Espelho, espelho não meu

Nas viagens, a paisagem que mais nos espanta é a nossa

Descobri que viajar é trocar de espelho. Em casa, o espelho que nos reflete não mostra nossa mudança. Como todos os objetos da nossa rotina, como nossa rotina mesmo, o espelho da casa é um espelho domesticado. Sabemos o que vamos enxergar. Às vezes até achamos que controlamos este espelho como dominamos as mesas e as cadeiras, a posição do sofá, o canal do controle remoto, o dia de lavar os lençóis da cama. Mesmo quando notamos um quilo a mais ou um par de olhos mais fundos, aquele espelho é nosso e por ser nosso nos ameaça menos. Damos uma passadinha diante dele, às vezes involuntária, e ele nos conforta ao garantir que, sim, estamos lá. Sou eu que olho para mim. E aquela superfície lisa me garante que existo.

Quando deixamos nosso mundo e partimos em direção a outros destinos, a primeira paisagem que nos espanta é nossa própria geografia. Ao bater a porta de casa em direção ao novo, a primeira imagem familiar que abandonamos é a de nós mesmos. Nos deslocamos primeiro em nós. E o primeiro estrangeiro que nos espanta é o que nos encara do espelho da estação rodoviária ou do aeroporto, do banheiro do posto de gasolina. Quem é esta pessoa que me olha? Com frequência, somos tentados a fazer a pergunta da poeta Cecília Meireles: “Em que espelho ficou perdida a minha face?”.

Toda viagem contém nossa esperança de sermos mais livres, mais felizes, mais aventureiros, mais relaxados, melhores. Em geral, deixamos um cotidiano que nos confina a uma vida que para muitos é menor e mais apertada do que nos sonhos. Ao botar o pé na estrada, temos a expectativa de embarcar numa outra forma de ser e de viver, em um outro eu que nos parece mais verdadeiro que aquele que acorda todo dia de manhã para seguir um roteiro previsível. Como se longe de casa tivéssemos uma espécie de autorização para finalmente sermos um tal de eu mesmo.

Então, a primeira surpresa. Aquele rosto que nos estranha no espelho do caminho é nosso. Nos perturba mais porque sabemos que é nosso, ainda que diferente pelo ângulo, pelo tamanho e pela luz desconhecidas do objeto que nos reflete com outras verdades. E já ali, neste primeiro confronto, vemos algo que não sabíamos sobre nossa face, algo que o espelho domesticado não havia nos mostrado. Começamos a compreender ali o pior e o melhor das viagens: o risco. Talvez o que as pessoas que detestam sair de casa ou alterar a rotina mais temam é justamente o que podem ver de si mesmas num espelho que não é o seu.

É só ao sair que descobrimos que não podemos sair. Podemos embarcar apenas em nosso próprio corpo. Às vezes aquelas malas todas, aqueles tantos sapatos e roupas, são apenas uma tentativa inconsciente e desesperada de evitar a descoberta de que somos nossa própria bagagem e viajamos apenas com tudo o que somos. Nem mais nem menos, nosso excesso de peso é nossa nudez. É preciso abrir a porta da rua para compreender que ela só abre para dentro e só leva para dentro.

É o que diz o poema de Fernando Pessoa, estampado no último andar do Aeroporto de Congonhas, em São Paulo. “Para viajar basta existir. Vou de dia para dia, como de estação para estação, no comboio do meu corpo ou do meu destino, debruçado sobre as ruas e as praças, sobre os gestos e os rostos, sempre iguais e sempre diferentes, como, afinal, as paisagens são. (…) A vida é o que fazemos dela. As viagens são os viajantes. O que vemos não é o que vemos, senão o que somos”.

Viajar é uma escolha profunda, que não depende da distância nem do destino. Nela, estamos sempre sozinhos, ainda que no meio de hordas de turistas. As paisagens externas iluminam nossa paisagem interior, para o bem e para o mal. Não visitamos Roma, Nova York ou Paris, as pirâmides do Egito, o deserto do Saara, as savanas africanas, o Rio de Janeiro, a Amazônia ou o outro lado da rua. O que fazemos é revisitar a nós mesmos no contato com diferentes culturas e percepções de mundo. A mudança de paisagem ilumina os cantos escuros dos precipícios e as profundezas dos lagos que nos habitam. Sempre esperamos que exista em nós um belvedere, é esta a nossa expectativa ao viajar. E nem sempre é um belvedere o que encontramos. Por isso toda viagem é subjetiva e, possivelmente, quando detestamos um lugar ou um povo é porque não gostamos do que vimos em nós.

Sempre que viajo cruzo com pessoas, cada vez mais pessoas, que se interessam apenas pelo que podem comprar nas lojas de cada destino. Que em geral são sempre as mesmas em toda parte. Transformam a experiência de viajar numa experiência de consumo. O planeta passa a ser um grande shopping com diferentes arquiteturas. E lá gastam tudo o que podem para manter a ilusão de que viajam em perfeita segurança porque este mundo – o do consumo – conhecem bem. Acreditam secretamente que assim não se arriscam. O que não sabem, mas em algum momento vão acabar descobrindo diante do espelho do banheiro, é que a única viagem impossível é a fuga de si mesmo.

Existem ainda os que fotografam ou filmam tudo, o tempo todo, na tentativa de controlar sua imagem no espelho. Veem o mundo protegidos pela lente da câmera. Não experimentam, não se expõem, não vivenciam – apenas registram. Não o registro da vida vivida, mas o registro de que estiveram lá sem estar. Viajam para colecionar imagens, não para viver experiências e serem transformados por elas. Para estes, a imagem vale mais que a vida, quase a substitui. A vida é risco – a fotografia pode ser manipulada e melhorada com photoshop. Vão descobrir onde estiveram ao se assistirem sorridentes em diferentes cenários onde posaram como personagens de si mesmos.

Assim como há aqueles que esperam que uma viagem vá mudar radicalmente o curso de sua existência. É possível que mude. Mas talvez não do jeito que esperam se o que esperam é se transformar num outro.

Toda viagem é sem volta e leva sempre ao mesmo lugar: a nós mesmos. Ao final de cada uma, o melhor que podemos esperar é termos nos tornado mais o que somos. Ter alcançado porções mais longínquas de nossa própria geografia, mesmo que esta seja uma floresta densa e sombria. Ter sido ampliado pela experiência de se arriscar a olhar para dentro, escalando nossas próprias montanhas, mais altas que o Everest, e atravessando nossos rios internos a nado, ainda que eles estejam infestados de piranhas e jacarés famintos.

Na paisagem interna de todos nós há partes selvagens que nos provocam medo. Há monumentos dos que vieram antes que podem nos pesar ou atrapalhar, ainda que nos deslumbrem com sua grandeza. Há ruínas que lamentamos, há abismos que nos parecem intransponíveis e há também largas porções de sol e de praias de águas transparentes se procurarmos com afinco. Somos variados como o mundo que nos encanta e assusta ao mesmo tempo. Só precisamos olhar com coragem para o espelho que nos reflete e descobrir aonde ele vai nos levar. Não há setas indicando o caminho. Como dizem aqueles que moram na beira das estradas com precisão mal compreendida, aos viajantes que perguntam por direção: siga em frente, toda vida.

(Publicado na Revista Época em 25/10/2010)

Menos leviandade, por favor

O falso debate do aborto só favorece a política suja

Parecia que tudo ia bem. Na nossa jovem democracia, de apenas 25 anos, tínhamos no primeiro turno três candidatos a presidente com votação significativa por quem podíamos sentir respeito. Lamentávamos os debates de mentirinha, as imagens esculpidas com botox e cirurgias plásticas (para quê?), as promessas de ocasião. Tínhamos preferência por um, divergências com outro, natural e desejável numa sociedade plural. Mas não tínhamos vergonha. Não havia, nesta disputa presidencial, nenhum Fernando Collor de Mello ou Paulo Maluf, cujas biografias dispensam comentários. O segundo turno veio e pensamos: quem sabe agora haverá um debate de verdade e poderemos comparar propostas e idéias? E então começamos a sentir vergonha. Profunda vergonha.

É difícil acreditar que depois de tudo o que vivemos para resgatar democracia e respeito próprio, venham com esta baixaria. A de um falso debate sobre o aborto. Porque uma discussão de verdade sabemos que nenhum dos dois candidatos quer fazer. No finalzinho do primeiro turno, uma campanha anônima na internet transformou Dilma Rousseff em “abortista” e “assassina de fetos”. Como parece que a estratégia das catacumbas colou, com a candidata do PT perdendo votos entre evangélicos e um e outro bispo católico exortando seus fiéis aqui e ali, a inquisição continua e com fogueiras cada vez maiores. De repente, querem nos fazer acreditar que a grande questão nacional é saber se Dilma Rousseff é a favor ou contra o aborto. Que questão é esta?

Existe, sim, uma questão de saúde pública que não deveria ser ignorada por nenhum candidato sério. Segundo reportagem do jornal O Globo deste domingo, o aborto ilegal mata uma brasileira a cada dois dias. Segundo a Pesquisa Nacional do Aborto, realizada pela UnB e Anis, aos 40 anos uma em cada cinco mulheres já fez aborto, o que equivale a mais de 5 milhões de brasileiras. Segundo a mesma pesquisa, 15% das mulheres que abortam são católicas, 13% protestantes ou evangélicas, 16% de outras religiões e 18% não responderam ou não têm religião. Segundo o Ministério da Saúde, o aborto é a quarta causa de mortalidade materna no país. Em algumas regiões do Nordeste, segundo a Rede Feminista de Saúde, chega a ser a principal causa de morte.

Você pode e tem o direito assegurado pela Constituição de acreditar no que quiser, professar a fé que bem entender ou não ter fé nenhuma. O que ninguém deveria poder – seja candidato a presidente ou cidadão – é ignorar a morte de seres humanos. Todos nós, que não somos hipócritas, sabemos que as mulheres mais ricas procuram boas clínicas e abortam em segurança. E todos nós, que não somos hipócritas, sabemos que são as mulheres mais pobres que morrem em procedimentos clandestinos, porque não têm dinheiro para pagar as boas clínicas. Quando estas jovens mulheres morrem, deixam filhos que não podem cuidar e famílias que se desfazem pela sua ausência, provocando problemas sociais em cadeia. Esta é uma tragédia que começa com a morte de uma pessoa e vai causando muita dor pelo caminho dos que ficam. Transformar a vida destas mulheres em moeda de barganha política, como temos assistido no início deste segundo turno, é uma indignidade.

Acho curioso que algumas pessoas que se dizem religiosas acreditam ter o monopólio do discurso da vida. E que estes que acreditam terem privatizado a verdade, ao falar em nome da vida não se preocupem com a morte destas mulheres. Não se coloquem por um minuto sequer no lugar destas mulheres para tentar alcançar seu desespero e sua dor. E então, por empatia e humanidade, perceberem que ninguém deveria morrer por falta de assistência. Assusta-me a rapidez com que estes supostos religiosos julgam e condenam outros seres humanos. Acho a compaixão um sentimento profundo, redentor. E não consigo compreender a compaixão seletiva que move estes dedos em riste.

A morte de mulheres em abortos clandestinos é, sim, uma questão de saúde pública. Que deveria ser discutida seriamente, com informação e profundidade. Mas não é esta a questão que foi lançada na lama desta campanha eleitoral. Aqui, trata-se apenas de demonizar uma candidata em busca dos votos de um certo tipo de devoto. Enquanto alguns grupos de fiéis se lançam cheios de sanha, deitando saliva pelo chão, algumas cúpulas religiosas aproveitam para ganhar alguns pontos de vantagem no embate em torno da questão do aborto, cuja descriminalização vem avançando na América Latina. Por acreditar que os fins justificam os meios, iludem-se que suas mãos seguem limpas.

Eu esperava mais de José Serra. Não há provas de que a lama tenha vindo dos setores mais abjetos da sua campanha. Mas é visível que ele tem empenhado corpo e alma para arrancar toda a vantagem possível da baixaria. Preocupante para alguém que quer ser presidente do país. Eu esperava mais de Dilma Rousseff. Que se comportasse como uma candidata a presidente e colocasse a questão com serenidade, como teve a integridade de fazer no passado recente. Em vez de tergiversar e se encolher diante da baixaria. A nós, eleitores, cabe a pergunta: quem ganha com isso? Me parece que até quem pensa que ganha, perde.

Tenho assistido perplexa ao show de fervor religioso de ambos os candidatos. E eu que não sabia que Serra e Dilma eram devotos dedicados? Não sei em que país eu andava até agora que nunca tinha notado este ardor místico. Na minha ingenuidade, eu esperava ter a chance de assistir a um programa eleitoral que não fosse apenas espetáculo. E lá está Dilma “agradecendo a Deus pela dupla graça” e fazendo “uma campanha, antes de tudo, em defesa da vida”. Alguém está fazendo uma campanha em defesa da morte? Descobrimos então que Serra fará um governo com “Deus no peito”. Mulheres grávidas desfilam pela tela porque o candidato promete cuidar dos bebês mesmo antes de nascerem (!). Se há algo que os crentes de verdade – e não os que usam a religião para fazer comércio eleitoral – deveriam se preocupar é com gente capaz de reduzir Deus a cabo eleitoral.

Admiro Marina Silva, pela sua trajetória de vida e pela sua integridade em momentos cruciais. Assim como compartilho da sua visão sobre o meio ambiente e o desenvolvimento sustentável. O que nunca me impediu de sentir arrepios ao ouvi-la colocar a teoria científica da evolução, de Charles Darwin, no mesmo patamar da mitologia do criacionismo. Ou quando sugere transformar o aborto em plebiscito. Ou ao declarar-se contra o casamento gay.

Embora suas posições divirjam das minhas nestas áreas, isto nunca me impediu de ter respeito por tudo o que ela é – e o que representa. Pelo menos até agora. É natural e desejável numa sociedade plural ter convergências e divergências. O que é inaceitável é o desrespeito. O que é intolerável é a demonização de pessoas. O que é inadmissível é transformar um problema de saúde pública, que causa morte de gente, em moeda de barganha eleitoral.

Não me interessa saber se Dilma Rousseff e José Serra são contra ou a favor da descriminalização do aborto. O que me interessa é saber o que vão fazer para impedir que estas mulheres continuem morrendo, independentemente de suas crenças. E, neste momento, talvez me interesse ainda mais como vão se comportar daqui para frente diante da baixaria que se transformou este segundo turno eleitoral. Se vão rolar na lama com o que tem de pior neste país. Ou em algum momento vão levantar a cabeça e se lembrar de quem são – e do que querem ser.

A nós, que temos de escolher entre um dos dois para ser presidente do país, cabe renegar a hipocrisia. Mostrar que não caímos neste velho jogo sujo. Deixar claro que esperamos mais, que desejamos mais, que exigimos mais de quem vai nos governar. É duro sentir vergonha do nível da campanha eleitoral ao cargo mais importante do país, mas pior é ter vergonha do nosso voto. Quando candidatos perdem a compostura, cabe a nós, eleitores, manter a nossa. E mostrar a eles que o Brasil mudou.

Ou não mudou?

(Publicado na Revista Época em 11/10/2010)

O dia seguinte é hoje

É hora de o Brasil ter fome de educação – e isso depende de nós, eleitores

Ao participar na semana passada de um debate sobre o Brasil na cidade de Ferrara, na Itália, fui surpreendida por uma pergunta. O encontro era parte da programação do Festival da Internazionale, famosa revista italiana que publica reportagens de todos os cantos do mundo. Antes do início do encontro, tive dúvidas se o Brasil despertaria interesse suficiente para preencher o Teatro Comunale, um espetacular prédio do século XVIII. A plateia e o primeiro andar de camarotes lotaram, o que diz muito sobre o momento vivido pelo Brasil. Ao final do debate, uma jovem italiana, que recentemente viajara pelo país, perguntou se o povo brasileiro era realmente alegre ou apenas resignado. É uma boa pergunta – e não tem uma resposta só nem uma resposta fácil.

Tive a sorte de andar muito pelo país em mais de 20 anos de reportagem. Conheço vários Brasis. E sempre me pareceu que o povo brasileiro, apesar das muitas e profundas diferenças regionais, é unido por algo de muito seu: uma tristeza que ri de si mesma. Nessa alegria triste há na fundura dos olhos que sorriem uma melancolia que vem de muitas dores, das cicatrizes de uma vida arrancada com dificuldade dia após dia, seja nos confins do sertão nordestino, na floresta amazônica ou na periferia de São Paulo. E o que me surpreende, sempre, é que a intensidade desta alma se manifeste como alegria, ainda que triste. Que as pessoas tentem sorrir, ainda que chova salgado nos olhos que sorriem.

Tentei contar isso à garota italiana, não sei se consegui, porque para mim é muito mais fácil escrever do que falar. Contei a ela também que acredito que vivemos um momento muito rico no país, que pode ser traduzido como um resgate da esperança. Apesar das críticas que faço a Lula e a seu governo, especialmente no campo da ética na política e da ética no tratamento do patrimônio público, a vida do povo brasileiro melhorou. São quase 30 milhões de brasileiros que deixaram a pobreza para ingressar no que tem sido chamado de “nova classe média” ou a tal da classe C. Como me disse uma mãe de família da periferia de Osasco, na Grande São Paulo, dias atrás: “Para nós, que somos pobres, o importante é comer bem. E pela primeira vez minha família come bem”. E ela acrescentaria mais tarde: “E hoje eu tenho uma geladeira nova e uma máquina de lavar roupa”. Para parte da tradicional classe média brasileira, que nunca passou fome e sempre teve acesso aos bens de consumo, pode parecer pouco. Mas não é pouco. É grande.

Seja Dilma Rousseff ou José Serra quem governará o Brasil, o que hoje é significativo passará a ser pouco a partir de janeiro de 2011. Nos últimos oito anos o governo Lula melhorou as condições concretas da vida da população, especialmente as dos mais pobres. Para isso, foi fundamental o controle da inflação iniciado lá atrás, com Itamar Franco, e a estabilidade econômica assegurada por Fernando Henrique Cardoso. Mas só seremos o país que sonhamos se o presidente ou a presidente eleita no próximo dia 31, aliados aos governos estaduais que acabaram de ser eleitos ou ainda serão, tiver o mesmo empenho para melhorar radicalmente a qualidade da educação no Brasil. E, assim, ampliar a definição, também do ponto de vista das políticas públicas, do que é viver com condições de viver.

Fazer as três refeições do dia, ter máquina de lavar roupa e até crédito para comprar uma TV de tela plana ou um computador é muito importante. Só quem nunca teve nada disso pode dar a dimensão do que significa. Mas, a partir deste novo patamar, passa a ser pouco. Pouco não só do ponto de vista do que se espera do novo governo, mas pouco para o que esperamos de nós mesmos.

Espero que neste segundo turno, ao contrário do embate de palavras vazias e promessas de ocasião que assistimos no primeiro, Dilma Rousseff e José Serra discutam com a seriedade que se espera de um candidato a presidente o projeto de cada um para o país. Para mim, como cidadã brasileira, o mais importante é a educação. Se quisermos continuar tendo chance, só podemos educar ou educar. Quero saber, concretamente, como cada um dos candidatos pretende dar qualidade ao péssimo ensino público deste país – já.

Se a educação não for de fato uma prioridade dos governos e dos cidadãos, nossos sonhos serão apenas sonhos, porque não teremos sequer mão de obra qualificada para garantir nossa inserção na economia mundial. E se a educação não esteve antes ou não estiver agora no centro do debate eleitoral que começa hoje é porque nós também não ligamos para ela tanto quanto deveríamos – o que apenas demonstraria a indigência da nossa formação e a pobreza de nossas expectativas. Será que precisamos de um Betinho, o homem que nos apontou a fome como uma indecência que nos envergonhava a todos, para acordar para o fato de que esta tragédia causa danos maiores e mais permanentes do que qualquer terremoto?

É verdade que o acesso à universidade foi ampliado pelo ProUni do governo Lula e pelas cotas sociais e raciais. Mas é igualmente verdade que, em 2009, apenas 21 das 2 mil instituições brasileiras de ensino superior tiveram nota máxima na avaliação feita pelo Ministério da Educação. E somente seis universidades brasileiras aparecem na lista das 500 melhores universidades do mundo numa avaliação anual feita pela Universidade de Comunicações de Xangai: USP, entre as 150 melhores; Unicamp, entre as 300; UFMG, UFRJ e Unesp, entre as 400; e UFRGS, entre as 500. Todas as seis públicas. O que significa que a maior parte de suas vagas pertence aos filhos de pais que podem pagar pelas poucas e caríssimas escolas privadas de boa qualidade nos ensinos fundamental e médio.

Nunca entendi por que não é exigido daqueles que se diplomam em universidades públicas que, depois de formados, retribuam o investimento com um período previamente determinado de trabalho gratuito em zonas estratégicas e carentes do país. Há uma ideia de direito sem a necessária complementação do dever no Brasil que atravessa toda a sociedade. Percebo que os estudantes das universidades públicas não parecem ter a consciência de que têm um privilégio, de que sua educação é gratuita apenas para eles, mas paga por todos os brasileiros, inclusive por aqueles que nunca terão a chance de estudar de graça numa boa escola. Parece-me óbvio, necessário e educativo que, depois de formados, os novos profissionais tivessem de retribuir com trabalho o investimento que a sociedade fez na sua formação, a confiança que a sociedade depositou neles como fiadora de sua educação. Além de ser uma retribuição que o país precisa, seria um complemento importante para a formação desta elite intelectual que, em sua maioria, nunca pisou numa favela ou na periferia, no sertão nordestino ou no que nos resta de floresta amazônica. Por que isso não acontece para mim é um mistério – e uma deformação de caráter.

Mas o ensino superior e a ausência de reciprocidade é apenas o reflexo de uma perversão que começa muito antes. É verdade que a escola fundamental vem se universalizando, num processo iniciado ainda no governo de Fernando Henrique Cardoso. Mas também é fato que entre 36% e 58% dos estudantes brasileiros que chegam ao oitavo ano de estudo (e boa parte não chega até aí!) não conseguem entender o que lêem. Seu (des)conhecimento da leitura, segundo o Relatório de Monitoramento Global de Educação para Todos, da Unesco, compromete a continuidade dos estudos e a inserção no mercado de trabalho. O desempenho de nossos estudantes nas áreas de ciências, matemática e português é um dos piores do mundo nas pesquisas internacionais. Não dá para construir um país verdadeiramente grande com uma população tão mal educada.

Durante as últimas décadas a classe média deu uma solução individual ao problema coletivo da deficiência progressiva da escola pública, pagando educação privada para seus filhos. Nesta opção pelo próprio umbigo, entregou os mais pobres à própria sorte. Minha expectativa é de que a melhoria real da renda no governo Lula, que incluiu uma parcela significativa da população na economia de mercado, sirva também para que estes brasileiros comecem a pressionar por educação pública de qualidade. Será triste se copiarem a velha classe média e optarem por saídas individuais, já que não faltam as classes D e E para quem deixar o pior.

Aposto a maior parte da minha esperança nesta população que nos últimos anos pôde comprar carne, geladeira e máquina de lavar. Que ela agora pressinta que a verdadeira emancipação só se dá pela educação e pela cultura, que são estes os caminhos que levam à ampliação da experiência humana. Que descubra que tem direito a mais do que escolas ruins e professores mal pagos. Que, como na pergunta da jovem italiana, tenha menos resignação e mais alegria. É a qualidade do desejo de seus cidadãos que determina a grandeza de um país. Por isso, é fundamental que nosso desejo se alargue.

Ainda que as condições de vida tenham melhorado, o Brasil segue entre as dez nações mais desiguais do mundo e isto se deve em grande parte à baixa escolarização da população e à má qualidade do ensino público. Em educação não vejo nenhum governo, nem federal nem estadual, para ficar no que esteve e estará em jogo nestas eleições, que possa realmente se orgulhar do que fez nas últimas décadas. Ainda que tenham existido avanços – e efetivamente existiram –, continuamos no prejuízo. O buraco é tão grande que tudo o que foi feito é pouco. E sabemos que todos os governos – todos – poderiam ter feito muito mais se a educação fosse tratada de fato como prioridade.

É preciso fazer o máximo, porque na situação que estamos o máximo será pouco. É preciso fazer com mais ênfase, com mais urgência e com mais recursos. E isso só vai acontecer se, como eleitores e como cidadãos, fizermos a nossa parte para reverter esta tragédia nacional. A educação não tem sido a prioridade que deveria ser nas várias instâncias de governo porque nós também ainda não conseguimos compreender que é a nossa vida que está em jogo. Mesmo a sua, que paga o colégio mais caro para o seu filho na esperança de salvação individual.

Tudo o que seremos vai depender da qualidade que conseguirmos dar ao ensino público nos próximos anos. A educação é também determinante para baixar a criminalidade e melhorar a saúde preventiva. Não temos nenhum tempo a perder, pelo contrário. Por isso, vamos exigir de Dilma Rousseff e de José Serra que digam claramente o que vão fazer – e quanto do PIB vão investir – para que a educação seja de fato prioridade. Precisamos saber o quanto compreendem que a educação depende de professores bem pagos, bem formados e constantemente avaliados. E vamos valorizar o nosso voto.

Voltando à pergunta do início desta coluna, a melhor resposta que eu não dei à estudante italiana é que talvez interesse menos saber, neste momento específico, se os brasileiros são alegres – e mais saber se vão se resignar ou continuar desejando mais. Não apenas acesso a bens de consumo, mas à riqueza imaterial que ninguém nos tira e que nos faz sonhar com uma vida que valha a pena num país verdadeiramente grande. Construído com a qualidade do nosso desejo, a consistência do nosso sonho e o valor do nosso voto.

A medida do Brasil será determinada cada vez mais por uma outra fome: a de livros.

(Publicado na Revista Época em 04/10/2010)

“Nada é só bom”

A felicidade pode ser uma mercadoria ordinária, vendida e não entregue

Ao assistir ao novo filme de Arnaldo Jabor, “A Suprema Felicidade”, fiquei desesperada porque não tinha uma caneta e um bloquinho. Eu nunca ando sem uma caneta e um bloquinho. Mas assisti ao filme na abertura do Festival de Cinema do Rio, na quinta-feira (23/9), vestida para festa e com uma daquelas bolsas ridículas onde mal cabem o batom e o dinheiro do táxi. Um problema quando ouvimos uma frase realmente ótima e tudo o que encontramos para retê-la é um bastão com algum nome bizarro como “beijo fatal”. Tive de apelar para a minha péssima memória porque há no filme algumas frases imperdíveis. Daquele tipo essencial, tão boas que parecem simples e até óbvias e você quer morrer por nunca tê-las escrito. Estas frases unem as memórias do cineasta, que vão emergindo no filme do mesmo modo que as lembramos na vida – sem linearidade e só aparentemente descosturadas. Fiquei repetindo-as durante toda a sessão para mim mesma. Consegui que sobrevivessem razoavelmente ilesas. E a primeira delas é a do título desta coluna: “Nada é só bom”.

Virou meu mantra desde então. Vejo tanta gente sofrendo por aí, achando que sua vida está aquém do que deveria ser, porque tudo deveria ser só bom. Não sei quando nos enfiaram garganta abaixo esta ideia absurda de um estado de felicidade absoluta. Uma espécie de nirvana a ser alcançado em que nada mais nos perturbaria e que seríamos felizes para sempre. Na verdade, só há um jeito de isso acontecer: podemos ser felizes e mortos. Porque este estado imperturbável, imune à vida, só se alcança na morte.

Acho que a grande causa atual de infelicidade é a exigência da felicidade. É o deslocamento do lugar da felicidade para o centro da vida, como um fim a ser alcançado e a medida de uma existência que valha a pena. Se nos lembrarmos bem dos contos de fadas, o “e foram felizes para sempre” era exatamente o fim da história. Era quando o conto morria num ponto final porque não havia mais nada relevante para ser contado. Tudo o que interessava, o que nos hipnotizava e nos mantinha pedindo a nossos pais ou à professora ou a nós mesmos “de novo, conta de novo”, era o que vinha antes. O desejo, as turbulências, os avanços e recuos, os tropeços e os arrependimentos, os erros, o frio na barriga, a busca. Tudo aquilo que é a matéria da vida de todos. O que realmente importa.

Acho impressionante a quantidade de adultos pedindo um final feliz para as suas vidas, para suas histórias de amor, para o sucesso profissional. Não há nenhum mistério no final. Independentemente do que cada um acredita, o fato é que no final a vida como cada um a conhece acaba. Para viver, o que nos interessa não são os pontos finais, mas as vírgulas. Os acontecimentos do meio, o enredo entre o primeiro parágrafo e o último.

Escrevo pequenas histórias de ficção em um site de crônicas e alguns leitores se manifestam, por comentários ou por email, reclamando do desfecho. Eles me ensinam sobre esta exigência da felicidade por toda parte. Pedem, com todas as letras, “um final feliz”. Sentem-se traídos porque não dou isso a eles. Mas voltam na semana seguinte para se perturbarem com o desfecho do novo conto e reclamar mais uma vez. São adultos pedindo histórias da carochinha. E consumidores bem treinados para achar que tudo é produto de consumo.

Acham que ofereço a eles cachorro-quente. Por favor, um pouco mais de mostarda, duas salsichas, menos pimenta no molho. É muito interessante. Mas, de algum modo, algo nos meus “finais infelizes” os engata. Porque, em vez de me deixar para lá e ler algo mais “feliz”, voltam por alguma razão. Talvez descobrir se me rendi a tal da felicidade.

A ideia de felicidade como um fim em si mesmo encobre e desbota tanto a delicadeza quanto a grandeza do que vivemos hoje, faz com que olhemos para nossas pequenas conquistas, nossos amores nem sempre tão grandiloquentes, nosso trabalho às vezes chato, como se fosse pouco. Apenas porque nem a conquista nem o amor nem o trabalho é só bom. E há uma crença coletiva e alimentada pelo mundo do consumo afirmando que tudo deveria ser só bom. E se não é só bom é porque fracassamos.

Deixamos então de enxergar a beleza de nosso amor imperfeito, de nossa família imperfeita, de nosso trabalho imperfeito, de nosso corpo imperfeito, de nossos dentes imperfeitos e até de nossas taxas de colesterol imperfeitas. De nossos dias imperfeitos. Escolher como olhamos para nossa vida é um ato profundo de liberdade que temos descartado em troca de propaganda enganosa.

Tanta gente se esquece de viver o que está aí em troca desta mercadoria ordinária chamada de felicidade. Que, como toda mercadoria, tem essência de fumaça. Se tivesse de escolher entre esta felicidade de plástico que vendem por aí e a infelicidade, preferiria ser infeliz. Pelo menos, a infelicidade me faz buscar. E a felicidade absoluta é mortífera, ela mata o tempo presente.

Não tenho nenhum interesse por esta pergunta corriqueira: “Você é feliz?”. Acho uma questão irrelevante. O que me interessa perguntar a mim mesma – e pergunto a todos a quem entrevisto é: “Você deseja?”

Desejar é o contato permanente com o buraco, com a falta, com a impossibilidade de ser completo. Desejar é o que une o homem à sua vida. Une pela falta. Tem mais a ver com um estado permanente de insatisfação. Não a insatisfação que paralisa, aquela causada pela impossibilidade da felicidade absoluta; mas a insatisfação que nos coloca em movimento, carregando tudo o que somos numa busca permanente de sentido. Desejar é estar sempre no caminho, conscientes de que o fim não importa. O fim já está dado, o resto tudo é possibilidade.

No filme de Arnaldo Jabor, as melhores frases são de Noel, avô do personagem principal, vivido pelo enorme Marco Nanini. Numa ocasião ele diz ao neto: “Ninguém é feliz. Com sorte, a gente é alegre”. E completa: “A vida gosta de quem gosta dela”. Achei de uma simplicidade brilhante. É isso, afinal. É claro que há uns poucos momentos de felicidade, mas, como diz Noel em seguida, eles duram no máximo uns 10 minutos e se vão para sempre.

Em vez de ficar perdendo tempo com finais felizes ou se perguntando sobre a felicidade ou invejando a suposta felicidade do vizinho ou se sentindo mal porque não é um personagem de comercial de margarina, vale mais a pena tratar de viver. Tratar de gostar da vida para que ela goste de você.

Aliás, nada me dá mais medo do que gente que vive como se estivesse num comercial de margarina. Se aceitarem um conselho: corram dessas vidas de photoshop. Elas não existem. Gente de verdade vive do jeito possível – e tenta lembrar que o possível não é pouco. Isso não significa se acomodar, pelo contrário. Mas abrir os olhos para a novidade do mundo na soma subtraída de nossos dias, desejar a vida que nos deseja.

É como em outra frase, esta dita por um comprador ambulante de coisas antigas num momento crucial do filme. Um delirante Noel, assustado com a proximidade da morte e disposto a retomar a alegria, sacode na rua o personagem de Emiliano Queiroz, gritando: “Hoje é sábado, hoje é sábado”. E o comprador de coisas que já perderam o sentido diz a frase antológica, digna de um frasista como Nelson Rodrigues: “O sábado é uma ilusão”.

Sim, o sábado é uma ilusão. Então, lembre de viver também de segunda a sexta.

(Publicado na Revista Época em 27/09/2010)

Para que tantos relógios se o tempo nos escapa?

Uma breve reflexão sobre a correria sem destino

Na casa da infância do meu pai havia um relógio de parede. Era precioso e ainda hoje persiste, enquanto a casa vai virando natureza no meio do mato. Meu pai e sua família viviam na zona rural de Ijuí, no interior do Rio Grande do Sul, num povoado de colonização italiana chamado Picada Conceição. Lá meu avô plantava e socava erva-mate, numa lida cotidiana que envolvia os filhos homens. Minha avó e as filhas ocupavam-se com a polenta, as cucas e a sopa, as galinhas, as roupas, a casa. O relógio de parede marcava o tempo da vida, solene sobre a mesa das refeições de domingo. Cabia aos mais velhos dar corda no relógio. Mas às vezes alguém esquecia e o tempo escapava. Descobriam então a vida parada sobre suas cabeças.

E agora? Como saberiam as horas? Redescobriam o que fingiam não saber. O relógio era só o reconhecimento de algo que já estava lá de tantas maneiras. Era a máquina do tempo numa vida em que tudo que era vivo ao redor seguia seus próprios desígnios. Acordavam com o galo, seu relógio com coração, e seguiam o dia orientados pelo sol. Esqueciam-se de dar corda porque raramente o relógio era consultado. Gostavam de ouvi-lo tiquetaquear, apenas. Orgulhavam-se da engenhosidade de sua máquina. Eles que descendiam de mortos de fome do outro lado do mundo.

Depois de algumas semanas, o silêncio do relógio tornava-se incômodo. Sentiam uma vaga inquietação imiscuindo-se pelas paredes da casa, a desconfiança de que as máquinas não deveriam parar. Tampouco se arriscavam a deixá-lo assinalar horas erradas, desarranjando o funcionamento do mundo. Meu avô então designava um dos filhos mais velhos para buscar o tempo na cidade. E, claro, fazer algumas compras. A 13 quilômetros, a cidade ficava longe para quem só contava com suas duas pernas ou as quatro do cavalo, sempre requisitado para tarefas mais sérias. E nunca se ajeitava o cavalo ou se aprumava a aranha para uma missão solitária. Só iam até lá, onde se sentiam deslocados com suas roupas de roça, para se abastecer do pouco que não trocavam por ali mesmo ou não encontravam no bem abastecido bolicho do Tio Chico. E para se apossar do tempo.

Meu avô entregava a um dos filhos seu próprio relógio de bolso, sempre parado porque só era usado em casamentos e outras ocasiões solenes da vida pública dos homens. Preso a uma corrente encimada por uma moeda de prata com a efígie de Dom Pedro II, era das poucas riquezas materiais do meu avô, herdada dos que vieram antes. O encarregado guardava o relógio no próprio bolso, esforçando-se para não machucá-lo com os calos de uma mão feita na enxada, encilhava o cavalo e galopava até Ijuí. Lá, no centro da praça principal, dava as costas para a igreja católica e postava-se diante da evangélica – ambas de frente uma para a outra e em lados opostos. Era uma traição à sua fé, mas justificava-se. Era na torre dos evangélicos que se exibia um relógio onipresente. Seus ponteiros regiam as horas da cidade. É preciso compreender que naquele tempo relógios eram bens valiosos. E possuir o tempo era para poucos.

Com máxima dedicação, um dos meus tios dava corda no relógio de bolso e acertava os ponteiros. Conferia. Enfiava o tempo no bolso. E galopava de volta. Na infância do meu pai, o tempo chegava a cavalo. Meu avô acertava os ponteiros do relógio da parede e a máquina voltava a tiquetaquear sobre a família. A ordem se restabelecia.

Meu pai herdou este grande respeito pelo tempo. Cada um de seus três filhos ganhou um relógio ao completar 10 anos. Por alguma razão ele e minha mãe chegaram à conclusão de que esta era uma idade em que podíamos começar a nos responsabilizar pelo tempo, a carregá-lo no pulso. Era um presente muito esperado e a compra do relógio envolvia uma série de debates e incursões à relojoaria de confiança. Não só porque exigia um grande investimento financeiro para o padrão de nossas posses, mas porque embora os de pulso fabricados em escala tivessem mudado os hábitos, naquela época ainda nenhum relógio era qualquer. Lembro de ter ficado algumas noites sem dormir pensando qual era o melhor modelo porque, ainda que não compreendesse a dimensão filosófica da escolha, intuía a sua importância. Este relógio marcaria o tempo da minha vida inteira.

Percorro agora a linha do tempo da minha trajetória errática cercada por relógios. A começar pelo do computador onde escrevo. Tudo ao meu redor marca a passagem do tempo, do celular ao forno de micro-ondas. As horas estão por toda parte, mesmo que eu não as queira. O tempo e as máquinas do tempo converteram-se em mercadoria ordinária.

Nem lembro em que momento perdi meu primeiro relógio, o da vida inteira, nem sei quantos outros tive até decidir que não precisava carregar nenhum no pulso porque o tempo havia se banalizado ao meu redor. Desconfio que esta perda da solenidade dos relógios tenha relação com a perda da consciência do tempo na vida de todos nós. Tantas marcações por todos os lados e o tempo se esvai como se fosse barato como um relógio de camelô. Vendemos o tecido de nossas vidas por muito pouco porque confundimos tudo.

Meu avô sabia que tempo não era dinheiro. Nunca se iludiu a esse respeito. Ele, que acompanhava o ciclo da vida das plantas e dos bichos, que dependia da terra, das chuvas e das estações, sabia que o tempo é tudo o que há entre a vida e a morte. É a riqueza imaterial da vida de um homem, de uma mulher. Não tinha estudo para conhecer as moiras da mitologia, mas pressentia que a elas pertenciam os fios do seu destino.

É muito mais verdadeira do que alcançamos a frase que todos repetimos pelos nossos dias: “Não tenho tempo”. Mas não é corriqueira e muito menos é natural. É, na verdade, uma tragédia sem herói. Desconfie sempre do que parece um dado da natureza, algo da ordem imutável do mundo, do qual você não tem como escapar. Isto sim é ilusão criada e reproduzida. Só não conseguimos escapar da morte, mas podemos morrer em vida se entregamos nosso tempo. Talvez não exista nada mais importante do que pensar sobre o que você quer fazer com o tempo que é seu. Porque se não tem tempo para o que é importante para você, para as pessoas importantes para você, por alguma razão, em algum momento, você decidiu se desapossar de você. É preciso empreender este caminho sempre árduo de resistência e voltar a encarnar o próprio corpo.

Semanas atrás um jornalista gaúcho me perguntou se eu tinha me tornado “meio baiana”, agora que, na opinião dele, eu podia dispor do meu tempo. O preconceito era claro. E a provocação também. Respondi que a questão era de outra ordem. Gosto muito da Bahia e nunca vi ninguém trabalhar tanto quanto os nordestinos em São Paulo, se era a isso que ele se referia. Perguntei a ele, então, que se gabava de correr o dia inteiro (como alguém se orgulha disso?), o que tinha feito naquele dia. Do que ele se lembrava quando parava de correr, o que tinha sido importante naquelas 12 horas entre a manhã e a noite. Ele emudeceu, mudou de expressão várias vezes. Não sabia o que dizer. Tinha feito tanto e nada.

Acho que este é um bom exercício. Pelo menos para mim. Quero chegar ao final do dia e lembrar o que fiz sem esforço. E achar que vivi bem aquele dia. Que amei bem. Que trabalhei bem. Que estava lá.

Meu avô sabia que o tempo não pertencia ao relógio. O tempo não está fora, como somos levados a acreditar. Está dentro. Só nós podemos marcá-lo. É o que fazemos com nosso tempo que dá a medida da nossa vida.

(Publicado na Revista Época em 20/09/2010)

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