O Debate

     Na noite de 12 de maio de 2015, véspera dos 127 anos da assinatura da abolição da escravatura no Brasil, abolição, como sabemos, jamais completada, ocorreu um debate com a força de um corte. Ele surgiu a partir da acusação de racismo, pelo uso de “blackface”, em uma peça da companhia “Os Fofos Encenam”. A partir desta denúncia, nas redes sociais, o grupo teatral e o Itaú Cultural decidiram suspender a peça e, no seu lugar, promover um debate. Um debate difícil, bem difícil, em que só se avançaria se a questão da “censura” e a questão do “racismo” fossem enfrentadas, mas fossem também transcendidas enquanto elementos de polarização. A grandeza deste debate, no meu ponto de vista, é a de ter conseguido manter-se como pergunta. Uma pergunta que leva a uma mudança de posição, no sentido mais profundo, como são as perguntas de fato espinhosas, aquelas sempre adiadas, as mais dolorosas.

    Sobre este debate escrevi um artigo no meu espaço quinzenal no jornal El País, com o título “No Brasil, o melhor branco só consegue ser um bom Sinhozinho”. Meu texto é um recorte, a partir do meu olhar, que buscou se manter no lugar de pergunta. Do ponto de interrogação que interroga não para escapar ou tergiversar, mas para provocar e para escavar. Sempre que escrevo sobre qualquer tema, faço primeiro a mim mesma as perguntas que queimam. Você pode ler aqui, em português. E aqui, em espanhol.

   Como realmente acredito que esse debate é um marcador, achei importante colocar aqui a transcrição na íntegra, para que possa ser útil para quem quiser pensar sobre este, que talvez seja o tema mais urgente da sociedade brasileira, uma urgência de séculos, paradoxo que em si já revela muito. Quando acho algo importante tenho esse sonho, de que as coisas sejam levadas às salas de aula de escolas e de universidades, a centros comunitários, a espaços variados. É nesse sentido que coloco a transcrição aqui, para que seja compartilhada, para que se torne outros discursos. E para fazer a minha minúscula parte para que esse debate continue.

    Há alguns momentos, poucos, em que não foi possível identificar com clareza palavras ou nomes ou referências. A jornalista Clarinha Glock, a quem encomendei a transcrição, e eu consideramos melhor assinalar estas partes com (…), sinalizando estes momentos para o leitor. Ela, que trabalha com oficinas de leitura crítica da mídia com estudantes, já usou trechos deste debate nas escolas com resultados bem interessantes. Pedimos desculpas se houver qualquer imprecisão involuntária. Nos esforçamos para que a transcrição fosse o mais fiel possível.

   Acho que são duas escutas. Quando se lê – e por isso o esforço de transcrição –, percebemos detalhes e paramos para refletir sobre eles de uma outra maneira. Mas esta escuta, a da leitura, não dispensa a outra, a do ouvido e a das imagens, do movimento, da cena. Por isso, recomendo com bastante ênfase que também assistam ao vídeo de três horas de duração. As pessoas não falam apenas por palavras. Dizem – e se dizem – por gestos, olhares, silêncios, expressões e também pela textura que dão a substantivos, verbos e adjetivos, assim como pelo ritmo que imprimem a cada frase. Neste debate, é muito interessante ver quem aplaude, assim como quem aplaude quando e quem não aplaude quando. Também as nuances de voz, os risos, as ironias, a posição dos corpos são ricas de sentidos naquilo que cada um encenou também como espetáculo. A plateia, que se mostrou tão qualificada, com momentos grandiosos, também precisa ser observada. Como sentavam, como se manifestavam, quando silenciavam e quando aplaudiam? A peça “A Mulher do Trem” foi suspensa, mas outra se desenrolou.

   Assim, aqui está a transcrição. Aqui está o vídeo. E aqui está o meu recorte. Use como quiser.

Eliane

 

Arte e Sociedade: a Representação do Negro

12 de maio de 2015

Itaú Cultural

ABERTURA

Eduardo Saron (diretor do Itaú Cultural) –  Oi. Vai começar, né? Boa noite. Boa noite a todos, meu nome é Eduardo Saron, eu sou diretor aqui do Itaú Cultural. Eu queria dizer que a gente está vivendo um momento histórico aqui. Não tenho a menor dúvida que essa energia que estava solta de alguma forma se catalisou e nós hoje vamos ter um debate muito rico a respeito de tudo isso que a gente de alguma forma discutiu nas redes e, de alguma forma, debateu com os próprios Fofos. Nós rapidamente constituímos uma grande mesa pra isso, pra essa noite. Esse momento histórico não… Tem vários símbolos. Pra vocês terem uma ideia, a nossa sala aqui no Itaú Cultural tá cheia; a sala vermelha que comporta mais 70, 80 pessoas, também tá cheia; aqui em cima tá cheio; e nós tínhamos preparado uma sala pros funcionários, pra que a gente não ocupasse esses espaços pro público, e como tinha umas 20 ou 30 pessoas lá fora, a gente resolveu também que essas pessoas pudessem assistir esse nosso encontro nessa sala, junto com a turma do Itaú Cultural. Então eu queria agradecer muito a presença de todos. É, de fato, um orgulho pra gente. A gente trabalhou muito de domingo… né, Fernando? De domingo passado até hoje, intensamente, e não tenho a menor dúvida de que a gente tá vivendo um momento histórico. A segunda coisa que eu gostaria de falar pra vocês é que este momento histórico, pra nós, do Itaú Cultural, e certamente pra muitos aqui presentes na mesa, é só o início de um grande processo de reflexão do próprio papel do Itaú Cultural frente a essas questões que foram colocadas ao longo da semana nas redes sociais, nos jornais, nas revistas, na Internet. Nós decidimos, por meio do Observatório Político do Itaú Cultural, que é um observatório que já tem 10 anos, fazer uma série de reflexões sobre essa temática. Na verdade, isso aqui que nós estamos vivendo hoje é um pontapé disso tudo, e a ideia é que essa série de reflexões, publicar documentos, alguns livros, ela vai desembocar num grande momento, ainda esse ano. A ideia é que, em novembro, no período da Consciência Negra, a gente faça um grande seminário, um seminário internacional, no Auditório Ibirapuera, que a gente é o gestor, pra continuar debatendo isso. Certamente isso vai servir de input, não só pro Itaú Cultural, mas pra várias outras instituições culturais, inclusive para formuladores de política pública. Mas, desde já, desde projetos como o Rumos Itaú Cultural, ou outros projetos que nós temos aqui dentro, a gente já está se mobilizando a partir desta provocação tão bem-vinda deste momento histórico. Então, o convite que eu faço pra vocês é que não só hoje vivam intensamente este momento histórico, que a gente possa catalisar toda essa energia pra um caminho de confluência, mas que vocês nos acompanhem e possam nos ajudar neste grande debate, nesta grande reflexão, e que nós temos já algumas datas marcadas, mas uma grande data marcada que é novembro, no período da Consciência Negra, pra fazer um grande seminário, onde cabem 800 pessoas no Auditório Ibirapuera. Pra, de alguma forma, reverberar e refletir sobre o papel do negro, a sua narrativa, e o papel da arte neste pensamento. Muito obrigado pela presença de todos, obrigado pela paciência de esperarem um pouquinho a mais, obrigado por vocês terem aceitado os convites, de a gente ter podido formular esta mesa em conjunto. Eu vou passar a palavra pro Eugênio, que vai ser o mediador desta brincadeira – grande brincadeira! – boa nossa, o grande input pra …não só pro mundo da cultura, mas pra sociedade brasileira. E ele também não só vai conduzir, mas também vai dar um pouco o cenário de como é que vai ser essa noite que, pra mim, mais uma vez, desculpe ser repetitivo, mas eu tenho certeza disso, é uma noite histórica pra cultura, pra arte, e pro ativismo negro nesse país.  Muito obrigado, boa sorte, fiquem em fé com deus aí, galera. (palmas)

MEDIADOR: Eugênio Lima – DJ e ator; Frente 3 de Fevereiro e Núcleo Bartolomeu de Depoimentos – Obrigado, boa noite a todos e a todas, eu sou Eugênio Lima, eu vou tentar ser o mediador. Eu só queria deixar claro uma coisa. Primeiro, eu não sou um mediador no sentido que eu vou tentar dar…atingir a média. Eu não tô equidistante entre as duas posições. Eu tenho uma história, uma história política, artística, que fala pelo meu posicionamento. O que eu acho que a gente pode começar – e antes de eu falar como vai ser – é que a gente tem realmente uma tarefa muito interessante nesse momento, que é conseguir dar forma a um debate que nunca se consegue dar forma por completo na história da sociedade brasileira. Toda vez que vai se tocar nesse assunto, se fala: não, não é exatamente o tempo bom. Não, vamos ser um pouquinho mais pra frente. Não, agora não vai dar. Não, desse jeito não vai dar. Não, a gente tá muito próximo da escravidão. Não, a gente tá muito próximo dos anos 30, a gente precisa formar a nação. Não, a gente tá muito próximo do projeto da ditadura, a gente tá muito próximo da redemocratização, a gente tá muito próximo dos radicalismos. Então…o nosso desafio é proporcionar um debate que seja de fato um debate, que se discuta aquilo que se veio propor a discutir. Então, nesse sentido, eu queria só dar um pequeno panorama, assim, desse momento como eu entendo e como é que a gente vai colocar. A ordem dos debatedores vai ser feita por sorteio, e por que por sorteio? Porque eu acho que a ordem dos fatores, a gente acordou todo mundo, altera o produto. Porque eu quero o máximo de transparência possível pra que nenhuma voz seja invisibilizada. Aqui, a ideia é que eu acho que o grande avanço dessa discussão é a gente conseguir chegar aqui hoje debatendo esta proposta. Esse debate, no lugar da peça de hoje, não teve absolutamente nada a ver com um ato de censura prévia, e sim com um acordo entre a Companhia Os Fofos e o Itaú Cultural, coisa que eu, particularmente, achei muito salutar. E eu acho que vocês concordam comigo, porque tá todo mundo aqui. Outra coisa que a gente vai ter é que eu acho que a gente deve… deve procurar não criar uma invisibilização da voz legítima do outro. Então, quando você chega num determinado momento e fala: é censura, ponto. É falta de liberdade de expressão, ponto. É racismo, ponto… não tem como o outro conseguir dialogar. E a gente precisa dialogar. A gente precisa fazer um exercício de escuta. Eu não acho que isso aqui seja uma Ágora, até porque na Ágora tinham senhores de escravos. Só homens, brancos, e senhores de escravos. Não é o nosso caso aqui. Então a gente tá anos-luz disso. Tá anos-luz. Agora, a gente tem um desafio, sim. Porque na própria linguagem, na própria expressão, na própria cultura, ela é marcada por uma sociedade que foi, durante 400 anos, escravocrata. E ninguém está a salvo disso. Ela entrou dentro da constituição cultural. E cultura você não elimina com um decreto. E é mais difícil eliminar essas estruturas culturais dentro de um processo que é um processo, aí sim, de democracia, porque a própria expressão tira a legitimidade desse debate. A gente fala: eu preciso esclarecer um ponto. Por que a gente fala “esclarecer”? Porque é preciso dar visibilidade, ser “claro”, em oposição a ser “escuro”.  Porque ser negro é ser nefando, nefasto, e assim sucessivamente. Então, a gente tem que ter muita consciência do contexto que a gente tá discutindo esse assunto. Nós não estamos no Mundo de Beakman. Nós estamos na sociedade brasileira, uma sociedade que teve 400 anos de escravidão. Que teve o Cais do Valongo, que é o maior porto escravo da história da humanidade. É nesta sociedade que a gente tá colocando. É numa sociedade onde a polícia mata a juventude negra, a ponto de a gente ter uma campanha chamada “Juventude Viva”. É nessa sociedade que a gente tá colocando. E é nessa sociedade – eu vou deixar bem claro a minha posição, pra depois eu não ter…Eu tenho certeza absoluta, e eu digo absoluta mesmo, que “Os Fofos”, a Companhia Os Fofos, não têm nenhuma vocação ideologicamente racista. Sei disso pelo trabalho. Sei disso pelo acompanhar as obras. Mas eu sei que aquilo que a gente tá chamando de “blackface” é uma das representações mais racistas criadas para destituir a presença ontológica negra. Então, dito isso, isto posto, porque já perceberam que eu não sou um mediador que está mediando o ponto equidistante entre as duas coisas, vamos passar pra fala. E falei bem pouco, não falei nem três minutos, né Aimar…

(Obs: ele passa a explicar que vão falar em ordem definida por sorteio, e vão ter seis minutos para cada um. Depois vão passar o mesmo tempo pra plateia. As pessoas da sala multiuso vão poder mandar perguntas. Apresenta os mediadores, sorteia o primeiro palestrante, e explica que vai cronometrar o tempo com o celular. O primeiro sorteado é Dennis de Oliveira)

Dennis de Oliveira – Professor livre docente em Jornalismo, Informação e Sociedade da ECA/USP e coordenador do Centro de Estudos Latino-americanos de Cultura e Educação; Professor e coordenador do coletivo Quilombação – Boa noite a todas e todos. “Ser mulher não é vestir saia uma vez por ano. Ser mulher negra não é pintar a cara com tinta preta. Eu sou a mão que lava as feridas, e que não são mais causadas por açoite, mas por coronhada. Eu sou a música que alegra o teu samba, esquenta a tua cama, mas é trocada pela loira na hora de ser apresentada para a família. Eu sou o grito da mãe que perdeu o filho pra guerra no morro. Eu sou o choro da esposa que clama pelo retorno seguro do marido até em casa. Eu sou a voz que reza por Justiça para todos os meus que, apenas por serem negros, são tratados como inferiores. Eu sou a mão que vai pesar na tua consciência toda vez que você pensar em ridicularizar minha raça. Racistas não passaram. Racistas nunca passarão. E sai da frente com a tinta guache preta, que EU tô passando com a minha cor”. Stéphanie Paes. (palmas)

 O racismo é uma ideologia estruturante da sociedade brasileira, uma vez que a abolição da escravização de africanos realizada em 1888 foi feita de forma gradual e que mantivesse os privilégios das elites escravocratas. Raymundo Faoro, em Os Donos do Poder, mostra a continuidade do patronato brasileiro desde aqueles tempos. Clóvis Moura, este pensador brasileiro pouco lembrado, analisa brilhantemente a passagem do sistema de mão de obra escrava para o assalariado, ocorrido a par e passo com a política oficial de branqueamento da população brasileira no final do século 19 até os primórdios do século 20. Momento esse, inclusive, que o Estado brasileiro garantiu políticas de ação afirmativa para imigrantes europeus que, em pouco mais de 100 anos, tiveram uma ascensão social meteórica, acima inclusive do que seria possível nos seus países de origem. Ascensão e políticas de ação afirmativa que foram negadas à população afrodescendente, e hoje são questionadas no Brasil. O racismo garante privilégios. Se expressa consciente e inconscientemente, e não se limita aos comportamentos preconceituosos (…). O racismo está no DNA da sociedade brasileira. Isso se reproduz no cotidiano por mecanismos ideológicos e pela consolidação de imagens. As expressões artísticas e culturais são mecanismos de expressões de formas simbólicas que, segundo o pensador britânico, ou norte-americano radicado na Inglaterra, John B. Thompson, tem uma intencionalidade de dizer algo. Thompson dizia que as formas simbólicas têm aspectos intencionais, contextuais, estruturais e referenciais. Esta intencionalidade não é que está interna no emissor da forma simbólica, mas é intencionalidade percebida. Em outras palavras, para Thompson o que importa é como a mensagem é decodificada e percebida. E como ela, dentro de um contexto ideológico, constrói sentidos. Ideologia são sentidos a serviço do poder, nos diz o professor Thompson. Ideologia é interpelação e assujeitamento, diz o filósofo Louis Althusser. Por isso, expressar-se simbolicamente significa ingressar em um mar de construção de sentidos. A fala, quando é expressa, deixa de ser propriedade de seu emissor, pois, ao ser decodificada por outros, passa a ser propriedade coletiva. Constrói sentidos, articula arcabouços ideológicos. É preciso ter consciência do que se fala e onde se fala. E aí vem a responsabilidade daqueles que são os produtores simbólicos, desde aqueles que estão no campo das artes, como aqueles que estão no campo dos meios de comunicação. O “blackface” tem uma história de consolidar imagens caricatas da população negra. E de impedir a esta de se autorrepresentar. (…) “Pode o subalterno falar?”, quando ela percebe que os chamados subalternos não falam por si próprios, mas são ditos por outros. A expressão simbólica do “blackface” é duplo racismo, independente das boas ou más vontades ou intenções. É assim que ela é decodificada e significada para quem ela se dirige. O sentido construído por ela é dado pela relação caricatural e imageticamente destrutiva à sua referência. Muniz Sodré, quando fala que vivemos em uma sociedade midiatizada – Muniz Sodré, esse pensador negro brasileiro de comunicação, grande intelectual -, diz que a comunicação é interditada quando se constitui o que ele chama de “não sujeitos”. O que são “não sujeitos”? Aqueles que têm negada a sua fala, como a infância, como a criança. “Não sujeitos” são aqueles em que se considera que, por não poder falar por si próprio ou, por não ter sua fala legitimada, têm que ser representados por outro. E que outro é esse que representa? Bakhtin nos diz que o importante da palavra é o seu uso. É o uso que dá o significado. O significado do “blackface” foi dado pelo seu uso. É caricatural, é racista, é impeditivo da autorrepresentação da negra e do negro. A liberdade de expressão do “blackface“, a liberdade de expressão dos termos racistas, a liberdade de expressão de quem é contra a inserção da população negra no sistema social, ou da sua autorrepresentação, é o resultado da abolição inacabada de 1888. Derrubamos o pelourinho, é necessário derrubar essas travas que ainda impedem a plena inserção. Obrigado. (palmas)

Eugênio Lima – Vamos sortear o próximo nome…

Roberta Estrela D’Alva – atriz, Núcleo Bartolomeu de Depoimentos, membro da Frente 3 de Fevereiro – Bom, boa noite todo mundo. Há duas semanas atrás, quando eu vi, né, a notícia lá no Facebook do que tinha acontecido, na hora eu falei: “Isso daí vai dar pano pra manga”. Eu senti mesmo que era um momento… histórico, como foi dito muitas vezes, mas que eu estaria envolvida de alguma maneira, não só pela história. E eu liguei pro Eugênio na hora e falei assim: “Eugênio, tem alguma coisa diferente nisso, porque tem manifestações sempre, mas que ganham essa projeção, e que foi ouvida nesse sentido, alguém que falou “não” pra uma coisa e tomou essa dimensão que nós estamos vendo aqui agora, eu acho que fazia tempo que a gente estava esperando, aguardando, ou… né, pedindo por isso. E… eu não acho mesmo, eu também conheço a Companhia, conheço o Fernando, tive trabalhando com ele (…). Eu não acho realmente que a peça é o foco. Eu acho que o que acontece na peça é um sintoma de um negócio muito… de uma doença culturalmente transmissível, que é o racismo. E de uma relação muito espinhosa que é estes 400 anos no Brasil que ainda o Fernando, o grupo, não sendo racista, ainda assim é possível você não ser racista e ter um componente racista dentro da peça. Ó que complexo que é isto, né? Esses 400 anos contaminaram a fala do 3 de Fevereiro de maneira péssima, todas as relações, de fora a fora, de baixo pra cima. Então o Brasil é um país que tem tradição escravocrata, a direita tem tradição escravocrata, a esquerda tem tradição escravocrata, negros têm tradição escravocrata, brancos têm tradição escravocrata. É cultural, e o Eugênio falou: não elimina com decreto, isso é fala do 3 de Fevereiro. Isso passa transversalmente, verticalmente, e tá muito embrenhado, não é facilmente identificável. E a gente tem o ideário da democracia racial, né. Essa mistura, e os temas da mestiçagem. Mas estes 400 anos, né, foram um processo, que vão demorar, no mínimo, 400 anos – como é um processo de construção – pra ser desconstruído. Só que tem uma pílula, um antídoto, que chama “arte”, que chama teatro, que chama cinema, que chama música, que consegue trabalhar nisso daí catalisando, por exemplo, o racionalismo  em si, que é um exemplo. O (Mano) Brown. O Brown consegue num rap, às vezes numa frase, curar o complexo de inferioridade do moleque de 12 anos com uma frase. Com um rap. Tal é o poder da arte. E é por isso que quando um símbolo como esse tá na arte ele tem o mesmo poder. E a gente tá avançando, ou a gente tá reforçando? Esse é o ponto. Alguém falou “não, eu não quero ser representado assim”, né? Se recusou. A gente, como artista, né, porque eu também me coloco, deve ouvir, porque os artistas agora têm outra formação. A Stephanie (Ribeiro) tem 20 anos. Tem 10 anos aí que os negros estão na universidade agora, né. Então 10 anos aí que abriu-se um estudo, que essa geração vem com outra formação e vai interpelar não só nessa questão: na questão do machismo, na questão indígena, né? Então, a gente tem que estar preparado para dialogar, e esse espaço que se abriu eu acho que é uma resposta a isto. Estava? Então vamos abrir o diálogo, não vamos fazer a peça. Está caminhando, né? “Os Fofos” abriram o espaço, e a gente tá conversando aqui graças a uma visão de que tem que se dialogar. Porque, senão, é afasta: ah, não, isso daí é… censura, ou isso daí não importa. Importou. Tanto importou, que a gente tá falando aqui. Tem alguns conceitos como, por exemplo, racismo, né, que o branco…o negro está chamando pra um racismo negro. Né? Que entendimento que a gente tem da palavra “racismo”? A rigor, você tem uma situação racista quando um grupo que detém o poder impede outro grupo de ter acesso, pertencimento a bens culturais, sociais, econômicos, por conta do seu pertencimento racial. A rigor é isso, né. Você pode ter discriminação, você pode ter preconceito. “Racismo” implica essas coisas que eu disse. Então, eu posso até discriminar um branco, ou ter essa situação. Eu vou abrir a televisão, ela vai estar negra? Eu vou abrir a revista, ela vai deixar de ser branca? Né? Os negros vão ter acesso? Agora, e o contrário? Né, a gente tá reforçando o quê? Aí tem uma fala do 3 de Fevereiro, que é: “Por que tem o dia da consciência negra e não tem o dia da consciência branca?” Ora, porque todo o dia é dia da consciência branca. Ainda precisa pontuar? É que nem o dia das mulheres, só faz sentido numa sociedade sexista. Se a sociedade não fosse sexista, não faria sentido ter o dia da mulher, porque “todo dia é dia da mulher, todo dia é dia de todo mundo”. Fecha aspas, porque isso é onde eu me eduquei, é racialmente, da onde que eu volto sempre, assim como o Spike Lee, o Bambozzled, o Faça a Coisa Certa. São os lugares que eu vou. Então…é… tem tempo ainda, Eugênio? É… porque tem muita coisa, é muito espinhoso este tema. Então como é que uma coisa…

Eugênio – Você tem 30 segundos.

Roberta – O racismo é relacional, ele não é estanque. Então, se alguém… como é que alguém olha e fala: “Eu tô me sentindo muito ofendida”. E alguém olha e fala: “Não, não tem nada a ver isso”. Que vácuo é esse? O que é essa (coisa) que nós vamos ter que transcender, que tá no meio disso, de alguém olhar e ver claramente, e de alguém olhar e ver claramente que não, dizer que não, que é censura; alguém olhar e ver claramente que é racismo. O que que nós vamos ter que transcender? E aí, só pra citar, eu tive no ano passado 20 dias na África viajando com o professor (camaronês) Achille Mbembe; professora Angela Davis, a Pantera Negra; professora Françoise Vergès.  E, no último dia, o Achille fez uma provocação, que era: “O que nós vamos ter que deixar morrer em nós, brancos e negros, para que haja a transcendência, para que haja o encontro? Porque os copos estão cheios. O que a gente vai ter que derramar para que comece a penetrar?” E eu tô pensando até hoje o que que é isso. Foi uma provocação que ficou, e as pessoas ficaram…meio estarrecidas na hora, mas a professora Angela Davis concordou, a professora Françoise Vergès concordou, e todo mundo tava lá, e eu tô pensando nisso até hoje. E a mensagem do Spike Lee: faça a coisa certa. Qual é a coisa certa? Né? Relacional. Então é junto. Pra gente transcender vai ter que ser junto. Não tem nós e eles. O racismo não é um problema do negro, é um problema da sociedade, e nós todos somos a sociedade. (palmas)

Eugênio – Continuando…

Salloma Salomão – Educador, africanista e doutor em História Social, CIA do Teatro e Os Crespos – Boa noite a todas, a todos. Queria agradecer aos Crespos, a Stephanie e aos Fofos (risos). “Ora, no caso não há escapatória nem subterfúgios, nem passagem de linha a que possa recorrer. Um judeu, branco entre os brancos, pode negar que seja judeu, declarar-se homem entre os homens. O negro, não. Ele não pode negar que seja negro, ou reclamar pra si esta abstrata humanidade incolor. Ele é preto. Está, pois, encurralado na autenticidade. Insultado, avassalado, reergue-se, apanha a palavra ‘preto’ que lhe atiraram, tal qual uma pedra, reivindica-se como negro perante o branco na altivez”. Jean-Paul Sartre.

“Racismo vai se desenvolver primo com a colonização. Ou seja, com o genocídio colonizador”. Michel Foucault.

Quero agradecer o convite pra participar deste evento e também dar os parabéns à classe artística intelectual branca paulista que, em função deste evento, está sendo impelida a participar dos debates sobre raça, racismo, etnia, identidade (palmas e risos)… sociedade em rede no Brasil. Stephanie, você é craque! (risos) Não é meu intuito causar frustração naqueles que pensam ser este um evento bombástico inédito. Em 1969, após Wilson Simonal lançar a canção “Samba do Crioulo Doido”, de Sérgio Porto ou Stanislaw Ponte Preta, no Rio de Janeiro, um grupo de artistas ativistas negros liderados por Martinho da Vila entendeu que ali tinha um problema. Eles entenderam que o conteúdo da canção construía uma imagem negativa do compositor e do sambista negro e reagiram criando um evento chamado “Nem todo crioulo é doido”. E redigiram um manifesto público, no qual refutaram todo tipo de estereótipo racial antinegro. Grosso modo, a canção joga com a imagem degradante de um compositor negro que, ao ser desafiado a compor uma canção com teor histórico, pira. E mistura tempos e personagens da história oficial do Brasil. O samba tornou-se bastante conhecido. Mas o evento que o contestou, não. Desde então, quando se está diante de algo que parece mal feito, mal organizado, ou de alguma ideia sem pé nem cabeça, os racistas orgânicos brasileiros designam “samba do crioulo doido”. Também não se tem conhecimento generalizado das inúmeras outras canções de compositores negros feitos nos anos posteriores e que igualmente contestam tal imagem síntese do crioulo doido cunhada por Ponte Preta. Ilê Aiyê, por exemplo, nos anos 70, ainda lançou: “Somo crioulo doido, somo bem legal, temo cabelo duro, somo black power…” E ainda (…) lançou: “Stanislaw, que deus o tenha, mas este é o samba do crioulo que realmente endoidou ao tentar entender a passada atual e a futura conjuntura e aderiu ao antigo costume de seus ancestrais: caçar cabeças brilhantes”. A primeira publicação de reflexões sobre o racismo, de Sartre, no Brasil, é justamente do ano anterior, 1968. Sartre investe sobre a imagem natureza do antissemitismo moderno e do racismo antinegro, e dedica especial atenção ao papel das projeções das imagens estereotipadas na construção do medo e da ojeriza antissemita e antinegra. O pós-guerra colocou a intelectualidade ocidental frente a frente aos fenômenos do racismo e do antissemitismo. Mas, no Brasil, parece que tal encontro ainda está longe de acontecer. A figura do negro e negra construída na forma do grotesco, da caricatura, do ridículo, da estereotipia, da jocosidade, com estigmas associados a cor e raça negras, podem ser encontrados em um longo espectro temporal da produção dramatúrgica, teatral, cinematográfica, televisiva brasileira, desde o século 19 até ontem. A sátira da pedinte negra está presente em programas da Rede Globo, e parece que isso não causa nenhum espanto. Evidente que o negro forma, negro folclore, negro arcaico da cultura popular sugere a existência de um manancial aparentemente inerte de conteúdos que muitas vezes têm sido explorado pelo “teatro” nacional. Esse negro forma é vazio. Por isso pode ser preenchido com conteúdos imaginários de brancura. A estereotipia não é tão importante quando pensamos na quantidade de mortes sistemáticas de jovens negros nas periferias dos grandes centros. Mas, certamente, ao produzir e perpetuar a desumanização do contingente social negro, potencializa e naturaliza o genocídio. Um teatro sobre negros sem negros, ou apenas um teatro negro sutilmente calcado na ideologia da mestiçagem, está repleta na nossa produção. Se pode ver um teatro de negro com um negro (ri), na peça de Luiz Antonio Pilar sobre o Lima Barreto. (ri) Mas quem estiver interessado, efetivamente, pode acompanhar a historicidade da produção dramatúrgica e teatral negra, marginalizada pelo establishment branco, e ainda hoje pode se deparar com uma produção negra vigorosa, embora de pouca visibilidade, a saber: Capulanas, Os Crespos (palmas), Clariô, Coletivo Negro, Quizumba, e assim por diante. Nomes que às vezes nascem e morrem como estrelas. Estrelas guias, não estrelas dalva, mas estrelas guias. (risos) Entretanto, a classe artística, tão mimada na sua condição de elite intelectual branca, e brancocêntrica, não está disposta a fazer o contato. Mas quando a intelectualidade brasileira terá a coragem de Sartre para mergulhar de verdade neste campo tão delicado da construção da nossa sociedade? Quando? Podemos definir tais representações negativas como tradição? Miriam Garcia nos informa que os personagens negros vão entrando na produção teatral brasileira desde as obras de Joaquim Manuel de Macedo e Martins Pena, onde os negros são apenas sombras, figuras sem nomes, de escravizados que sequer recebem uma rubrica, mas apenas menções vagas nas bocas de personagens humanos, quero dizer, brancos. Apenas perguntas…

Eugênio – São nove minutos já…

Salloma – Ah! Eu posso fazer apenas uma pergunta e encerrar? Que está no texto?

Eugênio – Pode, claro, claro.

Salloma –  Eu preparei tanto isso, eu achei que vocês iam gostar… (risos) O Eugênio foi muito educado comigo lá no camarim. Falou que se devia evitar o tom professoral. Me desculpem, mas eu me formei professor, essa é a minha profissão, é difícil evitar esse tom. A questão é: será que estaremos aptos para abrir um debate franco sobre a ausência de negros e negras nesses espaços de criação, produção e veiculação de arte e cultura? Sim, pra sociedade – aqui especificamente é sobre arte e cultura e representação. Muito obrigado. (palmas)

Mário Bolognesi – Professor de teatro e pesquisador do circo brasileiro – Boa noite. Bom, pela própria apresentação do Eugênio, obviamente eu não falarei sobre racismo. Vou tentar falar um pouco do teatro praticado debaixo da lona que tem neste país uma longuíssima história, e longuíssima história esta que foi também escondida e não revelada. Só ultimamente, nos últimos 30 anos, é que pesquisadores têm se debruçado a desvendar esta história deste teatro riquíssimo. Somente há 30 anos é que a historiografia do teatro brasileiro se debruçou em um fenômeno igualmente riquíssimo chamado Teatro de Revista. Somente há pouquíssimo tempo atrás se conhece, se sabe algo do Teatro Musical, que é riquíssimo no país. A historiografia do teatro nacional voltou-se para o teatro importado da Europa. Nem é preciso dizer que um grande… uma pessoa de reconhecido valor acadêmico notou no Teatro de Revista apenas as varizes da vedete. E os hematomas. E nada mais. Então, está claro que eu acho este debate importantíssimo, necessário, fundamental. Mas eu não quero… o tempo é muito curto, eu não quero perder palavras com esse assunto. Eu quero dizer o seguinte: o circo brasileiro, na sua versão teatral, desde o início acoplou a causa dos abolicionistas. Desenvolveu uma dramaturgia bastante extensa à causa abolicionista. Nós temos inúmeros exemplos nesse sentido. O circo brasileiro também acolheu muitos escravos fugitivos, que foram encontrar no circo e no espetáculo uma possibilidade de realização. E o principal deles é o Benjamin de Oliveira, tido como um importantíssimo palhaço, lá na virada do século 19 pro 20, e era um palhaço negro. Temos diversos outros exemplos. Temos exemplos de palhaços negros na atualidade de significativa expressão. Mas eu quero pontuar esse assunto pra dizer o seguinte: o circo brasileiro não sabe o que é esse negócio de “blackface”. Não sabe. Ele não usa esse referencial, nunca trabalhou com esse referencial norte-americano, né, nascido em meados do século 19 nos Estados Unidos. O circo brasileiro tem a sua vertente, a sua matriz europeia, que vem de uma tradição da comicidade popular que trabalha, em primeiro lugar, com personagens-tipos, que é diferente de estereótipos. Personagens-tipos são condensações essenciais de características psíquicas, fundamentalmente psíquicas, mas também sociais. Eu vou citar apenas um exemplo: o velho libidinoso, o velho já com uma certa situação financeira favorável e libidinoso, é figura que se encontra desde Antiguidade, passando pelo Renascimento, na figura do Pantaleão, que talvez seja o que mais… seja mais próximo a nós. Nesse aspecto… Eugênio, por favor, quando estiver faltando um minuto você me dá um chute na canela…

Eugênio – São quatro minutos ainda.

Mário – Tá bom. Neste percurso, diversos personagens-tipos foram forjados. No campo da comicidade – por que que eu tô dizendo isso? Pra chegar no seguinte ponto: o circo brasileiro desconhece o “blackface”. Ele trabalha com o alto cômico e o baixo cômico. Ou o primeiro cômico e o segundo cômico. Ou com uma dupla cômica que é contrastante entre si, porém interdependente para o desenvolvimento da cena. E mais: trabalha no perfil do Teatro de Convenção, em que estas personagens-tipo se carregam como máscaras. E ao falar isso eu já aproveito para dizer o seguinte: o amalgamento, no teatro realista, no teatro de tom, no realista-psicológico, é natural o amalgamento entre o artista e a personagem. Vou citar apenas um exemplo: quando eu falo em Odete Roitman todos se lembram da Beatriz Segall. No Teatro de Máscara, este amalgamento não ocorre, porque prevalece pela convenção aquela máscara. Não é? Essa máscara pode ser algo que se acopla ao rosto, como pode ser uma maquiagem. Né? No perfil dos tipos cômicos esta dupla cômica se estende desde a Antiguidade e chega a nós por contrastes. Nós temos uma linhagem dos chamados “enfarinhados”. Dos brancos, ok? Pierrô é uma dessas personagens, o clown branco no circo é a derivação mais recente desta personagem. E temos uma outra linhagem de personagens que são os negros pintados de negro. Qual é o sentido disto para o teatro? O sentido disto é criar uma polaridade, inclusive visual, ou preferencialmente visual, porque não nos esqueçamos que se praticava teatro ao ar livre pra muita gente. Portanto, o critério de visibilidade deve estar muito bem exposto, e as cores vermelha, preta e branca são as preferenciais deste universo, porque são visíveis à longa distância. Pois bem, esta polaridade branca e negra na personagem, que aparece também na Commedia dell’arte – você tem máscaras negras e máscaras da cor natural -, e que se estende, chega pela Europa, e é possível vê-la ainda hoje na Folia de Reis, por exemplo, onde tem os chamados palhaços, você tem as máscaras negras e as máscaras brancas. No Cavalo-Marinho, em que os “Bastiãos” são negros; o Mateus, às vezes, sim, depende, está relacionado com a concepção daquele conjunto. No circo, essa polaridade veio para realçar, trazer o cômico… (interrompe, porque Eugênio fala do tempo, que tá acabando) Já? Por que você não me chutou a canela antes? Bom, o tempo foi insuficiente, mas, enfim, é a regra do jogo, vamos respeitar. O que eu estou pontuando aqui é o que se trata no circo do trabalho teatral em cima de máscaras e que a economia do espetáculo, da companhia, não faz, necessariamente, esse amalgamento entre o artista e a máscara que ele representa. Muito obrigado. (palmas)

Aimar Labaki – Dramaturgo, roteirista, diretor, tradutor e ensaísta – Que bom, porque eu queria mesmo que você (Stephanie Ribeiro) fosse a última.  Achei que tinha uma justiça poética nisso. Obrigado, boa noite. Quero agradecer o convite, quero agradecer a quem começou esta confusão, quem transformou a confusão em debate. Eu vou ser breve, eu só tenho duas coisas pra dizer. A primeira é que eu, pra mim, a questão negra é… A questão do negro no Brasil é igual a duas outras questões pra mim: primeiro, a questão dos desaparecidos e dos torturadores, isto é, a nossa verdade histórica que ainda tá, de alguma forma, enterrada, e a ideia de que uma justiça possa vir a realmente servir pra todo mundo; e é igual à questão da liberdade sexual, isto é, que a questão do gênero, a questão das opções sexuais sejam normalizadas, pelo menos do ponto de vista legal, e a vida vai fazer com que o óbvio se estabeleça, que cada um viva como quer. Por que estas três questão são importantes? Porque são as três questões que nos impedem de, de verdade, nos sentirmos parte de uma nação e nos sentirmos parte de um Estado que nos representa em alguma medida. E eu não tô falando só da questão da representação política, que é uma crise pela qual passa o mundo inteiro, não é uma crise só brasileira, apesar de aqui ser piorado pelo fato de a ditadura ter acabado com uma ou duas gerações de pessoas que poderiam ter o conhecimento de como se mover publicamente, e fez com que a nossa educação, nesse sentido, fosse atrasada tanto. Faz 30 anos que acabou a ditadura, mas o Sarney só se aposentou o ano passado e ainda tá indicando gente. Ainda tem militar que não obedece ao chefe do comando que é o presidente da República quando o presidente da República manda entregar documentos que são do Estado, não são do Exército. Então, nós estamos há 30 anos construindo pela primeira vez uma democracia formal, mas nós não temos um espírito democrático, nós não temos um espírito de República. Nós ainda estamos tentando construir isso, e construir um aprendizado de como discutir em público. Porque democracia não é paz. Democracia é luta cotidiana, é debate cotidiano entre os diferentes. E nós temos medo do debate, nós temos medo do confronto. E é preciso aprender a se confrontar. Nesse sentido, essas três questões – a questão do negro, a questão dos torturados e da punição aos torturadores, e a questão da liberdade sexual – é que nos impedem, como diz o poeta, de conseguirmos transformar essa vergonha numa nação. Isso posto, eu acho que, pra todas as três questões, vale a preocupação permanente de compreender que esta democracia tá em construção. E, nesse sentido, não me parece o caminho mais adequado você pedir, ou você lutar pela supressão de qualquer representação que te incomode. (…) Nesse caso, a representação também é uma forma de manutenção de uma visão de mundo que perpetua o racismo. E eu concordo com isso. Eu acho que essa visão tem que ser apagada, mas ela não pode ser apagada pela força, ela não pode ser apagada pelo silêncio. Ela tem que ser apagada de duas maneiras. Primeiro, pelo boicote. Isso já aconteceu no ano passado, no caso da questão negra, no caso de o Sexo e as Negas, o programa da Globo. Eu, pessoalmente, acho um equívoco, porque eu não acho que o programa seja racista, mas não cabe a mim achar isso. (Manifestação na plateia, Aimar Labaki levanta um pouco a voz). Não cabe a mim achar isso. Mas o programa acabou porque foi muito bem organizado um boicote, que disse: “Ó, simplesmente não compre coisas de quem patrocinar isso”. E eu acho isso genial. E acho que funciona. Só que… E há uma segunda, que é a natural, que é você construir obras de arte que sejam de grande qualidade, por si, e que tenham essa representação que é a representação desejada. Agora, ela não pode ser valorizada apenas por ter essa representação. Ela tem que conseguir dialogar com o todo da população, e não só com a população negra. Então, eu acho que dos dois lados é preciso saber o que a gente tem que jogar fora. Adorei o que a Estrela disse. É preciso aprender o que a gente tem que jogar fora pra conseguir misturar os dois lados, pra conseguir achar… Não pra gente ser feliz o resto da vida, porque a gente não vai ser. Mas pra gente achar uma forma de convivência. Pra gente achar uma estrutura que permita a qualquer um, naturalmente, se sentir cidadão nesse lugar. Por nisso é que essa questão me interessa. Não só por causa… por eu ser artista, mas porque eu acho que, enquanto isso não for enfrentado, a gente não vai conseguir dar um passo pra frente. Eu devo ter já quase estourado, então esse último minuto eu vou usar pra dizer que realmente teatro tem uma coisa mágica. Quando você mexe com uma coisa, essa coisa acaba mexendo com você. O meu próximo texto a ser encenado no Rio de Janeiro no segundo semestre é um espetáculo sobre o maestro Erlon Chaves que é, no meu entender, não só um dos maiores músicos dos anos 60 e 70, mas um mártir – e a palavra é escolhida -, um mártir do preconceito e do racismo no Brasil. E aí, quando eu vejo, eu tô aqui nessa conversa com a qual eu não tenho nada a ver, e provavelmente porque uma coisa puxa a outra, sem que a gente queira. Muito obrigado.

Eugênio: Seis minutos cravados. Então vamos sortear os dois últimos.

Fernando Neves – professor, pesquisador, ator, e um dos diretores de “Os Fofos Encenam” – Tá ligado, né? (sobre o microfone) Boa noite a todos. Bom, é… nós… eu já queria começar dizendo que, diante deste evento que aconteceu com “A Mulher do Trem”, que é uma peça de circo, que também pela minha arrog…é arrogância, né? É arrogância. Eu detesto esta palavra, que às vezes eu até me perco. Que eu dizia assim: tudo o que eu pegar… Eu demorei muito tempo pra entender o que era, o que minha família, como outras famílias de artistas, tinham feito aqui nesse país em relação à arte, do palco, ou seja, Teatro de Revista, o Circo-Teatro e o Teatro de Comédia. Porque… desde muito cedo… Primeiro, eu venho de um ventre negro que já teve uma questão forte de entrar numa família de portugueses que chegaram aqui em 1890. Vindos com um circo. Uma família europeia como muitas, como a da Bibi Ferreira, do (…), do Oscarito… vieram da Europa. Então, eu fui aluno…eu estudei na USP. Então, eu fui aluno dos grandes mestres que fizeram, ou criaram o teatro moderno brasileiro. Eu fui aluno do Décio de Almeida Prado, do Alfredo Mesquita. Eu fui aluno de Antonio Candido… De pessoas, assim, de primeira linhagem mas, como ele disse, que achava que tudo que tinha acontecido neste período do Brasil, ou seja, mais ou menos de 1890 até os anos 40, vamos dizer a 43, quando teve o “Vestido de Noiva”, que é um marco, né, direção de Ziembinski, com Os Comediantes…. E, no curso, ele foi, e quando chegou uma hora…eu falei: ué, mas de 1890 pulou pra 1943? Ele falou: “Tudo o que aconteceu no Brasil em teatro nesse período não nos interessa”. Eu falei: “Professor, posso?” Não falei que eu era de circo, morrendo de vergonha…” e “Eu posso fazer um trabalho pro senhor?” Fiz essa pesquisa, ele me deu 10. Ele me adorava, ele ficava imaginando: “Onde você arrumou tanto material pra ficar pensando?”. “Ah, eu pesquisei”. Não disse. Eu proibia a minha mãe, quando fosse alguém em casa, de falar que ela tinha sido vedete do Walter Pinto. Eu proibia tudo. Tudo, tudo, tudo porque é assim…Você vem da origem… aqui no Brasil é uma cambada de saltimbancos, gente que não presta, e que toda mulher tem carteirinha de puta. Minha avó e minha mãe têm carteirinha de puta, porque chegava na cidade e tinha que ir na delegacia tirar a tal da carteirinha. E então essa história toda, pra mim… Eu comecei a fazer teatro, também, muito assim… com 25 anos, porque eu quis… entrei em Filosofia lá no sul, que eu morava no sul, fui morar, daí eu falei: ah, não quero. Queria ser jornalista, não quero. E… e daí, quando eu cheguei ao teatro, aos 25 anos. Tinha um grupo dentro da ECA que a gente montava peças do Teatro do Absurdo. Tinha uma pesquisa, assim, voltada para o teatro europeu. Toda uma questão assim, e assim foi desenvolvida, até eu conhecer “Os Fofos”. Que começa com uma peça do Newton Moreno, que foi da dissertação dele, que falava sobre homofobia no teatro: “Deus sabia de tudo e não fez nada”. E daí eu propus, com muito medo, eu propus que a gente fizesse uma pesquisa. Eu falei: encontrei uma família, eu quero… eu preciso falar sobre essa ques… por que numa família de artistas, é por parte de pai, por parte de mãe, pra todo o lado que eu olho tem gente… tem esse ator popular que tem uma origem muito remota. E desde essa origem remota ele luta na rua, contra a censura, contra o tempo, se você pegar o Teatro de Feira na França, o Teatro do Boulevard, contra a censura das companhias oficiais, contra isso, e eles se recriam, se renovam, e trazem uma arte poderosa. Quando chega isso no Brasil, isso aqui não tem muito valor. E daí, aos 53 anos que eu falei: não, eu preciso falar sobre isso. E foi em 2003, que foi uma coisa impressionante esta questão de a “A Mulher do Trem”, porque era a peça que levantava a praça, que meu tio escondeu de mim, que também foi duro arrumar material pra fazer uma pesquisa. E daí a gente fez “A Mulher do Trem”, e quando a gente tentou dinheiro a gente não conseguiu nada, se não fosse (…) dar um dinheirinho pra gente fazer… Então, foi tudo… tudo na dificuldade eterna. E foram as primeiras… Quando eu fui descobrindo o que eu queria com o circo. Porque eu precisava, não queria fazer uma coisa museu, e nem uma coisa pra falar: nossa, é uma coisa saudosista, pra dizer que ele foi… Eu comecei a entender o que era pro ator brasileiro, que eu não via, o que era a questão da composição e das máscaras. E que é uma questão muito difícil (…) Porque é muito complexo. Porque envolve tipo psicológico, envolve temperamento. Então, é uma questão que infelizmente deveria ser matéria nas escolas. Pra, quando chegasse nessa discussão, eu não tivesse, ou ele não tivesse que falar: não tem nada com o “blackface“. Mas, posto isso, como o tempo é pouco, quando a máscara do circo é toda construída, as características que eu aproveitei, no caso da Enedina –  porque a peça não foi vista… Mas, no caso da Enedina, porque, na peça francesa que foi traduzida e adaptada pela minha família, a criada ela entra pra servir, e tchau. Eu falei: não, pra eu trabalhar essa máscara, eu tenho que trazer o Scapino do Molière, porque é o que expõe. Porque as máscaras, elas evidenciam as relações. Mas, se eu trouxesse Scapino, ele vai evidenciar essa família burguesa hipócrita do jeito que é construída. Então, ela vira a grande heroína da peça. E isso foi em 2003. A gente fez apresentações, e ela foi pro baú. Quando ela retoma sem ser feita, a gente leva um susto (…). A gente vai montar um Teatro de Revista do Brecht, nos interessa falar da questão negra no Brasil, e a gente vai, não só com o Eugênio, a gente vai pras lideranças, pra entender e falar isso num quadro. Mas, quando o Eugênio fala assim: “Fernando, pensa o que é isso. É uma coisificação de uma ideia que traz muito sofrimento pra muita gente só de olhar. Não precisa ver a peça”. Eu falei: é um totem. É um totem. Então tá errado, a máscara de circo não foi feita pra isso. A minha família, todo o trabalho, tudo, quem fazia essa máscara era a minha mãe. Ela não foi feita pra isso. Ela foi feita pra divertir. No circo, drama é pra chorar e comédia é pra rir. Ela não foi feita pra ridicularizar ninguém. Tanto é, que se vocês olham as fot… os tipos da “A Mulher do Trem”, a mulher que faz a dona da casa, ela tem o nariz torto, a boca torta. Ninguém. Não é assim, que o negro está pintado e todo mundo tá com cara e pele boa. Não é. Tá todo mundo ridicularizado. Porque era isso que o circo fazia. Então, quando ele falou, que o Eugênio me explicou o que era isso, eu falei: então essa máscara tem que sair de cena. Ela não pode ficar, ela não foi feita pra isso. Como várias vezes, durante a História, várias máscaras e vários tipos, eles tiveram que sair de cena. Eles se ressignificam e voltam. E o teatro é vivo. (…) Então, a gente falou: não, primeiro para tudo. Porque a gente podia ter posto: aí…não vai ter espetáculo. Para tudo! Me interessa, e muito, essa questão, que eu não tinha (me) dado conta porque, pra mim, ela tava no campo da forma. Porque foi pra isso que eu fui pro circo. Eu queria entender um outro corpo, uma outra voz, uma outra maneira do ator… de inchar, de inflar esse ator. Só através da máscara. Então, quando eu falei: não, então essa máscara tá fora de cena. Ela tem que sair de cena. Porque ela não foi criada pra causar dor em ninguém. Porque é tudo o que a gente não quer na vida. E nossa arte, tudo o que a gente tá fazendo, não se baseia nisso. Eu não quero, e nenhum dos Fofos querem. Tanto é que eu já tirei todas as fotos de lá, e eu falei…Porque, na verdade… Gente, a história de a “A Mulher do Trem” é a seguinte: é uma mulher… É bom, porque é assim… Não tem nada a ver. É uma mulher que tá casando a filha, e, no dia do casamento, ela acha que o genro é banana, que ela vai dar conta dele como ela dá conta do marido. E ela ouve que o genro não é banana. E que, o pior: ela fica sabendo que o genro teve um caso, que a filha fica com ciúme, ele conta pro pai, e a mãe ouve. Que ele teve um caso, que ele pegou um trem pra ir pro Rio de Janeiro, entrou numa cabine, entrou uma mulher, arrebentou um temporal, a mulher caiu nos braços do homem e eles transaram. Há 17 anos. Ela ouve isso, ela chega pro genro e fala assim: “Vem cá, eu tenho que te contar uma coisa. Alice, a minha filha, ela não é filha do meu marido, ela é filha do seguinte: peguei um trem…” E conta a história dele pra ele. E ele pensa que ele casou com a filha dele. Entendeu o que é “A Mulher do Trem”? É isso. É isso! (riso na plateia) E aí, através disso é que se revela uma sociedade burguesa absolutamente ridícula, que cai num conto desses. Entendeu? Então, “A Mulher do Trem” … isto. É exatamente isto. Então, o que eu queria dizer é que eu apoio essas falas que eu ouvi até agora, tão sábias. Eu apoio plenamente. E… estas máscaras estão fora. O que vai acontecer é que a gente vai retrabalhar… porque eu falei, eu boto… Não, não é isso. A gente tem que trabalhar na alegoria que existe na arte popular pra trazer reflexão. Antes, ela era forma. Agora ela tem que ter um engajamento. Ela é posta pra gente discutir. Isso, pra mim, eu quero agradecer muito e pedir desculpa a todos que eu tenha ofendido (começa a chorar), porque não é da nossa… O nosso grupo, ele nasce com uma militância. Então, quando eu me vi na frente do Dr. Sílvio, por exemplo… Uma vez eu falei pra ele: meu deus, eu tô aqui como um algoz, como se fosse… Foi uma coisa que me machucou demais. E me trucida, porque isso é tudo o que eu não queria na minha vida. Então, essa máscara tá fora de cena, como tá fora qualquer tipo de preconceito, qualquer tipo de racismo, e qualquer tipo de violência! A gente abriu isso daqui pro diálogo. Nós, dos Fofos, quisemos, e nos colocamos aqui pra isso. Pra ouvir. (palmas e assobios).

Stephanie Ribeiro – Estudante de arquitetura, blogueira e ativista – Oi. Queria falar primeiro que eu tô rouca e, depois, que queria pedir desculpa pelo atraso. Então, eu queria começar falando que talvez eu seja muito radical, porque, na minha concepção de mundo, pessoas brancas não dizem como pessoas negras devem lutar. Então, se eu quero fazer um boicote, eu vou fazer. Se a gente quer se unir contra uma peça, a gente vai se unir. Porque é isso o que a gente tá debatendo aqui. São anos e anos de pessoas negras não tendo voz. São anos e anos de pessoas negras sendo silenciadas, invisibilizadas. São anos e anos que a representatividade não vem. A representatividade, num país onde 54% da população é negra, não deveria nem ser discutida. Então, quando a gente se manifesta, a gente não tá censurando, a gente só tá pautando o que ninguém tinha pautado até antes porque não tem a nossa vivência. É muito simples. É só isso. Então, eu acho que a gente tá nesse debate para desconstruir. Então, a gente começa desconstruindo a ideia de a pele natural ser a branca. Porque eu sou negra, eu sou natural, eu sou normal, eu não sou exótica. Eu passo a minha vida inteira escutando que eu sou exótica, que eu sou diferente, que o meu cabelo é diferente. Essa é a minha vivência. É isso o que eu levo quando eu vejo aquela foto e vejo que aquela é a representação da pessoa branca para comigo, para com a minha avó, para com a minha bisavó, que eram negras, que foram escravizadas, que foram estupradas, que foram marginalizadas. Essa é a minha história e essa é a história que eu levo sempre e vou levar pra toda a minha vida porque não tem como eu ser negra um dia e não ser no outro. E aí entra a questão da peça e de toda manifestação feita pelo Facebook de várias pessoas negras, e da forma como isso foi recebido por algumas pessoas de um jeito até racista, de achar que o negro não entende de arte, o negro não entende de cultura, o negro não sabe isso, o negro não sabe aquilo. Sabe quantas vezes na minha vida eu não vejo uma pessoa perguntando: “Ah, mas você faz arquitetura?” Por quê? Eu não posso fazer arquitetura? Tem curso para branco e tem curso para negro? Ah, parece viagem, mas não! É a nossa capacidade sempre sendo ignorada pela elite cultural paulista na arte. Vários e vários textos que a gente leu, vários e vários grupos de teatros de negros que são invisibilizados e ninguém fala sobre. E aí eu gostei de fazer o link com o boicote ao Sexo e as Negas, porque entra numa outra questão de vivência de mulher negra, que é a nossa hipersexualização. Quem é hipersexualizada na sociedade? Somos nós! Sabe quantas personagens a gente não vê no teatro, no cinema, na televisão, na Rede Globo, sei lá aonde, de mulher negra é pra trepar? É isso que falam pra mim, é isso que eu vejo, e é isso que Sexo e as Negas reforçava. Qual a visão de um homem branco sobre a minha vivência? Sabe? A gente já parou pra pensar isso? Eu não sei o que é ser branco, eu nunca vou saber. Eu sei o que é ser negro. E pautado no que eu sei, é difícil. E eu ainda sou uma mulher negra privilegiada, sabe? Eu tenho sorte de estar numa universidade. Eu sou uma mulher negra ainda de pele clara. Imagina as outras mulheres negras, que não podem estar aqui! Que estão limpando o chão, que estão lá, sei lá, cuidando de vários filhos. E isso me ofende porque, quando a gente coloca a imagem do branco para com nós, é uma imagem tão ofensiva, tão estereotipada, que não tem essa de ser máscara, de ser tipo. É a minha imagem toda vez que eu vejo na TV, toda vez que eu vou numa peça. É sempre a mesma coisa. É ou a mulher negra faz para sexo, ou a mulher negra Globeleza, ou a mulher negra é empregada. Ah, mas por que a mulher negra é empregada? Porque a gente vive num país que, pós-abolição, a mão de obra negra era abundante. Então o que que a gente faz com essa mão de obra abundante? Vai dar chances? Vai dar estudo? Não! Vamos colocar eles pra limpar, lavar e passar. É aí que entra o estereótipo. Não é só pintar a cara de preto. O estereótipo que a peça reforçava é este estereótipo da mulher negra em vários sentidos: no cabelo, na forma de se portar. Porque estava escrito no próprio site dos Fofos, quando eu fui ler, que ela era intrometida. Então, o problema tá… não é essa peça, mas o problema é a visão das pessoas brancas sobre nós. Essa visão a gente não vai aceitar mais, porque hoje a gente tem voz, hoje a gente pode falar. Que seja no Facebook, que seja com pichação, que seja da forma que for. Eu não aceito. Eu não vou me calar. E ninguém vai, aqui, que tá aqui nesse propósito, a esse debate, e que é negro, não vai. Porque a gente veio com esse propósito. Então, eu acho que o debate é super importante, mas cabe às pessoas entenderem que não dá pra gente mastigar tudo, sabe? Quando a gente fala de “blackface”, quando você joga no Google, um dos primeiros textos que aparece é do Blogueiras Negras. Quem já abriu o site do Blogueiras Negras e foi ler um site feito por mulheres negras, com textos de mulheres negras, falando sobre a realidade de mulheres negras? Quem se interessa por isso? Então, a gente fala e fala e fala, mas não adianta, entendeu? Tem que ter um esforço. Tem que ter um esforço das pessoas para entender o que é ser negro no país. Você nunca vai saber o que é viver na minha pele, mas pelo menos não reforçar ideias como essa de… “natural é a pele branca”, entendeu? Isso é desconstrução, isso é leitura de gente negra. Gente negra fala, gente negra escreve, e não é de hoje, entendeu? Então, eu acho que a ideia é a gente começar a pautar que o privilégio (…) maior que o branco tem é o de não se interessar pela questão do que é ser negro. Esse privilégio, eu não tenho. Quando é que eu vou ter o privilégio de não saber o que eu sou? Agora, vocês têm o privilégio de não saber o que eu sou, me marginalizar, me oprimir, e ainda me chamar de censuradora. É ótimo esse privilégio (aplausos). Então, eu acho que essa ação ela foi muito importante, porque ela foi feita no Facebook com várias pessoas, principalmente militant es jovens. E é essa força que vem vindo que não vai se calar, gente. Eu acho que é importante as pessoas se abrirem pra escutar essas vozes. Mas essa abertura tem que vir com o diálogo, principalmente, de que pessoas brancas não pautam a luta dos negros. Ninguém vai dizer como a gente deve lutar. Ninguém vai dizer como a gente deve agir, porque ninguém sabe o que é ser a gente e ninguém sabe tudo que a gente já passou. Então, eu acho assim: no mínimo, é buscar, sabe? Buscar essa…buscar saber… ler, saber o que é. E eu fiquei feliz que o debate esteja acontecendo, porque essa é a pauta, porque a arte, querendo ou não, é desconstrução. Então, se um grupo de teatro, que eu sei que tem um histórico engajado, tá caindo numa coisinha que é tão já…tipo tão batida, que é tão racista, imagina os que não têm. Eu fiquei assustada, eu falei: “Gente, imagina os grupos de teatro que estão por aqui, o que eles não estão fazendo?!” Então, sim, a gente tem que debater a arte, mas entender que a nossa visão é outra, baseada nas nossas vivências, e que a gente não vai aceitar determinadas coisas. Eu acho que é isso. (aplausos)

 PERGUNTAS DA PLATEIA

Mulher (plateia, não se identifica) – Boa noite, todas e todos. Eu gostaria de começar fazendo como todas e todos da mesa fizeram, que foi parabenizando o Itaú Cultural porque, de fato, hoje a gente costuma dizer que, com as redes sociais, debates como esse se tornam possíveis. A gente tava até conversando um pouco antes com outra amiga, né, como a gente suportou durante anos aquela porcaria de Zorra Total sem ter um diálogo direto, né, com a Rede Globo. É… mas, fechando esse parêntese, eu faria duas perguntas. De fato, o debate, ele é tenso, porque ele entra no campo que supostamente a gente não vincula, né, diretamente com a política. Quando a gente pensa em arte, há toda… houve toda uma tradição que a arte ela configura em si uma ação humana que ela não teria, a priori, uma relação mecânica… é… com a ação política mais imediata, mais concreta, mas a gente sabe que a partir do ponto de vista do imaginário tudo acontece em condições já de existência. Então, esse debate que hoje parece bizantino, de separação de arte e política e, para nós, população negra, homens e mulheres negras, a gente sabe que a arte, ela é política nessa exata medida que ela se baliza por uma concepção de mundo. E a minha pergunta, minhas duas perguntas e comentários, iriam muito nessa linha. Porque, quando eu comecei a acompanhar, Stephanie, todo o debate no Facebook, havia toda uma corrente de pessoas dizendo: “Ah, mas o movimento negro é… o tribunal da Internet, acusando a peça de racista”. E a gente parte de um lugar, quando a gente pensa arte e discursos, é que, ao falar, nós somos falados. E toda essa discussão, Fernando, com “Os Fofos”, não era…não é, como bem tá posto aqui, de sacrificar “Os Fofos”, de colocar “eles são racistas” a princípio, mas é que todos nós o somos, na exata medida que nós somos falados por esse mundo racista, homofóbico, sexista… Eu acho que é esse diálogo que a gente tem que ter, seja como produtores culturais, produtores artísticos. Porque, de fato, eu vi na sua fala, que mobilizou, que emocionou muito, eu considero a princípio que você não é um homem racista. Mas o flagrante do racismo à brasileira se dá aí. Não precisamos ser racistas pra gente operar com uma lógica de subalternização do outro. E, sobre esse ponto de vista, eu acho que nos cabe aqui sair muito da dicotomia “liberdade de expressão e censura”, e ingressar no debate a questão do imaginário. Né, o imaginário que nos mobiliza – e aí eu nos coloco população branca e população negra – é, sim, um imaginário racista. Então a minha primeira pergunta e provocação pra vocês é… Eu não gosto de fazer perguntas que começa “Como…”, “De que forma…”, “De que maneira…” porque nenhum de nós temos fórmulas prontas, isso aqui não é receita de bolo. Mas eu acho que, a título de provocação, e aí a gente tem intelectuais, pessoas conhecidas, próximas, o Dennis, né, o Salloma, enfim… todo um conjunto de pensadores, intelectuais, ativistas, né? Como é que a gente pode pensar nessa quebra, porque se trata, na verdade, de um ônus da representação. Toda essa grita, ela revela que há um ônus, né, que a população negra, ela acaba… (…) Porque as pessoas falam: olha, mas os brancos já desempenharam e desempenham papéis subalternizados, seja no teatro, seja… mas o ônus da representação, essa equação, essa, digamos… equivalência no mundo real recai muito sobre a população negra. Então, acho que é pensar esse ônus da representação e do imaginário. Eu gostaria de ouvir um pouco vocês sobre esse imaginário que nos move a todos nós, né, e pensar essa outra gramática de produção. E uma outra seria diretamente para o Aimar Labaki, quando ele coloca (em) equivalência a liberdade sexual, a questão dos torturados e a questão dos negros. Eu acho que são questões profundas, doloridas, terríveis, que deixam uma marca no Brasil, mas eu discordaria. E aqui não é fazer uma olimpíada de quem sofre mais. Trata-se de uma discussão que uma população foi desumanizada. Os torturados – eu fui casada com um homem que foi torturado, um homem branco, judeu, mas ele é humano. Quando se vive numa sociedade escravocrata e que escravizou, você tem humanos e não humanos. Eu acho que colocar a questão no mesmo patamar, repito, não tô aqui reivindicando uma olimpíada de quem sofre mais, mas eu acho que a gente perdeu um pouco a densidade e balizas pra gente enfrentar o racismo, porque, de fato, todos nós, inclusive você, temos, sim, a ver com isso. É pensar esses 54% da população que foi desumanizada. A gente só escraviza quem não é humano. (…) É aquela coisa, né, separar as coisas pra pensar nessa dimensão, inclusive da arte e da dramaturgia, a partir dos não humanos.

Max (plateia) – Boa noite. Prazer, meu nome é Max. Eu sou ator… Eu era ator, mas eu me tornei produtor cultural por ausência, por necessidade de produções culturais em que eu me sentisse um pouco mais… digno. Digno. Acho que é a palavra perfeita pra ocasião. Eu vou falar a partir da minha pele preta natural e do meu cabelo normal, embora alguém em 1930 disse que existiam cabelos normais e outros sei lá o quê. Né? Decidiram o que era normal e o que era natural. E acho que é muito interessante… não vou falar do “blackface”, porque o que foi depois do “blackface” foi muito mais arrogante, sabe? Esse espaço… É interessante como o branco treme quando vai perder o privilégio. Então, de repente, quando você toca no privilégio daquele que sempre pôde falar como quiser, de quem quiser, a altura que quiser, e alguém fala –  “Eu não gostei” – e chamam ela de Estado. Né? Eles de Estado. O negro que nunca teve sequer grandes papéis no Estado… são censuradores. Não houve Ministério Público, não houve DOPS, não houve Conselho da Comunidade Negra, não houve SEPIR mandando, enviando. Né? E ninguém nem foi perguntar aos “Fofos” se era censura ou não. Parece que foi uma decisão muito arbitrária do “Fofo”, muito… uma decisão muito séria dos Fofos. Né? Então é um espaço de privilégio que eu vi no Facebook as pessoas assim… com um treme-treme de perder esse espaço. Eu acho que é aí que o copo tem que esvaziar. A gente, enquanto homem, vai ter que perder privilégios para dar espaço às mulheres, pros homossexuais. A gente enquanto… enquanto… sudestinos, vamos ter que abrir espaço nos editais pra que o Norte seja contemplado também. E talvez os brancos ainda não conseguiram dar um milímetro de passo pra perder seus privilégios. Ou pra compartilhar os privilégios nas universidades. Compartilhar o privilégio desse diálogo. Eu fiquei com medo que ia ter que fazer barraco aqui (…), achando que ia ter uma palestra de pessoas justificando o “blackface”. Eu tava preparado pro barraco. Sério mesmo. Nunca vi o mercado financeiro abrir espaço pra um debate desse. Eu nunca tinha visto (ri). Nem o Estado, nem o mercado financeiro. Então, eu quero (palmas)… Eu quero agradecer de coração, assim, o Itaú Cultural, a Dalva que eu não conheço, e todas as pessoas presentes, pela qualidade, pelo espaço. E colocar essa questão, assim, pras pessoas pensarem o que é esse privilégio. Uns amigos falam: “Mas eu não tenho privilégio de ser branco!” Eu falo: você tem avô, avó? “Tenho”. Então você já é branco, porque a maioria dos negros não conhecem os avós. Você pode andar na rua sem a polícia… o carro da polícia pelo menos parar um pouquinho pra dar uma olhada em você? Ele nem sabe o que é isso. Você para um táxi e ele para? Ele nem sabe o que é isso. Então, você tem um monte de privilégio de ser branco. Só que você tem o privilégio do privilégio de nem pensar nos seus privilégios. Porque tá desde 1930 uma técnica, um critério estabelecido lá na Europa que foi assim, que não tinha nada a ver com isso. Mas toca na nossa pele natural, no nosso cabelo normal, todos os dias, com todos os taxistas, com todas as polícias, com todos os porteiros e seguranças de loja. Então, esses critérios têm que ser revistos na medida em que a gente consegue ter voz. E aí, só pra falar: eu, se eu não me engano, “A Mulher do Trem” foi pro CEU  em 2003. Eu acho que foi, e eu era coordenador de cultura. E é tão bom ter esse espetáculo, porque a gente não sabe (até) onde o racismo é profundo dentro da gente. Eram três coordenadores negros e ninguém percebeu isso à época, pra sequer comentar. Essa juventude que vem já aí, bem depois, que bom que tá falando. Então é muito bom, porque a gente também naturaliza o racismo dentro da gente. Naquela época ninguém percebeu isso. Obrigado.

Fernando Neves – Posso falar uma coisa pra ele? Você sabe que uma das questões… A gente falou: meu deus, tantos anos. E ninguém, ninguém chegou pra gente e falou: “Ó, tem que rever porque acontece isso”. Entendeu? Isso que foi o maior espanto. Quando ela sai do baú agora, 10 anos depois, é um choque. Entendeu? Você… é isso. Que a gente nem percebe o que é que tá acontecendo. Foi bom você ter falado isso. Porque a gente falou entre a gente: ninguém vai falar nada? Ninguém falou nada, mas até agora… e agora? É agora, né. É agora.

Gilberto (plateia) – Boa noite. Meu nome é Gilberto e eu queria primeiro… Eu escrevi aqui o que eu vou falar, pra não me perder. Primeiro, eu queria agradecer a fala do Fernando Neves, porque eu fiquei muito feliz na fala dele enquanto como a gente se revê. Como é que a gente se revê o tempo todo e percebe as nossas próprias contradições. Eu sou de Guarulhos e… há uns meses atrás eu tava indo dar aula numa das margens de Guarulhos que eu fui, e com fome eu parei pra comer em uma padaria. E na hora que eu entrei na padaria, era uma padaria incrível, de mármore, eu falei: “Que padaria incrível! No meio do nada, aqui, tá passando estrada de terra e tem uma padaria incrível aqui que podia tá aqui na Paulista!”. E eu, comendo, cinco minutos depois, eu pensei: “Mas por que não pode ter uma padaria desta aqui?”. E aí fiquei pensando como é que eu caí na minha própria contradição, de ficar pensando que não pode ter uma padaria muito legal na Vila Carmela? Por isso eu tô muito contente com a sua fala, pensando… Eu entendi agora por que vocês pararam com o espetáculo, porque eu tinha pensado em casa que o primeiro erro foi cancelar o espetáculo. Achei que eu devia ter assistido ele e não tive essa oportunidade. Talvez eu vou ter. Eu queria… Não sei se é uma pergunta, mas uma colocação… perguntar: qual é a carga intelectual que uma pessoa tem que ter pra assistir esse espetáculo se tratando dessas máscaras? Porque, assim… nenhuma… eu não sei… porque… quando tem uma explicação sobre a trajetória da máscara… Eu desconheço a trajetória da máscara do circo-teatro e do circo. O que eu vejo, quando eu chego pra assistir o espetáculo, é o “blackface”. É a carga que eu tenho no século 21. Eu não tenho essa carga da trajetória.

Fernando Neves –  Por isso que ela tem que sair de cena.

Gilberto (plateia) – E aí eu fico pensando qual é a carga que uma pessoa tem que ter. E aí ia perguntar pro professor Mário – perguntar, não, queria que ele explicasse melhor, porque eu não consegui entender – quando ele colocou que existe a “máscara negra” e a “máscara natural”. Queria que depois ele explicasse melhor sobre isso. (manifestação do público) É, porque ele falou: existem as máscaras, a “máscara negra” e a “máscara natural”. Depois ele podia discorrer melhor e explicar um pouco sobre isso, porque eu, realmente, não consegui entender. E aí, só pra finalizar, como as coisas não são por acaso, eu tava estudando hoje – hoje -, estudando o livro do Flávio Desgranges. E aí ele tem uma citação em que ele fala de a “Mulher do Trem”. Eu queria ler. É muito curtinho. Por favor? Ele fala que “Os Fofos” participaram de uma circulação – é um capítulo específico em que ele fala de formação de público. E “Os Fofos” participaram de uma circulação em que eles passaram por todos os CEUs. “Na ocasião, em 2004, participavam do projeto de formação de público que vinha sendo desenvolvido pela Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo. No palco, os atores acabaram de apresentar “A Mulher do Trem”, inspirada na linguagem de circo-teatro. A encenação, em outras tantas outras propostas, valia-se do seguinte recurso cômico que provocava muitos risos na plateia: cada vez que um personagem branco cruzava com um dos personagens negros tomava um susto escandaloso. Ou tapava os olhos com as mãos quando se via na presença ou na proximidade visual daquele negro… fosse demasiado cômico. Terminado o espetáculo, como era de costume nesse projeto, foi proposto um debate entre os atores e espectadores. Foi nesse momento que eu vi minha espectadora…” Ele tá falando de uma mulher em específico. “A senhora negra perguntou a um dos atores, também negro, como foi dito, que fazia o papel de empregada da família, como ele se sentia representando um personagem que era tratado daquela forma pelos seus patrões. O ator, por sua vez, saiu do assunto, e começou a falar de outros trabalhos teatrais que já tinha realizado que se assemelhavam àquela personagem, demonstrando não ter compreendido muito bem a pergunta daquela espectadora que, a bem verdade, teve muita dificuldade em formulá-la”. E aí ele discorre que a mulher realmente teve muita dificuldade em formular a pergunta. E em 2004 ela tava querendo dizer que aquilo… se aquilo não era um tanto racista? Isso num CEU, em 2004. Isso sai de um livro do Flávio Desgranges, “Pedagogia do Teatro: Provocação e Dialogismo”. Era isso o que eu tinha pra falar (palmas).

Eugênio – Vamos passar aqui pros debatedores nessa primeira rodada. Eu vou incluir aqui uma pergunta pro Mário Bolognesi, então tem essa questão da máscara. Eu acho que o primeiro depoimento em relação aquilo, quem quiser comentar, se o Salloma quiser comentar, ou o Dennis quiser comentar, Roberta, Stephanie, eu tô achando que seria melhor, ou seria mais plausível que vocês comentassem, mas está aberto pra mesa inteira. Essa pergunta é específica do Mário Bolognesi. Eu vou acrescentar uma outra pergunta, que é geral pra mesa, e quem quiser responder, responde. “Quero fazer uma pergunta aos estudiosos do teatro. Como é possível desvincular o significado de um símbolo da sua constituição histórica, em nome da estética? Quando será pensado por vocês – aí eu acho que são os pensadores do teatro – o teatro do século 21 em diálogo com as tradições e também com as especificidades do pensamento que contam?” É isso. (…) Uma outra pergunta, que é uma pergunta-provocação – e aí eu já digo que é uma pergunta-provocação… Mas é uma provocação? É, uma provocação. (…) “Quem se vitimiza mais: brancos que não se responsabilizam por seus atos racistas, ou negros que só reclamam da agressão racista?” Agora entenderam que é uma provocação. Então…é (risos). A gente pode começar… é…ou um pouco mais. Pode começar com Mário, depois a gente vai pras provocações.

Mário – Gilberto né? Gilberto, muito boa a sua questão. Se eu falei, foi por equívoco. Não existe “máscara natural”. Toda máscara é antinatural, ela é artificial, ela é resultado de artifício. E ela nunca é reflexo imediato da realidade. Não passa pelo teatro de convenção e pelo teatro de máscaras a ideia do espelho da realidade, mas sim de um reflexionar a respeito da realidade. Não é? Então são parâmetros muito diversos.  Se eu colocar o parâmetro do reflexo como o preponderante, eu só terei teatro naturalista de matriz psicológica dominante. E não precisa estudar pra ir ver teatro de convenção, não. A convenção é dada no próprio ato teatral. Não é? Algo do gênero: esta minha mão é um homem branco (levanta a mão esquerda), e esta minha mão (levanta a mão direita) é um homem negro. Tudo bem? Tudo bem! Vamos dialogar. Está dado o jogo entre nós. Não sei se respondi… A outra pergunta é um pouco mais complexa. Esse diálogo do presente com a tradição sempre existiu e sempre existe. Isso que “Os Fofos” fizeram com o projeto “Baú da Arethuzza” é um exemplo disso. Tem, inclusive, o mérito de trazer pra nós, aqui na atualidade, a seguinte constatação: como é que se fazia e o que é que se fazia nos anos… há 100 anos atrás…100, 80 anos atrás. Tem, portanto, um papel histórico importantíssimo, não é? De resgatar essas formas de fazer teatral que são essencialmente convencionais, ou seja, que se fundamentam na convenção. Insisto nisso, não é? E não na naturalização, ok? Esta forma, esse trabalho histórico que eles fazem, eles tiveram sempre a preocupação com esse aspecto moral, porque as sobras elas têm datas, elas ultrapassam estas datas, mas elas carregam marcas da data de sua criação. Eu vou dar um outro exemplo: a peça “O Ferro em Brasa” tem – que eles montaram, que eles foram recuperar do repertório do Arethuzza – tem um final que é hiper problemático, que era um discurso hiper machista. O que eles fizeram? Mudaram completamente esse final, de forma a esvaecer essa ação preconceituosa que era dada naquele discurso, ok? Então, esse diálogo está sempre presente. Eu acho que este encontro aqui, esta motivação, esta percepção provocada a partir da foto do espetáculo já é sintoma disso. E o Fernando acho que respondeu melhor essa questão, eles já estão reelaborando. Eu só gostaria de reafirmar uma vez mais: não se trata de “blackface”. “Blackface” é um outro registro, um outro tipo de manifestação teatral.

Eugênio – Só lembrei de uma coisa, que na primeira pergunta também tem uma citação, há uma provocação direta ao Aimar, se você quiser responder, você responde. Se não quiser responder, também não responde. Mas vamos passar à primeira consideração, né? Alguém quer comentar essa… a primeira pergunta, ou… Por favor, o professor Dennis, então.

Dennis – Da Rosane Borges, né? A pergunta é sobre o ônus da representação.

Eugênio – Exatamente.

Dennis – Grande amiga, colega lá da ECA. Eu acho que a questão da representação é um pouco o que eu cheguei a comentar rapidamente na minha fala. Ela coloca lugares definidos pros sujeitos em uma sociedade. E uma das manifestações mais perversas do racismo brasileiro é que ele cria lugares permitidos e lugares proibidos, né. Não no sentido de uma segregação territorial explícita, como aconteceu, por exemplo, na política do apartheid, na África do Sul, mas… Isso acontece também, evidentemente – a gente percebe nas periferias como funciona. Mas, mais do que isso, ela reserva lugares simbolicamente construídos. E o ônus da representação – eu acho que a Stephanie colocou muito bem -, quando você estabelece uma série de significados para a representação racista do homem negro e da mulher negra, você vai definindo, você vai cristalizando lugares. E o grande problema, a grande questão que acontece quando você tem um movimento contra o racismo, quando há esta luta contra estas representações consolidadas, é que isso implica deslocamento não só daquela população que tá reclamando da representação da população negra, mas também obriga um deslocamento de posição do sujeito branco, do homem branco e da mulher branca. E esse incômodo que é gerado. Porque é importante que a gente… Muitas vezes a gente tem uma incompreensão de achar que o racismo é meramente um comportamento desviante, uma deformação de comportamento, uma ignorância. Mas o racismo eu entendo como uma prática extremamente sofisticada, por isso tá no poder até hoje. Tem uma lógica. Ela tem uma funcionalidade. Tem uma funcionalidade. E evidente, né, que, quem tem os privilégios, está tão acostumado com os privilégios, que considera esses privilégios como naturalmente dados. E à medida que você questiona, e demonstra os privilégios, há um incômodo gerado. Entendo, assim, que o ônus da representação, a luta contra esse imaginário, implica efetivamente você primeiramente explicitá-los – aquilo que a Nancy Fraser fala – reconhecê-los, reivindicar uma equidade e buscar a representação. Sem isso – que implica deslocamentos, implica conflitos, brigas, incômodos, mal-estares, isso vai ser gerado mesmo, porque são mudanças -, não há possibilidade efetiva de mudar o ônus da representação. E acredito que aqueles que são os responsáveis da construção das formas simbólicas – comunicadores, artistas – têm especial responsabilidade com isto. Eu vejo que, muitas vezes, esta reivindicação de uma plena liberdade – falo isto tranquilamente, porque eu sou jornalista, sou comunicador e sou professor de Jornalismo -, né, essa reivindicação de uma plena liberdade de expressão, que muitas vezes chega a situações tão estranhas, né? Porque nenhum direito civil ele é absoluto, nenhum direito à vida é absoluto, porque você pode reivindicar a legitima defesa pra tirar a vida do outro, né? Quando você absolutiza, direito significa privilégio. Então, o ônus da representação parte, principalmente, daqueles que são responsáveis da construção das formas simbólicas de abrir mão desse privilégio de achar que são donos da voz.

Stephanie – Então… Eu queria ressaltar que é, sim, “blackface”. Porque a gente tá entrando nessa questão de novo de quem tá pautando o que é racismo e o que não é. E assim: quem tá pautando o que é racismo somos nós, negros, nós vivenciamos isso, nós sabemos o que é e o que não é. E aí entra na questão do imaginário. Qual é o imaginário que é criado na nossa cabeça desde criança? Que a gente praticamente não existe. Porque, quando você liga a tevê e vê a Xuxa com as suas Paquitas loiras, você não vai querer ser negra, você não vai querer ter o cabelo crespo, você não vai querer ter a pele que você tem. Quando você vai na escola e as pessoas te chamam de “macaca”, os meninos da festa junina não querem dançar com você, não querem tirar foto com você, é esse imaginário que tá sendo criado pelas pessoas na mídia, na arte, onde quer que seja, que tá interferindo na nossa vida todo dia, desde quando você nasce até quando você morre. Então, essa questão do imaginário, essa arma política racista, é exatamente esse ciclo. Primeiro, você cria o imaginário de que o negro ele não existe, ou de que ele não é capaz, ou de que ele não é bom o bastante, ou de que ele…sabe? Ou de que ele é a pior coisa que existe…  Aí o negro que vê isso, ele não quer ser negro. O negro que vê isso, às vezes ele nega a sua própria negritude, que é uma arma racista brasileira muito forte, que é o negro não se ver como negro. E aí naquela questão da provocação… Ah, um negro reagindo, ou é o negro que não reage ao racismo. Às vezes dá raiva? Dá. Sabe? Às vezes, eu vejo uma pessoa negra, tipo: “Ah, meu deus, isso é racismo. E.. Ai, vocês são vitimistas” Mas imagina o que é ser negro no Brasil. Imagina o que é crescer com esse imaginário. Imagina o que é crescer com pessoas dizendo que racismo não existe, que democracia racial é o que pauta o país. É óbvio que na cabeça de muitas pessoas negras, por mais que elas vivam o racismo todo dia, inclusive pelo status social que ela exerce na sociedade, ela às vezes não enxerga o racismo. Diferente do branco, uma pessoa negra que não enxerga o racismo não tem privilégio nenhum. Uma pessoa branca que se nega a ver o racismo na sociedade tá exercendo o máximo do seu privilégio. Então, não tem como a gente comparar. Não tem uma simetria, pelo menos na minha concepção de mundo, essa questão entre o negro que talvez não lute, e o branco que talvez ache que ele é a maior vítima quando ele é questionado sobre a questão. E, principalmente, focando nessa questão do imaginário que a gente tá aqui discutindo, a arte e a sociedade. Então, a arte e a sociedade é um ciclo. Qual é a representação que a gente tá vendo da mulher negra atualmente? Quantas novelas que passam atualmente têm personagens negras? A gente tá vendo hoje… Ontem estreou uma novela, que é pautada na favela, que tem brancos, entendeu? Então, até quando eles vão representar o que seria o território que o branco já impôs pro negro, eles te tiram daquele espaço, eles não querem te ver, você não tem espaço nem na televisão pra ser o que eles querem… pra ser o que eles impuseram o que você seja. Então, é isso o que eu acho que a gente tem que começar a trabalhar. Esse olhar, essa questão do imaginário, é muito ampla, e ela tem consequências na nossa vida, todo dia. Hoje mesmo eu entrei numa loja e, assim, a mulher que atende na loja – tem uma mulher que fica na frente da loja –, e aí, eu entrei, ela não falou nada. Entrou uma mulher loira, dois minutos depois ela falou: “Bom dia, cliente, seja bem-vinda”. Aí eu pensei: será que eu não sou cliente? Ou será que eu não posso estar nesse espaço? E esse imaginário, essas coisas vão entrando na nossa cabeça, e não é à toa que hoje a população negra sofra de depressão. Não é à toa que a população negra esteja não só morrendo na mão da polícia, mas esteja morrendo nas doenças psicológicas. Porque o racismo ele mata das mais diversas formas. Então, é isso o que a gente tem que começar a discutir. Então, eu só queria falar isso mesmo.

Eugênio – Só uma coisa. A gente já passou de duas horas. E a gente vai precisar desse acordo de tentar ser mais sintético nas respostas, senão a gente não consegue fazer a minha proposta de ser equânime o tempo da plateia e o tempo nosso de responder as questões. Nada em particular. Tem muitas perguntas aqui. Eu tô fazendo um processo seletivo, porque se eu for perguntar tudo não dá tempo. Tem 10 inscritos. Tá. Então, a gente vai fazer em blocos de três. Você quer responder (dirigindo-se à Aimar)?

Aimar – Não, eu abro mão. Como eu vou ter fala no final…

Eugênio – Então tá bom. Então, vamos lá. Três perguntas, tentando ser o mais sintético possível. E eu sei que isso é difícil.

Salloma – Mas aquela específica da vitimização ainda tá em pauta?

Eugênio – Tá em pauta. Vamos escutar essas três perguntas. Você pode responder primeiro, Salloma. Pode ser?

Salloma – Tá bom.

Eugênio – A vitimização é aquela que a Stephanie começou a responder. Você quer…É esta daqui? Quem vitimaliza mais? É isso?  É isso mesmo. Então tá bom.

Augusto (plateia) – Boa noite a todos, meu nome é Augusto (…). Eu sou ator e diretor aqui em São Paulo, no Teatro Comunne, aqui na Consolação. Enfim… E gostaria de dizer algumas coisas, quer dizer, tentar colaborar um pouco nesse debate, nessa conversa. Acho que não é fácil essa conversa. Acho que é bastante complexa. Sinto a questão toda da situação do negro no Brasil, quer dizer… e da situação de todos no Brasil, porque nós somos um país de 500 anos de exploração. Exploração de tudo, inclusive do próprio país. Então, acho que nós somos todos muito explorados. Todos que vieram pra cá, sejam imigrantes, sejam negros, mas entendo e compreendo muito essa questão. Mas acho que é assim: eu queria fazer uma reflexão um pouco com o que o Mário falou do teatro.  Primeiro, assim: acho que uma questão que pra mim é importante: o fato de a gente estar discutindo uma peça que nem todo mundo viu, assistiu, é uma situação interessante, importante de se ressaltar, porque eu acho que deveria ser vista. Em primeiro lugar é isso: acho que o espetáculo deveria ser visto, né, até pra você ter um olhar sobre o fenômeno teatral. Não dá pra avaliar o teatro pela foto no site, ou por uma microcena no Facebook. Não dá. Não dá pra avaliar a dimensão, seja racista ou não, seja o que for. Não dá pra avaliar a dimensão do fenômeno teatral neste contexto. Não dá. Então, assim: primeira coisa, eu acho que devia haver um outro momento, Fernando, onde houvesse o espetáculo, e um debate após. Pras pessoas poderem falar: acho isso, acho aquilo. Ah, não acho, concordo, tal e tal. E ver. E ver, e perceber isso in loco. Então, isso é uma questão. A segunda, a própria mobilização, a questão da rede hoje, quer dizer, das coisas se transformarem numa… volatilidade, uma fugacidade imensa, né, e, assim, as pessoas começarem a tomar partido assim… e até chegar ao ponto do cancelamento do espetáculo. Não tô aqui dizendo que seja justo ou injusto, gente, tô dizendo assim, que as coisas hoje funcionam assim, né. A gente pode, de repente, destruir a reputação de uma pessoa, da noite pro dia, na Internet. Então, assim, acho que a gente tem que observar… que esse fenômeno tem que ser cuidadoso. Que a gente tem que olhar pra isso. Tem o bom da Internet, que é maravilhoso, que é o Facebook e as redes, mas tem uma questão muito perigosa aí, do ponto de vista de simplesmente, sumariamente, decretar que aquilo é nocivo e acabou, e nós sepultamos aquilo. Eu queria dizer, em relação ao personagem, esse personagem da comédia, né, que… assim, eu estudei, eu fiz o Mestrado na USP sobre o Arlequino, que é personagem que usa uma máscara negra na Commedia dell’arte, quer dizer, ou vermelha, ou negra, ou escura, no mínimo escura, né, e o Dario Fo, que é um dramaturgo italiano, que ganhou o Nobel de Literatura, e o Arlequino, a Commedia dell’arte, e a dramaturgia do Dario Fo. Por isso que eu vou entrar um pouco nesse tema, queria falar do Mário, porque, de fato, o Mário tem razão. Eu acho que, assim, essa personagem, ela se remete não ao “blackface”, mas a 400, 500 anos de história, né, dessa máscara, que é uma máscara extremamente primitiva, que remete, inclusive, na história da Commedia dell’arte, na história desse teatro (alguém grita na plateia: “Chega”…), aos diálogos medievais. Quer dizer, vem dessa origem, entendeu? Quer dizer, então assim: nós não estamos falando do negro, nós estamos falando de uma questão arquetípica (público fica inquieto, se manifesta). Não, deixa eu…vou concluir, vou concluir. Deixa eu terminar, ué. É uma forma de pensar. Então, assim… Eu acho que a questão assim… O mais curioso é assim: essa personagem lá tem uma força dramatúrgica e afetiva extremamente potente. As duas personagens. E, inclusive, as pessoas se apaixonam por elas. As pessoas que vão ver o espetáculo não se apaixonam pelas outras personagens, se apaixonam por essas personagens. Pela força cômica, satírica e potente que elas têm de satirizar o poder que é o lado burguês da família. Então, assim: cuidado só pra não olhar por esse lado só da representação e não ver a função cênica que essas personagens têm, transformadoras e subversivas, né, ao conseguir satirizar. E, lembrando: hoje a sátira está exatamente num perigo, como sempre esteve, é um perigo muito grande, porque, hoje, satirizar, você pode ser morto. Como foi o pessoal lá da França, né, que satirizou Maomé…. (protestos da plateia para que ele acabe logo)

Eugenio – Concluindo, por favor.

Augusto – Eu gostaria assim só de colocar isso pro Mário…

Eugênio – Concluindo…

Augusto – Se o Mário puder falar mais alguma coisa dessa herança do Arlequino, da personagem arlequinesca, né, da personagem, e dizer que essa questão da convenção é muito séria no teatro, porque tem aí uma força potente de criatividade, de fertilidade, de fertilizar, né, de trazer vida, que é muito forte, nessa figura. (palmas)

Eugênio – Próxima pergunta, colocação…

Lucas (plateia) – Boa noite, meu nome é Lucas. Eu acho que é muito importante esse debate assim, mas… eu pouco sei das coisas, né, acho que a gente erra muito na vida… Mas…o pouco que eu sei, assim, eu não sei se eu agradeço ao Itaú por estar promovendo isso… (palmas e manifestações na plateia) Não é nem uma pergunta, assim, é mais uma reflexão, assim. Só pra colocar mais tempero na sopa e fomentar o debate. Porque é pelo próprio papel que desempenham os bancos na nossa sociedade. E talvez, justamente por ter essa segregação, então eu não sei… Aí eu vejo isso, e vejo Itaú Cultural… Então, enfim, só pra que o Itaú não paute essa discussão, e nós pautemos essa discussão (palmas). E só pra acrescentar mais uma coisa também, pra fomentar, sei lá… que a gente coloque também uma perspectiva de classe nessa discussão, pra que a gente não fique brigando entre nós, então daqui a pouco tá o Movimento das Vadias brigando com a Legalização, com não sei o quê…

(Alguém diz: “Você é maravilhoso!”) Vocês é que são. É isso, é isso, é isso (palmas).

Eugênio – Stephanie, a gente vai responder. Mais uma pergunta e a gente já passa…

Mulher (da plateia, não se identifica) – Oi, eu vou tentar ser bem breve, mas eu não queria perder a deixa dele. É assim, a meu ver a gente tá aqui pra discutir arte e sociedade, e até agora praticamente a gente só discutiu sociedade, porque, claro que a gente poderia aqui… Eu sou filha de negros, o meu pai é negro e a minha mãe ucraniana. Então, assim, eu tenho uma questão bem… 50% mesmo, então já sofri uma série de preconceitos, enfim, não vou me alongar. Mas eu acho muito complicado a gente dissociar o cancelamento da peça com o debate que tá acontecendo aqui. No meu entender, esse debate só está acontecendo porque a peça foi cancelada, né? (palmas) E… então, assim, o cancelamento… é provável que sem o cancelamento da peça esse debate não estivesse acontecendo. Então, assim, a minha pergunta é… eu tenho uma pergunta pra Stephanie, que é a grande pessoa que moveu tudo isso, acho que tudo o que ela falou, assim… dói no meu coração, até não quero nem falar muito porque eu me emociono, realmente, com a causa, porque eu sou parte disso. E uma outra pergunta pro Aimar, que tocou… a gente tentou não dissociar o racismo do cancelamento da peça, e tal, mas eu acho difícil isso. Então, como ele foi a pessoa que tocou nesse assunto no começo, a pergunta é pra ele.  Como que a gente vai representar a tragédia que o negro passou, e passa até hoje, se a gente também não puder representar o cômico? Né? Porque eu, como venho de famílias de negro também, eu já vi diversas vezes entre os meus tios pretos, todo mundo fazendo piada de preto entre eles. Então, quer dizer: humor também existe, né (comentários da plateia…). Então é uma questão também da visão (manifestações na plateia)… Desculpa, gente, deixa eu concluir. Então também acho que é uma visão da questão do negro sobre o próprio negro, né. Então, a minha pergunta pra Stephanie é a seguinte: se você acha válido o cancelamento da peça, se você acha válido a gente, em detrimento de uma liberdade pra defender outra… Porque eu, como artista – eu sou atriz também –, eu fiquei muito triste com o cancelamento da peça. Eu só tô aqui no debate porque a peça foi cancelada. Então se você acha válido esse debate, né, se você acha que não seria mais interessante realmente se esse debate acontecesse depois da apresentação da peça, porque aí a gente teria também muito mais elementos pra discutir, e, pro Aimar, a minha pergunta é: como, a partir da abertura deste precedente de a peça ter sido cancelada pra dar lugar a esse debate, que é seríssimo, quer dizer, a gente já deveria ter lugar pra esse debate sem cancelar a peça, como que a abertura desse precedente, como será  possível – e isso pro Fernando também –, como será possível ressignificar toda a história do negro? Quer dizer, vai ser retirada… Me deixa triste, muito triste isso, que essa máscara seja retirada, então, da peça, pra ela poder ser ressignificada. Então, como que nós vamos fazer isso a partir de agora, desse momento histórico, como que vai ser ressignificada toda essa história?

Eugênio – Vamos…. (risos na plateia) Vamos com calma. Desculpa, gente, porque até eu tô com vontade de responder, porque… realmente… realmente tem certas coisas que são… são…absurdas!

Plateia – Responde! Responde! Responde!

Eugênio – Jovens amigos, assim: aí vai falar assim que realmente não dá. (Referindo-se à Augusto) Há 500 anos existia racismo também. Essa visão dessa máscara pode não ser “blackface”, mas ela vem construída a partir do ideário racista, que é a destituição do outro. E pra pergunta, assim… tem a história das classes, né? O Florestan Fernandes, o negro na sociedade de classes. A gente dissociar a discussão de classes… É verdade, a gente não pode dissociar. Mas, quando tinha escravidão, a escravidão determinou quem é a classe que não era nem proletária. Não precisa virar proletário genérico pra depois discutir a questão de classe. Então são complexas estas questões. Tô colocando isso aqui pra depois colocar mais tempero na sopa, mesmo. E outra coisa, entre a liberdade de expressão – o Aimar já sabe desta minha opinião –, o artigo que coloca, o artigo 5º, é assim. Não é direito inalienável, direito natural, nós vivermos com liberdade de expressão. Direito natural. Foi deus que deu. Não. Isso foi em luta. Em luta constante. O mesmo artigo, artigo 5º da Constituição Federal, que coloca no 13º inciso a liberdade de expressão é o mesmo que criminaliza o racismo, ou seja, para a lei esses dois direitos são equivalentes. Então não tem precedente nenhum sendo aberto aqui. E é muito maluco a gente falar cercear a liberdade de expressão quando a gente só tá falando sobre expressão, seja ela artística, seja ela da sociedade. E como a sociedade não tá dissociada da arte, a arte não está livre do ideário racista que formou este país. Ela não tá livre. Ela é mais uma parte. Ela pode negar esse ideário racista, ela pode combater esse ideário racista, ela pode reforçar o ideário racista. Ela pode se opor a ele veementemente. E realmente, gente, eu só tô falando isso porque eu fiquei realmente muito emocionado, porque o seguinte: nós somos de teatro. Teatro é relação. E relação com o quê? Com a própria arte? Entendeu? Não, é com a sociedade! É com o mundo que a gente vive. Quer dizer… vamos supor, não é o caso de “Os Fofos”. Eu tô dizendo porque eu tenho muito tranquilo. “Memória da Cana” é um espetáculo fundamental. Fundamental. Agora, eu sei que o Rafinha Bastos é racista. Então, pra criticar ele, eu tenho que ir até o espetáculo, sofrer racismo, e aí sair dele e falar? (aplausos) E a última coisa. Eu não sou exatamente (ri) um fã de instituições financeiras. Mas… um amigo meu falou: “É, Eugênio, você vai lá, né? E o Itaú Cultural vai sair de bonito”. Vai, vai. Porque nenhuma outra instituição teve coragem de fazer o que ele fez… é isso… É tão contraditório que a gente só tá discutindo isso não pelo cancelamento da peça, porque “Os Fofos” tiveram uma coragem tremenda, o Fernando teve uma coragem ímpar, e a instituição que normalmente neste país esconde, bota uma notinha bem bonitinha: “O espetáculo foi cancelado”. Nada. E a gente tá aqui, debatendo. E nesse ponto sou parecido com o MNU: tem que ocupar todos os espaços. Tá tudo aí pra nós, é só saber chegar. (palmas) Tá. Me controlando agora, vestindo a minha máscara de mediador (risos na plateia), eu preciso de uma função social, assim, desculpa. Me desculpa mesmo, pra todos os companheiros. Quem quer começar a responder? (risos) É.

Salloma – Eu gosto muito de conviver com o povo do teatro (risos).  A gente vai de um pico a outro em alguns minutos (ri). Mas é política, é identidade, é cultura artística, são relações raciais, é História do Brasil. Tá tudo aí, bacana (risos). Pode trazer a sua fatiação, o seu sistema de separação e tentar, né. Ver como é que se vai atuar com bisturi pra sistematizar o debate (ri, e segue lendo). Algumas perguntas ainda podem ser feitas à classe intelectual e artística paulista, logicamente sem esquecer o quanto esta é hegemonicamente branca. Branca porque controla as instituições de arte e cultura, porque controla os editais, porque controla os institutos culturais dos bancos e das empresas privadas. Em sendo uma tradição, a representação depreciativa do negro… Por ser uma tradição ela deve ser perpetuada? Eu entendo bem quando alguns intelectuais brancos, em debates com ativistas negros, ficam rijos. Porque eles obviamente estão sendo solapados nos seus lugares especiais. E é compreensível que eles evoquem a onda negra e o medo branco. Porque é isto que está posto. São relações de poder históricas que são assim, têm sido assim, mas podem mudar (ri). E é com isso que a gente tá sonhando, gente. Estamos sonhando com a mudança dos padrões das relações de poder. Não pensem vocês que nós estamos criando nossos filhos pra eles ocuparem os mesmos lugares com ratos andando entre as crianças. Não estamos. Fiquem espertos. Reajam mesmo. Se agarrem mesmo aos seus lugares. Aos seus postos. Nos institutos. Nas corporações. Nos ministérios. Até que ponto a classe artística intelectual hegemônica branca, e às vezes não branca no tom de pele, mas branca na forma de conceber arte e cultura, e também na forma de conceber o mundo, vai reagir de forma intelectualmente infantilizada? E se fechar sobre si mesma? E uma vez acuada no alto do seu castelo transparente de vidro translúcido (ri), vai gritar a plenos pulmões que “sua liberdade criativa está em risco!” (palmas)

Eugênio – Depois a Stephanie vai falar…

Salloma – Ah, e que a Internet e a rua tá cheia de negões e negonas raivosas querendo tomar o Itaú Cultural!!! (risos e palmas)

Stephanie – Eu acho que é sobre o negócio de a peça ter sido cancelada. Eu tô pondo a minha cara no sol e vou pôr de novo. Se tiver a peça, eu vou vir aqui gritar que eu acho a peça racista, gente. É inadmissível, pra mim, “blackface” em 2015. É inadmissível ele ter acabado de ler que uma mulher negra se incomodou em 2004 com a peça, e a gente ainda tá discutindo isso! Sabe? Acorda! Tem gente se incomodando! Tem gente que não gosta! Tem gente que tá cansada de ser representada da mesma forma racista! Se você não tá, gente, eu não posso fazer nada. Agora, eu tô, entendeu? (palmas) É muito simples!

Alguém da plateia faz uma pergunta (…), Stephanie responde: Acho! Tô pondo a minha cara aqui pra falar que eu acho válido! Gente, a gente não precisa assistir a uma peça pra entender o que é racismo, a partir do momento que aquele estereótipo de mulher tá sendo pautado na minha vida desde que eu nasci. Sabe? Se eu não sei o que é, então você também não sabe enquanto branco.

Alguém da plateia fala algo que não dá pra ouvir, há manifestações na plateia.

Stephanie – Paga a minha passagem que eu venho, gente! (risos e palmas) A minha mãe trabalha o dia inteiro pra eu fazer faculdade, entendeu? E a minha mãe é mãe solteira de duas filhas, ela não pode ficar pagando pra vim ver peça pra vaiar. Eu faço movimentação no Facebook, sim. A gente faz mobilização no Facebook, sim. Não é todo mundo que tem como ir pra rua toda hora. Não é todo mundo que tem condições de ir pra rua toda hora. A gente faz mobilização no Facebook e vai fazer sempre.

Alguém fala algo na plateia, Eugênio responde: Não, não.

Stephanie – Não. Não dá pra desvincular. Gente, não…

(manifestações na plateia)

Eugênio – Não dá pra legislar sobre o tema. Calma. Calma, né? Vamos ter calma nesse assunto. A gente vai legislar sobre qual é o tema que a gente tá discutindo? Tem um grupo aqui que pode dizer: esse tema pode, esse tema não pode. Esse tema tá racismo demais, vamos colocar um pouco de arte? Não dá, não pode ser desse jeito.

(manifestações na plateia)

Eugênio – Aliás, não é palestra mesmo. Porque não tem a menor condição de dar palestra. Mas é… faz parte, gente, faz parte. Entendeu? Mas calma, ainda tem, ó… Eu sei que tem gente que quer falar, o Aimar foi citado umas quatro vezes e ainda não falou, ele tem que falar. Eu sei, eu entendo, essa é a minha função. Obrigado, Max, por dar uma ajudada. Essa é minha função de tentar fazer isso, mas…

Aimar – Eu vou ser o mais breve possível, o que vai me obrigar a ser grosso. E direto. Então é assim. Primeiro lugar, respondendo à professora que, desculpe, eu esqueci o nome, que tava no fundo. É óbvio que eu reconheço e entendo a diferença entre a questão negra, a questão sexual e a questão da tortura. Quando eu coloco as três no mesmo lugar, e aí eu entro na segunda coisa que eu quero dizer, eu tô falando do meu ponto de vista. Eu realmente fiquei emocionado com o que a Stephanie falou, e com o que o companheiro falou, no sentido de que eu nunca vou saber o que é ser negro. Eu sou branco. E, apesar de ter nascido na extrema pobreza – não parece, mas é verdade –, eu tive uma série de sortes que, se eu fosse negro, eu não teria. Então, o meu ponto de vista é de classe média, branco, olhando pra minha realidade. E, desculpa, eu sou interlocutor também. Vocês vão ter que falar comigo também. Eu tenho que falar com vocês, vocês têm que falar comigo. Não acho que a gente seja tão diferente quanto parece. Do meu ponto de vista, a questão do racismo eu vejo de uma forma intelectual, eu não vejo de uma forma emocional. Meu nome é Labaki. Se eu morasse em Israel, provavelmente eu ia ter uma reação mais afetiva com a relação… com a questão. Não tenho. Eu sou branco, classe média, esse é meu ponto de vista. Por isso é que eu entendo e concordo quando você diz: não importa se é “blackface” ou não, é racismo. Da mesma forma, eu digo: não me importa se é racismo ou não, é censura. Não é censura nesse caso, inclusive porque eu tava errado. Eu, quando escrevi ali, eu achei que tinha sido censurado. Eu primeiro tinha achado que o grupo tinha… que o Itaú não queria fazer. E, depois, achava que o grupo é que tinha medrado. Eu falei: não, tem que bancar essa conversa, o que que é isso? Depois eu vi que eu tava errado, que realmente não ia ter a peça por outros motivos, e que o grupo falou: vamos fazer uma discussão, e o Itaú não só falou vamos fazer, como vamos… e aí foi. É isso o que a gente tá fazendo. Eu tava errado do ponto de vista factual. Eu não me considero errado do ponto de vista intelectual. Se você tira uma peça de cartaz, seja lá qual for, porque uma parte da população, por mais que seja a maior parte da população, não quer que ela aconteça, nós abrimos um precedente num país que é autoritário, num país onde não há tradição de liberdade de expressão, você acha… Você abre a Caixa de Pandora. Em seguida você vai ter os reacionários, você vai ter os militares, você vai ter o diabo a quatro querendo que as coisas não sejam apresentadas porque eles acham que não estão representados nela. Isso não significa que se deva calar a boca de ninguém, muito menos do Movimento Negro. Que se fale. Agora, você me desculpa, se você vaiar fora da sala, perfeito. Se você vaiar dentro da sala, eu acho que você vai estar desrespeitando o trabalho de quem tá aqui dentro. Eu não reconheço o direito de ninguém parar o trabalho de um trabalhador que tá aqui.

Stephanie – Tavam falando de liberdade de expressão até agora. Agora eu vaiar não é mais liberdade de expressão.

Aimar – Liberdade de expressão não significa impedir o trabalho dos outros, no meu entender. Então, desculpa, eu já fui mais grosso do que devia.

(Volta pra plateia)

Tatiana Godoi (plateia) – Oi, boa noite a todos. Meu nome é Tatiana Godoi, eu sou atriz, eu já trabalhei com o Fernando 15 anos atrás, no espetáculo “Miss Brasil 2000”. Eu era a Miss Bahia. Lembra? Faz aquele…você lembra, 15 anos atrás… Então, a questão é… foram muitas coisas. Como a Stephanie fala, ser negro é muito difícil. Ser mulher negra é muito pior, porque nós estamos na última escala da sociedade. É o homem branco, é a mulher branca, o homem negro e a mulher negra. Então, eu sou atriz desde os meus cinco anos de idade. Como que eu descobri que eu era atriz? Eu vou contar super rápido, eu não vou me demorar. Quando eu era pequena, foi na novela chamada “Como salvar meu casamento”, que tinha o personagem da Zita, e eu falava pra minha mãe que eu queria ser atriz, que eu queria ser como ela. E essa novela não teve final. Pra quem é dessa época, da TV Tupi, acabou a novela sem final, e eu cresci com esse sonho. Eu sou atriz até hoje. Estou com 40 anos e eu sou atriz até hoje. Só que lá atrás, quando eu era criança, eu já descobri que não seria fácil. Se não é fácil para um ator de cor branca, imagine para um ator de cor negra. Eu…nós, negros, vivemos isso até hoje. Por quê? É horrível quando você chega no local, num teste, e tá lá: perfil negro, ator de 20 a tantos anos. Por que, quando tem que ser ator, tem que ser ator negro? Ator é ator. Ator é ator. Então não tem essa de ator negro, ator branco (palmas). Aí fala assim: “Ah, mas por que não posso fazer Tchekhov? Por que eu não posso fazer Shakespeare? Por que eu não posso fazer Brecht? Então, assim… é complicado. Eu não sei que no começo do nosso encontro foi falado que…do CPD. Eu tentei entrar no CPD várias vezes, nunca dá, porque acho que só o único negro que o Antunes quer é o Geraldinho. Entendeu?  Não tem mais, não tem. (risos) Ali nem cota tem sem ser o Geraldinho, né. Tem os grupos que são compostos por atores de cor negra, né? Ator negro não existe na minha concepção, não existe nunca. É ator de cor branca, ator oriental, ator tcheco, lá da Ucrânia que ela falou, né? Enfim, então como é que nós podemos resolver isso? Aí falam: ah, mas vocês estão reclamando de uma coisa que tem não sei quantos anos. Não é. É que agora nós temos voz. Agora, com um clique, nós conseguimos mobilizar. Como a Stephanie falou, é difícil sair na rua. A maioria dos negros trabalham de segunda a segunda, oito horas, 10 horas por dia. Então, com um clique vamos mobilizar. E eu não acho que “ah, o Itaú foi legal”. É que nem amanhã. Amanhã vai fazer 127 anos apenas. A Princesa Isabel não foi legal, foi à base de pressão, como nós estamos fazendo aqui. Então o Itaú não é o bonzinho que está abrindo espaço. Sim! Porque agora, hoje na Internet isso custa dinheiro. É um grupo. Eu sei que um grupo renomado como “Os Fofos”, eu conheço o trabalho, só que, assim, precisamos mudar o quê? Na verdade, nem é pergunta. Precisamos mudar o quê? Quantos atores têm de cor negra em cada grupo? Com exceção dos grupos que já têm todos integrantes negros. Então, quantos têm? Por que, então, um ator do grupo… não colocaram uma atriz? Tem tantas atrizes desempregadas aqui, eu sou uma delas, por exemplo, entendeu? Eu sou uma delas. Então, assim, por que não colocaram um ator? Então pintasse também o negro de branco. Por que eu não posso fazer uma Rainha Elizabeth também pintada? É o que eu sempre escuto. Ah, não tem papel pra negro. Ah, não tem… Como acontece, é verdade. Se nem na favela nos querem! A próxima novela da Record quem vai ser uma escrava é mais clara que a Stephanie. Vão pintar ela pra ficar mais escura, pra ser escrava. Então, se nem na favela, se nem na escravidão nos querem, vão querer onde? Então, infelizmente, como nosso companheiro Max falou assim, não é através do barraco, eu não concordo com isso. É através do diálogo. O diálogo é assim: é boicotando, é falando e é clicando. E todas as vezes que realmente não nos sentirmos representados, que não somos mesmo, nós vamos fazer bagunça. Vamos fazer bagunça na forma de que possa acontecer essa reunião. Então, não é vitimismo, não é que somos coitadismo. Só queremos coisas iguais. Última coisa que eu vou falar: tem um desenhista chamado Maurício Pestana que ele faz várias charges. E uma da que eu mais gosto dele é a que a menina fala pro pai: “Ai, pai, acho que não quero mais ser atriz, não. Se tiver que lavar e cozinhar, eu faço aqui em casa mesmo”. Porque, infelizmente, é assim que a arte nos vê. (palmas)

Eugênio – Tem mais alguém aí em cima.

Gabriel (plateia) – Boa noite. É… é porque eu tô com cãibra, peraí… (risos na plateia)

Eugênio – Tava demorando, não é?

Gabriel – Segura o meu celular, por favor? (risos) Meu nome é Gabriel, e, como muitas pessoas, acredito eu, que vieram do trabalho, da escola, hoje eu acordei às seis horas, fui pra minha escola, saí quatro e 20 e vim pra cá. Eu gostaria de falar o seguinte: eu moro em periferia e eu tenho descendência fortemente negra na minha família. E eu vivo uma realidade que muitas pessoas dentro de um sistema racista privilegiado não vivem. Eu percebo que… por mais que não seja a intenção, ou intencionalmente, não sei, mas você precisa reconhecer quando você tem um ato, ou uma posição racista. E quando, dentro de um teatro, intitulado como….da sua parte, fala: mas eu quero fazer obra de arte, eu quero mostrar a minha arte, é o que eu penso, se tem uma pessoa preta, ali, sendo retratada, e ela não gostou daquilo, isso não tem que acontecer. E não é branco, e não é branca, pessoas brancas que precisam dizer se isso deve ou não deve acontecer. Existem pessoas, todos os dias, que vivem isso na pele. Quantas vezes dentro do Habib’s o segurança não fica olhando feio pra mim e pros meus amigos? Quantas vezes? E, se uma pessoa que tem vivência naquilo, fala: “Isso é racismo, eu vivo isso!”, o papel do opressor, como privilegiado, é falar: “Eu revejo meus privilégios e vou desconstruir a opressão que eu pratico sobre você”. Eu acho que isso é o principal. E assim, sobre a peça… o Movimento Negro, as pessoas negras não estão se vitimizando. Nós somos vítimas. Todos os dias somos vítimas. Quantas vezes a polícia já não parou eu, meus irmãos, minha mãe, meu padrasto? E o tratamento eu tenho certeza que não é o mesmo de que o playboy de Alphaville. Nunca é o mesmo. (palmas) Quando eu falo… e sobre a peça não acontecer. Pra mim: será que é válido? Pra mim é muito mais que válido. Eu… eu, de madrugada, falo: Stephanie, que horas que vai ser? Ela: chega 40 minutos antes, chega 40 minutos antes, e eu estudando, hoje… amanhã tenho trabalho, mas é importante eu estar aqui. É importante nós estarmos aqui. E, se for preciso mais uma vez eu estar aqui pra cancelar um teatro, uma peça racista, eu estarei, pode contar comigo. Estamos aqui, e nós, pessoas negras, vivemos todos os dias, respiramos todos os dias, acordamos todos os dias porque, primeiramente, nós resistimos. Obrigado.  (palmas)

Eugênio – Tem mais uma pergunta aí em cima.

Homem (na plateia, não se identifica) – Não é bem uma pergunta, mas um comentário que eu hei de fazer. A começar, eu acho necessário se repensar a atual contexto da dramaturgia brasileira, e de uma perspectiva descolonizadora. A atual perspectiva que a peça visara a nos mostrar aqui nesse palco foi extremamente mais um imaginário que decai muito bem à atual instituição que nós já conhecemos, que é aquela instituição de reproduzir a imagem que já conhecemos, de reproduzir o negro com toda a imagem íntegra, que ele atribui à não existência e ao vazio do negro nesse contexto social. Acho que a peça visava mais do que nunca, não nos pedia a necessidade de ver ela, mas simplesmente pela descrição que ela faz de um contexto histórico que incidiu sobre patamares raciais. Não era necessário nos dizer que temos que ver a peça. Era necessário que os próprios dramaturgistas, ou os diretores desta peça, repensassem quanto ao contexto (…) e como incide atualmente no Movimento ou mesmo na juventude negra. Ou no povo negro. Como esta peça visa a alcançar o negro, como esta peça visa a qualificar a imagem do negro que todos nós conhecemos. Mais do que nunca, discutir com alguém que sempre se considerou racista não muito difere querer dar comprimido a quem tá morto. Obrigado. (palmas)

Eugênio – Vamos fazer… depois o Mário também foi citado umas três vezes. Acho que é importante que ele fale. Só vamos terminar esse… Não foram per… foram colocações, vamos refletir sobre as colocações.

Raquel (plateia) – Oi, boa noite, eu sou Raquel e, apesar de ser a última questão, né, todo mundo meio que fez o que eu quero dizer. Que, primeiramente, quando a gente faz piada entre os próprios negros é autonegação. Eu me torno negra todos os dias. Eu nasci com a pele preta, mas eu me desconstruo. Então eu cresci com várias imagens estereotipadas e eu relaciono isso com o “blackface” que, independente da nomenclatura que ele venha durante os séculos, é a mesma coisa que o europeu fez aqui ao definir que os indígenas são índio; que os negros são negros. Nos… esqueceram….Esqueceram, não, ignoraram as nossas especificidades, as nossas diferenças. Eu e a Stephanie somos negras, mas eu sou diferente dela, ela é diferente de mim. Então, como o Abdias Nascimento disse: o racismo, ele é como um camaleão, a cada passar do tempo ele se transforma e a gente, às vezes, acaba não enxergando. Então é (…) a gente precisa rever o que queira se mostrar nessa imagem. O que esse personagem que, apesar de ser uma máscara, ele reduz a uma coisa só, e de tanto que a gente tenta lutar pra tirar essa imagem, a gente não aceita. Eu não quero mais ser só a doméstica. Eu quero ser o que eu sou hoje: formada, graduada pelo sistema de cotas, com muito orgulho. (palmas)

Eugênio – Mário, você comentar…

Mário – Duas observações bastante rápidas e pontuais. Primeiro, se ficou entendido aqui que eu tô defendendo a tradição e que ela deve ser posta tal como ela sempre aconteceu, por favor esqueçam, não tô defendendo nada disso. A tradição é sempre renovada. Segundo lugar: a provocação (…) que o Eugênio respondeu. Essa comicidade só dá com efeito de duplicidade, de contrários. E o autoritário, o racista, o inquisidor não é o segundo cômico, é o primeiro cômico. É o branco. É o branco, ok? Nesta peça em questão todas as demais personagens da família burguesa exercem o papel como se fosse o branco. E quem revela a situação hipócrita da família burguesa é o segundo cômico, é esta máscara. É esse segundo cômico. Então, nós estamos olhando a forma sem olhar o fundo. Não é? Eu concordo com o Eugênio. Existe na dupla cômica uma relação de autoridade, e às vezes de autoritarismo. Mas isso é exercido pelo branco, é  o Pierrô que faz isso, é o clown branco que faz isso. É o briguela que faz isso. Não é? Às vezes o Pantaleão. Ou, às vezes, o Capitão, etc. Mas não o segundo cômico. O segundo cômico, pelo contrário, ele navega, ele é oprimido, oprimido, oprimido, e dá o salto, e revela o autoritarismo. São apenas essas observações. (palmas)

Eugênio – Mais duas. Temos tempo pra mais duas perguntas e depois a gente vai voltar para a mesa para as considerações finais. E aí com um tempo bem reduzido, né.

Homem (na plateia, não se identifica) – Eu abro mão da pergunta. (…) Que o Itaú a partir de agora entenda que a questão do negro não é uma questão do negro, e sim da sociedade brasileira, de todos nós. Nós não precisamos que uma instituição nos paute como se fosse um feriado de novembro. Eu acho que é importante que, a partir de agora, entendendo que nós tivemos esse quórum gigantesco, um debate muito saudável, mas que nós possamos construir juntos uma agenda e uma pauta que seja anual, mensal, diária. Então eu acho que novembro nós temos muita programação e nós não podemos nos reduzir a um mero feriado. Agradecer mais uma vez o Fernando e todos os participantes da mesa, e dizer que a gente lutou muito, enquanto Movimento, pra que isso acontecesse da melhor forma, e acho que a gente conseguiu, por hora. E isso é um passo dado, agora é um caminho a ser percorrido (palmas). A última coisa. Eu acho que, se o Itaú deu um passo, e é um passo importante, e é um privilégio poder não agradecer a uma instituição financeira, e eu não tenho esse privilégio. Então eu preciso agradecer. Eu acho que a primeira coisa é pensar que esses terceirizados, eles precisam ser sensibilizados. Eu faço uso da biblioteca, da videoteca, e eu sou sempre – desculpa as costas – um estrangeiro aqui. Eu sou sempre alguém que ameaça o outro. Eu sou sempre um perigo em atividade. E eu gostaria de ser bem recebido. E eu acho que sensibilizar os terceirizados, os seguranças, que os jovens negros e os jovens periféricos são bem-vindos nesta instituição, é um passo primeiro. (palmas)

Homem (na plateia, não se identifica) – Nessa altura do campeonato, não se trata de fazer pergunta, mas eu só queria insistir sobre um ponto que apareceu na maior parte das falas, mas que é difícil explicitar. Porque eu sou Preto, Pobre, Pederasta e Professor (risos). Sou também marxista. Mas eu sou, nesta ordem, esses quatro “Ps”. E… eu entendi que o Preto vem antes de tudo isso no Brasil, e não só no Brasil. Acho que essa dimensão da cor, sempre que ela vem à tona, a gente recua. E esse recuo já não é mais possível. Eu acho que o que tá acontecendo aqui hoje é sinal de uma mudança estrutural no país que a gente não pode negligenciar e que diz respeito à sociedade, mas também ao teatro que nós fazemos, ao teatro de grupo. Me parece evidente a mudança, porque uma militante como ela, há 10 anos atrás, se existia, não estava nesses espaços ocupando esses espaços com a potência que ocupou hoje. Isso é sinal de que alguma coisa muito complexa está acontecendo neste país. E isso talvez coloque uma questão, que é exatamente por que a questão da “cor vem antes”. Talvez não seja… nós não estejamos num momento em que o que está em jogo para o negro seja a representação do negro. Na verdade, o que nós… o que você está dizendo é que não se trata de representar o negro, porque o negro, antes de mais nada, quer estar lá. Isso é um ponto. Não é uma questão de representação. A cor não se representa. É isto que, de certo modo, o “blackface” denuncia. Não é? Porque o negro é uma outra coisa, além da sua cor. São relações que estão em jogo e que talvez o teatro – e o teatro de grupo, especificamente – tenha tido dificuldade de elaborar. Eu digo isso porque, de fato, 10 anos atrás eu vi a peça. E isso não me passou. Mas o fato é que não houve um debate 10 anos atrás. E a ausência deste debate 10 anos atrás mostra que, em alguma medida, nós, 10 anos atrás tínhamos a ilusão de que estávamos falando de uma realidade. E talvez nós estivéssemos falando de outra coisa. Ou talvez até nós estivéssemos falando da realidade. O fato é que a realidade mudou e este teatro virou repertório. Tá na hora da gente se perguntar o que é que nós estamos conseguindo elaborar neste momento em que de fato uma mudança está acontecendo. Ela não aconteceu. Ela está acontecendo. E ela é perigosa. Ela é perigosa porque o outro existe. E eu também me defino pelo outro. E eu não posso, na minha lógica, reproduzir a lógica da supressão. Eu não estou com isso dizendo que nós vamos ouvir os brancos e eles vão nos pautar. Mas eu também… eu só tô querendo dizer que talvez a gente tenha, como negro, que ser capaz de elaborar uma imagem do branco. E nesse momento é que a sociedade muda. E acho que, talvez, o passo pra gente continuar debatendo junto, porque, enfim, isso me interessa por aquilo que eu faço, talvez o passo seja afirmar essa dimensão performativa daquilo que não se representa, porque é o que eu sou, mas também imaginar que sociedade é essa que está se construindo. Porque, quando eu vejo na Folha de São Paulo um jornalista cretino dizer que a sua atitude é politicamente correta, isso significa que, em algum lugar… em algum lugar, essa atitude pode ser desqualificada e cooptada como… enfim… Conheço a Sônia, conheço o Saron, já trabalhei com o Itaú Cultural, mas eu sei o risco que significa estarmos aqui. Eu sei. Então, se não é pra desqualificar como politicamente correto, e se não é pra cooptar, também não é pra suprimir. Então que sociedade é essa que a gente começa a imaginar a partir do momento que a gente diz: algumas coisas não se representam, algumas coisas são. Por outro lado, representação é política. E, nesse sentido, quem censura é Estado e patrocinador. Se o patrocinador está nos dando esse espaço, a pergunta…a pergunta talvez seja: neste contexto que é novo, como é que nós inventamos uma outra sociedade? Porque, como professor de História do Teatro Brasileiro eu não estou interessado em revisar a história do teatro brasileiro, eu estou interessado em inventar uma outra história. Acho que esse é o ponto. (palmas)

Eugênio – Eu quero fazer aqui… usar a prerrogativa que eu não usei de ser mediador e mediar alguma coisa que eu acho que… tem um outro integrante de “Os Fofos” que não tá aqui na mesa e que quer falar. E eu acho que ele tem que ter o direito de falar. E eu não vou perguntar pra todo mundo se todo mundo concorda, porque é uma questão… né?

Carlos (na plateia, membro de “Os Fofos Encenam”) – Meu nome é Carlos Ataide. Sou eu que tô naquela imagem. Eu não tenho Facebook.  Não vou fazer Facebook pra entrar em nenhuma discussão. Mas que seja rápido. José Fernando… cadê ele? Ó, fica aí um pouquinho. Você falou quatro coisas bastante legais. Eu sou preto, sou pobre, sou pederasta e sou professor. Eu acho essa discussão… Estrela D’Alva, muito obrigado porque a tua imagem, a tua discussão, a tua questão do esvaziamento pra mim é o que caracteriza tudo isso aqui. E a mobilidade. O perspectivismo, né, assim. Eu… eu…Você falou, Zé, que você primeiro é preto. Eu não era preto. Eu agradeço muito a possibilidade de me mover, me ressignificar e colocar essa questão na minha vida atualmente. Eu nunca coloquei a questão do preto na minha frente, mas a partir de agora, dentro do Movimento, do nosso trabalho, isso estava lá, caracterizado, como a questão de gênero estava caracterizada, mas agora isso passa a ser uma questão pra mim. Como eu vou trabalhar isso, representar, ressignificar, redimensionar. É um exercício. Agora, o que pra mim fica claro é o esvaziamento de todos nós, a mobilidade. São duas palavras que eu acho muito bacana, que a gente tem que levar dentro do coração de verdade. Porque não adianta a gente pautar que é racismo e não é censura. Não, é censura e não é racismo. Vamos parar com essa dicotomia. Todos nós somos brasileiros e eu, como nordestino, a Enedina tem um sotaque nordestino porque nós não botamos não, viu? É meu. Faz parte da minha história. E eu tô livre dentro de o “Os Fofos” a falar como eu sou. Isso é bacana, e eu acho que a gente tem que ser como a gente é, e é legal trazer agora. Temos que esvaziar e nos mover. Muito obrigado. Eu agradeço a possibilidade de me rever como pessoa, como cidadão, como indivíduo, como artista. Eu acho isso de uma grandeza profunda e, se todos saírem daqui com esse sentimento acho que a gente vai ressignificar tudo, absolutamente. Muito obrigado, agradeço a todos. (palmas)

Eugênio – A gente vai se encaminhar pro encerramento no sentido de que a gente precisa se encaminhar pro encerramento. (risos) A palavra vai… É, eu, por mim, ficava aqui a noite toda, mas…mas tem o metrô, tem uma série de outras coisas.  (…) Isso vai ser um processo continuado e, nesse processo continuado, eu acho que a gente tem que ocupar esse espaço. Esse espaço… liberdade não se dá, liberdade se conquista. Liberdade não é um princípio, liberdade é uma prática. Então, a gente tá exercendo o direito de liberdade de tensionar a corda. Eu vou passar a palavra aqui pra mesa, mas, antes de voltar pra mesa também tem… o Itaú foi citado diversas vezes, e claro que seria citado, porque evidentemente a gente tá aqui no Itaú Cultural. Vou passar a palavra pro Saron, que vai falar.  (riso)

Saron – Acho que tem algumas coisas a serem consideradas. Primeiro, de fato, desde o primeiro momento, a gente conversou com todos vocês. A gente se colocou… Muita gente pode não acreditar no que eu vou falar, mas, enfim… Eu acredito no que eu tô falando, e tem um monte de colaboradores aí, nos outros andares, que tão acompanhando isso muito de perto, desde o domingo anterior. Desde esse momento, quando a Stephanie postou e a gente começou a monitorar no sábado nas redes sociais, a gente perdeu… percebeu o caráter explosivo do post da Stephanie. Né? E desde aquele momento a gente começou a observar o quanto aquilo cresceria. E como cresceu, e é um fato, e eu faço questão de aqui, pra vocês e pra outras salas, declarar isso, a gente abertamente chamou o Fernando e “Os Fofos” no domingo pra gente se mobilizar e entender o que significava tudo isso. E desde o primeiro momento eu me lembro de duas palavras que a gente pegou como valor na construção deste momento. A primeira palavra: como é que a gente aprende com tudo isso? E a gente precisa aprender com tudo isso porque esta temática, e eu confesso a vocês, a nossa turma tá debatendo muito isso, não fazia parte de maneira efetiva, de maneira objetiva, de maneira clara, de maneira vertical dentro da organização, como passou a fazer a partir do post da Stephanie. E eu tô aqui, realmente, de coração, falando que a gente de fato encarou isso desde o primeiro momento como um aprendizado. A segunda coisa é: como é que a gente praticava a empatia com essa história toda? Eu nunca vou ser a Stephanie. Né? Eu nunca vou ser algum dos negros aqui. Eu sei disso. Eu tenho a clareza disso. Né? Porque isso é ser simpático, quando eu me coloco no lugar do outro. Mas ser empático é: como é que eu tento pelo menos me aproximar deste universo que vocês, negros, vivem, sem, naturalmente, perder a minha identidade, e como é que a gente, a partir desta organização, pode também praticar este campo de empatia? E aí, logo de cara, a gente perguntou: e aí, no Rumos tem negro na comissão? Era uma pergunta que a gente não fazia. A gente fazia se tinha mulher, se tinha região do Norte, mas negro, com clareza, a gente tinha. A gente foi lá… temos, mas precisamos reforçar. E o Observatório de Política Cultural do Itaú está fazendo alguma coisa sobre essa temática? Está traduzindo livros estrangeiros sobre essa temática? Está promovendo debates sobre isso? Está induzindo política pública sobre isso? E o Edital do Rumos? Como é que tá induzindo política pública, ou políticas de ações dentro do Itaú Cultural sobre isso? Então, respondendo aqui, claramente, nós estamos diante de um processo de aprendizado a partir desta relação que a gente pretende estabelecer uma empatia. Eu, que não sou negro, quero estabelecer uma empatia com isso e nós estamos mobilizando todo mundo. Nesta mesma sala, na quarta-feira, depois que a gente teve uma reunião pra discutir essa mesa, a gente chamou toda a turma do Itaú Cultural e falou: Olha, gente, esta não é uma questão de dar uma resposta à mídia, falar de comunicação, até porque, se fosse isso, talvez o melhor teria sido cancelar, né, de fato o espetáculo, não fazer o debate, e ter lá uma gritaria mais ou outra acolá, e passar por este assunto. Mas nós resolvemos bancar esta história. Não é porque a gente é bonzinho. É porque a gente entende que ou uma instituição deste tamanho se movimenta também nessa direção ou nós vamos ser atropelados. Nós temos claro isso. E que bom que a gente tá percebendo isso. Porque é só nesta perspectiva que a gente ajuda a construir, de alguma maneira, por meio da empatia e de um aprendizado, um olhar de fato mais objetivo a partir desta história toda. Com isto aqui eu não estou querendo me justificar, não estou querendo sensibilizá-los para o Itaú Cultural. Muitos de vocês já trabalham ou já trabalharam com o Itaú Cultural, a gente tem feito coisas muito legais. Nós vivemos um processo que não é parecido, mas é interessante, com o mesmo encaminhamento do ponto de vista formal, que foi o projeto do Mamaço, não sei se vocês acompanharam isso no passado, quando uma mãe queria amamentar aqui, teve um problema, não amamentou. A gente podia muito bem ter soltado uma nota. E nós não fizemos isso. Nós invertemos esse debate, até que – e nós não fomos o promotor final disso, nós fomos, de alguma forma, o catalisador – outro dia essa história do Mamaço virou lei no Congresso Nacional. Com isso, não tô dizendo que o Itaú Cultural foi o promotor, o grande que… difundiu essa história. Mas, de alguma forma, a gente catalisou. O novembro, nós estamos enxergando isso como um processo. A ideia é fazer um conjunto de fóruns, um conjunto de debates, e em novembro, porque tá toda a sociedade mobilizada em torno dessa questão, a gente vai fazer um grande seminário. Fazer isso aqui que a gente fez, em tão pouco tempo, e o Eugênio foi fundamental nessas histórias, e as pessoas estarem disponíveis a fazer isso, e os próprios “Fofos”, e o Fernando, foi algo incrivelmente genial. E foi muito incrivelmente genial porque as pessoas já estão previamente mobilizadas, né. Quando a gente chamou e construiu essa mesa em conjunto, a gente achou que nós não conseguiríamos reunir gente de tamanha envergadura, mas nós conseguimos. E, naquele momento, a gente falou assim: o Itaú Cultural não quer estar na mesa. Não quer estar na mesa porque não quer assumir a responsabilidade, porque mais uma vez nós nos colocamos no papel de aprendizado nesta perspectiva da empatia. Espero, sinceramente, que as pessoas tenham se sentido de alguma forma ouvidas pelas pessoas que estão aqui e espero sinceramente que vocês possam perceber, entender e fazer parte, com muita luta, com muita energia, eu não tenho a menor dúvida disso, deste processo que se inicia. Eu sei que já se iniciou em muitos outros momentos, e não culminou aqui porque o Itaú Cultural foi sacador, ao contrário, isso estava eclodindo. Na verdade, “Os Fofos” e a máscara foi um pontapé dessa história toda, foi um efeito disparador dessa história toda, mas espero que a gente possa estar iniciando, pelo menos por parte desta instituição, um processo de repensar todo o nosso diálogo com a questão do ativismo negro. Obrigado. (palmas)

Eugênio – Vamos voltar pra gente e pra fazer as colocações finais. Alguém deseja começar? Acho que não precisa sortear de novo, né? O rito já se cumpriu, né? Eu só não gostaria de eu ter que escolher a pessoa, porque aí fica meio, também…

Roberta – Eu posso ir, que eu tava… É de lá pra cá. Eu acho que esse processo aqui que a gente tá vivendo hoje é um processo de civilização das relações, de desnaturalização do que parece natural, né? A gente tem uma mediação das relações feita pelo… esse processo de democracia racial onde os preconceitos, o racismo tá interiorizado, e essas… as brincadeiras, uma coisa que parece indolor, que tá na norma do convívio social é… aparece, apareceu, e que bom que a gente tá conversando aqui. E alguém falou “não”, e esse falar “não”, na outra ponta, né… O que tem a ver isso aqui, essa não representação disso, ou quando alguém se recusa a ser chamado de “macaco”, como é o caso lá do Grafite, que a gente falou, ou os apelidos, a brincadeira. Ouvi muitas coisas na Internet que eram assim: “Ah, pô, mas daqui a pouco o bolo “Nega Maluca” vai ser chamado de bolo “Afrodescendente com Problemas Mentais”. Daqui a pouco não vai se poder falar nada. Daqui a pouco…” Né? Não. Porque nós estamos falando de gente morrendo. Em última instância, na ponta, nós estamos falando de vidas. Tem uma pesquisa de 2010 em que 80% dos crimes violentos praticados contra jovens, 80% dessas pessoas são negras. Então, mas se a gente começar nisso, vai dar numa guerra. A guerra já tá instaurada. (silêncio) A gente vai ficar escamoteando… Vai começar uma guerra? Já tá. E a população negra tá perdendo. É quem tá sendo morta. Então, começa num apelido, começa numa coisa assim, e vai pra uma coisa física. Ouvi uma história que um menino foi acusado numa escola de roubar o celular. Os amigos pegaram na saída, porque era o preto. Ele falou: “Eu não roubei”. “Roubou”. Deram porrada no moleque, quebraram um dente do moleque, o moleque ficou deformado, teve que mudar de escola, e o que acontece? Nada. No Facebook uma menina colocou uma foto. Deliberadamente várias pessoas – porque se o racismo é crime no Brasil, inafiançável, e as pessoas vão numa foto de uma menina e colocam: “Macaca. Volta pra África. Só pode ser…”, e coisas, né, que eu não preciso repetir aqui – , como é que pode? Uma pessoa por a cara dela. Como é que passa isso? Não passou. Aconteceu uma coisa que não passou. E… porque… como é que entra alguém… porque a consequência é o que a gente tá vendo aí no YouTube. É uma criança de 10 anos ser… né, negra, ser estourado os miolos em rede nacional. É o corpo físico que está… em ameaça. É a vida nua, o que é sacrificável. Então, parece exagero, mas a ponta é essa. Começa aqui, numa coisa que parece inocente, isso vai se acumulando, isso vai passando, e vai perdendo limites. (…) E chega no Flávio Ferreira Sant’Ana, que vai tirar o RG e é baleado, que é o motivo da Frente 3 de Fevereiro. Não tem a ver com classe social. Então nós estamos falando de gente morrendo. Eu gostaria muito de discutir a máscara, de discutir a… mas estamos falando de vida, de gente morrendo, juventude negra nesse país morrendo. Então é isso que tá em debate (aplausos). Então, não dá pra ficar tergiversando, e não falar do que realmente importa, que é gente morrendo. Então, vamos falar do básico. E obrigada aos “Fofos” por abrir o espaço. Eu tenho certeza que vocês têm consciência disso. Senão, antes o que era… por que o que é um negocinho na peça, um “negocinho” com aquele outro, com aquele outro, com o que tá ali… Isso tudo faz parte de um negócio maior. É relacional. Então que a gente consiga… Se a paz não for pra todos, ela não será pra ninguém. A gente tem que entender isso de uma vez por todas. (aplausos)

Salloma – Bom… Gente, olha. Muito bacana vocês virem, ficarem, ouvirem, discutirem, participarem. E eu creio que da minha parte também. Eu fico muito feliz. Eu esperei muito pra que… entender que talvez os brancos se sensibilizassem (ri) com o racismo antinegro. Esperei muito por isso. É um início. Não fiquem com tanto medo (risos). Agradeço aos Crespos por terem me convidado, agradeço à Stephanie por ter produzido essa… o fenômeno, agradeço aos “Fofos” por serem tão fofos (risos) e…

Fernando – Espero que não seja ironia…

Salloma – Não. É ironia. (risos) Porque, claro, mas é a força da linguagem. Não! Não… Primeiro eu vou lá, vou ver a peça, eu quero ver a peça. E me desculpe, professor que fez o Mestrado na USP (riso)… Isso! Me desculpe, mas eu te diria: não fique com tanto pânico. Porque a onda é negra, mesmo (risos e palmas). Obrigado a todos.

Stephanie –  Então, eu acho que uma das coisas que eu aprendi no meu curso esse ano, que uma arquiteta falou, era que a gente tinha que sair do nosso “meinho”. Porque os arquitetos são sempre assim: “Ai, nós!” Nossa, a gente fala com “nós”. A gente só fala sobre nós. E eu acho que eu fiquei em choque quando eu vi todo o debate sendo gerado no meio artístico e era assim: “Você não faz teatro, então você não fala sobre isso!”. Gente, é arte e sociedade, sim. Porque arte e sociedade estão inter-relacionados. E enquanto ser social, mulher, negra, nessa sociedade, eu vou ter voz, e quero ter voz, quero dar voz pras minhas, assim. E pros meus. Então eu acho que… eu gostei muito deste debate, principalmente porque a presença negra aqui foi muito marcante. E a gente percebeu que a gente se defende. E é isso mesmo. A gente vai pra frente, seja o que for. Pode ser o Itaú, pode ser “Os Fofos”, pode ser os “Não Fofos”, pode ser quem quer que seja. A gente tá aí, a gente vai continuar pautando sempre, e cada vez mais novo, e cada vez mais no Facebook, na rua, na fazenda, na casinha de sapé, onde for. É isso. Obrigada. (palmas)

Dennis – Bom, também queria agradecer a oportunidade. Eu estava vendo agora o Salloma e a Stephanie comentando, eu vi umas caras e bocas na plateia (ri). Né? É assim… é muito interessante, né, o Labaki falou o negócio de respeito. Acho interessante porque eu fico pensando assim: se não fossem as heresias, as malcriações, né, os desrespeitos, os incômodos, o mundo estaria muito parado, né? Se não fosse a heresia de Galileu, se não fosse o desrespeito à lei dos mártires de Chicago, se não fossem as rebeliões dos quilombolas, a gente estaria muito atrasado. Então, viva aí a rebelião, censura, seja lá o que for, da Stephanie, porque ela permitiu a gente estar aqui junto conversando. Incomodou muita gente? Incomodou. Mas os incômodos… quando a gente sai dos lugares de conforto é que a gente faz pensar. Pensou bastante aqui com o incômodo … achou legal? Isso que é importante de ver. Então, antes de a gente ficar desconfortável, apenas pensar no desconforto de quem causou. É pensar no que isso proporcionou de reflexão ou de pensamento, de mudança de posição. É só assim que o mundo muda. Se a gente ficar preso, ainda, aos nossos lugares, arraigados, a gente não muda nada. Eu queria aproveitar e terminar aqui a minha fala agradecendo. É importante que a gente não só discuta, mas também atue. Eu vi… quase todas as falas aqui foram contra o racismo, né. Espero que não só a gente condene o racismo, mas lute pra terminar com o racismo. Racismo é isso, né. São vidas. Não é uma guerra, é um genocídio, porque guerra… parte do pressuposto de que numa guerra as partes são iguais. É um genocídio. A parte que tá morrendo não tá combatendo em condições iguais. É um extermínio o que tá acontecendo. E amanhã, 13 de maio, Dia da Abolição inacabada, dia da mentira, da abolição mentirosa, nós teremos uma manifestação lá no Largo da Batata, em Pinheiros, às cinco horas, por cotas raciais na Universidade de São Paulo. Tem muitos aqui da USP, eu sou da USP também, então cotas na USP – a única universidade do Brasil que não aceita cotas. A nata da intelectualidade brasileira, a USP, não aceita cotas, então luta por cotas amanhã. É contra o genocídio da população negra, contra a terceirização, contra o feminicídio e a violência contra a mulher negra. Então, espero que essas caras que estão aqui debatendo estejam também amanhã, cinco horas. Obrigado pela oportunidade. (palmas)

Fernando – Bom, eu quero agradecer a todos vocês e a estas pessoas que estão aqui. E agradecer, assim, com muito carinho, ao Eugênio, porque foi através do Eugênio que abriu aí uma coisa na minha cabeça. A gente como artista, eu digo que tô…nunca fui tão… Eu não tenho ninguém na vida, assim, por opção. Tenho os amigos, “Os Fofos” são a minha família, mas que eu tô completamente apaixonado pelo teatro. Nunca estive tanto como agora. Eu vivo isso o tempo inteiro. E o Eugênio me trouxe pra essa questão social, me abrindo a cabeça de uma forma tão delicada, tão comovente, tão clara, tão inteligente, tão provocadora, que daí você vê o que… como essas pessoas alteram a rota de muitas coisas. Muito obrigado, viu, Eugênio? Obrigado pra vocês. (palmas)

Mário – Algumas sugestões. Primeiro, o Itaú Cultural precisa ampliar esse auditório, porque o debate virá pleno e recheado. Segundo, uma outra sugestão de um tema também candente e polêmico que apareceu aqui: a relação entre o cômico e o politicamente correto. Pode preparar um outro seminário com um auditório cheio. E eu saio daqui com a impressão… Vejamos, palavras que ficam piscando entre todos nós. De um lado, censura. De outro lado, racismo. E nós estamos num… (alguém fala na plateia e ele acrescenta) Privilégios. E nós estamos aqui, cá entre nós, hein, todos nós, de uma maneira ou de outra, sofrendo opressão. Vocês vão me dizer que ator, nesse país, branco ou preto, tem algum privilégio? Que teatro, neste país, tem algum privilégio? Ou tem algum lugar de destaque? Não é? O que que eu quero dizer com isso? Eu acho que existe um grande inimigo que não tá aqui entre nós. Eu desconfio que precisamos, nós, nos conciliar nesses pequenos desvios, porque existe um grande inimigo que adora que a gente fique se digladiando entre nós. Que recebemos e vivemos em situações de opressão das mais diversas categorias. Veja, nós tratamos aqui do circo, do circo-teatro que não tem lugar na história oficial, nunca tiveram. Do Teatro de Revista que não tem lugar na história, nunca tiveram. Dos negros e da profissão de artistas, que é uma relação que sempre foi muito problemática na história das artes brasileiras. Vamos nos matar? Não! A questão é o que nós precisamos absorver deste debate e criar forças para união e avançar adiante, porque, volto a falar, o grande inimigo não tá aqui dentro dessa sala. E espero que o debate de novembro seja tão caliente como esse de hoje. Muito obrigado. (palmas)

Aimar – Como branco paulista… não paulista, paulistano, não só paulista… só posso agradecer por estar numa festa onde me sinto convidado, mas não necessariamente participante. E pretendo estar na plateia nas próximas vezes. Muito obrigado.

Eugênio – Então, queria… primeiro agradecer a todos os participantes da mesa. Queria agradecer ao Aimar, ao Mário, ao Fernando, ao Dennis, ao Salloma, à Stephanie, à Roberta. Queria agradecer, sim à toda equipe do Itaú Cultural, por proporcionar isso. Queria agradecer, sim, a coragem da instituição por sediar esse debate. Muita gente me falou que o debate não aconteceria, que a gente não tinha maturidade para debater nesse ponto, que a classe artística não estava preparada para esse debate, que o Movimento Negro não ia conseguir dialogar com a oposição, e eu digo oposição no sentido de opor a ideia da legitimidade da própria discussão. Nós não podemos ter essa discussão, essa discussão não é legítima, é censura ou racismo; é racismo ou censura. É liberdade de expressão, é censura, racismo, e outras coisas mais. Não foi isso o que aconteceu. Esse debate não tem ponto conclusivo, ninguém exatamente é o dono da verdade nesse sentido. Isso é um começo, mas eu acho que é um começo muito interessante. Eu discordo dessa postura. A gente sempre fala, a gente que é muito… a gente que vive teatro de grupo… o discurso, a ladainha: não, o teatro não mobiliza, as questões nacionais estão fora da alçada do teatro, porque o establishment aqui, o establishment lá. A gente mostrou que a gente pode até não pautar do jeito que a gente quer, mas as questões que reverberaram hoje são extremamente importantes. Isso o que aconteceu hoje não é pouca coisa. Aliás, é muita coisa, sim. A gente conseguiu, em determinadas situações, colocar uma série de questões que são muito difíceis de colocar e de parar pra ouvir, e de articular o pensamento, entendeu? Então eu sou muito grato de estar nessa… em companhia de vocês. Sou muito grato por terem me chamado a isso. Não acho que é um favor, mas acho que é uma estrutura de… histórica. Eu queria terminar fazendo agradecimentos, e eu queria primeiro agradecer àqueles que me antecederam. Agradecer a (…), Malcon X, Martin Luther King, Zumbi dos Palmares, James Brown, Marighella, Bob Marley, Pastinha, Bimba…

(pessoas da plateia falam…)

Calma, calma, calma, calma, calma, calma, calma, que aqui é um coração só. É um coração só e esse aqui é muita coisa. Queria agradecer a Angela Davis, a Clementina de Jesus. (…) Queria agradecer à minha mãe, Maurinete Lima. Queria agradecer a todas as mulheres negras que eu conheci… (…) Queria agradecer a primeira vez que eu fui num Dia da Consciência Negra, quando eu tinha 12 anos de idade, também em Natal, e eu conheci lá o professor Kabengele Munanga. Então, são uma série de coisas que antecederam a gente estar aqui hoje. E eu acho que a gente, com o perdão da emoção, a gente honrou o passado que nos coloca. A ancestralidade não é só uma questão da pigmentação. Não é questão só da característica somática, é questão de estar um negro. O (Frantz) Fanon fala isso: não basta ser um negro em pensamento, é preciso ser um negro em ação, e graças a deus eu acho que a gente conseguiu dar esse passo. Nós todos somos homens em ação. E volto a dizer: a gente foi muito, muito, muito mais além do que a Ágora grega onde se criou o teatro. Porque aqui não tem senhores de escravos. Mesmo que tenha os opositores, eu sou branco, o que também é uma construção social – ser branco é uma construção social. A gente tem que prestar atenção qual é essa construção social. E, pra finalizar, eu vou citar um dramaturgo, que é alemão, e branco, entendeu? Chamado Heiner Müller. Que ele fala assim numa peça chamada “A Missão”: “Eu falo para os negros que são negros, e para os negros que não são. Isto é, Ásia. Isto é, África. As duas Américas eu sou”. Obrigado. (palmas)

 

(Transcrição: Clarinha Glock)

 

 

 

 

No Brasil, o melhor branco só consegue ser um bom sinhozinho

O cancelamento da peça ‘A Mulher do Trem’ por racismo mostra que a tensão racial no Brasil chegou a um ponto inédito, cujos rumos passaram a ser ditados pela nova geração de negros que alcançaram a universidade

 

Algo se rasgou em 12 de maio de 2015. Naquela noite, em vez de uma peça de teatro, A Mulher do Trem, oito atores sociais subiram ao palco do auditório do Itaú Cultural, em São Paulo, para discutir a representação do negro na arte e na sociedade. A decisão foi tomada depois que Stephanie Ribeiro, blogueira negra e estudante de arquitetura, protestou contra o uso de “blackface” na peça e o considerou racismo, iniciando uma série de manifestações nas redes sociais da internet. “O que me impressiona é que o debate sobre racismo e blackface é antigo, pessoas do teatro se dizem tão cultas e não pararam para pensar sobre isso? Reproduzir isso em 2015 é tão nojento quanto ignorante. Mas, né, esqueci que, quando o assunto é negro, não existe esforço nenhum em haver respeito”, escreveu no Facebook. E acrescentou: “Só lamento, não passarão”.

Não passaram. Diante de uma acusação tão perigosa para a imagem pública de um e de outro, a companhia de teatro Os Fofos Encenam e o Itaú Cultural decidiram suspender a peça e, no mesmo local e horário, acolher o debate. O espetáculo que se desenrolou no palco tem a potência de um corte.

O que aconteceu ali?

Temos vivido de espasmo em espasmo, como já escrevi aqui. Os dias têm sido tão acelerados que os anos já não começam nem terminam, mas se emendam. Enormidades se sucedem às vezes no espaço de minutos entre uma e outra. Torna-se cada vez mais difícil perceber o que é (ou será) histórico, no sentido daquilo que faz uma marca no tempo. Minha interpretação é que aquele debate, aquelas três horas numa noite da Avenida Paulista, pode virar uma citação no futuro. Pelo menos um sinalizador de um momento muito particular da sociedade brasileira, em que a tensão racial não pôde mais ser contida no Brasil e atravessou uma fronteira inédita. Como interpretação também é desejo, faço aqui a minha minúscula parte para que o debate tenha o lugar que lhe é devido. Como o historiador Nicolau Sevcenko afirmou uma vez, num outro contexto, há coisas que não devemos nos perguntar o que farão por nós, elas já fizeram. Acredito que este seja o caso aqui.

A atriz Roberta Estrela D’Alva, uma das debatedoras convidadas, iniciou sua apresentação falando sobre a percepção, ao entrar em contato com os protestos na internet, de que algo acontecia, algo que não teria acontecido mais de dez anos atrás, quando a peça foi montada pelo grupo Os Fofos Encenam. “Tem alguma coisa diferente nisso, porque tem manifestações sempre, mas que ganham essa projeção, e que foram ouvidas nesse sentido, de alguém que falou ‘não’ pra uma coisa e tomou essa dimensão que nós estamos vendo aqui agora… Eu acho que fazia tempo que a gente tava esperando, aguardando ou pedindo por isso. E não acho realmente que a peça é o foco. Eu acho que o que acontece na peça é sintoma de uma doença culturalmente transmissível, que é o racismo. E de uma relação muito espinhosa, que são os 400 anos de escravatura no Brasil”.

Só agora, depois das manifestações de 2013 e da reação virulenta de setores da sociedade à política das cotas raciais nas universidades e em outros espaços historicamente ocupados por brancos, parece ter se tornado possível um “não” que finalmente foi ouvido na Avenida Paulista. O ponto é que o racismo no Brasil é o debate sempre adiado e, desta vez, ele aconteceu, como muito bem colocou o mediador do evento, Eugênio Lima, DJ e ator: “A gente tem uma tarefa muito interessante nesse momento, que é conseguir dar forma a um debate que nunca se consegue dar forma por completo na história da sociedade brasileira. Toda vez que vai se tocar nesse assunto, se fala: não, não é exatamente o tempo bom. Não, vamos fazer um pouquinho mais pra frente. Não, agora não vai dar. Não, a gente tá muito próximo da escravidão. Não, a gente tá muito próximo dos anos 30, a gente precisa formar (primeiro) a nação. Não, a gente tá muito próximo do projeto da ditadura, a gente tá muito próximo da redemocratização, a gente tá muito próximo dos radicalismos. Então, o nosso desafio é proporcionar um debate que seja de fato um debate”.

Nada do que aconteceu naquele palco é simples. Ou fácil. É racismo? É censura? Estas eram as duas questões espinhosas que pairavam sobre o auditório enquanto as pessoas iam ocupando as cadeiras. Eram, talvez, mais um exemplo das falsas polarizações que têm assinalado o Brasil atual. Por seu potencial explosivo, muitos apostavam e até se preparavam para “um barraco” —e não um debate. Tanto que o mediador foi muito habilidoso ao reposicionar essas questões logo na abertura. Eugênio Lima colocou a necessidade de não escolher o caminho mais fácil, aquele que também poderia ser o caminho da oportunidade perdida, caso o debate se polarizasse entre censura, como o argumento dos brancos, e racismo, como o argumento dos negros: “A gente deve procurar não criar uma invisibilização da voz legítima do outro. Então, quando você chega num determinado momento e fala: é censura, ponto. É falta de liberdade de expressão, ponto. É racismo, ponto… Aí não tem como o outro conseguir dialogar. E a gente precisa dialogar. A gente precisa fazer um exercício de escuta”.

Eugênio Lima também apresentou-se de uma forma bastante interessante, deixando explícito o lugar de onde falava: “Eu não sou um mediador no sentido de que eu vou tentar atingir a média. Eu não estou equidistante entre as duas posições. Eu tenho uma história, uma história política, artística, que fala pelo meu posicionamento”.

Pego emprestada a explicação para este artigo —e para qualquer artigo, acredito eu. Não estou (ou sou) equidistante. Escrevo a partir da minha história e de como me descobri branca, e me redescubro a cada dia, nesse Brasil em que é “natural” pretos, pobres e periféricos morrerem. A própria escolha dos trechos que escolhi transcrever e reproduzir aqui, porque acho que ler é diferente de ouvir —e às vezes se escuta melhor lendo— fala de mim. O debate na íntegra pode – e deve – ser assistido aqui. O meu é um recorte próprio, com grifos próprios, no qual posso inclusive inverter a ordem e priorizar falas da plateia em detrimento da fala dos convidados. Até porque, de certo modo, não houve plateia. Os limites do palco foram ultrapassados e as manifestações do público foram tão ricas quanto a dos debatedores convidados. Apenas no final vou dizer o que o debate me provocou, as reflexões que me trouxe, para não atrapalhar o percurso de nenhum leitor atento, disposto a de fato escutar e, talvez, fazer o mais difícil: mover-se.

Um pequeno aviso, antes que as luzes do palco se acendam. Não se trata aqui de um jogo de “a favor” ou “contra”. Acho que vivemos numa época em que isso foi – ou deve ser – superado. Não são dois lados, são vários. É muito mais complicado. E o momento não está para simplificações. Precisamos avançar para o confronto real, complexo, que abarque as contradições de cada um. São contradições dialogando com contradições. A coerência de cada ator emerge da capacidade de acolher esse desafio.

Por fim, antes de pedir para desligar os celulares, devo dizer que várias pessoas me alertaram para não escrever sobre esse debate. Conto isso apenas para dar uma informação a mais sobre o quanto o protesto, a suspensão da peça e por fim o evento moveram placas tectônicas. Com variações, o aviso era: “O tema é espinhoso demais, os ânimos estão acirrados, você vai se queimar com todos os lados. Melhor ficar fora dessa”. Concluí que o risco de me “queimar” faz parte do privilégio e da responsabilidade de ter esse espaço.

Um pequeno contexto, antes que o espetáculo se inicie.

O evento ocorreu na véspera da comemoração da abolição da escravatura no Brasil, a lei Áurea assinada pela Princesa Isabel em 13 de maio de 1888. Uma abolição jamais completada, 127 anos depois. Neste momento, um jovem negro no Brasil tem um risco 2,5 vezes maior do que um jovem branco de morrer assassinado. De 2003 a 2012, a sociedade brasileira testemunhou – sem escândalo – o assassinato por armas de fogo de 320 mil negros. Imagine, para ter noção do significado, uma cidade de porte médio povoada por cadáveres com furos de bala – e que todos esses corpos têm a mesma cor. E imagine que, neste mesmo país, isso é tão naturalizado – e naturalizar é tornar natural o que não é – que apenas os mesmos se espantam. Esta é a trama que se desenrola nas periferias de São Paulo, nas delegacias e nas prisões, enquanto na Avenida Paulista, no auditório do braço cultural de um dos dois maiores bancos privados do país, o foco e as luzes estão sobre oito pessoas, brancas e negras, que falam a partir de lugares e de posições diversas.

O drama é maior porque os episódios de racismo no Brasil são abundantes e atravessam o cotidiano de um e de todos, de forma explícita ou inconsciente. Mas justamente Os Fofos Encenam, a companhia teatral que montou A Mulher do Trem em 2003, peça que lhe rendeu o prêmio Shell de melhor figurino, além de outras oito premiações, nunca teve qualquer identificação com o racismo. A peça é descrita como “comédia de circo” e a tradição circense no Brasil foi invisível por décadas, até ser resgatada e reconhecida também pela academia. Ainda hoje essa vertente teatral é marginalizada e enfrenta problemas para conseguir recursos. Assim, se sofrer uma acusação de racismo é difícil para a maioria, esse lugar é especialmente penoso para “Os Fofos”, como se verá mais adiante.

Se para o Itaú Cultural era crucial que o debate se realizasse em seu território, para alguns convidados e para parte do público soou arriscado aceitar subir ao palco ou ocupar a plateia do instituto. O Itaú Cultural tem uma atuação reconhecida por dar visibilidade a grupos e questões que sempre estiveram à margem, colaborando com a democratização da cultura, mas também é um fato que os bancos, no geral, têm tido sua imagem cada vez mais associada à desigualdade brasileira. Tanto é que, nos protestos, são os primeiros a serem apedrejados ou terem suas portas derrubadas ou os vidros quebrados por Black Blocs e outros grupos. A última eleição e a recessão em curso tornou essa relação ainda mais sensível. Assim, para muitos, foi difícil fazer justamente esse debate no espaço de um “representante do sistema financeiro”. Todas essas tensões estavam presentes e apareceram nas três horas de duração do evento.

Com tanto em jogo, o debate de fato aconteceu. Havia uma chance considerável de que virasse um bate-boca do tipo rede social, onde os ódios mútuos e as posições fechadas impedem a escuta e inviabilizam o diálogo e qualquer movimento de fato. Nos dias seguintes isso até aconteceu em alguns espaços da internet que repercutiram o evento, num triste rebaixamento. Mas não ali. E começo o debate pela bela aula dada por Mario Bolognesi, professor universitário e pesquisador do circo brasileiro, mostrando que a peça não usa blackface.

— Vou tentar falar um pouco do teatro praticado debaixo da lona, que tem neste país uma longuíssima história, que foi também escondida e não revelada. Só ultimamente, nos últimos 30 anos, é que pesquisadores têm se debruçado para desvendar a história deste teatro riquíssimo. (…) O circo brasileiro, na sua versão teatral, desde o início, acoplou a causa dos abolicionistas. (…) Também acolheu muitos escravos fugitivos, que foram encontrar no circo e no espetáculo uma possibilidade de realização. O circo brasileiro não sabe o que é esse negócio de blackface. Não sabe. Ele nunca trabalhou com esse referencial, nascido em meados do século 19 nos Estados Unidos. O circo brasileiro tem a sua vertente, a sua matriz europeia, que vem de uma tradição da comicidade popular que trabalha com personagens-tipos, o que é diferente de estereótipos. Personagens-tipos são condensações essenciais de características psíquicas, fundamentalmente psíquicas, mas também sociais. (…) E no circo brasileiro estes personagens-tipos se carregam como máscaras. (…) Essa máscara pode ser tanto algo que se acopla ao rosto como pode ser uma maquiagem. (….) E chega a nós por contrastes. Nós temos uma linhagem dos chamados “enfarinhados”. E temos uma outra linhagem de personagens que são os negros pintados de negro. Qual é o sentido disso para o teatro? O sentido é criar uma polaridade, inclusive visual, ou preferencialmente visual, porque, não nos esqueçamos, se praticava teatro ao ar livre pra muita gente. Portanto, o critério de visibilidade deve estar muito bem exposto, e as cores vermelha, preta e branca são as preferenciais deste universo, porque são visíveis à longa distância. No circo, essa polaridade (branca e negra) veio para realçar, trazer o cômico.

Fernando Neves, ator e diretor de Os Fofos Encenam, trouxe uma fala testemunhal nessa direção. Comédia francesa do século 19, A Mulher do Trem teria sido montada pela primeira vez no Brasil, em 1920, no Circo Colombo, mantido pelo seu avô:

— Eu demorei muito tempo pra entender o que era, o que minha família, como outras famílias de artistas, tinham feito aqui nesse país em relação à arte, ou seja, Teatro de Revista, o Circo-Teatro e o Teatro de Comédia. Eu venho de um ventre negro que já teve uma questão forte de entrar numa família de portugueses que chegaram aqui em 1890. Vindos com um circo. (…) Eu proibia a minha mãe, quando fosse alguém em casa, de falar que ela tinha sido vedete. (…) Foi aos 53 anos, em 2003, que eu falei: não, eu preciso falar sobre isso. Foi uma coisa impressionante essa questão de A Mulher do Trem, porque era a peça que levantava a praça, que meu tio escondeu de mim, que também foi duro arrumar material pra fazer pesquisa. E daí a gente fez, e quando a gente tentou dinheiro a gente não conseguiu nada. Então foi tudo na dificuldade eterna. (…) Eu comecei a entender o que era, pro ator brasileiro, a questão da composição e das máscaras. E que é uma questão muito difícil. (…) Porque envolve tipo psicológico, envolve temperamento. Então, é uma questão que infelizmente deveria ser matéria nas escolas. Pra, quando chegasse nessa discussão, eu não tivesse, ou ele não tivesse que falar: não tem nada com o blackface.

Mario Bolognesi é um pesquisador sério e levou ao debate, com toda a honestidade, a complexidade de quem estuda o tema em profundidade. Fernando Neves trouxe a dor de ter dado duro para encenar algo da tradição circense que estava oculto, algo que restava envergonhado tanto nas margens da sociedade como nas margens de si mesmo. Do ponto de vista estritamente conceitual, a peça da discórdia não usa blackface. O sentido é outro, neste ponto de vista. E é importante que isso seja dito e seja entendido. Mas, avançando um pouco mais, é obrigatório fazer a pergunta: quem dá os sentidos? E o que torna o blackface de fato blackface, o que só se completa ao ser assistido (ou, neste caso, não assistido)? Colocado de outro modo: quem diz o que é blackface? Quem o faz ou quem o reconhece?

Aqui, destaco um trecho da fala de Stephanie Ribeiro, a blogueira negra que iniciou o protesto com um post no Facebook. Sua fala interrompe conclusões fáceis. Ela dá conta de uma pergunta subjacente: deveriam, portanto, aqueles que se sentem violados, entender que não é este o sentido, que a rigor isto não é blackface, e seguir em frente?

— A gente começa desconstruindo a ideia de a pele natural ser a branca. Porque eu sou negra, eu sou natural, eu sou normal. Eu não sou exótica. Eu passo a minha vida inteira escutando que eu sou exótica, que eu sou diferente, que o meu cabelo é diferente. Essa é a minha vivência. É isso o que eu levo quando eu vejo aquela foto e vejo que aquela é a representação da pessoa branca para comigo, para com a minha avó, para com a minha bisavó, que eram negras, que foram escravizadas, que foram estupradas, que foram marginalizadas. Essa é a minha história e essa é a história que eu levo sempre e vou levar pra toda a minha vida porque não tem como eu ser negra um dia e não ser no outro. E aí entra a questão da peça e de toda manifestação feita pelo Facebook de várias pessoas negras, e da forma como isso foi recebido por algumas pessoas, de um jeito até racista, de achar que o negro não entende de arte, o negro não entende de cultura, o negro não sabe isso, o negro não sabe aquilo. Sabe quantas vezes na minha vida eu não vejo uma pessoa perguntando: “Ah, mas você faz arquitetura?”. E por quê? Eu não posso fazer arquitetura? Tem curso pra branco e tem curso pra negro? Ah, parece viagem, mas não! É a nossa capacidade, sempre sendo ignorada pela elite cultural paulista na arte. (…) Qual a visão de um homem branco sobre a minha vivência? Sabe? A gente já parou pra pensar isso? Eu não sei o que é ser branco, eu nunca vou saber. Eu sei o que é ser negro. E pautado no que eu sei, é difícil. E eu ainda sou uma mulher negra privilegiada, sabe? Eu tenho sorte de estar numa universidade. Eu sou uma mulher negra ainda de pele clara. Imagina as outras mulheres negras que não podem estar aqui! Que estão limpando o chão, que estão lá, sei lá, cuidando de vários filhos. E isso me ofende porque, quando a gente coloca a imagem do branco para com nós, é uma imagem tão ofensiva, tão estereotipada, que não tem essa de ser máscara, de ser tipo. É a minha imagem toda vez que eu vejo na TV, toda vez que eu vou numa peça. É sempre a mesma coisa. É ou a mulher negra para sexo, ou a mulher negra Globeleza, ou a mulher negra é empregada. Ah, mas por que a mulher negra é empregada? Porque a gente vive num país que, pós-abolição, a mão de obra negra era abundante. Então o que que a gente faz com essa mão de obra abundante? Vai dar chances? Vai dar estudo? Não! Vamos colocar eles pra limpar, lavar e passar. É aí que entra o estereótipo. Não é só pintar a cara de preto. O estereótipo que a peça reforçava é esse estereótipo da mulher negra em vários sentidos: no cabelo, na forma de se portar. Porque estava escrito no próprio site dos Fofos, quando eu fui ler, que ela era intrometida. Então, o problema não é essa peça, mas o problema é a visão das pessoas brancas sobre nós. Essa visão a gente não vai aceitar mais, porque hoje a gente tem voz, hoje a gente pode falar. Que seja no Facebook, que seja com pichação, que seja da forma que for. Eu não aceito.Eu não vou me calar.

Mas, sendo ou não blackface, a arte não é o território da liberdade? A peça em questão não teve um papel crucial ao levar esse debate até esse ponto e, assim, realizar um corte na sociedade? O corte se deu pelo fato de a peça não ser encenada. Mas não seria mais correto que ela fosse encenada e o debate ocorresse logo depois, com o potencial de ser ainda mais rico? A questão então torna-se não mais o “racismo”, mas a “censura”?

Aimar Labaki, dramaturgo, diretor e ensaísta, apresentou um ponto de vista interessante sobre isso. E trouxe ao debate algo fundamental: a necessidade do confronto como parte do processo de construção da democracia.

— A questão do negro no Brasil é igual a duas outras questões pra mim: primeiro, a questão dos desaparecidos e dos torturadores, isto é, a nossa verdade histórica que ainda está, de alguma forma, enterrada, e a ideia de que uma justiça possa vir a realmente servir pra todo mundo. É igual à questão da liberdade sexual, isto é, que a questão do gênero, a questão das opções sexuais sejam normalizadas, pelo menos do ponto de vista legal, e a vida vai fazer com que o óbvio se estabeleça, que cada um viva como quer. Por que estas três questões são importantes? Porque são as três questões que nos impedem de, de verdade, nos sentirmos parte de uma nação e de nos sentirmos parte de um Estado que nos representa em alguma medida. E eu não estou falando só da questão da representação política, que é uma crise pela qual passa o mundo inteiro e que não é uma crise só brasileira. Aqui foi piorado pelo fato de a ditadura ter acabado com uma ou duas gerações de pessoas que poderiam ter o conhecimento de como se mover publicamente e fez com que a nossa educação, nesse sentido, fosse atrasada tanto. Faz 30 anos que acabou a ditadura, mas o (José) Sarney só se aposentou no ano passado e ainda está indicando gente. Ainda tem militar que não obedece ao chefe do comando que é o presidente da República, quando o presidente da República manda entregar documentos que são do Estado, não são do Exército. Então, nós estamos há 30 anos construindo pela primeira vez uma democracia formal, mas nós não temos um espírito democrático, nós não temos um espírito de República. Nós ainda estamos tentando construir isso, e construir um aprendizado de como discutir em público. Porque democracia não é paz. Democracia é luta cotidiana, é debate cotidiano entre os diferentes. E nós temos medo do debate, nós temos medo do confronto. E é preciso aprender a se confrontar. Nesse sentido, essas três questões – a questão do negro, a questão dos torturados e da punição aos torturadores, e a questão da liberdade sexual – é que nos impedem, como diz o poeta, de conseguirmos transformar essa vergonha numa nação. Isso posto, eu acho que pra todas as três questões vale a preocupação permanente de compreender que essa democracia está em construção. E, nesse sentido, não me parece o caminho mais adequado você pedir ou você lutar pela supressão de qualquer representação que te incomode (…) Nesse caso, a representação também é uma forma de manutenção de uma visão de mundo que perpetua o racismo. E eu concordo com isso. Eu acho que essa visão tem que ser apagada, mas ela não pode ser apagada pela força, ela não pode ser apagada pelo silêncio.

Stephanie Ribeiro dá uma resposta:

— Eu queria começar falando que talvez eu seja muito radical, porque, na minha concepção de mundo, pessoas brancas não dizem como pessoas negras devem lutar. Então, se eu quero fazer um boicote, eu vou fazer. Se a gente quer se unir contra uma peça, a gente vai se unir. Porque é isso o que a gente tá debatendo aqui. São anos e anos de pessoas negras não tendo voz. São anos e anos de pessoas negras sendo silenciadas, invisibilizadas. São anos e anos que a representatividade não vem. A representatividade, num país onde 54% da população é negra, não deveria nem ser discutida. Quando a gente se manifesta, a gente não tá censurando, a gente só tá pautando o que ninguém tinha pautado até então porque não tem a nossa vivência. (…) Tem que ter um esforço das pessoas pra entender o que é ser negro no país. Você nunca vai saber o que é viver na minha pele, mas pelo menos pode não reforçar ideias como essa de… “natural é a pele branca”, entendeu? Isso é desconstrução, isso é leitura de gente negra. Gente negra fala, gente negra escreve, e não é de hoje, entendeu? (…) Quando é que eu vou ter o privilégio de não saber o que eu sou? Agora, vocês têm o privilégio de não saber o que eu sou, me marginalizar, me oprimir, e ainda me chamar de censuradora. É ótimo esse privilégio! Essa ação foi muito importante, porque ela foi feita no Facebook, com várias pessoas, principalmente militantes jovens. E é essa força que vem vindo que não vai se calar, gente. Eu acho que é importante as pessoas se abrirem pra escutar essas vozes. Mas essa abertura tem que vir com o diálogo, principalmente, de que pessoas brancas não pautam a luta dos negros. Ninguém vai dizer como a gente deve agir, porque ninguém sabe o que é ser a gente e ninguém sabe tudo o que a gente já passou.

Ao final, Aimar Labaki faz uma espécie de tréplica:

— Eu realmente fiquei emocionado com o que a Stephanie falou, no sentido de que eu nunca vou saber o que é ser negro. Eu sou branco. E, apesar de ter nascido na extrema pobreza – não parece, mas é verdade –, eu tive uma série de sortes que, se eu fosse negro, eu não teria. Então, o meu ponto de vista é de classe média, branco, olhando para a minha realidade. E, desculpa, eu sou interlocutor também. Vocês vão ter que falar comigo também. Eu tenho que falar com vocês, vocês têm que falar comigo. Não acho que a gente seja tão diferente quanto parece. Do meu ponto de vista, a questão do racismo eu vejo de uma forma intelectual, eu não vejo de uma forma emocional. (…) Por isso é que eu entendo e concordo quando você diz: “Não importa se é blackface ou não, é racismo”. Da mesma forma, eu digo: não me importa se é racismo ou não, é censura. (…) Se você tira uma peça de cartaz, seja lá qual for, porque uma parte da população, por mais que seja a maior parte da população, não quer que ela aconteça, nós abrimos um precedente num país que é autoritário, num país onde não há tradição de liberdade de expressão. Você abre a Caixa de Pandora. Em seguida você vai ter os reacionários, você vai ter os militares, você vai ter o diabo a quatro querendo que as coisas não sejam apresentadas porque eles acham que não estão representados nela. Isso não significa que se deva calar a boca de ninguém, muito menos do Movimento Negro.

Um homem na plateia fará, muito mais tarde, um recorte aqui:

— Sou preto, pobre, pederasta e professor. Eu sou, nesta ordem, esses quatro “Ps”. E entendi que o preto vem antes de tudo isso no Brasil, e não só no Brasil. Acho que essa dimensão da cor, sempre que ela vem à tona, a gente recua. E esse recuo já não é mais possível. Eu acho que o que tá acontecendo aqui hoje é sinal de uma mudança estrutural no país que a gente não pode negligenciar e que diz respeito à sociedade, mas também ao teatro que nós fazemos, ao teatro de grupo. Isso é sinal de que alguma coisa muito complexa está acontecendo neste país. (…) Não é uma questão de representação. A cor não se representa. É isto que, de certo modo, o blackface denuncia. Porque o negro é uma outra coisa, além da sua cor. São relações que estão em jogo e que talvez o teatro tenha tido dificuldade de elaborar. Tá na hora de a gente se perguntar o que é que nós estamos conseguindo elaborar neste momento em que de fato uma mudança está acontecendo. Ela não aconteceu. Ela está acontecendo. E ela é perigosa. Ela é perigosa porque o outro existe. E eu também me defino pelo outro. E eu não posso, na minha lógica, reproduzir a lógica da supressão. Eu não estou com isso dizendo que nós vamos ouvir os brancos e eles vão nos pautar. Eu só tô querendo dizer que talvez a gente tenha, como negro, de ser capaz de elaborar uma imagem do branco. E nesse momento é que a sociedade muda.

Fernando Neves, de Os Fofos Encenam, faz um desabafo. E uma conclusão.

— A gente fez apresentações, em 2003, e a peça foi pro baú. Quando ela retoma, a gente leva um susto. O Eugênio fala assim: “Fernando, pensa o que é isso. É uma coisificação de uma ideia que traz muito sofrimento pra muita gente só de olhar. Não precisa ver a peça”. Eu falei: é um totem. É um totem. Então tá errado, a máscara de circo não foi feita pra isso. A minha família, todo o trabalho, tudo, quem fazia essa máscara era a minha mãe. Ela não foi feita pra isso. Ela foi feita pra divertir. No circo, drama é pra chorar e comédia é pra rir. Ela não foi feita pra ridicularizar ninguém. Tanto é que, se vocês olham os tipos de A Mulher do Trem, a mulher que faz a dona da casa, ela tem o nariz torto, a boca torta. Não é assim, que o negro tá pintado e todo mundo tá com cara e pele boa. Não é. Tá todo mundo ridicularizado. Porque era isso que o circo fazia. Então, quando o Eugênio me explicou o que era isso, eu falei: então essa máscara tem que sair de cena. Ela não pode ficar, ela não foi feita pra isso. Como várias vezes, durante a História, várias máscaras e vários tipos tiveram que sair de cena. Eles se ressignificam e voltam. O teatro é vivo. (…) Para tudo! (…) Essa máscara tá fora de cena. Ela tem que sair de cena. Porque ela não foi criada pra causar dor em ninguém. Porque é tudo o que a gente não quer na vida. E nossa arte, tudo o que a gente tá fazendo, não se baseia nisso. Eu não quero, e nenhum dos Fofos quer. (…) Então, o que eu queria dizer é que apoio essas falas que ouvi até agora, tão sábias. Eu apoio plenamente. E… estas máscaras estão fora. (…) A gente tem que trabalhar na alegoria que existe na arte popular pra trazer reflexão. Antes, ela era forma. Agora ela tem que ter um engajamento. Ela é posta pra gente discutir. Eu quero agradecer muito e pedir desculpa a todos que eu tenha ofendido (…) Foi uma coisa que me machucou demais. E me trucida, porque isso é tudo o que eu não queria na minha vida. Então, essa máscara tá fora de cena, como tá fora qualquer tipo de preconceito, qualquer tipo de racismo e qualquer tipo de violência.

Fernando Neves chora.

O espetáculo tornou-se o debate (ou o debate tornou-se um espetáculo?), que abarcou não apenas o palco, mas a plateia, e as reações nas redes sociais provocadas por ele. Parte do público apropriou-se de A Mulher do Trem e subverteu-a. Sem ser encenada, a peça teatral provocou uma outra cena, que também a contém. Arte e política como categorias indissociáveis, imunes a delírios de pureza e de significados em si e para si. Profanadas, sempre, pelo mundo e pelas circunstâncias. Teatro.

Aqui, talvez, seja o momento de eu dizer como me senti neste debate, de forma totalmente honesta e até difícil pra mim. Como Aimar Labaki, a ideia de um espetáculo não ser apresentado, ser censurado, seja por quais motivos forem, ainda que se diga que não é censura, mas decisão do grupo, o que seria autocensura, me arrepia. A ditadura, a censura e a repressão são bem vivas na minha memória, e eu temo exceções, porque elas botam o pé na porta e abrem espaço para que o pior vire regra. Afinal, quem vai dizer quais são os bons motivos para suspender um espetáculo? Quem será mais igual do que os outros, parodiando A Revolução dos Bichos, de George Orwell? Um boicote da peça teria me parecido mais democrático, mas não a suspensão da peça. Protestos na porta do Itaú Cultural, o que possivelmente aconteceria se ela fosse encenada – perspectiva, aliás, que deve ter assustado os envolvidos –, causariam comoção e discussão. E a peça lá, no palco, provocando e sendo provocada, para possivelmente nunca mais voltar do mesmo jeito.

Porém, uma outra percepção foi se tornando mais forte na medida em que eu escutava os negros. Talvez tenha sido preciso fazer esse corte dentro do corte. Porque talvez o fato de eu pensar sobre isso como uma censura, num momento de construção de uma democracia cheia de buracos, seja um privilégio meu, como branca, que não sei o que é ser negra neste país. Posso escrever sobre isso, como escrevo, posso tentar vestir a pele negra, como tento, mas ser é de outra ordem. E esta ordem eu preciso admitir que não alcanço. E talvez a ruptura seja a única forma para aqueles que não têm privilégios serem escutados pelos que têm privilégios. Talvez seja este o momento do Brasil. E talvez seja importante que assim seja, porque já se passou tempo demais para uma abolição não ter sido completada. Talvez a escravatura só acabe, de fato, a partir de rupturas como esta.

Para mim, a síntese veio por esta fala de um homem jovem e negro na plateia, que tinha grandes chances de estar morto, mas está vivo:

— Meu nome é Max. Eu sou ator… Eu era ator, mas eu me tornei produtor cultural por ausência, por necessidade de produções culturais em que eu me sentisse um pouco mais digno. Digno. Acho que é a palavra perfeita pra ocasião. Eu vou falar a partir da minha pele preta natural e do meu cabelo normal, embora alguém em 1930 tenha dito que existiam cabelos normais e outros sei lá o quê. Né? Decidiram o que era normal e o que era natural. (…) É interessante como o branco treme quando vai perder o privilégio. Então, de repente, quando você toca no privilégio daquele que sempre pôde falar como quiser, de quem quiser, na altura que quiser, alguém fala: “Eu não gostei”, e chamam essa pessoa de Estado. Né? (…) Os negros, que nunca tiveram sequer grandes papéis no Estado, são censuradores. Não houve Ministério Público, não houve DOPS, não houve Conselho da Comunidade Negra, não houve SEPIR (Secretaria Especial de Promoção da Igualdade Racial) mandando, enviando. E ninguém nem foi perguntar aos Fofos se era censura ou não. (…) As pessoas assim… com um treme-treme de perder esse espaço. Eu acho que é aí que o copo tem que esvaziar. A gente, enquanto homem, vai ter que perder privilégios para dar espaço às mulheres, aos homossexuais. A gente, enquanto sudestinos, vai ter que abrir espaço nos editais pra que o Norte seja contemplado também. E talvez os brancos ainda não conseguiram dar um milímetro de passo pra perder seus privilégios. Ou pra compartilhar os privilégios nas universidades. Compartilhar o privilégio desse diálogo. Eu fiquei com medo de ter que fazer barraco aqui, (…) achando que ia ter uma palestra de pessoas justificando o blackface. Eu tava preparado pro barraco. Sério mesmo. Nunca vi o mercado financeiro abrir espaço pra um debate desse. Nem o Estado, nem o mercado financeiro. (…) Eu quero colocar essa questão pras pessoas pensarem o que é esse privilégio. Uns amigos falam: “Mas eu não tenho privilégio de ser branco!”. Eu falo: você tem avô, avó? “Tenho”. Então você já é branco, porque a maioria dos negros não conhece os avós. Você pode andar na rua sem o carro da polícia pelo menos parar um pouquinho pra dar uma olhada em você? Ele nem sabe o que é isso. Você para um táxi e ele para? Ele nem sabe o que é isso. Então, você tem um monte de privilégio de ser branco. Só que você tem o privilégio do privilégio de nem pensar nos seus privilégios.

Fiquei pensando sobre a enormidade desse privilégio, que é o de não ter que pensar nos meus privilégios. E fiquei pensando a partir de um grupo no qual tenho a pretensão de me incluir: o dos brancos não racistas, o dos brancos que denunciam o racismo e lutam contra ele. Percebo que, por mais profundo que seja o discurso do branco, por mais articulado, ele fala a partir de um lugar do qual teme ser deslocado, consciente ou inconscientemente. E, assim, sempre que possível, adere, aliviado, ao discurso mais intelectualizado, aparentemente limpinho, que no caso das cotas era o de que raça é algo que não existe ou que o problema do Brasil é social e não racial etc etc. E aqui, talvez, o discurso de adesão capaz de manter as boas aparências seja o da censura ou da liberdade de expressão. De certo modo, o discurso do melhor branco é sempre contemporizador.

Esses brancos bacanas, cool, esperam que os negros fiquem satisfeitos com a “abertura lenta, gradual e segura”. O ponto de vista é sempre o da concessão. E concessão é a palavra escolhida por aquele que tem o privilégio de conceder. Talvez o problema no Brasil, com relação à questão racial, seja semelhante ao da redistribuição da renda. Mesmo os brancos bacanas querem avançar na igualdade sem perder nada. Os negros ascendem sem que os brancos percam um centímetro do seu privilégio, o que começa pelas empregadas domésticas. Porque privilégio de branco é cláusula pétrea na sociedade brasileira. E aqui aproveito para sugerir que assistam à Casa Grande, filme no qual a Senzala é a presença – ou onipresença – não nomeada.

Os negros não podem se impacientar, ao contrário, precisam agradecer a benevolência. E, quando questionam, e em especial quando questionam gente bacana, aqueles que têm certeza de fazer o certo, a conversa muda de tom. É fácil se unir contra os trogloditas, e no Brasil há sobra deles. E contra os bacanas, os cool, como é que fica? E escrevo sem ironia, porque me incluo nesta conta. Escrevo com dor, porque a incompletude da abolição colocou gente de fato digna, brancos dignos, numa situação com poucas saídas a não ser um confronto que começa dentro, com a dureza dessa realidade que, enquanto não mudar, impede qualquer branco de ser de fato digno. É essa a tragédia que precisamos encarar: a impossibilidade de um branco ser digno neste país enquanto a realidade dos negros não mudar. A verdade brutal é que, no Brasil, o melhor branco só consegue ser um bom sinhozinho.

Não quero ter a última palavra. Quero acrescentar duas falas que representam minhas melhores esperanças, ainda que eu saiba que esperança também é um privilégio de poucos.

A primeira é do mesmo homem da plateia que se apresentou como “4 Ps”:

— A pergunta talvez seja: neste contexto, que é novo, como é que nós inventamos uma outra sociedade? Porque, como professor de História do Teatro Brasileiro, eu não estou interessado em revisar a história do teatro brasileiro, eu estou interessado em inventar uma outra História. Acho que este é o ponto.

E termino com Roberta Estrela D’Alva, juntando duas falas que ela fez em momentos diferentes do debate. Na primeira, ela se referia a uma questão colocada pelo professor Achille Mbembe, com quem viajou pela África:

— O que nós vamos ter que deixar morrer em nós, brancos e negros, para que haja a transcendência, para que haja o encontro? Porque os copos estão cheios. O que a gente vai ter que derramar para que comece a penetrar? (…) Para a gente transcender vai ter que ser junto. Não tem nós e eles. O racismo não é um problema do negro, é um problema da sociedade. E nós todos somos a sociedade.

No meu teatro, Estrela D’Alva tem a última palavra:

— Se a paz não for para todos, ela não será para ninguém.

(Publicado no El País em 25/05/2015)

 

Humilhar e ignorar professor pode. Sufocar e ferir não

O que se pode infligir a um educador sem causar indignação aponta o tamanho do buraco da educação pública no Brasil

 

– “Eles estão atirando em nós”.

A frase atravessa vídeos sobre o massacre dos professores, executado pela Polícia Militar do Paraná a serviço do Governo de Beto Richa (PSDB), em 29 de abril. Professores desmaiam, professores passam mal com as bombas de gás lacrimogêneo, professores são feridos por balas de borracha. Um cão pit bull da PM arranca pedaços da perna de um cinegrafista. Há sangue na praça de Curitiba, diante da “casa do povo”, a Assembleia Legislativa do Estado. Ao final, há cerca de 200 feridos. Mas mais do que as imagens, é essa frase anônima, em voz feminina, que me atinge com mais força. Porque há nela uma incredulidade, um ponto de interrogação magoado nas entrelinhas e finalmente a compreensão de ter chegado a um ponto de não retorno. Depois de ser humilhada por baixos salários, depois de dar aula em escolas em decomposição, depois de ser xingada por pais e por alunos, agora a PM também podia atirar nela. E atirava. E, se as bombas de gás, as bombas de efeito i-moral não matam, pelo menos não de imediato, a sensação é de morte.

O susto causado pela percepção de que não havia mais limite para o que se podia infligir a um professor era a prova de que um professor não era mais um professor. Toda a aura que envolve aquele que ensina se esvaía em sangue na praça de Curitiba. Os PMs, cujos filhos possivelmente são ensinados por aqueles educadores, tinham autorização para atirar. Esse extremo, o da fronteira rompida, causou uma comoção nacional. E vem desenhando o inferno do governador Beto Richa, explicitado por uma crise no Governo paranaense que levou até agora à demissão de dois secretários, o de Educação e o de Segurança Pública, e o comandante da PM.

De repente algo se esgarçou e tornou-se inaceitável para uma parte significativa da sociedade. Ainda houve quem tentasse transformar os professores em “vândalos”, a palavra usada para criminalizar aqueles que protestam desde as manifestações de 2013. Ainda houve na imprensa quem chamasse massacre de “confronto”, o truque para transmitir a ideia de que eram forças equivalentes em conflito. Mas as imagens e os relatos eram evidentes demais. As redes sociais na internet mais uma vez cumpriram o papel de amplificar as vozes e garantir um número maior de narrativas para dar conta da complexidade do 29 de abril. Os coletivos de mídia independente tiveram inegável importância na documentação da história em movimento.

É assustador que alguns tenham tentado justificar, em plena democracia, o massacre em praça pública dos professores do Paraná. Nessa tentativa de criminalizar aqueles que protestam e, ao mesmo tempo, legitimar a ação policial, como se as forças de segurança do Estado não tivessem se comportado como forças criminosas, há algo em curso que precisamos prestar muita atenção. Não existe equívoco de inocência nessa versão. Mas eu gostaria aqui de me deter em algo que também me parece um tanto perturbador, ainda que pelo avesso.

É sinal de esperança que grande parte da sociedade brasileira, na qual me incluo, se comova diante da violência contra os professores. Não há dúvida sobre isso. Mas cabem pelo menos duas perguntas. A primeira é: por que este é o limite que produz indignação? A segunda: o quanto o que se tornou visível apenas revela e reforça a invisibilidade maior?

Quando testemunho as manifestações de repúdio ao massacre de Curitiba, sinto esse misto de esperança e de incômodo. Esperança pelos motivos óbvios. Quem sabe não acordamos, todos nós, para o buraco da educação no Brasil? Inclusive porque a perda de popularidade do governador Beto Richa e a crise instalada no Governo virou um pesadelo bem vivo para o restante dos governantes.

Agora, o incômodo. O que esse limite revela sobre o que não é limite? É louvável que as pessoas se revoltem ao ver professores sangrando ou desmaiando ou sendo ameaçados por cães pit bull. Se não nos revoltássemos nem com isso seria ainda mais dramático. Mas por que testemunhar durante décadas professores brasileiros, dos diversos estados do país, ganhando um salário incompatível com uma vida digna é um fato com o qual parece ser possível conviver, tão possível que chegamos a esse ponto depois de 30 anos de democracia? Por que escolas caindo literalmente aos pedaços, naufragando a cada chuva, numa materialização explícita da situação crônica da educação pública, é algo com o qual a maioria se acostuma? Por que o fato de os professores serem ameaçados por alunos e às vezes por pais de alunos em salas de aula, num confronto entre desesperados, uma versão urbana da guerra dos miseráveis que atravessa os rincões do Brasil, é algo que se tolera?

Em resumo: pode pagar salário indecente, pode botar gente pra ensinar e gente pra ser ensinado debaixo de um teto que pode cair, pode quase tudo. Só não pode ferir com balas de borracha e sufocar com bombas de gás lacrimogêneo. Ah, pit bull também pega mal. Bem, isso os governantes acabaram de aprender que não podem fazer sem provocar repúdio dos eleitores. Já o resto… Talvez nesse sentido possa se justificar uma certa perplexidade da PM, do Governo paranaense e de alguns setores da sociedade brasileira e da imprensa tradicional: como assim, não pode bater nesses “baderneiros” que deveriam estar na sala de aula e não na praça protestando? Não pode descer o cacete nesses “vândalos” que têm o desplante de achar que a casa do povo é do povo?

Ao menos descobriu-se que há um limite para o que se pode infligir a um professor, uma fronteira demarcada pela reação da sociedade ao massacre de Curitiba. Mas que limite sem-vergonha o nosso.

Qualquer um, em qualquer classe social, em qualquer esfera de poder vai repetir que “a educação deve ser prioridade” ou que “a educação é o maior desafio para o país” ou que “sem melhorar a educação o Brasil jamais será um país desenvolvido”. É um consenso, quase uma platitude. Mas, de novo, é um consenso bem sem-vergonha. É o consenso mais vazio do Brasil contemporâneo, é quase uma flatulência. Que não se perceba o quanto fede é só mais um sinal dessa hipocrisia de salão.

De fato, uma boa parte daqueles que têm voz e poder de pressão para mudar essa situação está pouco se importando. Porque “a elite brasileira é burra”, como já disse aqui neste espaço meu colega Luiz Ruffato. Principalmente porque a elite brasileira acredita que seus filhos estão a salvo. Essa ilusão de que os “meus” filhos estão salvos, já dos filhos dos “outros” eu sinto pena, lamento, desculpe aí, queria sinceramente que fosse diferente, mas não me incomodo o suficiente para fazer disso uma grande questão na minha vida. Afinal, quem tem tempo pra isso tendo que ralar para pagar os preços exorbitantes de uma escola privada que transforma educação em mercadoria cara?

Inclusão social no Brasil significa entrar no barco dos que podem se salvar. A classe média acredita que seus filhos estão a salvo e uma parcela daqueles que ascenderam, na década passada, ao que se chama de Classe C fez um grande esforço para matricular seus filhos em escolas particulares assim que a situação financeira permitiu. Filho em escola privada – e portanto supostamente a salvo da péssima educação pública – é parte do que significa ser classe média no Brasil. Dos mais ricos, nem se fala.

É óbvio – ou deveria ser – que a má qualidade da educação oferecida a essa entidade chamada “povo brasileiro” em algum momento vai afetar os privilégios dos mais ricos. Mão de obra desqualificada é um problema sério no Brasil, com impacto em qualquer projeção de futuro. Então, ainda que por egoísmo ou por pragmatismo, a elite econômica deveria se preocupar, o que já vem acontecendo com bem poucos empresários, mas a preocupação ainda é imensamente menor do que as dimensões da catástrofe.

Talvez houvesse uma mudança real de posição se as pessoas percebessem que seus filhos estão menos salvos do que acreditam estar. Primeiro, porque escola privada e educação de qualidade não são sinônimos. Longe disso. Apenas poucas escolas, em geral as mais caras, a elite da elite, têm qualidade reconhecida. Ainda assim, são apenas medianas com relação ao nível de suas similares em países do mundo nos quais a educação é prioridade.

Segundo, educação está longe de ser apenas conteúdo formal. Educação é um processo muito mais complexo, no qual a diversidade das experiências é fundamental. É claro que aquela elite que se habituou por séculos a decodificar a diferença como inferioridade tem dificuldades para compreender a diversidade de experiências como riqueza. Para esta, o diferente era primeiro o escravo, depois o empregado ou o subalterno, alguém com quem não havia nada a aprender, já que a sua única função era servir.

Há, porém, uma elite intelectual e uma classe média com outra origem, de quem se poderia esperar uma visão menos estúpida. O que muitos pais não percebem é que a escola privada, como gueto de iguais, é um reprodutor de privilégios, mas também é um reprodutor de ignorâncias. E também um reprodutor de pobrezas não materiais. Num exemplo bem corriqueiro, em algum momento talvez os pais possam perceber que adolescentes que já andaram bastante pelo mundo em viagens protegidas mas nunca pegaram um metrô em São Paulo ou um ônibus de linha em qualquer lugar podem ter alguma dificuldade em lidar com a vida como ela é. Porque a vida como ela é chega para todos em algum momento e em alguma medida. E podem, principalmente, ter perdido um universo de experiências criadoras e criativas não apenas por serem incapazes de cruzar as pontes, mas por nem mesmo desconfiar que é importante cruzá-las.

Num país com a educação pública em ruínas ninguém está a salvo, nem mesmo os filhos da elite. Ainda que seja óbvio que estes estão bem mais a salvo que todos os outros. O que quero enfatizar é a hipótese de que a ilusão de estar a salvo cumpre um papel decisivo na manutenção das ruínas como ruínas. E na convivência com o que não deveria se poder conviver, na aceitação da indignidade como algo já dado, na tolerância ao intolerável que é a situação dos professores e das escolas no Brasil. O que quero dizer é que a comoção pública diante do massacre de Curitiba, se é louvável, é também sinalizadora da falência da sociedade brasileira, inclusive ética. Já que é pelos limites que também compreendemos a lógica de uma sociedade. E o limite aqui é: pode humilhar um professor, pode pagá-lo mal, pode submetê-lo a condições insalubres de trabalho. Não pode ferir explicitamente seu corpo.

Vale a pena compreender que a ampliação do acesso à educação formal é muito recente no Brasil. É o salto que deveria ter sido dado e ficou pela metade. Para muitos pais das camadas mais pobres, eles mesmos analfabetos ou filho de analfabetos, só o fato de conseguir matricular o filho numa escola, mesmo que seja uma instituição de má qualidade, já é um avanço. Como tem sido para os pais de Classe C ter um filho com diploma universitário, mesmo que de uma faculdade de terceira linha.

A saída encontrada pelos mais pobres, numa lição aprendida com a classe média tradicional, é individual. Por isso, uma das primeiras medidas de ascensão social é reproduzir o ciclo: matricular o filho numa escola privada, deixando a pública para os mais fragilizados, os menos visíveis, os com pouca ou nenhuma voz. O degrau seguinte daquele que historicamente foi submetido não é se tornar cidadão, mas cliente. Parece mais fácil aderir à lógica de mercado. Quem ainda não conseguiu fazer a conversão, almeja fazê-la. Acolhe a versão perversa de que a melhora está na sua mão, de que é o pai e a mãe de família que precisam mudar de classe se quiserem dar uma boa educação aos filhos.

No Brasil ainda infectado pela mentalidade de Casa Grande e Senzala, tantas vezes reatualizada para continuar em vigor, ainda é difícil para muitos compreender a educação como o direito fundamental que é. E cobrá-lo do Estado pelo caminho da cidadania. É também por conta dessa mentalidade, na qual a qualidade da educação vira um problema com solução individual e privada, e não uma luta pública e coletiva, que a revolta é abafada e os professores vão se convertendo em párias, esvaziados de dignidade, lugar e sentido.

É assim que caminha o “Brasil, pátria educadora”, país que tem um dos piores salários de professor do mundo. O lema do segundo mandato da presidente Dilma Rousseff (PT) apenas mais um sinal do absurdo, de uma espécie de realismo de perdição.

A tensão, porém, existe. E é grande. O fato de as escolas públicas sofrerem constantes depredações, se é sinal da violência crescente, é também sinal de que a escola falha como um lugar de acolhimento para os conflitos e também como espaço para a construção de sentidos e para a qualificação do desejo. Ainda que as causas sejam várias e complexas, é bastante óbvio que, sem outros canais para expressar a traição de uma educação que não educa, resta a violência mais primária. Também porque a escola pública, que deveria dar condições de representação, não representa. E assim vai fracassando ao ser reduzida a uma tentativa perversa de conter a tensão causada pela fratura racial brasileira.

A depredação das escolas por alunos é também uma resposta tortuosa à depredação original, a do Estado, que deixa as escolas apodrecerem, dando provas evidentes de que aquele que lá está é considerado cidadão de segunda ou terceira categoria. A violência direta de alunos e, às vezes, também de pais de alunos contra professores é também o sinal de que a lição dada pelo Estado foi bem compreendida: professor vale pouco, quase nada.

Enquanto alunos e professores se violentam mutuamente, aqueles que têm a responsabilidade de mudar essa situação não são incomodados. É conveniente que as vítimas se agridam entre si, muitas vezes dentro de escolas cada vez mais parecidas com bunkers para se proteger da comunidade, o que em si já expõe o tamanho da tragédia. Se essa realidade ultrapassa os muros da escola para ocupar espaços geográfica e simbolicamente mais centrais, chama-se a PM. Que os policiais militares, também eles servidores mal pagos do Estado, façam o serviço sujo. E então homens públicos como Beto Richa sentem-se à vontade para declarar, rosto compungido: “Não tem ninguém mais ferido do que eu. Eu estou ferido na alma. O mais prejudicado hoje sou eu”.

Não, governador. Mas não mesmo. Valeu a tentativa, mas não vai colar.

Agora, a segunda pergunta que lancei no início desse artigo, e que diz respeito ao jogo entre o visível e o invisível. Ou, repetindo: o quanto o que se tornou visível apenas revela e reforça a invisibilidade de fundo? O sangue dos professores no massacre de Curitiba os tornou visíveis para o país, mas essa visibilidade é um tanto ilusória. Neste momento, greves de professores esvaziam salas de aula em vários estados e municípios brasileiros. E cadê a surpresa? Cadê o susto? Cadê as manchetes? Cadê a indignação? É muito menor do que o bom senso e a catástrofe educacional brasileira sugeririam.

Por isso. Porque pode. Na prática tornou-se aceitável que os mais pobres fiquem sem aula ou tenham educação de má qualidade. Só não pode é sufocar professor com gás e ferir professor com bala de borracha no centro. Aí passa dos limites. Aí exagerou, né, tio. Aí a sociedade grita. Não deixa de ser uma versão do “estupra mas não mata”.

Talvez o paradigma seja o estado de São Paulo, governado há mais de 20 anos pelo PSDB. Em São Paulo, os professores estão em greve há quase dois meses, mas o governador Geraldo Alckmin chegou a afirmar: “Na realidade não existe greve de professores”. Faltou explicitar em qual realidade.

Geraldo Alckmin é talvez o político que mais mereça a atenção do país no momento, mais até mesmo do que seu colega Beto Richa. Subestimado com o apelido de “picolé de chuchu”, o que apontaria uma suposta falta de personalidade, parece ser de longe uma das criaturas políticas mais nebulosas do Brasil atual. Sobre Alckmin, a academia deveria estar escrevendo teses, e a imprensa, perfis de peso. O apelido não tem nenhum lastro na prática concreta do Governo.

O governador de São Paulo escolheu na sua expressão pública, no trato com a população e com a imprensa, a política da negação. O que prejudica sua imagem e seus ambiciosos planos eleitorais não existe. Não existe racionamento de água, não existe greve dos professores. E, o mais surpreendente: funciona. Geraldo Alckmin se reelegeu no primeiro turno, em plena crise hídrica, dizendo que não existia crise. Agora, enfrenta a greve dos professores com a mesma fleuma. Enquanto Beto Richa, que começava a se tornar um expoente do PSDB, mandou a PM massacrar professores, Alckmin prefere fingir que os professores em greve não existem. Onde está a maior perversão? Ou a maior esperteza? Beto Richa com a popularidade em queda livre, chamado de “Rixa” e até de “Ritler” em artigos e posts nas redes sociais; Alckmin, o “picolé de chuchu”, avançando, apesar de todas as crises, olhos fixos na eleição presidencial de 2018.

Só posso sugerir que Geraldo Alckmin conhece bem seus eleitores.

(Publicado no El País em 11/05/2015)

Para Brasília, só com passaporte

     A proposta inconstitucional da redução da maioridade penal vai mostrar quem é mais corrupto: se o povo ou o Congresso.

        Leia na coluna desta semana no El País:

No filme Branco Sai, Preto Fica, em cartaz nos cinemas do Brasil, para alcançar Brasília é preciso passaporte. O elemento de ficção aponta a brutal realidade do apartheid entre cidades-satélites como Ceilândia, onde se passa a história, e o centro do poder, onde a vida de todos os outros é decidida. Aponta para um apartheid entre Brasília e o Brasil. Ao pensar no Congresso Nacional, é como a maioria dos brasileiros se sente: apartada. O Congresso mal iniciou o atual mandato e tem hoje uma das piores avaliações desde a redemocratização do Brasil: segundo o Datafolha, só 9% considera sua atuação ótima ou boa, 50% avalia como ruim ou péssima. É como se houvesse uma cisão entre os representantes do povo e o povo que o elegeu. É como se um não tivesse nada a ver com o outro, como se ninguém soubesse de quem foram os votos que colocaram aqueles caras na Câmara e no Senado, fazendo deles deputados e senadores, é como se no dia da eleição tivéssemos sido clonados por alienígenas que elegeram o Congresso que aí está. É como se a alma corrompida do Brasil estivesse toda lá. E, aqui, o que se chama de povo brasileiro não se reconhecesse nem na corrupção nem no oportunismo nem no cinismo.

Leia o texto inteiro aqui.

Para Brasília, só com passaporte

A proposta inconstitucional da redução da maioridade penal vai mostrar quem é mais corrupto: se o povo ou o Congresso

 

No filme Branco Sai, Preto Fica, em cartaz nos cinemas do Brasil, para alcançar Brasília é preciso passaporte. O elemento de ficção aponta a brutal realidade do apartheid entre cidades-satélites como Ceilândia, onde se passa a história, e o centro do poder, onde a vida de todos os outros é decidida. Aponta para um apartheid entre Brasília e o Brasil. Ao pensar no Congresso Nacional, é como a maioria dos brasileiros se sente: apartada. O Congresso mal iniciou o atual mandato e tem hoje uma das piores avaliações desde a redemocratização do Brasil: segundo o Datafolha, só 9% considera sua atuação ótima ou boa, 50% avalia como ruim ou péssima. É como se houvesse uma cisão entre os representantes do povo e o povo que o elegeu. É como se um não tivesse nada a ver com o outro, como se ninguém soubesse de quem foram os votos que colocaram aqueles caras na Câmara e no Senado, fazendo deles deputados e senadores, é como se no dia da eleição tivéssemos sido clonados por alienígenas que elegeram o Congresso que aí está. É como se a alma corrompida do Brasil estivesse toda lá. E, aqui, o que se chama de povo brasileiro não se reconhecesse nem na corrupção nem no oportunismo nem no cinismo.

Há, porém, uma chance desse sentimento de cisão desaparecer, e o Brasil testemunhar pelo menos um grande momento de comunhão entre o Congresso e o povo. Alma corrompida com alma corrompida. Cinismo com cinismo. A Comissão de Constituição e Justiça da Câmara pode decidir, nesta semana, pela admissibilidade da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 171/93. Ela reduz a maioridade penal de 18 para 16 anos. Se isso acontecer, a proposta, que estava engavetada desde o início dos anos 90, terá vencido uma barreira importante e seguirá seu caminho na Câmara e no Senado. Diante do Congresso mais conservador desde a redemocratização, com o crescimento da “bancada da bala”, formada por parlamentares ligados às forças de repressão, há uma possibilidade considerável de que seja aprovada. E então o parlamento e o povo baterão com um só coração. Podre, mas uníssono.

A redução da maioridade penal como medida para diminuir a impunidade e aumentar a segurança é uma fantasia fabricada para encobrir a verdadeira violência. Segundo o Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância), dos 21 milhões de adolescentes brasileiros, apenas 0,013% cometeu atos contra a vida. Mas são eles que estão sendo assassinados sistematicamente: o Brasil é o segundo país no mundo em número absoluto de homicídios de adolescentes, atrás apenas da Nigéria. Hoje, os homicídios já representam 36,5% das causas de morte por fatores externos de adolescentes no país, enquanto para a população total corresponde a 4,8%. Mais de 33 mil brasileiros de 12 a 18 anos foram assassinados entre 2006 e 2012. Se as condições atuais prevalecerem, afirma o Unicef, até 2019 outros 42 mil serão assassinados no Brasil.

Quem está violando quem? Quem não está protegendo quem? Quem deve ser responsabilizado por não garantir o direito de viver à parte das crianças e dos adolescentes?

Ainda assim, mais de 90% dos brasileiros, segundo pesquisa realizada em 2013 pela Confederação Nacional dos Transportes, aprovam que se coloque adolescentes em prisões que violam as leis e os direitos humanos mais básicos, no quarto sistema carcerário mais populoso do mundo, em flagrante colapso e incompetente na garantia de condições para que uma pessoa construa um outro destino que não o do crime. Se aprovada essa violação da Constituição, a segurança não vai aumentar: o que vai aumentar é a violência. E a capacidade da sociedade brasileira de produzir crime disfarçado de legalidade.

Parte da sensação de que há um exército de crianças e adolescentes perversos, prontos para atacar “os cidadãos de bem”, costuma ser atribuída à enorme repercussão de crimes macabros com a participação de menores de idade. Aquilo que é exceção, ao ser amplificado como se fosse a regra, regra se torna. As estatísticas desmentem com clareza esse imaginário, mas o sentimento, reforçado por parte da mídia, seria mais forte do que a razão. Viraria então uma crença sobre a realidade, manipulada por todos aqueles que dela se beneficiam para justificar seus lucros, seus empregos e sua própria violência, esta sim amparada em números bem eloquentes.

Essa é uma parte da verdade, mas não toda. É a parte da verdade benigna para a sociedade brasileira, que só apoiaria a redução da maioridade penal por ser iludida e manipulada pela mídia ou pelos deputados ou pela indústria da segurança. Manipulada por alguém, um outro esperto e diabólico, que a levaria a conclusões erradas para obter benefícios pessoais ou para corporações públicas e privadas. Seria um alento se essa fosse a melhor explicação, porque bastaria o esclarecimento e o tratamento correto dos fatos, para que a sociedade chegasse a uma análise coerente da realidade e à óbvia conclusão de que a redução da maioridade penal só serviria para produzir mais crime contra os mesmos de sempre.

Há, porém, uma verdade mais dura sobre nós. É a da nossa alma apodrecida por um tipo de corrupção muito mais brutal do que a revelada pela Operação Lava Jato, com consequências mais terríveis do que aquela apontada com tanta veemência nas ruas. A cada ano, uma parte da juventude brasileira, menor e maior de idade, é massacrada. E a mesma maioria que brada pela redução da maioridade penal não se indigna. Sequer se importa. No Brasil, sete jovens de 15 a 29 anos são mortos a cada duas horas, 82 por dia, 30 mil por ano. Esses mortos têm cor: 77% são negros. Enquanto o assassinato de jovens brancos diminui, o dos jovens negros aumenta, como mostra o Mapa da Violência de 2014.

Há uma parcela crescente da juventude negra, pobre e moradora das periferias que morre antes de chegar à vida adulta. Num país em que a expectativa de vida alcançou os 74,9 anos, essa parcela morre com idade semelhante à de um escravo no século 19. E isso não causa espanto. Ninguém vai para as ruas denunciar esse genocídio, clamar para que ele acabe. São poucos os que se indignam e menos ainda os que tentam impedir esse massacre cotidiano.

Como é que vivemos enquanto eles morrem? Como é que dormimos com os gritos de suas mães? Possivelmente porque naturalizamos a sua morte, o que significa compreender o incompreensível, que dentro de nós acreditamos que o assassinato anual de milhares de jovens negros e pobres é normal. E, se essa é a realidade, a de que somos ainda piores do que os senhores de escravos, o que essa verdade faz de nós?

Acontece a cada dia. E a maioria das mortes nem merece uma menção na imprensa. Quando eu era repórter de polícia e ligava para as delegacias perguntando o que tinha acontecido nas madrugadas, sempre tinha acontecido, mas era visto como um desacontecido. “Não aconteceu nada”, era a invariável resposta dos policiais de plantão. Tinham morrido vários, mas eram da cota (sim, as cotas sempre existiram) dos que podem morrer. Estas seriam as mortes não investigadas, as mortes que não seriam notícia. Crime que merecia investigação e cobertura, já era bem entendido, era de branco e, de preferência, rico, ou pelo menos classe média. Dizia-se, no passado, que a melhor escola do jornalismo era a editoria de polícia. Era, de fato, a melhor escola para compreender em profundidade as engrenagens que movem a sociedade brasileira, porque já na primeira aula se aprendia que a morte de uns é notícia, a de outros é estatística.

Assim como os senhores de escravos internalizaram que os negros eram coisas, ou, conforme o momento histórico, uma categoria inferior na hierarquia das gentes, mais de um século depois da abolição oficial da escravatura, a sociedade brasileira naturalizou que existe uma parte da juventude negra que pode ser morta ao redor dos 20 anos sem que ninguém se espante. Se de fato fôssemos pessoas decentes, não era isso o que deveríamos estar gritando em desespero nas ruas? Mas nos corrompemos, ou nunca conseguimos deixar a condição de corruptos de alma.

Em vez disso, clama-se pela redução da maioridade penal, para colocar aqueles que a sociedade não protege cada vez mais cedo em prisões onde todos sabem o quanto é corriqueira a rotina de torturas e estupros, sem contar a superlotação que faz com que em muitas celas seja preciso alternar os que dormem com os que ficam acordados, porque não há espaço para todos ficarem deitados. Como se já não soubéssemos que as unidades que internam adolescentes infratores, contrariando a lei, são na prática prisões, infernos em miniatura, com todo o tipo de violações dos direitos mais básicos. Alguém, nos dias de hoje, pode alegar desconhecer que é assim? E então, como é possível conviver com isso?

Em 24 de março, no debate sobre a redução da maioridade penal na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara, o deputado “delegado” Éder Mauro (PSD-PA) afirmou, conforme cobertura do portal jurídico Jota no Twitter: “Não podemos aceitar que, assim como o Estado Islâmico, que mata sob a proteção da religião, os menores infratores, bandidos infratores, menores desse país, matam sob a proteção do ECA”. Como uma asneira desse porte não vira escândalo? Comparar a lei que ampara as crianças e os adolescentes com as (des)razões alegada pelo Estado Islâmico para decapitar e queimar pessoas é uma afronta à inteligência, mas a discussão na Câmara sobre um tema tão crucial desce a esse nível de cloaca. A sessão foi encerrada depois de um bate-boca em que foi preciso separar outros dois deputados. E, assim, o Estatuto da Criança e do Adolescente, uma das leis mais admiradas e copiadas no mundo inteiro, mas que infelizmente até hoje não foi totalmente implementada, é colocada na mesma frase que o Estado Islâmico. Colegas me sugeriram que não deveria dar espaço a uma declaração e a um deputado desse calibre, mas ele está lá, eleito, bem pago e vociferando bobagens perigosas no parlamento do país. É preciso levar muito a sério a estupidez com poder, uma lição que já deveríamos ter aprendido.

É verdade que “a carne mais barata do mercado é a carne negra”. É o que descobriu Alan de Souza Lima, de 15 anos, em fevereiro, na favela de Palmeirinha, em Honório Gurgel, subúrbio do Rio. Morreu com o celular na mão, e só por isso deixou de ser apenas estatística para virar narrativa, com nome e sobrenome e uma história nos jornais. Alan estava conversando com mais dois amigos e gravava um vídeo no celular. Acabou documentando a sua agonia, depois de ser baleado pela polícia. Como de hábito, a corporação alegou o famoso “confronto com a polícia”, o argumento padrão com que a PM costuma justificar sua assombrosa letalidade, uma das campeãs do mundo. E de imediato acusaram os três de estarem armados e de resistirem à prisão. Mas Alan morria e gravava. A gravação, que foi para a internet, mostrava que não resistiram. Chauan Jambre Cezário, de 19 anos, foi baleado no peito. Ele vende chá mate na praia e sobreviveu para dizer que nunca usou uma arma. A culpa dos garotos era a de viver numa favela, lugar onde a lei não escrita, mas vigente, autoriza a PM a matar. No vídeo há uma frase que deveria estar ecoando sem parar na nossa cabeça. Quando um dos policiais pergunta aos garotos por que estavam correndo, um deles responde:

– A gente tava brincando, senhor.

A frase deveria ficar ecoando na nossa cabeça até que tivéssemos o respeito próprio de nos levantarmos contra o genocídio cotidiano de parte da juventude do Brasil.

A gente tava brincando, senhor.

A gente tava brincando, senhor.

A gente tava brincando, senhor.

A gente tava brincando, senhor.

A gente tava brincando, senhor.

A gente tava brincando, senhor.

A gente tava brincando, senhor.

A gente tava brincando, senhor.

A gente tava brincando, senhor.

A gente tava brincando, senhor.

A gente tava brincando, senhor.

A gente tava brincando, senhor. E então o senhor atirou. Feriu. Matou.

Aqueles que foram para as ruas bradar contra a corrupção tiraram selfies com uma das polícias que mais mata no mundo. Só a Polícia Militar do Estado de São Paulo, governado há mais de 20 anos pelo PSDB, matou, em 2014, uma pessoa a cada dez horas. Se os manifestantes que tiraram selfies com a PM no protesto de 15 de março na Avenida Paulista admiram a corporação pela eficiência, precisamos compreender o que esses brasileiros entendem por corrupção, no sentido mais profundo do conceito.

Numa pesquisa da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), intitulada “Desigualdade Racial e Segurança Pública em São Paulo”, as pesquisadores Jacqueline Sinhoretto, Giane Silvestre e Maria Carolina Schlittler chegaram a conclusões estarrecedoras. Pelo menos 61% das vítimas mortas por policiais são negras. E mais da metade tem menos de 24 anos. Já 79% dos policiais que mataram são brancos. O fator racial é determinante: as ações policiais vitimam três vezes mais negros do que brancos. As mortes são naturalizadas: apenas 1,6% dos autores foram indiciados como responsáveis pelos crimes. É a Polícia Militar a responsável por 95% da letalidade policial no estado de São Paulo.

Em fevereiro, a PM de Salvador executou 12 jovens no bairro de Cabula. Um. Dois. Três. Quatro. Cinco. Seis. Sete. Oito. Nove. Dez. Onze. Doze.

O que o governador da Bahia disse, depois dos corpos tombados no chão pela polícia que comanda? A comparação jamais deve ser esquecida. Depois de parabenizar a PM, Rui Costa (PT-BA) comparou a posição do policial diante de suspeitos a de “um artilheiro em frente ao gol, que tenta decidir, em alguns segundos, como é que ele vai botar a bola dentro do gol, pra fazer o gol”. Rui Costa foi aplaudidíssimo.

É isso. Enfiar uma bala no corpo de jovens negros e pobres das periferias é fazer como a Alemanha no icônico 7X1 contra o Brasil: “botar a bola dentro do gol”. E isso dito não nos tempos de Antônio Carlos Magalhães, o poderoso coronel da Bahia, mas pelo governador do Partido dos Trabalhadores, supostamente de esquerda. O futebol continua dizendo muito sobre o Brasil.

É por isso que, no filme Branco Sai, Preto Fica, quem é negro e pobre precisa de passaporte para entrar em Brasília. O título do filme é a frase berrada pela polícia ao invadir um baile no “Quarentão”, na Ceilândia, na noite de 5 de março de 1986, onde jovens dançavam, depois de passar a semana ensaiando os passos. A PM entrou gritando: “Puta de um lado, Veado do outro. Branco sai, Preto fica”. Quase três décadas depois, Marquim do Tropa e Shockito são atores interpretando em grande parte o seu próprio papel. Marquim para sempre numa cadeira de rodas pelo tiro que levou, Shockito com uma perna mecânica depois de ter perdido a sua pisoteada por um cavalo da polícia. Resultado do Branco Sai, Preto Fica daquela noite. Sem passaporte para fora do massacre porque, na condição de pretos, eles ficaram.

Branco Sai, Preto Fica tem sido descrito como uma mistura especialmente brilhante entre documentário e ficção científica, com nuances de humor. Ganhou o prêmio de melhor filme no Festival de Brasília de 2014 e chegou há pouco aos cinemas do país. Para mim, o filme de Adirley Queirós se iguala, na potência do que diz sobre o Brasil e na forma criativa como diz, às dimensões do já mítico Bye Bye Brasil, de Cacá Diegues. São filmes que falam de Brasis diferentes, em momentos históricos diferentes, e, também por isso, falam do mesmo Brasil.

É do futuro, do ano de 2073, que vem outro personagem, Dimas Cravalanças, cuja máquina do tempo é um contêiner. A Ceilândia do presente lembra, sem necessidade de nenhum esforço de produção, um cenário pós-apocalíptico. Cravalanças tem a missão de encontrar provas para uma ação contra o Estado pelo assassinato da população negra e pobre das periferias. A voz que o orienta do futuro alerta: “Sem provas, não há passado”.

Só na ficção para responsabilizar o Estado pelo genocídio cotidiano da juventude pobre e negra? Quase sempre, sim. Mas algo se move na realidade, com pouco apoio da maioria da sociedade e escassa atenção da mídia. No fim de fevereiro, foi instalada na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo a Comissão da Verdade da Democracia “Mães de Maio”. Sua criação é uma enormidade na história do Brasil, um marco. Depois de apurar os crimes da ditadura, uma comissão para investigar os crimes praticados pelo Estado na democracia. Em busca de provas no passado recente para que tenhamos um futuro.

“Mães de Maio”, que empresta o nome à comissão, é um grupo de mulheres que perderam seus filhos entre 12 e 20 de maio de 2006, quando uma onda de violência tomou São Paulo a partir de confrontos da polícia com o crime organizado. Foram 493 mortes neste período, pelo menos 291 delas ligadas ao que se convencionou chamar de “crimes de maio”. Pelo menos quatro pessoas continuam desaparecidas. Edson Rogério, 29 anos, filho de Debora Maria da Silva, líder do “Mães de Maio”, foi executado com cinco tiros. A suspeita é de que os autores do assassinato sejam policiais. Segundo Debora, seu filho gritava antes de ser morto: “Sou trabalhador!”. Seu assassinato segue impune. Edson morreu na mesma rua que, como gari, havia varrido pela manhã.

Nem as centenas de assassinatos de maio de 2006, nem as mortes aqui relatadas ocorridas há pouco, exemplos do genocídio cotidiano, moveram sequer um milésimo da revolta provocada por crimes com a participação de menores em que foram assassinados brancos de classe média ou alta. Seria demais esperar que um assassinato fosse um assassinato, independentemente da cor e da classe social? Menos que isso é aceitar que a vida de uns vale mais do que a de outros, e que essa hierarquia é dada pela cor da pele e pela classe social. Se é assim que você compreende o valor de uma pessoa, diga o que você é diante do espelho. Não para o mundo inteiro, para você mesmo já basta.

Sim, esse Congresso comandado por dois políticos investigados por corrupção é, ressalvando as exceções, que também existem, uma vergonha. Mas minha esperança é que, no que se refere à proposta inconstitucional da redução da maioridade penal, o Congresso seja melhor do que o povo brasileiro. Tenha grandeza histórica pelo menos uma vez e diga não a nossas almas tão corrompidas.

Enquanto isso se desenrola em Brasília, vá ver Branco Sai, Preto Fica. Ao sair do cinema, você saberá que um jovem, quase certamente negro, morreu assassinado no Brasil enquanto você estava lá.

(Publicado no El País em 30/03/2015)

 

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