que circundam Cataguases, ver o que haveria alhures…”

Comendo sonho e vivendo feijão

“Passei a dizer para todo mundo, sem saber exatamente o que significava isso, que queria ser escritor, para desespero da minha mãe… Por essa época, havia uma novela na televisão, O Feijão e o Sonho, baseada num romance de Orígenes Lessa, que mostrava exatamente a luta de um professor cheio de sonhos e veleidades literárias, envolvido em terríveis dificuldades financeiras e enovelado na mediocridade de uma pequena cidade do interior…

Minha mãe, muito prática, me fez ver que se quisesse alimentar a idéia de um futuro melhor teria de arrumar uma profissão séria – e que não seria evidentemente a de escritor… Assim, entrei para o Senai, onde me formei em tornearia-mecânica, ao mesmo tempo em que fazia um curso noturno de contabilidade. Se no Senai pensava no feijão, à noite um professor, Alcino Antonucci, me desviava para o sonho, orientando as minhas leituras e incentivando meus primeiros passos na escrita.

Finalmente, um pouco antes de completar 17 anos, percebi que teria de cortar os laços com minha cidade, em definitivo. Por essa época, as grandes greves do ABC haviam interrompido o fluxo natural de mão de obra especializada de Cataguases, e os meus colegas de Senai estavam indo trabalhar na Fiat, na região de Belo Horizonte, ou nas grandes siderúrgicas do Vale do Aço mineiro.

Acabei no meio do caminho: parei em Juiz de Fora, onde trabalhava durante o dia como torneiro-mecânico e fazia cursinho à noite visando o vestibular da Universidade Federal. Entrei no curso de Comunicação Social num momento interessante, pois, vivenciando os estertores da ditadura, podíamos conciliar a luta política com as descobertas pessoais. No meu caso, uma formação literária alicerçada pela generosa orientação do poeta e professor Gilvan P. Ribeiro (antes, no cursinho, duas professoras também me incentivaram, Imaculada Reis e Hilda Curcio).

Neste período, além das minhas atividades políticas, participava de grupos de estudos e de um grupo de poetas que editava um folheto quinzenal, Abre-Alas, com apresentações aos sábados de poesia falada e militante na principal rua de Juiz de Fora, o Calçadão da Halfeld.

E lia, lia muito. Lia livros emprestados de amigos, livros de bibliotecas públicas, livros comprados em sebos, lia tudo que me caía nas mãos, mas principalmente a literatura contemporânea, pois estávamos em pleno boom da literatura brasileira e latino-americana.”

Ler para ser arrancado do lugar

“Eu comecei a me interessar por livros, ou melhor, pela leitura, muito cedo. Lembro-me que meu irmão gostava de ler o Jornal do Brasil aos domingos. Era um calhamaço que eu, de bicicleta, ia comprar numa banca do centro da cidade. Eu separava o caderno de Internacional e, deitado na varanda de casa, no calor sáunico de Cataguases, passava a manhã me informando dos rumos da Humanidade…

Junto com o Jornal do Brasil, eu trazia o jornal O Cataguases, que praticamente não tinha notícias, apenas divulgava os atos do Executivo, do Legislativo e do Judiciário… No entanto, um grupo de escritores da cidade encartava nele um suplemento cultural, o Totem, de literatura… de vanguarda!!! Sim, de vanguarda… Capitaneados por Joaquim Branco e Ronaldo Werneck, difundiam poetas brasileiros e estrangeiros que experimentavam o poema-processo, a arte-postal, o concretismo, o neoconcretismo, o poema-visual… E, mesmo não entendendo absolutamente nada, eu gostava daquilo…

Ou seja: um dos meus primeiros contatos com a literatura foi com a literatura experimental… Acho que isso me causou danos irreversíveis, porque até hoje os meus autores preferidos são os que fazem experiências com as linguagens… Então, desde essa época, venho lendo de maneira quase obsessiva.

Claro, no começo, como disse, de maneira absolutamente caótica – até hoje, às vezes pego um livro e reconheço que já o havia lido um dia, sem saber… Depois, de maneira mais organizada. Mas tento ler todos os dias. Nem sempre só coisas que me agradam, claro, pois, como escritor profissional, muitas vezes sou obrigado a fazer leituras profissionais, mas busco sempre ter algum prazer na leitura – prazer estético, entenda-se, como me extasiar com a forma como um escritor conduziu sua história, ou como um poeta constituiu imagens singulares… Gosto de ler algo que desafie a minha inteligência, que me faça sair do meu lugar de conforto, que me transforme.”

De bar em bar, vendendo palavras

“É estranho, porque a experiência da leitura, no meu caso, se desdobrou quase concomitantemente com a necessidade de me expressar. Logo após o impacto das primeiras coisas lidas, escrevi meu primeiro livro, aos 15 anos, um pequeno romance, Domingo o almoço é lá em casa, que contava a história de uma família que largava a roça pela cidade e as agruras deste deslocamento, batido à máquina numa Hermes Baby. Ou seja, minha primeira experiência foi na prosa, não, como seria natural, na poesia…

Minha mãe guardava a pasta de cartolina que enfeixava as páginas datilografadas como um tesouro – isso, muito antes de eu publicar meu primeiro livro, profissionalmente… Em Juiz de Fora, durante o cursinho, ganhei uma bolsa (que me isentava do pagamento das três últimas mensalidades do ano) ao vencer um concurso de contos (o primeiro e o segundo lugares!). Depois, quando entrei para a universidade, animado com o clima de urgência do grupo do qual fazia parte, publiquei meu primeiro livro…

Incentivado por um amigo, prematuramente falecido, José Henrique da Cruz, lancei O homem que tece, poemas, em formato de bolso, rodado em off-set, edição de mil exemplares, esgotado em menos de seis meses… Vendíamos de mão em mão, nos bares da cidade, e com o dinheiro arrecadado pagamos a gráfica e financiamos outros livros da mesma natureza.

Curioso, porque tanto o meu ‘primeiro romance’ quanto o ‘primeiro livro de poemas’ tratam de temas que seriam retomados, décadas mais tarde, no projeto que estou desenvolvendo agora, o Inferno provisório... Depois disso, ainda publiquei outro livro de poemas, Cotidiano do medo, já quando morava em Alfenas, sul de Minas… Esta seria a minha infância literária.”

Rodoviária do Tietê: a primeira casa em São Paulo

“Eu cheguei em São Paulo e, não querendo amolar algumas (poucas) pessoas que conhecia, e não tendo dinheiro para ir para um hotel ou pensão, dormia nos bancos da Rodoviária do Tietê. Isso durou um mês – dormia lá nas noites de segunda a quinta-feira, já que na sexta-feira eu dormia na poltrona de um ônibus em direção a Minas Gerais, onde passava o fim de semana (para renovar as roupas…), e a noite de domingo eu passava dormindo na poltrona de um ônibus, voltando para São Paulo…

Fiz algumas amizades por lá, inclusive com um policial, que, na primeira noite, não queria me deixar dormir dentro do prédio… Eu então expliquei para ele a minha situação e ele, condoído, tomava conta de mim… Eu chegava na rodoviária depois do trabalho, tomava um banho, comia qualquer coisa, e dormia sentado (os bancos da rodoviária, estranhamente, são feitos para provocar desconforto nos passageiros)…”

Em busca de voz própria

“Me calei, não escrevendo uma linha sequer, durante toda a ‘década perdida’ brasileira – que compreende mais de 10 anos, pois vai dos inícios da década de 1980 até meados da década de 1990. Este período foi um momento de maturação. Eu sabia que iria retomar a escritura, mas não me sentia pronto ainda. E assim, sem angústia ou ansiedade, fui tentando compreender por que deveria escrever, sobre o que, e, principalmente, como…

Até que em 1998 lancei Histórias de remorsos e rancores, seguido dois anos depois de (os sobreviventes), ambos coletâneas de contos, que, já ressoando minha voz literária, ainda não me satisfaziam do ponto de visto formal… Estes livros, embora tenham vendido bem, e o segundo tenha até mesmo recebido uma menção especial no Prêmio Casa de las Américas, não serão mais reeditados. Na verdade, foram incorporados, reescritos, ao projeto Inferno Provisório. A minha estréia, propriamente dita, considero Eles eram muitos cavalos, um exercício literário que me fez compreender sobre o que e principalmente como escrever…

Escrever, como ler, tem que ter, para mim, um componente de prazer estético, tem que ser um desafio intelectual. Porque, antes de tudo, escrevo para mim, escrevo histórias que gostaria de ler. Penso que uma história, para convencer o leitor, tem antes, necessariamente, que convencer o autor. Se me convenço de sua necessidade, se o que tento passar me comove esteticamente, talvez eu possa então comover o leitor, porque pode ser que haja ali uma verdade.”

O mundo da classe média baixa

“Passei um longuíssimo período afastado da escrita literária porque estava mergulhado na comezinha sobrevivência cotidiana, e também porque estava refletindo sobre algumas questões essenciais: para que escrever, sobre o que escrever, como escrever?

Aliás, eu tinha sim uma idéia de sobre o que escrever. Me parecia lógico que minha literatura deveria retratar o mundo que eu conhecia bem, o do trabalhador urbano, os sonhos e pesadelos da classe média baixa, com todos os seus preconceitos e toda a sua tragédia.

No entanto, quanto mais pesquisava, mais me dava conta de que pouquíssimos autores brasileiros haviam se debruçado sobre esse universo, talvez porque o trabalhador urbano não suscite o glamour, por exemplo, que suscita o malandro ou o bandido – personagens sempre presentes na ficção nacional, representados do ponto de vista da classe média como desestabilizadores da ordem social.

Por outro lado, me dei conta de que os indivíduos oriundos da classe média baixa, que conhecem e poderiam escrever sobre esse universo, sempre tiveram que negar suas origens para serem aceitos na nossa sociedade, que é extremamente hierarquizada e preconceituosa. Retrospectivamente, se pensarmos no personagem ‘trabalhador urbano’ (não o militante político, bem entendido) temos poucos representantes na literatura brasileira. Talvez o único autor que tenha feito deste tema o motivo de sua ficção seja Roniwalter Jatobá, ele mesmo ex-operário.”

Qual é a forma que dá conta deste mundo?

“Se eu sabia que queria retratar esse universo em meus livros, faltava responder à questão seguinte: como escrever sobre esse tema?

O romance tradicional nasce no Século XVIII como instrumento de descrição da realidade do ponto de vista da burguesia. Ou seja, o romance ideologicamente serve a uma visão de mundo específica. Então, qual seria a forma adequada de representar o ponto de vista da classe média baixa ou do trabalhador urbano?

Eu tentei então me filiar a uma família literária que surge paralelamente ao aparecimento do romance tradicional, que poderíamos chamar de anti-romance, que espasmodicamente construiu uma tradição: Sterne, Xavier de Maistre, Richardson, Dujardin, Machado de Assis, Joyce, Proust, Breton, Faulkner, Robbe-Grillet, Calvino, Pérec… E poderíamos incluir ainda nessa tradição, que chamaríamos de ‘literatura experimental’, contistas como Tchekov, Pirandello, Katherine Mansfield, e poetas como Mallarmé e os vanguardistas do começo do século XX.

Então, em 2001, lancei Eles eram muitos cavalos, nascido da necessidade de tentar entender o que estava acontecendo à minha volta – e para isso tomei a cidade de São Paulo como síntese da sociedade brasileira. Publicado, me encontrei num impasse: havia proposto uma reflexão sobre o ‘agora’, mas talvez necessitasse compreender antes ‘como chegamos onde estamos’.

Comecei a elaborar o Inferno Provisório, uma ‘saga’ projetada para cinco volumes, dos quais quatro já publicados, que tenta subsidiar essa inquietação, discutindo a formação e evolução da sociedade brasileira a partir da década de 1950, quando tem início a profunda mudança do nosso perfil socioeconômico, de um modelo agrário, conservador e semifeudal para uma urbanização desenfreada, desarticuladora e pós-industrial, e suas consequências na desagregação do indivíduo. Ou seja, pulamos da roça para a periferia decadente urbana sem escalas…

Evidentemente, essa descrição abarca apenas a superfície da narrativa. É o entrecruzamento das experiências ‘de fora’ e ‘de dentro’ dos personagens o que me interessa. Importa-me estudar o impacto das mudanças objetivas (a troca do espaço amplo pela exiguidade, a economia de subsistência pelo salário, etc) na subjetividade dos personagens. Enfim, refletir sobre a interpenetração da Historia com as histórias.

Só que não compreendo uma discussão sobre essa cisão sem que sejam colocados em xeque os próprios fundamentos do gênero romance. Do meu ponto de vista, para levar à frente um projeto de aproximação da realidade do Brasil de hoje, torna-se necessária a invenção de novas formas, em que a literatura dialoga com as outras artes (música, artes plásticas, teatro, cinema, etc) e tecnologias (internet, por exemplo), problematizando o espaço da construção do romance, que absorve onivoramente a estrutura do conto, da poesia, do ensaio, da crônica, da oralidade…

Cada volume do Inferno Provisório é composto de várias unidades compreensíveis se lidas separadamente, mas funcionalmente interligadas, já que se desdobram e se explicam e se espraiam umas nas outras, numa ainda precária transposição da hipertextualidade. Então, pode-se ler de trás para frente, pedaços autônomos ou na ordem que se quiser estabelecer, assumindo um sentido de circularidade, onde as histórias se contaminam umas às outras.”

Por que escrevo?

“Definido o tema, definida a forma, restava-me ainda uma questão: para que escrever?

Para mim, escrever é compromisso. Compromisso com minha época, com minha língua, com meu país. Não tenho como renunciar à fatalidade de viver nos começos do século XXI, de escrever em português e de viver num país chamado Brasil. Estes fatores, junto com a minha origem social, conformam toda uma visão de mundo à qual, mesmo que quisesse, não poderia renunciar.

Fala-se em globalização, mas as fronteiras entre os países caíram para as mercadorias, não para o trânsito das pessoas. Proclamar nossa singularidade é uma forma de resistir à mediocrização, à tentativa de aplainar autoritariamente as diferenças culturais. A realidade se impõe a mim e o que move o meu olhar é a indignação.

Não quero ser cúmplice da miséria nem da violência, produto da absurda concentração de renda do país. Por isso, proponho, no Inferno provisório, uma reflexão sobre os últimos 50 anos do Brasil, quando acompanhamos a instalação de um projeto de perpetuação no poder da elite econômica brasileira, iniciado logo após a segunda Guerra Mundial com o processo de industrialização brutal do país, com o deslocamento impositivo de milhões de pessoas para os bairros periféricos e favelas de São Paulo e Rio de Janeiro.

O imigrante, a qualquer tempo, carrega consigo a sensação de não pertencimento, fazendo com que a sua história pessoal tenha de ser continuamente refundada. Partir não é só desprender-se de uma paisagem, de uma cultura. Partir é principalmente abandonar os ossos dos antepassados, imersos na solidão silenciosa dos cemitérios. E os ossos são aquilo que nos enraízam numa história comum, feita de dor e luta, de alegrias e memórias.

Rompido esse lastro, perambulamos sem saber quem somos. E se não temos autoconsciência, se permanecemos imersos na inautenticidade, não reconhecemos o estatuto do outro, do diferente de nós. E perdido esse reconhecimento, instaura-se a barbárie.

A Arte serve para iluminar caminhos: e se ela modifica o indivíduo, ele é capaz de modificar o mundo. Para isso, portanto, escrevo.”

Sem a literatura, só teria restado o destino

“Em algum momento percebi, sem o saber, que meu destino já estava mais ou menos traçado. Meus pais, muito pobres, migraram para Cataguases em busca de uma vida melhor não para eles, mas para os filhos. Minha mãe é filha de imigrantes italianos que foram parar numa colônia no interior de Minas Gerais, na região de Rodeiro, e meu pai, filho de imigrantes portugueses – órfão de pai e de mãe aos dois anos, foi criado por uma família italiana de uma colônia na região de Dona Eusébia.

Eles chegaram sozinhos a Cataguases, sem nada. Mas a cidade, por ser um polo industrial consolidado desde os começos do Século XX, oferecia oportunidades de trabalho e possuía uma razoável infraestrutura educacional para, principalmente, a formação de mão de obra para o parque têxtil. E foi nisso que meus pais apostaram. Logo, minha mãe sustentava a casa com suas lavagens de roupa, enquanto meu pai, de saúde precária, não conseguindo emprego estável nas fábricas, passou a vendedor de pipocas.

O sonho de meus pais, portanto, era que nos formássemos, nos tornando empregados da indústria, ganhando um salário, constituindo família, comprando casa própria e bons eletrodomésticos. Meu irmão se formou no Senai e aos 26 anos era mestre-geral numa das tecelagens da cidade – mas uma morte estúpida encerrou sua carreira quando ela mal começava… Minha irmã, que foi tecelã durante algum tempo, largou a fábrica para se casar – uma atitude muito comum entre as meninas à época – e mais tarde tornou-se funcionária pública municipal, como merendeira escolar. E eu, embora tenha me formado também no Senai, acabei contrariando todo mundo, saindo de Cataguases e me jogando no mundo…

Provavelmente, ou melhor, certamente meu destino, se tivesse permanecido lá, seria hoje estar aposentado como operário especializado, com família, filhos, casa própria e bons eletrodomésticos…”

Primeira leitora: a mãe analfabeta

“A minha relação com Cataguases é estranha. Lá eu nasci e vivi até meus 16 anos. Depois disso, voltei apenas como visitante esporádico. Quando meus pais eram vivos, gostava de me entocar na casa deles, num bairro operário da periferia da cidade, e passava as horas conversando com minha mãe, uma mulher de uma visão de mundo inacreditavelmente complexa, compreensiva e reflexiva. Infelizmente, ela morreu em 2001, pouco depois do lançamento de Eles eram muitos cavalos, livro que, de certa forma, projetou meu nome.

Não tive, portanto, a felicidade de demonstrar que todo o sacrifício que ela fez pelos filhos, e por mim, especificamente, tinha redundado em alguma coisa… Eu me lembro que quando escrevi aquele que considero meu primeiro livro, Histórias de remorsos e rancores, eu o li inteiro para ela, ainda antes da edição, para ver se ela o aprovava… E sua reação foi fantástica: ela se emocionou com as histórias, reconheceu o que havia ali de fabulação biográfica e me disse: Tenho um grande orgulho de você, meu filho. Aquilo serviu para que eu tomasse pé e acreditasse que estava no bom caminho…

Depois, li também os originais do meu segundo livro, (os sobreviventes), e de novo ela se emocionou profundamente. O Eles eram muitos cavalos, embora tenha sido iniciado (digamos assim, ‘mentalmente construído’) durante as férias de 2000 na casa dos meus pais, eu não o pude ler para ela. No carnaval de 2001 descobrimos que ela estava com um câncer fulminante – daquele mês até novembro, quando ela morreu, eu fui a Cataguases todos os fins de semana que não trabalhava no jornal, viajava 1,2 mil quilômetros, ida e volta. Saía de São Paulo na sexta-feira à noite e chegava de volta na segunda-feira pela manhã. Acompanhei de perto seus últimos meses…

Meu pai morreu pouco depois, em 2003. Restou em Cataguases apenas a família da minha irmã.”

Voltar é possível? A terra depois da partida

“A minha solidão, nesse sentido, existe desde sempre. Em Cataguases éramos estrangeiros – inclusive porque lá nunca houve uma colônia de italianos, como em outros lugares da região. Não pertencíamos à cidade e as minhas férias, por exemplo, as grandes (de dezembro a fevereiro) e as pequenas (de julho), eu passava na roça, na fazendola do meu avô, em Rodeiro, à época já dividida entre vários irmãos. Depois, fui para Juiz de Fora, Alfenas e, finalmente, São Paulo (passando, rapidamente, por Vitória e Rio de Janeiro).

Eu brinco que sou o exemplo típico daquele ditado: não tem onde cair morto… Porque não pertenço a lugar algum. Não sou de São Paulo (onde sempre serei considerado alguém ‘de fora’), não sou de Alfenas, nem de Juiz de Fora, nem de Cataguases, mas também não sou de Rodeiro nem de Ubá… Quando morrer, não sei onde serei enterrado… Talvez venha daí a temática mais presente em minha literatura: o desenraizamento, o despertencimento, a solidão e a perplexidade de não ter um lugar…

Sem bloqueio artístico

“Eu encaro o fato de ser escritor como uma profissão. Então, todos os dias, acordo às seis da manhã, tomo café, leio o jornal, e mais ou menos às sete, sete e meia, sento-me ao computador e começo a trabalhar. Vou nessa toada até meio-dia, mais ou menos. Quando estou em viagem, geralmente por conta de palestras, participação em feiras e festivais literários, não escrevo. A essa rotina me dedico apenas quando estou em São Paulo. Porque, para mim, são dois momentos diferentes, embora complementares, da minha atividade literária. Essa, a da solidão da escrita; e aquela, da divulgação dos meus livros.

Havia, e ainda há, certa prevenção das pessoas contra o fato de eu assumir que trabalho com rotinas, metas e prazos, porque, afinal, argumentam, não se trata de um trabalho mecânico, e sim artístico… Ora, acredito que essa visão seja equivocada, porque não há contradição entre disciplina e arte. Grandes artistas plásticos (Da Vinci, por exemplo) e compositores eruditos (Bach, por exemplo) trabalhavam sob encomenda, com prazos pré-fixados e salários no fim do mês… E nem por isso podemos acusá-los de serem menos importantes…

Portanto, nunca tive problemas como ‘falta de inspiração’ ou ‘bloqueio artístico’, porque planejo com bastante antecedência o meu trabalho. Quanto a aproveitar ou não tudo que escrevo… Sentar todos os dias, rotineiramente, para escrever não significa chegar ao fim de quatro, cinco horas de trabalho com algo que preste. Significa apenas isso: sentar quatro, cinco horas em frente ao computador e trabalhar, trabalhar e trabalhar… O resultado muitas vezes é nada… Talvez seja apenas isso que diferencie o trabalho intelectual: ele não pode ser mensurado pragmaticamente, tantas horas trabalhadas, tantas páginas produzidas… A aferição de competência se dá em um outro paradigma.”

O bafo constante da morte

“É estranho, porque, embora tenha consciência de que o homem constrói sua vida sabendo que tem um prazo de validade, penso que, ao mesmo tempo, e talvez exatamente por isso, a existência só faz sentido se for uma busca pela felicidade – não hedonista, mas ética. Gosto de pensar que, ao fim e ao cabo, poderei olhar para trás e me orgulhar do que fiz por mim, pela minha família, pelos meus filhos, pelos meus amigos e até mesmo pelas pessoas desconhecidas.

Essa perspectiva talvez relativize um pouco a dor da perda. Mas essa questão para mim surge sempre de uma forma muito dúbia, porque também percebo claramente que existe uma espécie de visão trágica permeando minha formação. Venho de uma comunidade italiana que, embora professasse (professe) um catolicismo militante, quase carola, sempre estranhamente vivenciou a morte não como uma passagem para a vida eterna, mas como um rompimento injusto com a vida…

E não porque percebesse a vida como um reduto de alegrias – porque na verdade a entende mais como um fardo ao qual nos resignamos. Esse paradoxo teológico-filosófico irresolvível está presente na minha vida, nas minhas histórias.”

A Igreja do Livro Transformador

“A literatura me arrancou da alienação, da ignorância, da falta de perspectivas. Me mostrou que somos seres para a morte e que nós temos que buscar, neste curto intervalo que é a vida, a felicidade. E para isso temos que nos projetar no mundo, nos lançar, nos afastarmos da poltrona do comodismo, da conformidade, para nos proporcionar um sentido.

Esta é a proposta da Igreja do Livro Transformador, que tem como mentores eu e o Rogério Pereira, editor do Rascunho, que experimentou mais ou menos a mesma história de salvação pela literatura. Se depender de mim, a Igreja já será uma realidade ainda este ano… (risos)”

P.S. – Se você quiser, conte aqui a sua história de transformação pela literatura, seja ela um tsunami de alma ou uma ferroada de mosquito. Uma pequena descoberta, uma sensação nova ao ler um determinado livro ou mesmo um sonho.

(Publicado na Revista Época em 31/01/2011)

As mães não deveriam morrer

Resta-nos o movimento que transforma dor em saudade

Uma amiga perdeu a mãe, de repente. A notícia me alcançou por e-mail, agora que a internet deixou o mundo pequeno. Estou longe, mas também aqui, neste lugar sem distância que é o mundo virtual. Mas com tempo veloz, em que uma hora pode ser um pretérito definitivo na disputa pela supremacia dos segundos. Como era antes, quando as notícias levavam meses para chegar e o mundo sobre o qual falavam já tinha inteiro se transmutado, quando as cartas eram sempre um retrato do passado? Agora tudo é agora. E os tempos se confundem de outro modo. Mas se confundem.

Senti tanto o desamparo da minha amiga, porque sei que as mães não deveriam morrer. Na mesma noite sonhei com meus mortos. Meu avô sentava-se com minha avó ao redor da mesa da cozinha como antes e como nunca, porque meu avô sabia que minha avó tinha morrido e eu sabia que meu avô tinha morrido uns 20 anos depois dela. E uma quarta pessoa, desconhecida de todos nós reunidos naquela cozinha, sabia que eu também já tinha morrido, numa outra época que ainda não chegou para mim. Mas comíamos bolinhos de chuva naquela mesa porque compreendíamos que, no curto espaço de existência, neste soluço entre o nascimento e a morte que pertence a cada um de nós, nem os sonhos devem ser desperdiçados. E ali, enquanto eu dormia num quarto de hotel, éramos uma impossibilidade lógica que conversava e que ria.

Quando perdemos alguém que amamos, a dor é tão extravagante que nos come vivos, como se fosse uma daquelas formigas africanas que vemos nos documentários da National Geographic. A dor está lá quando acordamos. Continua lá quando respiramos. Nos espreita do espelho diante do qual escovamos os dentes pela manhã com um braço que pesa uma tonelada. E, quando por um instante nos distraímos, crava seus dentes bem no coração. Neste longo momento depois da perda, sabemos mais dos buracos negros do que os astrônomos porque carregamos um dentro de nós. E arrancamos cada dia nosso do interior de sua boca ávida, com uma força que não temos, para que não nos sugue de dentro para dentro.

Devagar, bem devagar, muito mais devagar do que o mundo lá fora nos exige, o vazio vai virando uma outra coisa. Uma que nos permite viver. Descobrimos que nossos mortos nos habitam, fazem parte de nós, correm em nossas veias fundidos a hemácias e leucócitos. Que suas histórias estão misturadas com as nossas, que seus desejos se deixaram em nós. Que, de certo modo, somos muita gente, multidão. Como também nós seremos em muita gente, deixando, em cada um, ecos de diferentes decibéis e intensidades. Acolhemos então aquele que nos falta de uma forma que nunca mais nos deixará. Como saudade. E como saudade não poderá mais partir.

Somada, a vida humana é um rio barulhento de memórias no leito do tempo. Enquanto outras espécies sabem, sem que ninguém tenha ensinado, que precisam voar para o sul para não sucumbir no inverno ou que devem escalar dezenas de metros de uma árvore em busca da fêmea para se acasalar num momento preciso, nós perpetuamos lembranças. Não é uma intuição prática, no sentido ordinário do termo. Mas é tão vital quanto o acasalamento ou a fuga do inverno.

Assim como a natureza tece mil expedientes para perpetuar seus genes, pertençam eles a um chimpanzé ou a uma mosca; nós, cuja diferença evolutiva nos permitiu inventar a cultura e ser na cultura, perpetuamos a vida através da memória. Já que, para nós, não há vida sem a consciência da vida. Transmitimos as histórias, o conhecimento e os sentimentos dos que se foram, tanto como humanidade quanto como indivíduo, como se fossem parte de um DNA imaterial. Do contrário, seria impossível conviver com o privilégio de nossa espécie, a consciência do fim.

Quem não entende isso acha que, quando doamos as roupas e os objetos de quem amamos e se foi ou deixamos de chorar no cemitério, superamos a perda. Não acredito que exista superação no sentido do esquecimento. O que acontece é que compreendemos que aquela pessoa não estará mais no mundo externo, não pertence mais a ele. Mas também não é mais um vazio que grita como nos primeiros meses, às vezes anos. Ela agora mora no mundo de dentro, vive como memória nossa, em nós. E assim não está mais morta, mas viva de um outro jeito. É o que me ensina João, o homem que divide comigo a aventura arriscada de viver. De luto por sua própria mãe, percebo que a carrega nos olhos quando se maravilha com a novidade do mundo.

Ele me ensina que a vida dos mortos em nós não é possessão nem fantasma. Nem é morte. O mórbido é quando não conseguimos dar um lugar vivo para o morto. Então a memória fica pregada naquele momento de horror e a vida se torna impossível, porque a existência não é água parada, mas rio que corre. Acontece quando alguém, pelos mais variados motivos, não consegue fazer o luto e dar um lugar de saudade para a dor. Quando nos fixamos, num dogma ou numa falta, partes importantes de nós gangrenam. Mas quando os mortos se acomodam em nós como lembrança que muda segundo o viver de quem vive, tudo flui. Se há algo que a vida é em essência é movimento. E o luto é um movimento que reabre as portas para a vida ao romper com a rigidez da morte em nós. Por isso, para o luto não pode haver pressa, porque é grande e largo o gesto que temos de fazer acima e apesar do horror que nos atinge até mesmo em partes que nem sabíamos que existiam.

Quando perdeu a mãe, João compreendeu por completo a poesia que Carlos Drummond de Andrade escreveu para a poeta Ana Cristina Cesar, que se suicidou aos 31 anos atirando-se pela janela do 13° andar. Ela fala da diferença entre falta e ausência. “Por muito tempo achei que a ausência é falta. E lastimava, ignorante, a falta. Hoje não a lastimo. Não há falta na ausência. A ausência é um estar em mim. E sinto-a, branca, tão pegada, aconchegada nos meus braços, que rio e danço e invento exclamações alegres, porque a ausência, essa ausência assimilada, ninguém a rouba mais de mim.” É isso. A ausência não é falta. Ou, dito de outro modo, a falta nos come vivos. A ausência, por paradoxal que pareça, nos preenche.

Há um filme de extraordinária beleza sobre a perda, a saudade e o lugar dos mortos em nós. Chama-se “Hanami – Cerejeiras em flor” (Doris Dörrie, 2008 – Alemanha/França). Passou nos cinemas, ainda resiste numa sala ou outra, mas já assisti ao filme na TV por assinatura. Se você encontrar este nome na programação, não deixe de ver. Feche as cortinas, proteja-se do barulho da rua, programe-se para algo especial. O filme conta a história de um homem que não gosta de sair da rotina em sua viagem mais longa e menos previsível. Ele parte em busca de sua mulher e só a encontra quando descobre que ela está dentro dele, nos gestos dele, no corpo e nos olhos que ele empresta a ela. É um filme sobre a morte que nos leva ao único lugar onde vale a pena chegar, à vida.

Quando sofremos uma grande perda ou somos abalroados por uma catástrofe pessoal de outro gênero, as pessoas dizem, para nos consolar e com as melhores intenções, que tudo passa. Acho que, na verdade, nada passa. A frase mais precisa seria que tudo muda. Também nós que aqui estamos como matéria um dia seremos apenas eco. Tanto pelas nossas células que alimentam e se agregam a outros seres vivos a partir da decomposição de nosso corpo como pelas histórias que transmitimos e permanecem além de nós. Aquela que fui ontem já mudou, a ruga que há um ano não existia agora é visível na pálpebra direita, minha percepção do mundo não é mais exatamente a mesma do mês passado, alterada por novas experiências que me alargaram. De certo modo, nascemos e morremos tantas vezes até o fim da vida. E é este o movimento que importa.

Queria dizer isso à amiga que perdeu a mãe de repente. Mas agora minha amiga ouve, mas não pode escutar. A dor a está comendo viva como as formigas africanas. Tudo é horror e absoluto. Mas com o tempo, um período só dela e que não pode ser determinado em parte alguma nem por ninguém, minha amiga vai começar a perceber que a mãe é uma ausência presente no formato das suas unhas, num certo jeito de mexer a cabeça quando fala, na tonalidade rara dos olhos. Está nas palavras e nas histórias que conversam dentro dela, na mitologia familiar que se perpetua, nos sons da memória. E então poderá reencontrar a mãe dentro dela. E levá-la para passear.

E, num dia que sempre chega, viverão as duas como história, como cacos de lembranças encaixados em diferentes rearranjos de vitrais, na vida dos que vieram depois. É pouco, talvez. É tudo o que temos.

(Publicado na Revista Época em 18/10/2010)

Menos leviandade, por favor

O falso debate do aborto só favorece a política suja

Parecia que tudo ia bem. Na nossa jovem democracia, de apenas 25 anos, tínhamos no primeiro turno três candidatos a presidente com votação significativa por quem podíamos sentir respeito. Lamentávamos os debates de mentirinha, as imagens esculpidas com botox e cirurgias plásticas (para quê?), as promessas de ocasião. Tínhamos preferência por um, divergências com outro, natural e desejável numa sociedade plural. Mas não tínhamos vergonha. Não havia, nesta disputa presidencial, nenhum Fernando Collor de Mello ou Paulo Maluf, cujas biografias dispensam comentários. O segundo turno veio e pensamos: quem sabe agora haverá um debate de verdade e poderemos comparar propostas e idéias? E então começamos a sentir vergonha. Profunda vergonha.

É difícil acreditar que depois de tudo o que vivemos para resgatar democracia e respeito próprio, venham com esta baixaria. A de um falso debate sobre o aborto. Porque uma discussão de verdade sabemos que nenhum dos dois candidatos quer fazer. No finalzinho do primeiro turno, uma campanha anônima na internet transformou Dilma Rousseff em “abortista” e “assassina de fetos”. Como parece que a estratégia das catacumbas colou, com a candidata do PT perdendo votos entre evangélicos e um e outro bispo católico exortando seus fiéis aqui e ali, a inquisição continua e com fogueiras cada vez maiores. De repente, querem nos fazer acreditar que a grande questão nacional é saber se Dilma Rousseff é a favor ou contra o aborto. Que questão é esta?

Existe, sim, uma questão de saúde pública que não deveria ser ignorada por nenhum candidato sério. Segundo reportagem do jornal O Globo deste domingo, o aborto ilegal mata uma brasileira a cada dois dias. Segundo a Pesquisa Nacional do Aborto, realizada pela UnB e Anis, aos 40 anos uma em cada cinco mulheres já fez aborto, o que equivale a mais de 5 milhões de brasileiras. Segundo a mesma pesquisa, 15% das mulheres que abortam são católicas, 13% protestantes ou evangélicas, 16% de outras religiões e 18% não responderam ou não têm religião. Segundo o Ministério da Saúde, o aborto é a quarta causa de mortalidade materna no país. Em algumas regiões do Nordeste, segundo a Rede Feminista de Saúde, chega a ser a principal causa de morte.

Você pode e tem o direito assegurado pela Constituição de acreditar no que quiser, professar a fé que bem entender ou não ter fé nenhuma. O que ninguém deveria poder – seja candidato a presidente ou cidadão – é ignorar a morte de seres humanos. Todos nós, que não somos hipócritas, sabemos que as mulheres mais ricas procuram boas clínicas e abortam em segurança. E todos nós, que não somos hipócritas, sabemos que são as mulheres mais pobres que morrem em procedimentos clandestinos, porque não têm dinheiro para pagar as boas clínicas. Quando estas jovens mulheres morrem, deixam filhos que não podem cuidar e famílias que se desfazem pela sua ausência, provocando problemas sociais em cadeia. Esta é uma tragédia que começa com a morte de uma pessoa e vai causando muita dor pelo caminho dos que ficam. Transformar a vida destas mulheres em moeda de barganha política, como temos assistido no início deste segundo turno, é uma indignidade.

Acho curioso que algumas pessoas que se dizem religiosas acreditam ter o monopólio do discurso da vida. E que estes que acreditam terem privatizado a verdade, ao falar em nome da vida não se preocupem com a morte destas mulheres. Não se coloquem por um minuto sequer no lugar destas mulheres para tentar alcançar seu desespero e sua dor. E então, por empatia e humanidade, perceberem que ninguém deveria morrer por falta de assistência. Assusta-me a rapidez com que estes supostos religiosos julgam e condenam outros seres humanos. Acho a compaixão um sentimento profundo, redentor. E não consigo compreender a compaixão seletiva que move estes dedos em riste.

A morte de mulheres em abortos clandestinos é, sim, uma questão de saúde pública. Que deveria ser discutida seriamente, com informação e profundidade. Mas não é esta a questão que foi lançada na lama desta campanha eleitoral. Aqui, trata-se apenas de demonizar uma candidata em busca dos votos de um certo tipo de devoto. Enquanto alguns grupos de fiéis se lançam cheios de sanha, deitando saliva pelo chão, algumas cúpulas religiosas aproveitam para ganhar alguns pontos de vantagem no embate em torno da questão do aborto, cuja descriminalização vem avançando na América Latina. Por acreditar que os fins justificam os meios, iludem-se que suas mãos seguem limpas.

Eu esperava mais de José Serra. Não há provas de que a lama tenha vindo dos setores mais abjetos da sua campanha. Mas é visível que ele tem empenhado corpo e alma para arrancar toda a vantagem possível da baixaria. Preocupante para alguém que quer ser presidente do país. Eu esperava mais de Dilma Rousseff. Que se comportasse como uma candidata a presidente e colocasse a questão com serenidade, como teve a integridade de fazer no passado recente. Em vez de tergiversar e se encolher diante da baixaria. A nós, eleitores, cabe a pergunta: quem ganha com isso? Me parece que até quem pensa que ganha, perde.

Tenho assistido perplexa ao show de fervor religioso de ambos os candidatos. E eu que não sabia que Serra e Dilma eram devotos dedicados? Não sei em que país eu andava até agora que nunca tinha notado este ardor místico. Na minha ingenuidade, eu esperava ter a chance de assistir a um programa eleitoral que não fosse apenas espetáculo. E lá está Dilma “agradecendo a Deus pela dupla graça” e fazendo “uma campanha, antes de tudo, em defesa da vida”. Alguém está fazendo uma campanha em defesa da morte? Descobrimos então que Serra fará um governo com “Deus no peito”. Mulheres grávidas desfilam pela tela porque o candidato promete cuidar dos bebês mesmo antes de nascerem (!). Se há algo que os crentes de verdade – e não os que usam a religião para fazer comércio eleitoral – deveriam se preocupar é com gente capaz de reduzir Deus a cabo eleitoral.

Admiro Marina Silva, pela sua trajetória de vida e pela sua integridade em momentos cruciais. Assim como compartilho da sua visão sobre o meio ambiente e o desenvolvimento sustentável. O que nunca me impediu de sentir arrepios ao ouvi-la colocar a teoria científica da evolução, de Charles Darwin, no mesmo patamar da mitologia do criacionismo. Ou quando sugere transformar o aborto em plebiscito. Ou ao declarar-se contra o casamento gay.

Embora suas posições divirjam das minhas nestas áreas, isto nunca me impediu de ter respeito por tudo o que ela é – e o que representa. Pelo menos até agora. É natural e desejável numa sociedade plural ter convergências e divergências. O que é inaceitável é o desrespeito. O que é intolerável é a demonização de pessoas. O que é inadmissível é transformar um problema de saúde pública, que causa morte de gente, em moeda de barganha eleitoral.

Não me interessa saber se Dilma Rousseff e José Serra são contra ou a favor da descriminalização do aborto. O que me interessa é saber o que vão fazer para impedir que estas mulheres continuem morrendo, independentemente de suas crenças. E, neste momento, talvez me interesse ainda mais como vão se comportar daqui para frente diante da baixaria que se transformou este segundo turno eleitoral. Se vão rolar na lama com o que tem de pior neste país. Ou em algum momento vão levantar a cabeça e se lembrar de quem são – e do que querem ser.

A nós, que temos de escolher entre um dos dois para ser presidente do país, cabe renegar a hipocrisia. Mostrar que não caímos neste velho jogo sujo. Deixar claro que esperamos mais, que desejamos mais, que exigimos mais de quem vai nos governar. É duro sentir vergonha do nível da campanha eleitoral ao cargo mais importante do país, mas pior é ter vergonha do nosso voto. Quando candidatos perdem a compostura, cabe a nós, eleitores, manter a nossa. E mostrar a eles que o Brasil mudou.

Ou não mudou?

(Publicado na Revista Época em 11/10/2010)

A vida se faz nas marcas

Vivemos por causa de nossas marcas – e não apesar delas

Para mim não existe vida fora da palavra escrita. Passei quatro dias ouvindo, pensando e por último falando sobre literatura em conversas na Casa de Cultura da Flip (Festa Literária Internacional), em Paraty. Promovida pelo Itaú Cultural, esta programação era gratuita. O debate me carregou para uma reflexão sobre as minhas marcas. E penso que as marcas se inscrevem em nós primeiro como algo indizível. E depois as transformamos em outra coisa que nos dá a possibilidade de viver. Em mim, elas viram texto. Percebo então que palavras são marcas por escrito. E lamento as vidas que não querem ser assinaladas pela vida.

Vivemos numa época que não quer ser marcada. A maioria de nós tenta escapar das rugas, estas cicatrizes do rosto, de todas as formas – algumas delas bem violentas. Os sinais da idade, da vida vivida, são interpretados como algo alienígena, estranho a nós. Estão ali, mas não deveriam estar. É quase uma traição. Urge então apagá-las.

É tamanho o nosso medo da velhice e da morte, que as marcas da vida vivida são decodificadas como feias, quase repugnantes. Tanto que estamos diante de uma novidade – as primeiras gerações de seres humanos envelhecendo e morrendo com os sinais não da idade, mas das cirurgias plásticas. Sim, porque estas também são cicatrizes. Não há jeito de morrer sem marcas porque não há como viver sem ser marcado pela vida. Mesmo os bebês, que por alguma razão morrem ao nascer, já trazem no corpo a marca fundadora – o corte do cordão umbilical que lhes arrancou de dentro da mãe. O umbigo é nossa primeira cicatriz, aquela que nos unifica.

Se a tecnologia conseguir inventar um ser humano sem marcas é porque desinventou o ser humano. Podemos talvez um dia apagar todas as marcas visíveis, tatuadas no corpo. Mas nunca haverá uma cirurgia capaz de eliminar as marcas da alma. E esta é também uma tentativa que temos empreendido com muito empenho. Por um excesso de psicologês, uma leitura transtornada do pensamento de Freud, passamos a achar que tudo é terrivelmente traumático. Qualquer contrariedade ou vivência não programada supostamente estigmatizaria nossos filhos e aniquilaria seu futuro. Qualquer derrapada no script de nossos dias nos assinala como catástrofe. Parece que viver se tornou uma experiência por demais traumática para quase todos – e, se assim é, a única solução seria não viver. Mas a questão não é o trauma – e sim o que cada um faz com ele.

Há algumas semanas participei de um debate com psicanalistas no Instituto Sedes Sapientiae, em São Paulo, sobre o excelente documentário de Miriam Chnaiderman e Reinaldo Pinheiro, Sobreviventes, sobre o qual já escrevi uma coluna quando foi lançado. Em minha fala, sugeri que não existem sobreviventes. Só é possível ser vivente. A palavra sobre-vivente contém a ideia de viver apesar do vivido. E eu acredito que só é possível viver por causa do vivido.

Em mais de 20 anos contando histórias de pessoas – e também minha própria história –, percebo que as pessoas morrem e renascem muitas vezes numa vida só. Cada existência é uma sucessão de pequenas mortes e renascimentos desde este primeiro corte que nos separa de nossas mães e dá início à nossa existência como indivíduo. Fico só imaginando nesta época onde tudo vira trauma insuperável, o que aconteceria se as pessoas pudessem se lembrar dessa expulsão do paraíso uterino. Haveria uma legião de homens e mulheres incapazes de lidar com acontecimento tão terrível. Sem perceber que é só por ele, afinal, que começamos a viver. Até então, somos todos apenas uma continuidade, um apêndice, do corpo materno.

É verdade que, compreendendo o trauma como algo que nos marca, que nos mata simbolicamente para que possamos renascer de outro jeito, nossa vida é cheia deles. O que questiono aqui é a crença de que não deveria ser assim, a ilusão de que é possível – e o pior, que é desejável – ter uma vida sem marcas no corpo e na alma.

É claro que alguns acontecimentos são devastadores – e lutamos para que não voltem a se repetir com ninguém. Mas, mesmo nestes casos, me parece que a vida só é possível não apagando o que é inapagável, mas fazendo algo novo com esta marca. Transformando-a em algo que possa viver.

Recentemente, causou grande polêmica um vídeo no YouTube, onde Adolek Kohn, de 89 anos, “sobrevivente” do holocausto judeu, dança com sua filha e netos a música “I will survive” (“Eu sobreviverei”), de Gloria Gaynor, em campos de concentração como o de Auschwitz. Quem não tiver assistido, pode encontrá-lo facilmente na internet. Muita gente achou desrespeitoso com o sofrimento das vítimas do holocausto. A mim pareceu emocionante. Concordo com a filha, a artista australiana Jane Korman, quando diz: “Esta dança é um tributo à tenacidade do espírito humano e uma celebração da vida”.

Poder dançar no palco em que quase foi assassinado – e onde milhões de pessoas foram exterminadas – é fazer algo vivo em vez de fazer algo mórbido. Especialmente poder dançar com a continuidade de você – na companhia de todos aqueles que quase não existiram, uma descendência inteira quase aniquilada pela morte de um. Afinal, ele dança sobre suas antigas e brutais lembranças amparado por uma nova memória, representada pelos seus descendentes, por aqueles que vão recordá-lo e produzir outras histórias e sentidos para a trama das gerações. É mais do que uma magistral vingança – é uma dança.

Isso não significa que este (sobre)vivente tenha lidado melhor com seu trauma que todos os outros. Cada um encontra seu caminho – e a maioria dos caminhos não aparece no You Tube. Mas acho uma prepotência “ser contra” ou ridicularizar a tentativa de um outro de lidar com suas marcas, dar um novo sentido àquilo que o constitui. Transformar em algo mais que a dor o que era só dor. Pode não ser o seu caminho, mas isso não o impede de olhar para a saída encontrada pelo outro com o profundo respeito que ela merece.

Quando as pessoas me contam suas histórias, começam a contar pelos seus renascimentos. Pelo momento em que morreram de um jeito, por causa de um trauma, e renasceram de outro. É ali que identificam seu início – ou reinício. Uma nova vida só é possível quando contém a anterior e a sua quebra. O que atravanca nossa existência é ficar fixado no trauma – enxergar a marca como uma morte que não renasce, como um corte que não vira cicatriz. Por isso a palavra “sobrevivente” – e o sentido que ela tem no senso comum – me incomoda. É como se vida fosse o que havia antes, algo que não pudesse se quebrar, e o que temos agora fosse algo menor que a vida, uma mera sobre-vida. Me parece, ao contrário, que a matéria da vida é justamente esta sucessão de quebras – e viver é dar sentido a elas.

Esta ideia vendida e consumida exaustivamente, de que a vida não pode ser marcada nem no corpo nem na alma, tem causado enorme sofrimento às pessoas. Não o sofrimento que nos leva a criar uma vida, mas aquele que nos leva a anestesiar uma vida. Este equívoco tem transformado gente que poderia viver em meros sobreviventes. Porque se não podemos ser marcados, se cada marca for vivida como algo mórbido e não como parte do vivido, fixamo-nos na morte. Viramos uma ladainha que repete sempre o momento mortífero e não consegue seguir adiante.

Ser – é ser em pedaços. O que nos impede de viver não é o trauma, mas a ideia de que exista uma vida que possa prescindir deles. E o que nos humaniza é a capacidade de criar algo vivo com nossas marcas de morte. Palavra escrita, literatura, como tanto se discutiu na festa literária de Paraty. Dança, como o (sobre)vivente do holocausto. Jardins, bordados, doces, móveis, dribles de futebol.

Como poderia dizer a poeta Adélia Prado, “uso todos os meus cacos para fazer um vitral”. Cada vida humana é um vitral feito com as marcas de todas as nossas mortes. Sem os cacos, nada há.

(Publicado na Revista Época em 09/08/2010)

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