A boçalidade do mal

Guido Mantega e a autorização para deletar a diferença

 

Em 19 de fevereiro, Guido Mantega, ex-ministro da Fazenda dos governos de Lula e de Dilma Rousseff, estava na lanchonete do Hospital Israelita Albert Einstein, em São Paulo, quando foi hostilizado por uma mulher, com o apoio de outras pessoas ao redor. Os gritos: “Vá pro SUS!”. Entre eles, “safado” e “fdp”. Mantega era acompanhado por sua esposa, Eliane Berger, psicanalista. Ela faz um longo tratamento contra o câncer no hospital, mas o casal estava ali para visitar um amigo. O episódio se tornou público na semana passada, quando um vídeo mostrando a cena foi divulgado no YouTube.

Entre as várias questões importantes sobre o momento atual do Brasil – mas não só do Brasil – que o episódio suscita, esta me parece particularmente interessante:

“Que passo é esse que se dá entre a discordância com relação à política econômica e a impossibilidade de sustentar o lugar do outro no espaço público?”.

A pergunta consta de uma carta escrita pelo Movimento Psicanálise, Autismo e Saúde Pública (MPASP), que encontrou na cena vivida por Guido e Eliane ecos do período que antecedeu a Segunda Guerra, na Alemanha nazista, quando se iniciou a construção de um clima de intolerância contra judeus, assim como contra ciganos, homossexuais e pessoas com deficiências mentais e/ou físicas. O desfecho todos conhecem. Em apoio a Guido e Eliane, mas também pela valorização do Sistema Único de Saúde (SUS), que atende milhões de brasileiros, o MPASP lançou a hashtag #VamosTodosProSUS.

Pode-se aqui fazer a ressalva de que a discordância vai muito além da política econômica e que o ex-ministro petista encarnaria na lanchonete de um dos hospitais privados mais caros do país algo bem mais complexo. Mas a pergunta olha para um ponto preciso do cotidiano atual do Brasil: em que momento a opinião ou a ação ou as escolhas do outro, da qual divergimos, se transforma numa impossibilidade de suportar que o outro exista? E, assim, é preciso eliminá-lo, seja expulsando-o do lugar, como no caso de Guido e Eliane, seja eliminando sua própria existência – simbólica, como em alguns projetos de lei que tramitam no Congresso, visando suprimir direitos fundamentais dos povos indígenas ou de outras minorias; física, como nos crimes de assassinato por homofobia ou preconceito racial.

O que significa, afinal, esse passo a mais, o limite ultrapassado, que tem sido chamado de “espiral de ódio” ou “espiral de intolerância”, num país supostamente dividido (e o supostamente aqui não é um penduricalho)? De que matéria é feita essa fronteira rompida?

A resposta admite muitos ângulos. Na minha hipótese, entre tantas possíveis, peço uma espécie de licença poética à filósofa Hannah Arendt, para brincar com o conceito complexo que ela tão brilhantemente criou e chamar esse passo a mais de “a boçalidade do mal”. Não banalidade, mas boçalidade mesmo. Arendt, para quem não lembra, alcançou “a banalidade do mal” ao testemunhar o julgamento do nazista Adolf Eichmann, em Jerusalém, e perceber que ele não era um monstro com um cérebro deformado, nem demonstrava um ódio pessoal e profundo pelos judeus, nem tampouco se dilacerava em questões de bem e de mal. Eichmann era um homem decepcionantemente comezinho que acreditava apenas ter seguido as regras do Estado e obedecido à lei vigente ao desempenhar seu papel no assassinato de milhões de seres humanos. Eichmann seria só mais um burocrata cumprindo ordens que não lhe ocorreu questionar. A banalidade do mal se instala na ausência do pensamento.

A boçalidade do mal, uma das explicações possíveis para o atual momento, é um fenômeno gerado pela experiência da internet. Ou pelo menos ligado a ela. Desde que as redes sociais abriram a possibilidade de que cada um expressasse livremente, digamos, o seu “eu mais profundo”, a sua “verdade mais intrínseca”, descobrimos a extensão da cloaca humana. Quebrou-se ali um pilar fundamental da convivência, um que Nelson Rodrigues alertava em uma de suas frases mais agudas: “Se cada um soubesse o que o outro faz dentro de quatro paredes, ninguém se cumprimentava”. O que se passou foi que descobrimos não apenas o que cada um faz entre quatro paredes, mas também o que acontece entre as duas orelhas de cada um.

Descobrimos o que cada um de fato pensa sem nenhuma mediação ou freio. E descobrimos que a barbárie íntima e cotidiana sempre esteve lá, aqui, para além do que poderíamos supor, em dimensões da realidade que só a ficção tinha dado conta até então.

Descobrimos, por exemplo, que aquele vizinho simpático com quem trocávamos amenidades bem educadas no elevador defende o linchamento de homossexuais. E que mesmo os mais comedidos são capazes de exercer sua crueldade e travesti-la de liberdade de expressão. Nas postagens e comentários das redes sociais, seus autores deixam claro o orgulho do seu ódio e muitas vezes também da sua ignorância. Com frequência reivindicam uma condição de “cidadãos de bem” como justificativa para cometer todo o tipo de maldade, assim como para exercer com desenvoltura seu racismo, sua coleção de preconceitos e sua abissal intolerância com qualquer diferença.

Foi como um encanto às avessas – ou um desencanto. A imagem devolvida por esse espelho é obscena para além da imaginação. Ao libertar o indivíduo de suas amarras sociais, o que apareceu era muito pior do que a mais pessimista investigação da alma humana. Como qualquer um que acompanha comentários em sites e postagens nas redes sociais sabe bem, é aterrador o que as pessoas são capazes de dizer para um outro, e, ao fazê-lo, é ainda mais aterrador o que dizem de si. Como o Eichmann de Hannah Arendt, nenhum desses tantos é um tipo de monstro, o que facilitaria tudo, mas apenas ordinariamente humano.

Ainda temos muito a investigar sobre como a internet, uma das poucas coisas que de fato merecem ser chamadas de revolucionárias, transformaram a nossa vida e o nosso modo de pensar e a forma como nos enxergamos. Mas acho que é subestimado o efeito daquilo que a internet arrancou da humanidade ao permitir que cada indivíduo se mostrasse sem máscaras: a ilusão sobre si mesma. Essa ilusão era cara, e cumpria uma função – ou muitas – tanto na expressão individual quanto na coletiva. Acho que aí se escavou um buraco bem fundo, ainda por ser melhor desvendado.

Como aprendi na experiência de escrever na internet que não custa repetir o óbvio, de forma nenhuma estou dizendo que a internet, um sonho tão estupendo que jamais fomos capazes de sonhá-lo, é algo nocivo em si. A mesma possibilidade de se mostrar, que nos revelou o ódio, gerou também experiências maravilhosas, inclusive de negação do ódio. Assim como permitiu que pessoas pudessem descobrir na rede que suas fantasias sexuais não eram perversas nem condenadas ao exílio, mas passíveis de serem compartilhadas com outros adultos que também as têm. Do mesmo modo, a internet ampliou a denúncia de atrocidades e a transformação de realidades injustas, tanto quanto tornou o embate no campo da política muito mais democrático.

Meu objetivo aqui é chamar a atenção para um aspecto que me parece muito profundo e definidor de nossas relações atuais. A sociedade brasileira, assim como outras, mas da sua forma particular, sempre foi atravessada pela violência. Fundada na eliminação do outro, primeiro dos povos indígenas, depois dos negros escravizados, sua base foi o esvaziamento do diferente como pessoa, e seus ecos continuam fortes. A internet trouxe um novo elemento a esse contexto. Quero entender como indivíduos se apropriaram de suas possibilidades para exercer seu ódio – e como essa experiência alterou nosso cotidiano para muito além da rede.

É difícil saber qual foi a primeira baixa. Mas talvez tenha sido a do pudor. Primeiro, porque cada um que passou a expressar em público ideias que até então eram confinadas dentro de casa ou mesmo dentro de si, descobriu, para seu júbilo, que havia vários outros que pensavam do mesmo jeito. Mesmo que esse pensamento fosse incitação ao crime, discriminação racial, homofobia, defesa do linchamento. Que chamar uma mulher de “vagabunda” ou um negro de “macaco”, defender o “assassinato em massa de gays”, “exterminar esse bando de índios que só atrapalham” ou “acabar com a raça desses nordestinos safados” não só era possível, como rendia público e aplausos. Pensamentos que antes rastejavam pelas sombras passaram a ganhar o palco e a amealhar seguidores. E aqueles que antes não ousavam proclamar seu ódio cara a cara, sentiram-se fortalecidos ao descobrirem-se legião. Finalmente era possível “dizer tudo”. E dizer tudo passou a ser confundido com autenticidade e com liberdade.

Para muitos, havia e há a expectativa de que o conhecimento transmitido pela oralidade, caso de vários povos tradicionais e de várias camadas da população brasileira com riquíssima produção oral, tenha o mesmo reconhecimento na construção da memória que os documentos escritos. Na experiência da internet, aconteceu um fenômeno inverso: a escrita, que até então era uma expressão na qual se pesava mais cada palavra, por acreditar-se mais permanente, ganhou uma ligeireza que historicamente esteve ligada à palavra falada nas camadas letradas da população. As implicações são muitas, algumas bem interessantes, como a apropriação da escrita por segmentos que antes não se sentiam à vontade com ela. Outras mostram as distorções apontadas aqui, assim como a inconsciência de que cada um está construindo a sua memória: na internet, a possibilidade de apagar os posts é uma ilusão, já que quase sempre eles já foram copiados e replicados por outros, levando à impossibilidade do esquecimento.

O fenômeno ajuda a explicar, entre tantos episódios, a resposta de Washington Quaquá, prefeito de Maricá e presidente do PT fluminense, uma figura com responsabilidade pública, além de pessoal, às agressões contra Guido Mantega. Em seu perfil no Facebook, ele sentiu-se livre para expressar sua indignação contra o que aconteceu na lanchonete do Einstein nos seguintes termos: “Contra o fascismo a porrada. Não podemos engolir esses fascistas burguesinhos de merda! (…) Vamos pagar com a mesma moeda: agrediu, devolvemos dando porrada!”.

O ódio, e também a ignorância, ao serem compartilhados no espaço público das redes, deixaram de ser algo a ser reprimido e trabalhado, no primeiro caso, e ocultado e superado, no segundo, para ser ostentado. E quando me refiro à ignorância, me refiro também a declarações de não saber e de não querer saber e de achar que não precisa saber. Me arrisco a dizer que havia mais chances quando as pessoas tinham pudor, em vez de orgulho, de declarar que acham museus uma chatice ou que não leram o texto que acabaram de desancar, porque pelo menos poderia haver uma possibilidade de se arriscar a uma obra de arte que as tocasse ou a descobrir num texto algo que provocasse nelas um pensamento novo.

Sempre se culpa o anonimato permitido pela rede pelas brutalidades ali cometidas. É verdade que o anonimato é uma realidade, que há os “fakes” (perfis falsos) e há toda uma manipulação para falsificar reações negativas a determinados textos e opiniões, seja por grupos organizados, seja como tarefa de equipes de gerenciamento de crise de clientes públicos e privados. Tanto quanto há campanhas de desqualificação fabricadas como “espontâneas”, nas quais mentiras ou boatos são disseminados como verdades comprovadas, causando enormes estragos em vidas e causas.

Mas suspeito que, no que se refere ao indivíduo, a notícia – boa ou má – é que o anonimato foi em grande medida um primeiro estágio superado. Uma espécie de ensaio para ver o que acontece, antes de se arriscar com o próprio RG. Não tenho pesquisa, só observação cotidiana. Testemunho dia a dia o quanto gente com nome e sobrenome reais é capaz de difundir ódio, ofensas, boatos, preconceitos, discriminação e incitação ao crime sem nenhum pudor ou cuidado com o efeito de suas palavras na destruição da reputação e da vida de pessoas também reais. A preocupação de magoar ou entristecer alguém, então, essa nem é levada em conta. Ao contrário, o cuidado que aparece é o de garantir que a pessoa atacada leia o que se escreveu sobre ela, o cuidado que se toma é o da certeza de ferir o outro. O outro, se não for um clone, só existe como inimigo.

O problema, quando se aponta os “bárbaros”, e aqui me incluo, é justamente que os bárbaros são sempre os outros. Neste sentido, a eleição de 2014, da qual derivou a tese, para mim bastante questionável, do “Brasil partido”, bagunçou um bocado essa crença. Não foi à toa que amizades antigas se desfizeram, parentes brigaram e até amores foram abalados, que até hoje há gente que se gostava que não voltou a se falar. As redes sociais, a internet, viraram um campo de guerra, num nível maior do que em qualquer outra eleição ou momento histórico. Só que, desta vez, os bárbaros eram até ontem os aliados na empreitada da civilização.

Descobriu-se então que pessoas com quem se compartilhou sonhos ou pessoas que se considerava éticas – pessoas do “lado certo” – eram capazes de lançar argumentos desonestos – e que sabiam ser desonestos – e até mentiras descaradas, assim como de torturar números e manipular conceitos. Eram capazes de fazer tudo o que sempre condenaram, em nome do objetivo supostamente maior de ganhar a eleição. Os bárbaros não eram mais os outros, os de longe. Desta vez, eram os de perto, bem de perto, que queriam não apenas vencer, mas destruir o diferente ou o divergente, eu ou você. O bárbaro era um igual, o que torna tudo mais complicado.

Não se sai imune desse confronto com a realidade do outro, a parte mais fácil. Não se sai impune desse confronto com a realidade de si, este um enfrentamento só levado adiante pelos que têm coragem. Como sabemos, enquanto for possível e talvez mesmo quando não seja mais, cada um fará de tudo para não se enxergar como bárbaro, mesmo que para isso precise mentir para si mesmo. É duro reconhecer os próprios crimes, assim como as traições, mesmo as bem pequenas, e as vilanias. Mas, no fundo, cada um sabe o que fez e os limites que ultrapassou. O que aconteceu na eleição de 2014 é que os bons e os limpinhos descobriram algumas nuances a mais de sua condição humana, e descobriram o pior: também eles (nós?) não são capazes de respeitar a opinião e a escolha diferente da sua. Também eles (nós?) não quiseram debater, mas destruir. De repente, só havia “haters” (odiadores). De novo: desse confronto não se sai impune. A boçalidade do mal ganhou dimensões imprevistas.

Seria improvável que a experiência vivida na internet, na qual o que aconteceu nas eleições foi apenas o momento de maior desvendamento, não mudasse o comportamento quando se está cara a cara com o outro, quando se está em carne e osso e ódio diante do outro, nos espaços concretos do cotidiano. Seria no mínimo estranho que a experiência poderosa de se manifestar sem freios, de se mostrar “por inteiro”, de eliminar qualquer recalque individual ou trava social e de “dizer tudo” – e assim ser “autêntico”, “livre” e “verdadeiro” – não influenciasse a vida para além da rede. Seria impossível que, sob determinadas condições e circunstâncias, os comportamentos não se misturassem. Seria inevitável que essa “autorização” para “dizer tudo” não alterasse os que dela se apropriaram e se expandisse para outras realidades da vida. E a legitimidade ganhada lá não se transferisse para outros campos. Seria pouco lógico acreditar que a facilidade do “deletar” e do “bloquear” da internet, um dedo leve e só aparentemente indolor sobre uma tecla, não transcendesse de alguma forma. Não se trata, afinal, de dois mundos, mas do mesmo mundo – e do mesmo indivíduo.

A mulher que se sentiu “no direito” de xingar Guido Mantega e por extensão Eliane Berger, e tornar sua presença na lanchonete do hospital insuportável, assim como as pessoas que se sentiram “no direito” de aumentar o coro de xingamentos, possivelmente acreditem que estavam apenas exercendo a liberdade de expressão como “cidadãos de bem indignados com o PT”, uma frase corriqueira nos dias de hoje, quase uma bandeira. Ao mandar Guido e Eliane para outro lugar – e não para qualquer lugar, mas “pro SUS” – devem acreditar que o Sistema Único de Saúde é a versão contemporânea do inferno, para a qual só devem ir os proscritos do mundo. Possivelmente acreditem também que o espaço do Hospital Israelita Albert Einstein deve continuar reservado para uma gente “diferenciada”. Em nenhum momento parecem ter enxergado Guido e Eliane como pessoas, nem se lembrado de que quem está num hospital, seja por si mesmo, seja por alguém que ama, está numa situação de fragilidade semelhante a deles. O direito ao ódio e à eliminação do outro mostrou-se soberano: aquele que é diferente de mim, eu mato. Ou deleto. Simbolicamente, no geral; fisicamente, com frequência assustadora.

Mas, claro, nada disso é importante. Nem é importante a greve dos caminhoneiros ou a falta de água na casa dos mais pobres. Tampouco a destruição de estátuas milenares pelo Estado Islâmico. Essencial mesmo é o grande debate da semana que passou: descobrir se o vestido era branco e dourado – ou preto e azul. Até mesmo sobre tal irrelevância, a selvageria do bate-boca nas redes mostrou que não é possível ter opinião diferente.

Já demos um passo além da banalidade. Nosso tempo é o da boçalidade.

(Publicado no El País em 02/03/2015)

 

O vírus letal da xenofobia

O primeiro teste no Brasil deu negativo para o ebola, mas positivo para o racismo

 

Uma epidemia, como Albert Camus sabia tão bem, revela toda a doença de uma sociedade. A doença que esteve sempre lá, respirando nas sombras (ou nem tão nas sombras assim), manifesta sua face horrenda. Foi assim no Brasil na semana passada. Era uma suspeita de ebola, fato suficiente, pela letalidade do vírus, para exigir o máximo de seriedade das autoridades de saúde, como aconteceu. Descobrimos, porém, a deformação causada por um vírus que nos consome há muito mais tempo, o da xenofobia. E, como o outro, o “estrangeiro”, a “ameaça”, era africano da Guiné, exacerbada por uma herança escravocrata jamais superada. O racismo no Brasil não é passado, mas vida cotidiana conjugada no presente. A peste não está fora, mas dentro de nós.

Foi ela, a peste dentro de nós, que levou à violação dos direitos mais básicos do homem sobre o qual pesava uma suspeita de ebola. Contrariando a lei e a ética, seu nome foi exposto. Seu rosto foi exposto. O documento em que pedia refúgio foi exposto. Ele não foi tratado como um homem, mas como o rato que traz a peste para essa Oran chamada Brasil. Deste crime, parte da imprensa, se tiver vergonha, se envergonhará.

Não sei se há desamparo maior do que alcançar a fronteira de um país distante, nessa solidão abissal. E pedir refúgio, essa palavra-conceito tão nobre, ao mesmo tempo tão delicada. E então se sentir mal, e cada um há de saber como a fragilidade da carne nos escava. Corrói mesmo aqueles que têm o melhor plano de saúde num país desigual. Ele, desabitado da língua, era desterrado também do corpo. Para alcançar o que viveu o homem desconhecido, porque o que se revelou dele não é ele, mas nós, é preciso vê-lo como um homem, não como um rato que carrega um vírus. Para alcançá-lo é preciso vestir o homem. Mas só um humano pode vestir um humano.

E logo ouviu-se o clamor. Não é hora de fechar as fronteiras?, cobrou-se das autoridades. Que os ratos fiquem do lado de fora, onde sempre estiveram. Que os ratos apodreçam e morram. Para os ratos não há solidariedade nem compaixão. Parece que nada se aprendeu com a Aids, com aquele momento de vergonha eterna em que os gays foram escolhidos como culpados, o preconceito mascarado como necessária medida sanitária.

E quem são os ratos, segundo parte dos brasileiros? Há sempre muitos, demais, nas redes sociais, dispostos a despejar suas vísceras em praça pública. No Facebook, desde que a suspeita foi divulgada, comprovou-se que uma das palavras mais associadas ao ebola era “preto”. “Ebola é coisa de preto”, desmascarou-se um no Twitter. “Alguém me diz por que esses pretos da África têm que vir para o Brasil com essa desgraça de bactéria (sic) de ebola”, vomitou outro. “Graças ao ebola, agora eu taco fogo em qualquer preto que passa aqui na frente”, defecou um terceiro. Acreditam falar, nem percebem que guincham.

“Descrever uma epidemia é uma forma magistral de revelar as diversas formas de totalitarismo que maculam uma sociedade. Neste quesito, os brasileiros não economizaram. A divulgação, por meios de comunicação que atingem dezenas de milhões de pessoas, da foto de um homem negro, vindo da África, como suspeito de ebola, foi a apoteose do fantasma do estrangeiro como portador da doença”, afirmou a esta coluna Deisy Ventura, professora de direito internacional da Universidade de São Paulo, pesquisadora das relações entre direito e saúde, autora do livro Direito e Saúde Global – O caso da pandemia de gripe A (H1N1). “Veja que este fantasma é mobilizado em relação aos pobres, sobretudo negros, nunca em relação aos estrangeiros ricos e brancos. O escravagismo, terrível doença da sociedade brasileira, associa-se ao desejo conjuntural de dizer: este governo não deveria ter deixado essas pessoas entrarem. É uma espécie de lamento: tanto se esforçaram as elites para branquear este país, e agora querem preteá-lo?”

A África desponta, de novo e sempre, como o grande outro. Todo um continente povoado por nuances e diversidades reduzido à homogeneidade da ignorância – a um fora. Como disse um imigrante de Burkina Faso à repórter Fabiana Cambricoli, do jornal O Estado de S. Paulo: “Os brasileiros não sabem que Burkina Faso é longe dos países que têm ebola. Acham que é tudo a mesma coisa porque somos negros”. Ele e dezenas de imigrantes de diversos países da África estão sendo hostilizados e expulsos de lugares públicos na cidade de Cascavel, no Paraná, onde o primeiro caso suspeito foi identificado. Tornaram-se “os caras com ebola”, apontados na rua “como os negros que trouxeram o vírus para o Brasil”.

O ebola não parece ser um problema quando está na África, contido entre fronteiras. Lá é destino. O ebola só é problema, como escreveu o pesquisador francês Bruno Canard, porque o vírus saiu do lugar em que o Ocidente gostaria que ele ficasse. “A militarização da resposta ao ebola, que com a anuência do Conselho de Segurança das Nações Unidas, em setembro último, passou da Organização Mundial da Saúde a uma Missão da ONU, revela que a grande preocupação da comunidade internacional não é a erradicação da doença, mas a sua contenção geográfica”, reforça Deisy Ventura.

O homem a quem se acusou de trazer a doença para o Brasil, para o lugar onde o vírus não pode estar, sempre foi um sem nome, um ninguém, um não ser. Só é nomeado, ganha rosto, para mais uma vez ser violado. Para que continue a não ser enxergado, porque nele só se vê a ameaça, que é mais uma forma de não reconhecê-lo como humano. Ele, o rato.

A história do liberiano que morreu de ebola nos Estados Unidos expõe o labirinto. Ele tinha 18 anos quando a guerra civil começou a matança que só terminaria em 250 mil cadáveres. No campo de refugiados na Costa de Marfim conheceu uma mulher e teve com ela um filho. Ela conseguiu migrar para os Estados Unidos com a criança de três anos, ele seguiu para um campo de refugiados em Gana. Só em 2013 conseguiu voltar ao seu país devastado. Em setembro, finalmente, obteve o visto para entrar nos Estados Unidos, para casar com a mãe de seu filho e ver o menino, agora quase um adulto, se formar no ensino médio. Antes de partir, um gesto de solidariedade: ajudou a levar uma vizinha com ebola para o hospital. Sem saber, carregou com ele o vírus da doença para além das fronteiras. O labirinto era sem saída, o futuro só existia como passado, e ele morreu nos Estados Unidos. O filho do qual ficou exilado por 16 anos não pôde se despedir do pai. O legado da saudade do pai era a marca de um flagelo deixado no filho pelo olhar do Ocidente. Para os mesmos de sempre, o exílio ultrapassa a vida.

Para o homem que alcançou o Brasil em busca de refúgio e teve sua dignidade violada na exposição de seu nome, rosto e documentos, ainda existe a espera de um segundo teste para o vírus do ebola. Não importa se der negativo ou positivo, devemos desculpas. Devemos reparação, ainda que saibamos que a reparação total é uma impossibilidade, e que essa marca pública já o assinala. Não é uma oportunidade para ele, é para nós.

É preciso reconhecer o rato que respira em nós para termos alguma chance de nos tornarmos mais parecidos com um humano.

(Publicado no El País em 13/10/2014)

 

Sobre Zúñiga, Neymar e “macacos”

Os xingamentos ao colombiano que tirou da Copa a estrela da seleção revelam o Brasil em que a abolição da escravatura jamais foi completada

 

O zagueiro Juan Camilo Zúñiga entrou bruto com o joelho nas costas de Neymar. Era um jogo duro e a seleção brasileira também já tinha protagonizado entradas fortes sobre membros adversários. De lado a lado, se acertava mais do que a bola, como não é raro acontecer em partidas decisivas. Se pode criticar a arbitragem, reivindicar que a Fifa dê uma punição ao jogador colombiano, sentir fundo a tragédia de Neymar, que passa a ser a de um país inteiro. O que não deveria poder é o que aconteceu na sequência. Pelas redes sociais, brasileiros chamaram Zúñiga de “preto safado”, pediram sua morte e xingaram sua filha pequena de “puta”. Nos últimos anos, vários jogadores brasileiros foram chamados de “macacos” por torcidas de outras nacionalidades. Na sexta-feira (4), eram brasileiros aqueles que, na internet, colaram num colombiano a expressão racista.

Não deveria acontecer, mas aconteceu. E aconteceu no dia em que os capitães dos times que disputaram uma vaga para a semifinal leram um manifesto da campanha contra o racismo: “Rejeitamos qualquer tipo de discriminação de raça, orientação sexual, origem ou religião. Através do poder do futebol, podemos ajudar e livrar o nosso esporte e a nossa sociedade do racismo. Assumimos o compromisso de perseguir esse objetivo e contamos com você para nos ajudar nesta luta”. Depois do hino, brasileiros e colombianos posaram para fotógrafos e cinegrafistas com uma faixa: “Say no to racism” (“Diga não ao racismo”).

E então a jogada bruta do campo expôs a brutalidade infinitamente maior fora do campo, aquela que trespassa a sociedade brasileira há séculos – e atravessa o futebol que encantou o mundo. O futebol é fascinante também porque, ao mesmo tempo em que suspende as tensões ao criar sua própria linguagem, as revela pela mesma razão. De repente, a “Copa das Copas” expôs o Brasil dos linchamentos, o Brasil que botou a polícia militar para barrar a entrada de jovens das periferias nos shoppings na virada do ano, o Brasil em que um adolescente negro foi preso a um poste pelo pescoço com uma trava de bicicleta.

Não tenho instrumentos para medir o alcance dessa reação racista. Torço para que seja minoritária. Mas é significativo que se destaque nos sistemas de busca. A palavra que se escolhe para agredir alguém não é casual, ela sempre diz muito mais de seu autor do que daquele que ele pretende ofender.

A certa altura, na noite após o jogo, pessoas no Twitter começaram a postar: “Por favor, não coloquem as palavras ‘Zúñiga’ e ‘preto’ no buscador. É pelo bem de vocês”. Ao escrever as duas palavras, aparecia o pior. Em uma foto postada no Instagram do jogador, sua filha pequena escreve na areia: “Papi te amo”. A menina e sua mãe são ofendidas, até de estupro se fala, como costuma acontecer com as mulheres.

Esses torcedores parecem esquecer dos tantos negros da seleção brasileira, assim como do maior de todos eles, Pelé. Ou mesmo de Neymar, já que, se a questão é de “cor”, o herói abatido está longe de ser branco. Parecem esquecer de olhar para si mesmos. Para eles, possivelmente, seja difícil ver. Ver e reconhecer-se.

Quem chama Zúñiga de “macaco” nas redes sociais demonstra uma enorme ignorância, em todos os sentidos do que é ignorância – e também sobre o futebol do Brasil. Em seu belíssimo livro, “Veneno Remédio – o Futebol e o Brasil” (Companhia das Letras), José Miguel Wisnik recorda que, ainda nos anos 30 do século 20, Gilberto Freyre dizia que o modo brasileiro de jogar convertia o “jogo britanicamente apolíneo” em “dança dionisíaca”, incorporando à sua técnica “o pé ágil mas delicado” do capoeira e do dançarino de samba. Freyre disse também que o futebol europeu, reto e anguloso, ganhou, no Brasil, contornos sinuosos e curvilíneos que arredondam e adoçam o jogo. Era a celebração da mestiçagem do país que ganhava – talvez – sua melhor expressão na linguagem dos pés.

O futebol começou no Brasil com os brancos, em clubes de elite. Sobrava aos negros as bolas de meia ou de qualquer material que se arredondasse, nos campinhos e nas ruas, nas margens. E foram nestas sobras que se agigantaram, subverteram o futebol dos ingleses, criaram uma poética. Demoraram a ser primeiro recebidos pelas portas dos fundos, depois tolerados e por fim aceitos e aclamados. Mas a tensão persiste apesar das décadas. Expressa-se como um corte no momento em que, seja na arquibancada ou na arena de vale-tudo das redes sociais, um jogador negro é chamado de “macaco”.

Então, por um rasgo no tempo, lembramos que o racismo ainda é uma marca terrível, escavando abismos na sociedade brasileira. Abismos que também se desvelam na brancura da torcida dentro dos estádios da Copa, contrastando com os negros que recolhem as latinhas na parte externa, restos de uma festa em que sobram nas margens. Ou limitam-se a assistir ao desfile da elite de seu país pelos portões das “arenas”, reafirmando o seu lugar no lado de fora.

É cheia de drama e de vergonhas a entrada dos negros nos clubes de futebol do Brasil. Alguns, como o grande Friedenreich, o mulato com sobrenome alemão, esticava o cabelo, usava gorros. Esbarrou sempre no preconceito da elite, preocupada com a imagem do país no exterior, empreendendo grandes esforços para esconder os negros do futebol brasileiro. Em 1920, quando a seleção visitou Buenos Aires, um jornal local provocou o elenco brasileiro chamando os jogadores de “macaquitos”. É possível, mas não há certeza, que esta tenha sido a primeira vez que a palavra foi usada para expressar a discriminação racial no campo do futebol brasileiro.

Outro que demonstrava a força dessa violência era o mulato Carlos Alberto, ao encher a cara de pó-de-arroz. “Não podia enganar ninguém, chamava até mais atenção”, descreve o cronista Mario Filho. “O cabelo de escadinha ficava mais escadinha, emoldurando o rosto, cinzento de tanto pó-de-arroz. Quando o Fluminense ia jogar com o América, a torcida de Campos Sales caía em cima de Carlos Alberto: ‘Pó de arroz! Pó de arroz!’”.

Depois que os negros passaram a jogar nos clubes, pela razão irremovível de que eram melhores, tinham espaço no campo, mas não na vida construída ao redor do futebol, como os saraus dançantes das casas finas. A certa altura, os negros eram chamados na crônica esportiva de “colored”, porque “preto” era um palavrão. A palavra inglesa buscava escamotear o que ainda envergonhava os brancos chiques: depender de negros para colecionar vitórias.

Toda essa saga de resistência, invenção e talento está lindamente contada no livro seminal de Mario Filho, “O negro no futebol brasileiro” (Mauad X), que todos os brasileiros deveriam ler, assim como qualquer pessoa que se interesse pelo país ou pelo futebol ou por ambos. Quando Leônidas da Silva, o famoso Diamante Negro, e Domingos da Guia se tornaram fenômenos de popularidade, carregavam com eles toda uma história brutal e fascinante que, ainda hoje, está longe de acabar. E que ficaria marcada depois no “Maracanazo”, o suposto trauma que ainda persistiria no Brasil atual, por ter perdido a Copa para o Uruguai, em 1950. Jogadores negros e especialmente Barbosa, o goleiro, foram escolhidos como culpados pela derrota, numa vitória que foi comemorada antes do jogo. Pagaram uma enormidade por algo que avançava muito além deles e do Maracanã. Com a vida para sempre assinalada, Barbosa apontado na feira, na praia, na rua como aquele que “tinha feito o Brasil chorar”.

O futebol festejado nesta Copa do Mundo de 2014 no Brasil é este, em grande parte moldado por negros que “roubaram” a bola e subverteram a narrativa. É também por este futebol que parte do país suspira, ansioso para tê-lo de volta. O futebol da ginga e do encantamento que também nos fez quem somos – mas sem saber hoje se ainda somos. Para Mario Filho, Pelé completou a obra da Princesa Isabel, (que assinou a abolição da escravatura). Mas a cada dia a realidade insiste em reeditar a certeza de que a abolição no Brasil jamais foi completada.

É o que acontece quando Zúñiga é chamado de “macaco” ou de “preto safado” por torcedores brasileiros porque entrou forte em Neymar, numa partida toda ela forte. Aqui, aparece ainda mais ignorância, sobre uma outra narrativa brutal, a do futebol na Colômbia. Essa geração, a de James Rodríguez, Cuadrado e Zúñiga, assinala uma travessia em curso no seu país, ainda com imensas fraturas. O presidente recém reeleito, Juan Manuel Santos, que estava no Castelão para assistir ao jogo, ganhou apertado com a bandeira de continuar negociando com as Farcs (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia). A geração anterior de futebolistas entrava em campo sob os gritos das torcidas, que os chamavam de “narcotraficantes”.

James, Cuadrado e mesmo Zúñiga encarnam uma possibilidade, um novo, na simbologia em construção de uma Colômbia que tenta fazer do futuro um presente. Quando ignorantes pedem a morte de Zúñiga – ou “a ele o mesmo destino de Escobar” – estão incitando um crime. Há 20 anos Andrés Escobar foi assassinado em Medellín dias depois de ter feito um gol contra na Copa do Mundo nos Estados Unidos. Vomitar a ignorância, também de um processo histórico, clamando pela morte de Zúñiga nas redes sociais – esta sim, uma maldade explícita – é uma covardia monumental.

Talvez não saibam o que fazem, mas deveriam saber. Está na hora de a “pátria de chuteiras” entender mais de futebol.

(Publicado no El País em 07/07/2014)

Kaique e os rolezinhos: o lugar de cada um

A lógica que criminalizou os rolezinhos é a mesma que levou a polícia a registrar a morte do adolescente Kaique Augusto Batista dos Santos como suicídio, antes de qualquer investigação

 

A morte do adolescente Kaique Augusto Batista dos Santos e os rolezinhos não coincidem apenas no calendário. Dizem de um lugar: onde é “natural” encontrar um jovem negro e pobre, onde não é “natural” encontrá-lo. A lógica que determina a criminalização prévia dos rolezinhos e a não criminalização prévia da morte de Kaique – acontecimentos que moveram São Paulo e parte do país nos últimos dias – é a mesma. Ela indaga por territórios e revela leis não escritas.

Primeiro, quem é Kaique, já que sobre os rolezinhos estamos bem mais informados. O adolescente foi encontrado morto no sábado (11/1), próximo a um viaduto da Avenida Nove de Julho, na região central de São Paulo. Os dentes e os dedos estavam quebrados, havia um ferimento numa perna. Para a família, uma barra atravessada, que depois teria sido retirada. Para policiais, uma fratura exposta. Tinha 16 anos – e são os jovens os que mais morrem por assassinato no Brasil. Era homossexual – as mortes por homofobia cresceram 11% em 2012, comparado ao ano anterior. Era negro, como mais de 70% das vítimas de homicídio no país. É razoável esperar que suas circunstâncias, assim como as circunstâncias em que seu corpo foi encontrado, motivassem suspeitas de que pudesse ter sido assassinado. Não foi, porém, o que aconteceu. A polícia de São Paulo registrou no boletim de ocorrência: “suicídio”.

Não há, neste momento, como afirmar se Kaique foi assassinado ou se suicidou. Para afirmar, tanto um homicídio quanto um suicídio, é preciso uma investigação. E séria. Há suicídios que, pelas circunstâncias e pelas evidências, são facilmente comprováveis. Não parece ser o caso de Kaique. A questão que se impõe é: por que foi registrada como suicídio uma morte que até hoje, mais de uma semana depois, não foi esclarecida?

Na sexta-feira (17/1), centenas de pessoas fizeram um ato contra a homofobia, no centro de São Paulo, exigindo esclarecimentos sobre a morte de Kaique. Entre os cartazes, um referia-se à manutenção, sem qualquer alteração, do papel da polícia da ditadura civil-militar na atual democracia: “Desde 64 quem é torturado e assassinado foi suicidado”. A verdade – ou pelo menos parte dela – é que, não fosse a inconformidade da família, a divulgação pela imprensa e, principalmente, a revolta massiva nas redes sociais, a morte de Kaique jamais seria investigada. Ainda que a polícia possa negar que funcione assim, “suicídio”, no boletim de ocorrência, significa, na prática, caso resolvido. Encerrado, portanto, sem investigação.

Pressionada pela família de Kaique e por ativistas da luta contra a homofobia, a polícia paulista segue repetindo que não há indícios de assassinato, como repetia desde o momento em que policiais botaram os olhos no corpo do garoto e concluíram por suicídio. A Secretaria de Direitos Humanos, ligada à presidência da República, enviou para São Paulo o coordenador de Promoção dos Direitos dos LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transgêneros) para acompanhar o caso. Em nota, afirmou: Kaique foi “brutalmente assassinado” e há indicação de que “se trata de mais um crime de ódio e intolerância motivado pela homofobia”.

Neste momento, há uma ministra do PT (Maria do Rosário, dos Direitos Humanos) desmentindo a polícia do PSDB em ano de eleição. Nem assim, as provas irrefutáveis que poderiam respaldar o registro de suicídio apareceram. Ainda que, contra as aparências e a crença da maioria, a polícia paulista consiga provar que Kaique se suicidou, a questão crucial dessa história continua rigorosamente a mesma. Não se trata apenas de saber se a morte de Kaique foi assassinato ou suicídio, o que está perto de virar um FlaXFlu político-partidário, mas sim questionar aquilo que já está provado: não havia como saber a causa da morte de Kaique quando a polícia a registrou como “suicídio” no boletim de ocorrência.

E por que o fez?

Há várias hipóteses, inclusive a de reduzir as estatísticas da violência, uma preocupação constante das autoridades, que se acirra em períodos pré-eleitorais. Mas há uma explicação que pode nos ajudar a refletir sobre esse momento agudo que o Brasil vive e que é marcado pelos rolezinhos, o fenômeno mais interessante do momento, pela riqueza (inclusive contraditória) de seus significados.

É nesta esquina simbólica, na indagação sobre o território de cada um, que o caso Kaique e os rolezinhos se encontram. Ao se deparar com um jovem negro e homossexual morto, o corpo flagelado, perto de um viaduto, a polícia tem, sem qualquer investigação, a convicção de que não houve um crime. Ao encontrar um grupo de jovens da periferia, a maioria negros, bem vivos dentro de um shopping, a polícia tem a certeza de que, sim, é um crime. Se ainda não cometeram furtos, roubos e arrastões, certamente o farão. Do crime, não são vítimas, mas autores.

No primeiro caso, se Kaique foi de fato assassinado, o crime ficaria impune, não fosse a pressão das redes sociais. No segundo caso, puniu-se um crime que não aconteceu, ao se indiciar jovens que não fizeram nada além de zoar. Discriminou-se centenas de outros, que foram coagidos a se retirar de shoppings por conta de sua cor e de sua aparência, e barrou-se a entrada de outras centenas, também por causa de sua cor e de sua aparência. Sem esquecer daqueles que, como é mostrado em vários vídeos, levaram gravatas, chutes, socos e empurrões da polícia por ousar entrar num shopping.

Por quê?

As respostas são muitas e não tenho a menor chance de esgotá-las aqui. Mas há uma que vale a pena refletir com bastante atenção num momento em que o apartheid do Brasil é escancarado pelo fenômeno dos rolezinhos, independentemente do fato de esta ser ou não a intenção dos meninos que os promovem. O que une o caso Kaique e os rolezinhos é não só, mas principalmente, o lugar. A naturalização do lugar de cada um numa sociedade cindida, como continua a ser a brasileira.

Debaixo de um viaduto, um jovem negro morto não chama a atenção. Se for possível perceber pelas roupas, cabelo e acessórios que é gay, menos ainda. Não é estranho o suficiente para que a polícia acredite que precise estranhar. É, talvez, onde parte da polícia e parte da sociedade espera – e muitos até torcem, como provam os comentários homofóbicos e racistas que também proliferam na internet – que acabe um adolescente negro e homossexual que saiu de uma balada gay do centro de São Paulo. Para tanto, basta tascar no boletim de ocorrência, já que é preciso dizer alguma coisa: “suicídio”. E despachar o corpo para o Instituto Médico Legal como indigente, já que Kaique teria perdido os documentos e o celular. Vale registrar ainda que, devido à “superlotação do IML”, o corpo ficou “fora da geladeira” por dias, alcançando um estado de deformação que tornou impossível para a mãe dar um velório ao filho morto. Kaique, portanto, estava no lugar naturalizado para adolescentes com a aparência de Kaique.

Já dentro de um shopping, um grupo de jovens pobres e, em sua maioria negros, está fora de lugar para essa mesma polícia e a sociedade que a gesta, evoca e respalda. O deslocamento, por si só, passa a ser interpretado como um crime, na medida em que essa mobilidade é criminalizada por leis não escritas, mas profundamente introjetadas. Tão introjetadas que o aparato de segurança pública e o judiciário são acionados para mantê-los do lado “certo” – o lado de fora. Tão introjetadas que o fato de não existir crime tem sido espantosamente insuficiente para impedir a criminalização de um movimento de meninos e meninas que querem se divertir e dar uns beijos, mas que, ainda que estejam usando grifes, jamais são reconhecidos como “iguais”, como tendo a “aparência certa”, o cartão invisível que garante a entrada pela porta da frente.

Para os rolezeiros, o crime era estar dentro, quando se esperava que continuassem no lado de fora. Para Kaique, não havia suspeita de crime, porque, para uma parcela da polícia e da sociedade que a legitima, ele estava no lugar previsto (embaixo de um viaduto) e na condição prevista (morto). Para Kaique e para os rolezeiros há um lugar naturalizado para a morte, há um lugar naturalizado para a vida.

Simbolicamente, é o mesmo policial que bota “suicídio” no boletim de ocorrência, diante do corpo flagelado de um menino negro, e aquele que,como contou a jornalista Vanessa Barbara na Folha de S. Paulo, repetia no ouvido dos garotos no Shopping de Itaquera: “Vou arrebentar vocês. Vou arrebentar vocês”, e logo desferiu um chute num menino. Ainda que, por estrato social, a maioria dos policiais esteja mais próxima dos rolezeiros do que dos frequentadores habituais dos shoppings, como mostra a brilhante charge de Angeli, na qual um dos garotos, encostados na parede pela polícia durante um rolezinho, olha para trás e diz ao PM: “Pai?!”. Ainda – ou talvez por causa disso.

Nossa polícia é muito doente. Porque nossa sociedade é muito doente. Apodrecemos em praça pública, a maioria, outros em seus bunkers privados. Mas acredito que vivemos tempos melhores porque, até bem poucos anos atrás (ou talvez meses), o registro da morte de Kaique como suicídio não seria questionado. E nunca saberíamos o que houve porque não existiria pressão suficiente para que a polícia fizesse, de fato, uma investigação. Até poucos anos atrás a decisão dos meninos e meninas da periferia de zoar em massa nos shoppings talvez produzisse só repressão, mas não questionamento e reflexão sobre o Brasil. Ainda que os mesmos de sempre tentem desqualificar e reduzir a importância do fenômeno, pelos motivos óbvios, o embate hoje conta com mais narradores e o nível se elevou. Por paradoxal que pareça, acho que melhoramos porque começamos a sentir o quanto cheiramos mal. Antes, o cheiro estava lá, mas não o reconhecíamos como nosso.

O ano de 2014 começou apressado, com ritmo de meio. Me aparece um bom augúrio. Se há alguma esperança, ainda frágil, delicada, de que alcancemos um estágio civilizatório minimamente aceitável, ela está na capacidade de nos espantarmos com o boletim de ocorrência de Kaique e com a reação violenta e discriminatória contra os rolezinhos. Com a não criminalização prévia da morte de um e a criminalização prévia da vida de outros. Há momentos – e este é um deles – que só o espanto salva.

(Publicado no El País em 20/01/2014)

 

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