Senhor Procurador, leia o verbete “dicionário”

O caso Houaiss e a tentativa de apagamento da História

Na obra-prima de Ray Bradbury, “Fahrenheit 451”, o futuro se transformou em um mundo sem livros. Tudo o que querem que as pessoas saibam é transmitido por imensas telas de TV, onde parte da população passa os dias vivendo a vida dos personagens de ficção. Nessa sociedade totalitária, Guy Montag é um bombeiro. Não um que apaga fogo, mas um que faz fogueiras. A missão de Guy é queimar livros. “451” refere-se à temperatura, em Fahrenheit, na qual um livro incendeia. Bradbury não poderia imaginar a internet ao escrever o livro em 1953, no contexto da Guerra Fria. Assim, seu pesadelo literário era incapaz de alcançar o que aconteceu na semana passada, quando os verbetes das palavras “cigano” e “negro” foram suprimidos da versão eletrônica do mais completo dicionário brasileiro, o Houaiss. Hoje, nesse futuro que chegou, não é mais necessário fogo, mas apenas um clique, para apagar a História. Muito mais “limpo”, rápido e silencioso.

Tudo começou quando o procurador da República Cleber Eustáquio Neves, do Ministério Público Federal de Uberlândia, em Minas Gerais, requereu que o dicionário Houaiss fosse tirado de circulação e que a tiragem, venda e distribuição das novas edições fossem suspensas enquanto não tivessem sido eliminadas as “expressões pejorativas e preconceituosas” do verbete “cigano”. O procurador atendia ao pedido de um cidadão, feito em 2009. No Houaiss – e eu estou tratando o meu exemplar em papel com cuidados maternos diante da iminência de seu assassinato -, este é o verbete da palavra “cigano”, neste momento uma relíquia cultural que compartilho com vocês:

Cigano adj 1 Relativo ao ou próprio do povo cigano; zíngaro <música c.> <vida c.> <esperteza c.> Adj. s.m. 2 relativo a ou indivíduo dos ciganos, povo itinerante que emigrou do Norte da Índia para o oeste (antiga Pérsia, Egito), de onde se espalhou pelos países do Ocidente; calom, zíngaro 3 p.ext. que ou aquele que tem vida incerta e errante; boêmio <meus parentes c. não pensam no dia de amanhã> <viver como c.> 4 p.ana. vendedor ambulante de quinquilharias; mascate 5 (1899) pej. que ou aquele que trapaceia; velhaco, burlador 6 pej. que ou aquele que faz barganha, que é apegado ao dinheiro; agiota, sovina 7 que ou o que serve de guia ao rebanho (diz-se de carneiro) 8 LING m.q. ROMANI ETIM fr. cigain (sXV, atual tsigane ou tzigane, estas por infl. Do al. Zigeuner), do gr. biz. athígganos ‘intocável’, nome dado a certo grupo de heréticos da Ásia Menor, que evitava o contato com estranhos, a que os ciganos foram comparados quando de sua irrupção na Europa central; c.p. tur. cigian, romn, zigan, húng.cigány, it, zingano (a1470, atual zíngaro); f.hist. 1521 cigano, 1540 cigano, 1708 sigano COL bando, cabilda, ciganada, ciganagem, ciganaria, gitanaria, maloca, pandilha HOM cigano(fl.ciganar)”

Reproduzo o verbete completo para que todos tenham acesso ao que foi suprimido da versão eletrônica e, se a vontade do procurador vencer, de todas as versões, inclusive a impressa. Mas reproduzo também para que aqueles que não cultivam o hábito de pesquisar em dicionários possam compreender qual é a missão dessas maravilhas. O procurador Cleber Eustáquio Neves postulou o extermínio da acepção de número 5: “(1899) pej. que ou aquele que trapaceia; velhaco, burlador”. E também da 6: “pej. que ou aquele que faz barganha, que é apegado ao dinheiro; agiota, sovina”. O “pej.” colocado por Houaiss, em ambas as acepções, é um aviso de que são significados “pejorativos”. Assim como Houaiss informa ao leitor quando esta ou aquela definição é arcaica ou vem desta ou daquela língua ou refere-se a este ou àquele episódio histórico.

Como quem leu o verbete completo facilmente percebe, um dicionário tem como vocação dar todos os sentidos de uma palavra na língua. Tanto no presente, como no passado. Um dicionário é aquele que narra a trajetória, a evolução e as mudanças de significado de cada palavra ao longo de seu percurso no tempo e no espaço. Um dicionário conta a vida das palavras, com tudo o que a vida tem. Eliminar qualquer sentido de uma palavra é eliminar um pedaço de sua história – fazer de conta que essa história não aconteceu. Os próprios ciganos não deveriam querer que isso acontecesse, porque, ao apagar um sentido estarão eliminando uma das provas de que, em determinado período histórico, foram vistos como “trapaceadores, velhacos e burladores”. Ou “apegados ao dinheiro, agiotas, sovinas”.

Do mesmo modo que os negros não devem querer que seja apagada a escravidão da sua história, assim como os preconceitos e injustiças sociais que dela decorreram e que estão explicitados em algumas acepções do verbete “negro”. É por causa das consequências desses acontecimentos históricos, expressadas também em sentidos pejorativos para a palavra “negro”, que foi construído todo um movimento de resistência que pressionou – e pressiona – por políticas públicas. Mas, principalmente, porque não se apaga a história apagando-se sentidos de palavras. Se fosse assim, seria fácil mudar a vida.

Cabe a pessoas e grupos conferir novos significados às palavras no embate da História – e cabe ao dicionário registrar esses novos significados, sem, porém, eliminar a memória dos outros. A História é carregada por cada um que a viveu ou a herdou, seja um indivíduo ou uma sociedade. A tentativa de esquecimento nunca serve às vítimas – sempre aos algozes. Convenientemente se “esquece” as partes que não interessa lembrar – ou pior, apaga-se. Se teses como a do MPF de Uberlândia vingarem, os dicionários serão reduzidos à metade, assim como as enciclopédias, e não sobrará um livro de história inteiro.

Nas obras de ficção escritas no passado sobre um futuro possível e sempre assustador, porque cerceador de liberdades e dotado de uma humanidade robótica, tudo se passava em regimes totalitários. Como no próprio “Fahrenheit 451”, já citado, e no sempre lembrado “1984”, de George Orwell. Nenhum desses autores imaginou que coisas assim se passariam em uma democracia. Nem nós imaginaríamos que o Ministério Público, uma instituição democrática com reconhecidos serviços prestados em tantas áreas estratégicas para o país, faria algo assim. Esqueceu-se de que, se o totalitarismo é terrível, a ignorância também o é. E a ignorância não escolhe regime político.

O ataque ao Houaiss e à memória das palavras é um caso de ignorância. Dizem – e os números provam – que é dificílimo ser aprovado nos concursos para o Ministério Público Federal. Bem, sugiro que as próximas provas incluam uma pergunta sobre o que é um dicionário. Alguém que vai ocupar um posto tão importante precisa saber o que é um dicionário. E não estou sendo irônica. Gostaria de ter a escolha de ser, mas já ultrapassamos essa possibilidade quando o crime de ignorância foi cometido. E os verbetes “cigano” e “negro” – este último nem sequer é objeto da ação – desapareceram da versão eletrônica do Houaiss.

É preciso prestar bastante atenção em outro aspecto desse caso. O Houaiss foi atingido porque não cumpriu a determinação. Segundo o MPF de Uberlândia, em entrevista à Folha de S. Paulo, foram enviados “diversos ofícios e recomendações” às editoras para que mudassem o verbete “cigano” nos dicionários que editam. De acordo com o órgão, as editoras Globo e Melhoramentos atenderam às recomendações. A Objetiva, que publica o Houaiss, não. A editora teria alegado que não poderia fazer a mudança porque a publicação é editada pelo Instituto Antônio Houaiss e que ela é apenas a detentora dos direitos relativos à publicação.

O que isso significa? Que os sentidos históricos, mas considerados “preconceituosos e racistas” pelo MPF, já foram eliminados de outros dicionários. E só ficamos sabendo dessa afronta à memória da nossa língua porque o Houaiss não foi modificado. Se tivesse sido, nem saberíamos. Teríamos ficado mais pobres – porque todos ficamos mais pobres quando nosso idioma é saqueado de sua história – sem saber. Por não ter cumprido a determinação do MPF, a editora Objetiva e o Instituto Antônio Houaiss poderão ter de pagar uma indenização de R$ 200 mil por danos morais coletivos. A Justiça Federal ainda não se pronunciou. E a esperança é de que esta conheça o significado do verbete “dicionário”.

Na última sexta-feira (2/3), o alerta de que os verbetes “cigano” e “negro” haviam desaparecido da versão eletrônica do Dicionário Houaiss se espalhou pela rede social Twitter. No sábado, a notícia foi registrada pela imprensa. O diretor do Instituto Antonio Houaiss, Mauro Villar, afirmou à Folha de S. Paulo que não partiu dele a ordem para a retirada dos verbetes. Villar garantiu que nunca teria suprimido as definições porque elas são “espelhos que refletem ocorrências” na língua. De quem partiu a ordem, então? E por quê?

O fato é que, até a manhã desta segunda-feira em que publico essa coluna, quem digitasse as palavras “cigano” e “negro” se depararia com o seguinte aviso: “A palavra não foi encontrada”. É curioso que os ciganos, que tantas vezes na História foram perseguidos e exterminados, agora vivam, pela própria vontade, uma espécie de genocídio pela palavra. O verbete – ou tudo o que são e viveram e que está contido na palavra “cigano” – foi apagado da versão eletrônica do Houaiss. Faz pensar, não?

Posso estar sendo muito otimista, mas não acredito que esse absurdo vá perdurar. Imagino que logo os verbetes voltem à versão eletrônica – e cabe a nós denunciar se o conteúdo retornar alterado e empobrecido. Acredito também que as editoras que já retiraram os termos pejorativos dos dicionários que editam voltarão a incluí-los por dignidade e respeito à língua e seus falantes. Assim como espero que o Houaiss siga resistindo na integridade de sua versão impressa e de sua vocação. Tampouco acredito que a Justiça Federal acolha tal sandice. O caso já foi longe demais, para constrangimento de todos.

O perigo maior mora no fato de que agressões desse porte, devagar e silenciosamente, vão impondo a pior de todas as censuras: a autocensura. Quem fizer a revisão periódica do Dicionário Houaiss pode preferir não comprar a briga numa próxima vez. Assim como quem retirou o verbete “cigano” da versão eletrônica já deu um passo além e, por precaução, suprimiu também o verbete “negro”. A autocensura vem se imiscuindo na sociedade brasileira com mais frequência e empenho do que a maioria de nós consegue perceber. E esse tipo de censura, por ser insidiosa, é muito mais difícil de combater.

Em 2010, testemunhamos a tentativa de retirar um livro infantil de Monteiro Lobato das escolas por trazer conteúdo “racista”. Da mesma maneira, um conto de Ignácio de Loyola Brandão e um livro de Monique Revillion foram censurados em escolas de ensino médio porque tinham “sexo” e “violência”, respectivamente, em seus conteúdos. Na ocasião, escrevi sobre esses casos aqui.

Os protestos, especialmente com relação à obra de Monteiro Lobato, foram veementes na época. Mas, conversando com gente do mercado editorial, soube que o pior já começa a acontecer. Em um país que consome tão poucos livros quanto o Brasil, o melhor negócio para as editoras é conseguir incluir uma obra em algum dos programas governamentais de leitura. O governo – federal ou estadual – costuma encomendar uma tiragem alta. Para terem suas obras aprovadas na acirrada disputa desses programas, algumas editoras já começam a “enquadrar” os seus livros no politicamente correto para terem mais chance – ou apenas inscrever peças que se enquadrem, mesmo que exista outra com qualidade maior, mas, por exemplo, com uma cena de sexo.

Faz sentido supor que a equipe que escolhe as obras que serão aprovadas – mesmo que isso não seja pronunciado e, às vezes, seja até individual e inconsciente – vá eleger aquelas cujo conteúdo não possa dar nenhum tipo de incomodação ou polêmica. Para que se arriscar, afinal? Da mesma forma que bibliotecários de escolas, sejam públicas ou privadas, passaram a se policiar ao escolher os livros encomendados para não se indispor com os pais ou mesmo serem afastados pela direção – como já aconteceu no interior de São Paulo.

Por mais que sejamos otimistas com relação aos seres humanos, sabemos que a maioria não vai se lembrar de que seu compromisso maior é com a qualidade da educação e da literatura que promovem. Ao contrário, vai preferir garantir sua tranquilidade, seu emprego e, no caso de algumas editoras, seus lucros. É assim que a censura vai se imiscuindo na vida democrática. E, claro, como possivelmente diria o procurador da República Cleber Eustáquio Neves, “é para o nosso bem”

Os tempos são perigosos. Se nós – todos nós – não ficarmos vigilantes, continuaremos a ter nossa memória e cultura roubadas. Se o chefe do bombeiro Guy Montag, do “Fahrenheit 451”, sonhasse que um dia bastaria um clique na tecla “deletar” para acabar com um mundo inteiro de sentidos, talvez se tornasse o homem mais feliz do mundo. É curioso que atos ocorridos dentro de uma democracia sejam o sonho mais perfeito dos mais truculentos ditadores. Um clique. E nada mais.

(Publicado na Revista Época em 05/03/2012 )

Em nome do bem se faz muito mal

As tentativas de censurar a literatura são mais graves e menos isoladas do que parecem

Apenas entre agosto e outubro deste ano foram três tentativas de censurar a literatura. Três que se tornaram conhecidas, podem ter ocorrido outras. A mais rumorosa delas foi o parecer do Conselho Nacional de Educação recomendando que o livro “Caçadas de Pedrinho”, de Monteiro Lobato, fosse banido das escolas públicas. Ou apresentasse notas explicativas alertando sobre a presença de “estereótipos raciais”. Os membros do CNE viram racismo na forma como a personagem Tia Nastácia é tratada no livro. Dois meses antes, em agosto, pais de estudantes do ensino médio da rede pública de Jundiaí, no interior de São Paulo, protestaram contra o uso do livro “Cem Melhores Contos Brasileiros do Século”. Segundo eles, o conto “Obscenidades para uma dona de casa”, de Ignácio de Loyola Brandão, usa “linguagem chula” para descrever atos sexuais narrados em cartas recebidas por uma dona de casa. Ainda em agosto, mais uma polêmica. Desta vez por causa do livro “Teresa, Que Esperava as Uvas”, de Monique Revillion, também destinado ao ensino médio. No conto “Os primeiros que chegaram” a autora descreve um sequestro com estupro e assassinato.

É bastante diferente quando a tentativa de censurar a literatura parte de pais ou pedagogos – indivíduos, portanto – e quando é encampada por um órgão que tem a tarefa de pensar a educação brasileira e ajudar a aprimorá-la com suas análises e recomendações. A má qualidade da educação na rede pública, como todos sabemos, é uma das maiores, senão a maior tragédia nacional. Entre as causas da indigência educacional brasileira está o fato de que os brasileiros leem pouco ou nada leem. Boa parte deles porque não tem acesso a bibliotecas, triste realidade que os programas governamentais têm tentado mudar com menos empenho do que seria necessário.

Quando soube das tentativas de censura, minha primeira reação foi rir. Era tão absurdo que parecia mesmo piada. Percebi então que enquanto nós rimos, eles proíbem. Esta última polêmica atingiu uma repercussão tão grande, capaz de fazer o ministro Fernando Haddad manifestar-se pedindo uma revisão do parecer, apenas por tratar-se de Monteiro Lobato, um autor consagrado. Quem teve a sorte de conhecer Tia Nastácia, Dona Benta, Pedrinho, Narizinho, Emília e todos os habitantes do Sítio do Picapau Amarelo deve ao autor uma das partes mais saborosas de sua infância. Tão deliciosa quanto os bolinhos da Tia Nastácia, aliás. Nos outros dois casos, os protestos e a repercussão tiveram um volume menor.

É assim que o autoritarismo vai se insinuando em nossas vidas, pelas bordas. Vai nos comendo aos poucos e um dia se instala em nosso cotidiano como se fosse um dado da natureza. Acontece quando a equipe responsável pela seleção dos livros depara com um conteúdo que já provocou polêmica antes e, para se poupar de problemas, acaba optando por uma obra mais palatável. Pronto, o livro em questão, apesar de sua reconhecida qualidade, jamais chegará às bibliotecas. Ou quando o professor na sala de aula, que já é criticado por quase tudo, prefere abster-se do risco. Em vez de escolher o melhor livro, opta por aquele que não causará a reação raivosa de nenhum pai ou mesmo uma discussão acalorada na classe. Pronto, os alunos só terão acesso a textos que nada provocam. Ou ainda quando algum escritor começa a se policiar nos termos que usa e nos temas que aborda para ter alguma chance de ser selecionado pelos programas de governo. É assim, muito mais pelo que não é dito, pelos caminhos subjetivos, que a vida se empobrece e o controle se instaura.

A História nos mostra que censurar livros e controlar o que é escrito estão entre os primeiros atos de regimes autoritários. Vale a pena revisitar a obra de Ray Bradbury, “Fahrenheit 451”, um pequeno livro essencial que possivelmente o CNE não aprovaria.

Nas democracias, o autoritarismo costuma vir embalado no discurso do bem. Que é, de longe, o mais insidioso e difícil de identificar. Se o CNE afirma que Tia Nastácia é tratada de modo preconceituoso, como vamos nos posicionar contra a eliminação de algo tão abjeto como o racismo sem nos sentirmos boçais? Só mesmo porque o autor se chama Monteiro Lobato. Mas e se fosse um escritor menos conhecido, ainda que brilhante? Será que tantos teriam a coragem de defender a sua obra?

É preciso dizer que o CNE nega ter cometido qualquer ato de censura da obra de Monteiro Lobato. Ele apenas “recomenda” que todas as obras com “preconceitos e estereótipos”, como “Caçadas de Pedrinho”, não sejam compradas nem distribuídas pelos governos. Para o CNE, isto não é banimento. No caso de clássicos como os livros de Monteiro Lobato, se insistirem em usá-los nas salas de aula, o CNE sugere que seja feita uma nota explicativa alertando para seus pecados. Interpretar esta recomendação bem intencionada como uma tentativa de censura seria apenas mais uma das incontáveis “manipulações da imprensa”.

Entre os argumentos utilizados para defender o parecer está o de que os professores da rede pública não teriam preparo para discutir uma questão complexa como o racismo. Ou para contextualizar a época de Monteiro Lobato assim como o Brasil que ele retrata. Surpreende-me que nenhum professor tenha se manifestado contra uma generalização que poderia ser interpretada como preconceito. Mas, supondo por um momento que esta afirmação esteja correta, a saída seria banir todos os conteúdos que hoje são mal trabalhados nas salas de aula, de Monteiro Lobato à equação de segundo grau?

Neste mesmo rumo, acreditar que as crianças, por lerem “Caçadas de Pedrinho”, começariam a discriminar os negros nas ruas é no mínimo subestimá-las. É preocupante perceber que pessoas responsáveis por pensar e aprimorar a educação brasileira possam enxergar as crianças como meros receptáculos, vazios e passivos, sem capacidade de fazer relações, inferências e mediações. Se aceitarmos o argumento de que Tia Nastácia tem um tratamento racista na obra, sob os olhos de hoje e não da época de Monteiro Lobato, a atitude de um bom educador deveria ser a de calar as contradições e eliminar a oportunidade de debate?

Eu, que tive a sorte de ler toda a obra de Monteiro Lobato entre os 8 e os 9 anos e incrivelmente não me tornei racista, gostaria de dizer aos membros do CNE que mesmo a sua interpretação da personagem Tia Nastácia é pobre. Bem pobre. Mas a Academia Brasileira de Letras disse isso de uma forma muito melhor do que eu faria. Transcrevo aqui parte da manifestação da ABL, contrária ao parecer do CNE:

Um bom leitor de Monteiro Lobato sabe que tia Nastácia encarna a divindade criadora, dentro do sítio do Picapau Amarelo. Ela é quem cria Emília, de uns trapos. Ela é quem cria o Visconde, de uma espiga de milho. Ela é quem cria João Faz-de-conta, de um pedaço de pau. Ela é quem “cura” os personagens com suas costuras ou remendos. Ela é quem conta as histórias tradicionais, quem faz os bolinhos. Ela é a escolhida para ficar no céu com São Jorge. Se há quem se refira a ela como ex-escrava e negra, é porque essa era a cor dela e essa era a realidade dos afrodescendentes no Brasil dessa época. Não é um insulto, é a triste constatação de uma vergonhosa realidade histórica.

Em vez de proibir as crianças de saber disso, seria muito melhor que os responsáveis pela educação estimulassem uma leitura crítica por parte dos alunos. Mostrassem como nascem e se constroem preconceitos, se acharem que é o caso. Sugerissem que se pesquise a herança dessas atitudes na sociedade contemporânea, se quiserem. Propusessem que se analise a legislação que busca coibir tais práticas. Ou o que mais a criatividade pedagógica indicar.

Mas para tal, é necessário que os professores e os formuladores de políticas educacionais tenham lido a obra infantil de Lobato e estejam familiarizados com ela. Então saberiam que esses livros são motivo de orgulho para uma cultura. E que muito poucos personagens de livros infantis pelo mundo afora são dotados da irreverência de Emília ou de sua independência de pensamento. Raros autores estimulam tanto os leitores a pensar por conta própria quanto Lobato, inclusive para discordar dele. Dispensá-lo sumariamente é um desperdício.

A obra de Monteiro Lobato, em sua Integridade, faz parte do patrimônio cultural brasileiro”.

A única parte boa desta tentativa de censura foi me dar uma excelente desculpa para reler “Caçadas de Pedrinho” (Editora Globo) aos 44 anos e renovar minha gratidão a Monteiro Lobato pelo tanto de imaginação que me deu. Assim como comprar “Os cem melhores contos brasileiros” (Objetiva) para ler o texto de Ignácio de Loyola Brandão que provocou furor no interior de São Paulo. E de quebra ler Clarice Lispector, Graciliano Ramos, Machado de Assis, Mário de Andrade, Nélida Piñon, Lygia Fagundes Telles, Hilda Hilst, Carlos Drummond de Andrade, Raduan Nassar, Moacyr Scliar, Caio Fernando Abreu, João Ubaldo Ribeiro e todos os grandes da literatura brasileira que fazem parte da coletânea. Banir tal livro das escolas? Por favor, não!

O conto de Ignácio de Loyola Brandão é excelente. Ótimo mesmo. Quando li a notícia de que alguns pais e estudantes queriam proibi-lo por usar “linguagem chula” na descrição de atos sexuais, estranhei. Afinal, tratava-se de adolescentes do terceiro ano do ensino médio, na faixa dos 17 anos. Neste mundo. Nesta época. Será que não seriam capazes de lidar com isso? Parece-me que, se não conseguem lidar com isso, então sim temos um problema.

Foi só ao ler o conto que formulei minha própria hipótese sobre a razão de tanto incômodo. Eu arriscaria dizer que o que pode ter perturbado estes pais e estes filhos é uma outra realidade que o conto desnuda, esta sem “linguagem chula”, com a qual muitos podem se identificar. Quem ler o conto, talvez concorde comigo. É verdade que é sempre mais fácil proibir aquilo que nos produz incômodo do que olhar para dentro e tentar compreender com honestidade os nossos porquês. Perturbar, incomodar e até transtornar o leitor, em minha opinião, são qualidades num texto.

Não encontrei o “Teresa, que esperava as uvas” (Geração Editorial), de Monique Revillion. Infelizmente. Pelo que li nos jornais, o conto da discórdia chocava pela crueza da descrição da violência. De novo, o livro era usado como material de apoio para estudantes do ensino médio, com idades a partir de 15 anos. Houve quem acreditasse, com bastante estardalhaço, que os adolescentes não seriam capazes de lidar com temas como a violência urbana e a sexual. Não compreendo como não ocorreu a estas mentes privilegiadas proibir logo todo o noticiário, que nem mesmo pode alegar em sua defesa que é ficção. Que os jornais e revistas sejam vendidos nos fundos das bancas, junto com os filmes pornôs.

Tudo isso – sempre – em nome do bem. Com as melhores intenções.

Sou filha de professores de português e literatura que dedicaram boa parte da vida a dar aulas na rede pública. Meus pais, que me ensinaram a amar os livros, se esforçaram muito para que tivéssemos uma biblioteca em casa. Na minha família as roupas eram remendadas e herdadas dos primos mais velhos. Se sobrava algum dinheiro era sempre para livros, para a educação. Numa cidade pobre em bibliotecas e com bibliotecas pobres, a nossa era uma das melhores. E foi lá que amigos meus e de meus irmãos, assim como alunos dos meus pais, se serviam livremente das letras. Volta e meia encontro alguém que me interrompe o passo na rua para me dizer que a biblioteca da minha casa foi fundamental na sua vida.

Devo a esta lucidez e a esta biblioteca boa parte do que sou e consegui fazer de mim. Assim como a Lili Lohmann, a moça da livraria cuja história já contei aqui. Nunca, em nenhum momento, nem meus pais nem Lili dificultaram o acesso a um livro. Eu lia o que bem entendia porque eles sabiam que esta busca pertencia a mim, era determinada pelos meus anseios e pelos meus incômodos, pela minha curiosidade que só aumentava. A viagem da literatura é talvez a travessia mais fascinante, importante e – ainda bem – sem fim da minha vida.

Eu era criança e já intuía que a literatura era o território do indizível. Nela cabia tudo o que era humano. Mesmo o feio, o brutal. Mesmo a covardia, a inveja, os sentimentos todos que a gente prefere dizer que não sente. A literatura, como as várias manifestações da arte, é o não-lugar geográfico onde podemos lidar com nossos demônios sem que eles nos devorem. A literatura só é literatura se incontrolável.

Tenho medo que os bem intencionados do politicamente correto inventem a maior ficção de todas, que é um homem sem conflitos, sem pequenezas e sem contradições. E então a literatura, que não será mais literatura porque deixará de estar encarnada na vida, ficará reduzida a uma casca vazia e sem ressonância onde não nos reconheceremos. Porque se estes iluminados se decidirem a revisar a literatura sob a ótica do que é politicamente correto nesta época, podem começar a alimentar sua fogueira com a Odisséia de Homero. E dali em diante não sobra nada. Em sua sanha não devem se esquecer de incluir a Bíblia – aliás, como ainda não pensaram nisso?

É sério, muito sério. E nenhum de nós deve se omitir quando tentarem arrancar o cachimbo do Saci Pererê ou submeter as bruxas dos contos de fadas a um tratamento a laser para eliminação das verrugas. Sobre isso sugiro ler “Saci sem cachimbo, lobo sem dentes e gente sem pensamento”. Percebam bem quantos absurdos nos assediam, nas mais variadas instâncias, em nome do bem. Estamos conseguindo resistir, mais ou menos, e até colecionamos algumas vitórias parciais, como a reversão da censura ao humor nestas eleições. Mas é preciso se manter vigilante nesta luta de resistência.

Não sei o que pensam vocês. Mas eu, quando vejo aquelas pessoas com seu par de olhos angelicais, anunciando que ainda que seja contra a minha vontade estão fazendo o que fazem para o meu bem, não hesito. Corro.

(Publicado na Revista Época em 08/11/2010)

Saci sem cachimbo, lobo sem dentes e gente sem pensamento

Uma conversa com o psicanalista Mário Corso sobre o politicamente correto

Era uma vez um mundo de gente muito chata. E um tanto perigosa. O Saci estava ali, na dele, pulando numa perna só e aprontando umas e outras, quando… zás! Sequestraram seu cachimbo. O Saci olhou para um lado, olhou para o outro, e viu umas criaturas de olhos estalados e cara de melhores intenções. O Saci não tem medo de quase nada, mas descobriu que morre de medo de seres com cara de melhores intenções. É para o seu bem, disseram os entes desconhecidos. Fumar faz mal. E dá mau exemplo. Se você for bem bonzinho, a gente lhe dá uma prótese aerodinâmica para você saltitar com duas pernas. O Saci disse que estava muito bem obrigado com uma perna só há alguns séculos e ficaria bem satisfeito se pudesse pitar seu cachimbo sem nenhum enxerido apitando no seu ouvido. Não adiantou. Aqueles seres só tinham certezas – e uma delas era saber o que era melhor para ele.

Desde então, vem aparecendo uns sacis sem cachimbo – e sem magia – por aí. Não bastassem lobos que em vez de avós comem cenouras, crianças que não atiram pau no gato e madrastas da Cinderela com doutorado em pedagogia, resolveram mexer com o Saci.

O ataque mais recente foi denunciado no Rio Grande do Sul, semanas atrás. O Internacional, time gaúcho de futebol, está sutilmente escanteando o Saci, símbolo do clube. E substituindo-o por um macaco chamado Escurinho. Na condição de gremista, eu achei até bom. Porque o Saci, bem invocado, poderia piorar bastante a situação do clube que não só lhe arranca o cachimbo nas poucas imagens em que ele ainda aparece, como o renega pelas beiradas. Mas o Saci está acima das rivalidades futebolísticas. E tudo tem limite nessa vida.

Diante do questionamento de torcedores, o diretor de marketing do clube, Jorge Avancini, respondeu ao colunista Wianey Carley, de Zero Hora, que o Saci continua sendo a mascote do clube, “o Escurinho é a mascote dos projetos sociais”. Ah, bom. Um ponto da resposta é particularmente interessante. Na tentativa de ser politicamente correto, Avancini escorregou. Não um escorregãozinho qualquer, mas um que foi de Porto Alegre a Uruguaiana.

Para mim, coisa do Saci. Ninguém diria isso de livre e espontânea vontade. Confira: “O Saci hoje tem rejeição por parte das crianças, pelo fato de não ter uma perna, isso é visto como perdedor, e por fumar cachimbo, além de ser politicamente incorreto, as crianças estão associando este ato ao ato de fumar Crack. Se observares onde temos usado o Saci, ele já aparece sem o cachimbo”.

Dá para imaginar uma criança olhando para o Saci e pensando: “Bah, vou fumar crack!”? Ou um dirigente de clube dizendo a um jornalista que as crianças rejeitam o Saci porque não ter uma perna é coisa de perdedor? Pois é.

O fato é que o Saci é apenas mais uma vítima. (E eu, aqui no meu canto, quero continuar sua amiga.)

É natural que os personagens dos contos, do folclore e também das fadas, sofram mudanças ao longo do tempo. Eles podem mudar, como tudo, mas não sofrer um processo de limpeza que arranque deles a sua essência, o que de melhor têm a nos dizer. E, no caso da patrulha politicamente correta, arranque deles os conflitos, as diferenças, o estranho e o incômodo. Tudo aquilo que há séculos cumpre a função de nos ajudar a elaborar nossos mais fundos temores. Não é a toa que as crianças pequenas pedem para repetir sempre a mesma história – e sempre do mesmo jeito. Ali, elas podem controlar o final, administrar o medo, começar a aprender a lidar com a violência, os conflitos e o estranhamento inerente a toda vida.

Para além do bizarro destas intervenções, há algo sério em curso. Algo sobre o qual precisamos pensar. E que não é coisa só do Brasil, mas vem se esparramando pelas democracias ocidentais, já que nos regimes totalitários a censura é de outra ordem e sem nenhuma sutileza. Em 2008, por exemplo, uma agência educacional do governo britânico proibiu uma versão da história dos Três Porquinhos nas escolas, porque ela poderia ofender os muçulmanos. Outro fator que pesou foi o fato de que o conto seria uma ofensa aos pedreiros e construtores, ao tratá-los como “porcos ignorantes, que constroem casas que podem ser derrubadas pelo vento”. Só para ficar claro que a ausência de pensamento não tem limites geográficos.

É importante que o cravo continue a brigar com a rosa (e não tenham uma vida de flores de plástico), a madrasta seja uma bruxa má (e não vá para a balada de mão com a Cinderela) e o lobo devore a avó (e não seja vegetariano ou, infâmia das infâmias, prefira tomar refrigerante, como numa história que li dias atrás). A fantasia – e a arte – é o território onde lidamos com nossas verdades mais profundas. E não podem ser enquadradas pela cartilha de uma pseudo-pedagogia que tem pavor de conflitos e do lobo mau.

Para nos ajudar a pensar sobre o furor politicamente correto e os efeitos sobre nossa vida e a de nossas crianças, procurei o psicanalista Mário Corso. Ele é autor de dois livros imperdíveis: Monstruário – inventário de entidades imaginárias e de mitos brasileiros (Tomo Editorial, 2002) e Fadas no DivãPsicanálise nas histórias infantis (Artmed, 2006), este último escrito em parceria com a também psicanalista Diana Lichtenstein Corso. É uma conversa longa, como todas as boas conversas.

EU – Assistimos há alguns anos a uma espécie de “purificação” dos personagens infantis, tirando deles tudo o que é diferente, incômodo ou revelador de conflitos. Mais recentemente, começaram a implicar com o cachimbo do Saci. Ele seria um mau exemplo para as crianças e também para os adultos. Faz algum sentido um Saci sem cachimbo?
Mário Corso – O Saci é um dos raros trickster do nosso folclore. O trickster é um ser enigmático, nunca sabemos o que esperar dele. Afinal, ele pode ser bondoso ou maldoso, nos ajudar ou nos atrapalhar, nos dar um presente ou nos roubar, enfim, a sua essência é ser imprevisível. Além disso, o Saci é um ser do ar, provoca e vive nos redemoinhos. É natural que seu alimento, por excelência, seja a fumaça. Vão é matá-lo de fome se tirarem o cachimbo!

EU – Um Saci sem cachimbo é ainda um Saci? Ou é outra coisa? Daqui a pouco vão colocar uma prótese nele… O que acontece quando a gente esvazia estes personagens daquilo que os constitui?
Corso – Acontece como aconteceu a outras figuras: a gente se esquece delas. Como elas vão cada dia nos dizendo menos, elas caducam e desaparecem. A gente ainda conhece a Mula-sem-cabeça, mas a sua prima Cumacanga não. A gente vê filme com Zumbi, mas não conhece o Corpo Seco, figuraça de horror que assombrava nossos avós. Mas com o Saci acho difícil. Creio que o Saci ficou tão popular porque representa as três raças. Ele é negro, mas usa um barrete vermelho, bem ao velho estilo português, que é, aliás, a fonte de seu poder. E usa o fumo, que é um dos “presentes” que a América deu à humanidade. Ou seja, o gosto pelo fumo é o seu elemento índio. Sem cachimbo, ele perde um pouco da sua força, mais ainda é um saci. Quem sabe dias melhores virão, quando o tabagismo e o crack não sejam os demônios a serem domados e lhe restituam seu cachimbo.

EU – O Saci não é a primeira vítima desta ânsia purificadora. Os contos de fadas foram sendo alterados ao longo dos séculos, para se tornarem mais palatáveis às sensibilidades do momento. Especialmente a partir do século 19, quando viraram histórias para crianças. Há algum tempo, passam por uma nova mudança, com releituras politicamente corretas. O que acontece com as histórias e com as crianças que ouvem as histórias, quando é promovida esta “limpeza”?
Corso – Na verdade, os contos foram se adaptando ao público. Existem três migrações importantes e cada uma deixou uma marca. Não necessariamente elas seguiram uma ordem, mas podemos sistematizá-las assim: 1) os contos de fada provêm da tradição folclórica oral e, naquele momento, não pertenciam a nenhum público específico; 2) as histórias mudaram de veículo e ganharam um registro escrito, modificando então seu habitat, já que não eram contadas mais nos serões de trabalho e sim nas cortes, ou seja, deixaram o campo e vieram para a cidade; 3) por último, foram destinados às crianças. Cada mudança implicava uma adaptação a uma sensibilidade diferente. Perderam, portanto, certa crueza e rudeza camponesa.

Além disso, depois que ficaram exclusivamente infantis – e na medida em que se acredita na influência educadora de tudo o que se ministra à infância –, é natural que tenham ganhado um filtro adicional, especialmente nos aspectos que remetem à questão sexual. Mas houve também a limpeza de várias outras arestas, como passagens mais violentas, francamente incestuosas, canibalismo, esquartejamentos, tortura de vilões, filhas entregues a monstros, adultério e outros eventos mais espetaculares que divertiam seu público original, que pedia mais emoção. Quem se preocupa com os filmes violentos e o gosto dos contemporâneos por emoções fortes não se dá conta que os camponeses daquele tempo achariam Tarantino uma florzinha.

EU – Estaríamos então passando por mais uma mudança nos contos de fadas e no folclore brasileiro, com o politicamente correto? O quanto é relevante esta intervenção de certo tipo de pedagogia nos contos de fadas e no folclore? Isso no caso de podermos chamar de pedagogia uma intervenção que busca eliminar os conflitos em vez de trabalhar a partir deles…
Corso – Existem coisas que se pode dizer e coisas que não se pode dizer, esta é a lógica do politicamente correto. Aplicado a questões raciais e sexistas, o discurso de correção política pode ser muito bem-vindo. Por exemplo, eu mesmo fico muito contente em não escutar mais as piadas racistas que escutava na minha infância. Nunca gostei de escutar esse lixo, me fazia mal. Mas chegando à discussão política, aos temas amplos contemporâneos, é um desastre.

O politicamente correto na política já não é só uma escolha de palavras, mas é uma forma de não pensar. Ela pressupõe certos axiomas, especialmente o “coitadismo” e a vitimização do cidadão. E, como contrapartida, a responsabilidade total do Estado: se as coisas chegaram aonde chegaram é por que o Estado em algum momento falhou. As pessoas, os cidadãos, não falham. Eles são sempre bons e oprimidos por forças superiores.

A questão aqui é definir o que se entende por um discurso politicamente correto. Se você está pensando em algo como “1984”, de George Orwell, eu concordo. Ou seja, ele projetou nesse livro um mundo em que o totalitarismo venceria – e para quem viveu no século XX foi um pesadelo bem possível. Uma das consequências do totalitarismo seria a “novilingua”. Esta língua teria um número mínimo de palavras, feitas para diminuir a capacidade de pensar e, consequentemente, a de manifestar críticas ao governo. A lógica era a de que só corrompendo a linguagem era possível corromper o pensamento. Os fascismos e o stalinismo e várias ditaduras nos deram demonstrações práticas de um vocabulário oficial como este. É bom lembrar que os governos autoritários são muito atentos às palavras – mais do que as democracias.

Porém, a questão que nos interessa: seriam sociedades ditas democráticas imunes à corrupção da linguagem? Será que nestas sociedades democráticas encontraríamos a plena expressão? Escutando certas pessoas, eu penso que, infelizmente, não. Estamos utilizando novas formas de “novilingua”. Isso tanto na política quanto na linguagem empresarial, nos discursos sobre marketing.

Também poderíamos dizer que andamos falando “Jerkish”. Ivan Klima, um romancista tcheco, usou essa palavra para designar a linguagem oficial da cortina de ferro. Na origem, “Jerkish” quer dizer uma linguagem desenvolvida para falar com chimpanzés, portanto sem possibilidade de metáfora, onde tudo é direto. Pão-pão, queijo-queijo – ou então banana-banana. Na verdade, trata-se de um vocabulário oficial baseado em clichês e que nos faz falar sem dizer nada. Não sai nada além da informação mais banal e esperada. Quem fala com esse vocabulário dá voltas e mais voltas nas questões, diz o que é previsível, o óbvio ululante, e estamos conversados.

A questão principal é que o “Jerkish” não pede a marca singular de quem fala. Dessa forma, todos ficam iguais, independentemente se enunciado por um ou por outro. O que é dito será a mesma coisa, já que essa linguagem não permite um estilo próprio. O resultado é um empobrecimento da linguagem, e, em decorrência, o esvaziamento do pensamento.

EU – O politicamente correto é um fenômeno da nossa época?
Corso – Quem acha que a correção política é nova não é atento à História. Depois da Revolução Francesa, por exemplo, houve um surto de correção política. A abelha rainha tornou-se abelha poedeira (abeille pondeuse). E também houve trocas nos baralhos e nos jogos de xadrez. Nada de reis, rainhas, valetes, bispos… Os baralhos vinham com “liberdade, igualdade, fraternidade”. O “vous”, que supunha uma certa assimetria social, foi trocado pelo “tu” ou “tois”. A esperança revolucionária era substituir todo “vous” por “tu”. “Monsier” e “Madame” viraram “Cidadão” e “Cidadã”. Hoje, a gente pode até rir disso, mas os revolucionários achavam isso uma grande questão.

Mas, voltando. Sim, podemos dizer que os contos de fada, as histórias e canções para as crianças, podem estar ganhando mais uma “limpeza”.

“Ao tentar proteger os filhos, os deixam sem armas para o pior”

EU – Que mundo é este que precisa “limpar” os contos de fada e as histórias do folclore brasileiro? Não sei que palavra você usaria para o que está acontecendo já há algum tempo… Censura? De onde vem essa necessidade?
Corso – É um pouco de tudo, algo entre uma nova sensibilidade e a censura. Um conto muito popular até o século XIX era Bicho Peludo (ou Pele de Asno). Ele tem como mote o desejo incestuoso de um pai por sua filha. Ora, isso não é bem visto hoje, logo a história não é mais contada. Certamente Disney não vai fazer uma versão. E olha que ela era tão popular como Cinderela! Vivemos tempos psicológicos, sabemos ou intuímos o que as histórias mais transparentes nos dizem e temos uma convicção interior de que as obras de arte ou ficção mobilizam elaborações e sentimentos importantes. Portanto, passamos a evitar a evocação de assuntos polêmicos quando nos dirigimos às crianças. Talvez na esperança mágica de que o conflito não se estabeleça.

EU – Quem perde com isso?
Corso – Quem perde com isso são as crianças. São os adultos que censuram, mas são elas que deixam de dispor de excelentes histórias, que poderiam ajudar a dramatizar os conflitos que vivem. Ou alguém acredita que uma menina vai deixar de se apaixonar por seu pai e querer que a mãe suma do mundo só por que não escutou uma história infantil?

EU – Esta ânsia de eliminar os conflitos, como se os conflitos fossem ruins e incompatíveis com os bons valores da vida, é movida por qual desejo?
Corso – O que está por trás de tudo é proporcionar uma “boa educação” para as crianças e não poluí-la de maus exemplos. O mesmo serve para a violência, como se a violência fosse fruto não das relações reais que a criança vive, mas do mundo da imaginação. O que esse pessoal que acredita nessa pedagogia cor-de-rosa demonstra é que conhece muito pouco de seus filhos e esqueceu totalmente da sua infância. Esqueceu os fatos, mas de certa forma é traumatizado pela infância, tanto que quer evitar que seus filhos tomem contato com as fantasias que eles viveram e não elaboraram.

O que temos aqui é uma transmissão do medo que eles sentiram na infância. Ao tentar proteger seus filhos os deixam sem armas para o pior. Serão crianças que, sem trânsito mais aberto pelo mundo da fantasia, o que poderia treiná-las para o mundo real, vão viver os golpes do destino da forma mais dura. E ninguém pode viver sendo poupado.

Portanto, mais do que exercer uma atividade de censura, no sentido de julgamento moral, a transformação dos contos de fadas em histórias mais suaves ou mesmo didáticas provém muito mais de uma condição neurótica de pais e educadores. Eles tentam criar condições para uma infância livre de conflitos, como se isso fosse possível.

Cada novo indivíduo que nasce está fadado a ter seus sofrimentos neuróticos, que são normais e dão consistência à personalidade que ele está construindo. Seus adultos, porém, gostariam que ele fosse livre de tudo isso. O ideal dos adultos é o transcurso de uma infância e adolescência que sejam leves, uma vida de puro prazer e liberdade, uma onde eles imaginam que seria bom terem crescido.

Não estamos defendendo que se mantenha a versão da Chapeuzinho Vermelho na qual o lobo a convida a comer a carne do corpo da vovó assassinada, mas que se mantenham as histórias com direito a dramas mais encorpados, onde a complexidade do destino e da personalidade não fiquem tão abafados. Os pais e escolas de hoje “escaneiam” os livros em bibliotecas e livrarias buscando eliminar qualquer coisa que possa angustiar os pequenos. Mas eles se angustiam igual, porque a infância é uma época difícil de viver, e não há outro jeito de atravessá-la. Sentir coisas fortes sozinho é pior. A criança se sente maluca, estranha.

EU – Há algum risco dessa “reforma” nos contos de fadas e outras histórias infantis vingar? O cinema, os games e a literatura continuam produzindo vilões. Do contrário, provavelmente teriam prejuízo. Não dá para imaginar Harry Potter sem o Voldemort, por exemplo. Até mesmo “Up – altas aventuras” tem um vilão interessante….
Corso – Vinga e não vinga. Uma coisa é o que a intenção pedagógica reinante quer, outra é o que as crianças vão buscar. Existe um sem número de livros infantis e programas de crianças que são falidos, ficaram pelo caminho. As crianças cheiram o cavalo de tróia da vontade moralizadora e nem o deixam entrar. Os grandes estúdios, as grandes editoras e especialmente os games, que movem um montante de dinheiro incrível, sabem do gosto infantil por sentir medo, por temer vilões, e fabricam esses pequenos diabos para deleite dos pequenos. Não é a indústria cultural de produtos para a infância que tem essa visão moralizadora. É o espírito da nossa época, dos pais e mestres contemporâneos que acreditam que é possível e necessário educar também através das obras e personagens da cultura infantil. Invadem então o território da fantasia com tarefas escolares e tentam usar a ficção como veículo para seus sermões subliminares.

EU – Nos contos de fadas, em geral os vilões são bem populares. Por quê? Imagino que nenhuma mãe precise ficar preocupada se seus filhos gostarem do lobo mau ou da bruxa da Branca de Neve…
Corso – O mundo é muito perigoso, até para os adultos. Imagine então para as crianças, que são frágeis, pequenas, dependentes, e que não entendem metade do que está acontecendo. Como é que elas não vão querer brincar e fantasiar com o elemento do medo? O medo na fantasia é controlado, a criança pode evitá-lo, se aproximar, se afastar, ter a ilusão de controle. Enfim, ela dialoga com algo que lhe é importante. Por isso o vilão é importante. Ele é o mal, e cada um quer saber como se defender dele. O mal é um grande assunto.

O mundo não vai ficar melhor se privarmos as crianças da violência dos games, das histórias, que não é nada mais do que um aprendizado para uma violência que um dia ela vai ver na realidade. Ninguém fica violento porque joga games, eu diria até o contrário. Salvo raríssimos casos de crianças gravemente perturbadas, todas as crianças têm muito claro o que é fantasia e o que é realidade. O nosso mundo é que é violento, esses produtos são só um reflexo disso. Não adianta tentar arrumar a violência real pelo cerceamento da violência virtual. Isso é uma bobagem.

“Eu não sei se o germe mais perigoso é o totalitarismo ou a burrice”

EU – É possível educar para a não-violência?
Corso – Eu acredito em uma educação para a não-violência, mas esta deve ser feita nas relações reais que essa criança tem, na forma como ela deve tratar os outros, os seus semelhantes, a funcionária que trabalha em sua casa, o porteiro do prédio, os colegas da escola que são mais tímidos, os velhos. Como os pais não educam seus filhos onde devem educar, ficam tentando o caminho mais fácil, imaginando que é nos seus brinquedos e fantasias que está a chave para a formação do caráter.

Educar dá muito trabalho, mas muito trabalho mesmo. Essa é a chave, e nem todos estão preparados para isso, pois é preciso ler um pouco, sair do senso comum, cultivar-se. Os pais não preparados para a função projetam no mundo, em especial na mídia, a responsabilidade pela formação moral dos seus filhos. Por isso essa histeria com a violência e a sexualidade nas histórias infantis, na TV, nos games.

EU – Se as crianças procuram o medo, usam as histórias para elaborar suas questões, faz sentido histórias em que todo mundo é bom, se dá bem e não há nenhum conflito? Para que serviria uma história como essa?
Corso – Histórias assim tão chatas só servem para tranquilizar pais medrosos. Por outro lado, esse tipo de obra, que no fundo é paradidática, presta um desserviço para a literatura. Através desse tipo de narrativa – que era para ser literária e na verdade é pedagógica – afasta-se a criança da experiência estética, que é a de se emocionar com uma narrativa, com uma imagem que as traduza poeticamente, que as faça entender algo além da compreensão racional. A arte pode ser nossa melhor tradução, ou talvez a tradução do melhor de nós. Ao reduzi-la à educação, como tanto se tentou nos regimes totalitários, mata-se ao mesmo tempo a obra e seu público.

EU – E histórias como a do Shrek, em que os lugares são embaralhados… O monstro é o herói (ainda que como anti-herói), a princesa arrota e prefere ser ogra etc. Continua tendo vilões, mas o vilão maior é o príncipe encantado e a fada madrinha… Histórias como esta têm espaço para a elaboração, na medida em que, embora embaralhem a identidade de vilões e heróis, reproduzem os conflitos clássicos?
Corso – Shrek é um exemplo perfeito da atualização possível dos contos de fadas, que têm sido umas dos raros elementos da tradição que apresentam eterna vitalidade em nossa sociedade tão fascinada pelo novo. Para isso, porém, precisam se reciclar a cada nova geração de crianças. Para as atuais, um herói tem que ter consistência emocional, o antigo e simples maniqueísmo é pobre para elas. O ogro verde tem conflitos interiores, para se socializar, para aceitar os outros e se aceitar. E isso é muito compreensível para as crianças, que se vêem psicologicamente retratadas nele, que também é tão deliciosamente humano em seu corpo gordinho e produtor de todo tipo de gases.

Além disso, há o humor, que é um pré-requisito de crítica e inteligência da qual nem as crianças nem nós, adultos, abrimos mão. O humor é o grande herdeiro artístico de todas as revoluções que já protagonizamos e vivemos. Enquanto ele sobreviver, nenhuma ditadura será eterna.

Para as crianças, há poucas idealizações disponíveis. Nem seus pais, nem mestres, nem governantes, nem mesmo deuses estão disponíveis para serem admirados irrestritamente. A irreverência chegou para ficar entre os humanos e isso é bom. Por isso, devemos acrescentar atributos aos elementos imaginários disponíveis, como o ogro e o Saci – e não tirar os que eles já têm. Ziraldo já fez do Saci um bem humorado personagem. E este é o caminho, já que se trata de arranjar oportunidades para as criaturas mágicas. E não relegá-las ao desemprego, alegando que estão fora de moda.

EU – O politicamente correto nos é vendido embalado nas melhores intenções. Mas, como você disse, contém nele um germe totalitário. Como podemos nos contrapor a isso, como pais e pessoas que vivem nesse mundo?
Corso – Eu não sei se o germe mais perigoso é o totalitarismo ou a burrice mesmo. A gente usa totalitarismo com muita leviandade. Se o discurso politicamente correto for totalitarismo, teremos de inventar outra palavra para dizer como funcionava o nazismo ou mesmo a vida hoje no Irã. Lá sim é que o bicho pega. Que um iraniano ouse em um lugar público discordar do que diz um Aiatolá e veja onde vai parar…

Ou seja, o discurso politicamente correto é a versão ligth do discurso totalitário. Afinal, vivemos num estado democrático. Eles se parecem na essência porque ambos são armadilhas do pensamento, são formas de suprimir e atalhar pensamentos complexos. Ambos usam um jargão pré-estabelecido sobre todos os assuntos polêmicos, tapando as questões ou os seus desdobramentos. Ambos falam em nome do bem comum. E falar em nome do bem comum funciona como um escudo. É como os religiosos que falam em nome de deus. A partir dessa premissa não há mais questionamento possível. Eles se acham certos e pronto, estão do lado do bem.

Todo valor pode ser transformado em uma espécie de mercadoria esvaziada do seu papel. Quanto mais estratificado nosso mundo se torna, mais falamos em igualdade e tolerância. E mais falamos em igualdade e tolerância justamente quando estamos quase totalmente desprovidos de pensamento utópico, da esperança de um mundo diferente, norteado por valores realmente igualitários. Quanto mais imersos numa cultura de mercado, onde a produção de lixo se dissemina e é democratizada, mais ecologia ensinamos aos pequenos. As intenções são boas, mas a coerência é que está em falta.

“Ninguém diz mais o que pensa, e sim o que é certo dizer”

EU – O que nos leva a esse discurso vazio?
Corso – O que leva ao clichê, ao discurso vazio, é a falta de sinceridade. Ninguém diz o que realmente pensa e sim o que é certo dizer. E, com o tempo, de tanto insistir no que seria correto dizer, convencemo-nos de que aquilo é o que realmente pensamos. Só que isso não é mais um pensamento: sendo uma repetição de fórmulas esquemáticas, é justamente a ausência de pensamento. Aqui a preguiça contribui de fato: é mais fácil não pensar.

A utilização da linguagem politicamente correta, ou seja, o policiamento do que é dito em busca de que a tolerância seja um enunciado universal, baseia-se justamente nessa premissa: de que o modo de falar daria forma ao modo de pensar – e não o inverso. A intenção é das melhores, mas o resultado foi esse saneamento da linguagem, visando expurgá-la dos preconceitos a partir de uma esterilização dos enunciados.

Eu sempre fui envolvido com a questão da reforma psiquiátrica. Estudei muito a questão, estive presente em momentos políticos e desdobramentos práticos desse movimento. Especialmente na questão de formação de pessoas com um arsenal teórico para dar conta desse novo momento. Mas não consigo usar o famigerado “portador de sofrimento psíquico” para dizer “louco”. Acho que eu sempre fui atento aos loucos, cuidei de muitos deles, milito para que os escutemos na sua singularidade, que sempre que possível não se abafe seus delírios com medicamentos. Enfim, para que sejam tratados como iguais. Não acredito que eu vá mudar dizendo isso – “portador de sofrimento psíquico” –, nem eles. Posso mudar de idéia, mas até agora ninguém me convenceu.

EU – Não me parece que essa “limpeza” esteja acontecendo na produção cultural para adultos. Não é o que a literatura e o cinema nos mostram. Já no mundo das crianças tiraram até o pau que elas atiravam no gato. Por que essa preocupação com o mundo infantil? Há aqui uma nova idéia de infância em curso?
Corso – Não há nova idéia sobre a infância, o que existe é uma neo-ignorância sobre a infância. Estamos esquecendo o que já sabíamos.

EU – Por que estamos esquecendo? E por que agora?
Corso – Talvez com um exemplo fique mais claro. É fácil encontrar mães que não cantam canções de ninar para seus filhos do tipo “a Cuca vem pegar…” O que elas dizem é que a Cuca criaria uma fobia na criança. E elas têm razão, a Cuca serve para isso mesmo. A questão é que é melhor um objeto fóbico do que uma angústia difusa. Se é a Cuca que vem me pegar, eu posso me defender, eu nomeio um mal-estar. Além disso, se é a Cuca que me quer não é a minha mãe. Ela está do meu lado e não quer me botar para dentro de seu corpo, de onde eu saí. Ou seja, elas raciocinam corretamente, mas não conhecem o psiquismo de um lactente. Pensam nos seus medos.

A tradição, neste caso, é mais sábia que essas mães que, tentando defender seus filhos, os deixam mais desprotegidos, mais ansiosos. A eliminação de figuras como a Cuca empobrece uma cultura. Abandonamos a tradição e colocamos no lugar um pretenso saber científico que, na verdade, é um senso comum rasteiro.

O que se perdeu é a continuidade entre as gerações. As mães não recorrem às suas mães – ou pensam que elas não sabem de nada – para criar filhos. Então, entra a figura do especialista. O médico, o pediatra, o psicólogo, o psiquiatra… Cada um falando de um saber técnico sobre a criação dos filhos. Ou seja, tudo fragmentado e, não raro, superficial.

Bom, não vou ficar com saudades dos tempos dos palpites das comadres, mas se jogou muita coisa fora com o afastamento das gerações. Ou ainda, dizendo de outra forma, são pais que não mais confiam no seu nariz para criar seus filhos. Não se posicionam, estão perdidos sobre o que fazer e como fazer.

Como você disse, só falta proporem uma prótese para a perna do Saci. Ou, em vez de prendê-lo numa garrafa, para que nos sirvamos de suas travessuras, a gente se penalize de seu defeito físico e as crianças sejam chamadas a incluí-lo em suas brincadeiras, como se fosse um amiguinho cadeirante.

O Saci só tem a perna esquerda. Ele é assimétrico, como ocorre com várias criaturas mágicas, que mancam de um pé. Ou é assimétrico como sinal de sua passagem pelo mundo dos mortos. Tudo na natureza tende ao simétrico. Logo, o sinal de pertencer ou ter passado pelo outro mundo é a assimetria. Essa simbologia é muito antiga. Portanto, o Saci recebe seu poder do seu contato com o outro lado da força. Essa é uma tradição imaginária cuja profundidade não nos cabe julgar nem compreender, só deixar que ela se revele em nós e reverbere em nossas fantasias.

As maiores maldades vêm das menores almas”

EU – O Saci é um personagem bem menos popular hoje do que foi na minha infância. Me parece que ele já vem perdendo prestígio há mais tempo. Como, em geral, os personagens do folclore brasileiro. Por que você acha que isso acontece?
Corso – Eu acredito que muito dos nossos monstros estão desaparecendo. Creio que a responsabilidade por isso é da incompetência dos nossos escritores para escrever e reinventar boas histórias sobre nossos personagens folclóricos. Descreveram com maestria nossa realidade, mas se esqueceram da nossa alma mágica, supersticiosa, nossos medos arcaicos. Não é a toa que temos uma invasão, especialmente da cultura de língua inglesa, nesse assunto. Harry Potter, o Senhor dos Anéis... Mais recentemente, a atenção dos mais jovens têm se polarizado em torno das sucessivas séries que reciclam os vampiros. Há ainda os livros americanos da série “Percy Jackson e os Olimpianos”, que proporcionaram uma nova visada na mitologia grega. Seus autores, todos de língua inglesa, prosperam porque usam uma faixa que está livre. No Brasil, depois de Monteiro Lobato, poucos se aventuram nessa trilha. Nós deixamos o terreno baldio, não podemos reclamar se outros ocuparam.

EU – Há algumas semanas se estabeleceu uma polêmica sobre o fato de o Internacional (time gaúcho de futebol), cujo símbolo é o Saci, estar progressivamente limando o personagem, apagando o Saci…
Corso – Sim, acompanhei um pouco a discussão e me entristeço tanto por ser colorado como por ser sacizista. Não está bem definido isso ainda. A questão é que o cachimbo do Saci poderia lembrar o cachimbo do crack. Não podemos esquecer que estamos vivendo o pesadelo dessa droga. Mas acho que isso é pegar o problema pelo lado errado. Ninguém vai começar no crack porque viu um saci com cachimbo, vamos ser sérios!

De novo esquecemos a vida real da pessoa, seus laços ou a ausência deles, sua família e geralmente a omissão e a ausência dela. É aí que está a porta do crack, não em qualquer coisa que ele viu na TV ou no pátio da escola.

EU – Tudo isso só revela nossa confusão com relação à violência?
Corso – Acredito que há uma confusão sobre a gênese da violência. E ela revela o tipo de relação que temos com os outros humanos e com os limites que a vida nos impõe. Mas lidamos com o assunto como se ela fosse apenas a gênese de um aprendizado, como se pudéssemos eliminar a violência apenas com educação, sem mexer no mundo real. Somos violentos porque estamos pouco preparados para pertencer a uma sociedade. Dependemos de códigos sociais muito rígidos para ter um mínimo de capacidade de conviver em sociedade, pois a cada passo imaginamos que o outro pisou em nosso território, invadiu e baniu nossa individualidade.

O dramático em nossa sociedade é justamente a exigência da individualidade, o valor que damos a ser únicos, ímpares, e ter que conviver numa sociedade a cada dia mais massificadora. A individualidade é vendida como algo natural – e não como uma construção social de alguns séculos. Dá muito trabalho e é fonte de um bate-cabeça eterno com nossos semelhantes.

É complicado de compreender, já que nossa subjetividade nasce dessa interação: é o olhar da mãe, é o modo como nossa família fica dizendo o que somos e o que seremos que nos constitui como alguém que acabamos nos tornando um dia. Mas passamos o resto da vida tentando lidar, nos digladiando com a importância superlativa que esse olhar do outro tem sobre nós. Precisamos partilhar a vida com outros seres humanos, amar e ser amados, mas odiamos depender tanto, e acabamos mesmo odiando todos aqueles cuja presença no mundo parece ocupar o mesmo lugar da nossa ou mesmo excluí-la.

Vivemos em camadas onde o círculo da intimidade, das classes sociais, das culturas, nada disso dialoga entre si. Temos pavor de todo tipo de diferença e questionamento. Portanto, não adianta treinar as crianças para a tolerância se estamos tentando abafar nelas, e em nós, tudo aquilo que nos impede de compreender o contexto maior da nossa vida, a repercussão de nossos atos e pensamentos individuais sobre o lugar e o tempo em que vivemos. Nosso isolamento alienado faz com que tudo seja vivido como ameaça à nossa integridade. Tendemos, então, a sermos defensivos como cães em seu jardim.

EU – As crianças são mais violentas hoje ou é a nossa sensibilidade para a violência que mudou, como você costuma dizer?
Corso – É muito engraçado. Minha geração era muito cruel com animais. Na minha infância assisti a todo tipo de morte e maus tratos com passarinhos, gatos, cães, sapos, morcegos. Os animais eram um suporte para a crueldade humana. Os adultos pouco se inteiravam do fato, ou não davam a mínima. As crianças de hoje são muito melhores com os animais. Não consigo imaginar hoje bodocadas em passarinhos. Mas nós achamos que elas é que são violentas por causas de seus desenhos animados ou games.

Existe uma mudança na sensibilidade. Mesmo o bullying, que hoje é tão falado – parece que descobriram a América! – era muito pior, pois incluía o racismo e a homofobia. Eu creio que nós não vivemos tempos tão violentos, o que mudou é a sensibilidade. Toleramos menos a violência, o que é ótimo. A questão, insisto, é onde estaria a gênese da violência. A confusão vem disso.

EU – E onde está a gênese da violência?
Corso – As crianças, deixadas à própria sorte, sem a presença de adultos, podem desenvolver pequenas e grandes tiranias umas com as outras. Elas podem ser especialmente cruéis e violentas, justamente porque são frágeis, inseguras, pequenas. A violência sempre está acompanhada da impotência e/ou da ilegitimidade. As maiores maldades vêm das menores almas.

Quando uma criança apela para isso, quer fazer valer um espaço, um valor que simbolicamente não tem, e então usa do ato violento, da intimidação, para “crescer” frente ao grupo. A resposta para a violência e o bullying é que as crianças estejam acompanhadas, que seus adultos responsáveis – incluindo os professores, que geralmente e infelizmente têm de se ocupar de um número excessivo de alunos – zelem por elas. E isso, eu insisto, dá muito trabalho. E é caro. É mais fácil botar a culpa nos games e no cinema.
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Ou no cachimbo do Saci.

(Publicado na Revista Época em 24/05/2010)

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