Rosângela e o livro enterrado

A história de uma moradora de rua e sua luta para não perder as palavras que lhe dão existência

Rosângela Ramos desenterrou um romance. Não como uma metáfora, mas como literalidade. Caminhou, cavou e tirou das margens do Guaíba, em Porto Alegre, um manuscrito escrito a lápis 6B com 107 páginas.

Conheci Rosângela em 2 de dezembro de 2011, um dia depois de ela ter enterrado este livro, que chamou de “O escárnio das fogueiras de papel”. Ela tinha viajado para São Paulo a convite do Itaú Cultural para um evento sobre reportagem. A cada encontro, discutia-se a importância de um repórter “ir para a rua” para contar a história contemporânea – o que significa sair das redações, da internet e do telefone para buscar a vida, espantar-se com ela e documentá-la. Rosângela ampliava essa perspectiva: ela é uma repórter “de” rua. Seu jornal, o Boca de Rua, é um dos poucos no mundo – talvez o único – feito por moradores de rua: da pauta, textos, fotos e ilustrações até a venda. E foi por ser moradora de rua que, na véspera da viagem, Rosângela se descobriu num impasse. Onde guardar o que lhe é precioso quando você não tem casa, não tem gavetas, não tem armário, não tem um lado de dentro? Como proteger o que lhe é mais caro quando o seu dentro fica no lado de fora?

Rosângela enterrou seu romance às margens do rio. Mas, no dia seguinte, dentro do avião, ao ver a terra lá embaixo, ela descobriu que não tinha contado para ninguém sobre o paradeiro do livro. Seu tesouro não tinha mapa fora dela. Se morresse no ar ou em São Paulo, o livro estaria para sempre perdido. Ou, como ela diz: “Talvez alguém descobrisse ao escavar para fazer uma das obras da Copa do Mundo”. Atormentada pelo medo de que suas palavras virassem silêncio na margem do rio, Rosângela não pôde dormir nesta primeira noite. E se suas palavras, como ela, seguissem – à margem?

A entrevista com Rosângela sobre sua experiência como repórter do Boca de Rua aconteceu numa sexta-feira, no auditório do Itaú Cultural. Foi gravada para o programa “Jogo de Ideias”, apresentado pelo jornalista Claudiney Ferreira. Em TV, existe a crença de que é preciso manter um determinado ritmo, dentro do qual supostamente as perguntas e as respostas fluem, de forma que o telespectador e também a plateia não se cansem e não troquem de canal. Rosângela ignorou por completo essa “necessidade” – trouxe com ela um outro tempo. O silêncio, que tanto assusta quem faz TV e rádio, era parte das respostas de Rosângela. Ela não podia ser compreendida sem que se escutasse também seu silêncio. Não como se tivesse ficado sem palavras por um momento – mas porque seu silêncio era também um dizer.

Rosângela, a mulher das ruas de concreto, se expressava mais por subjetividades. Não deu à plateia relatos brutais, que talvez fosse o que alguns esperassem dela. Os repórteres do Boca de Rua costumam morrer antes de envelhecer, muitas vezes antes da vida adulta. Mas quando perguntaram a ela do que morriam, Rosângela não descreveu nem as balas, nem as facas, nem os atropelamentos. Ela disse: “Morrem de morte moral”.

Quando acabou a entrevista, ela vendeu todo o seu estoque de jornais. Enquanto parte da plateia foi pra casa, outra parte jantar em algum bar ou restaurante, Rosângela anunciou que precisava caminhar pela Avenida Paulista. Depois de tanto tempo no lado de fora, Rosângela precisava ir para dentro. Partiu então num passo rápido noite adentro, como se soubesse exatamente aonde ia dar – e não sabia. Ou talvez soubesse que ninguém sabe aonde vai dar quando dá o primeiro passo.

Bem cedo no dia seguinte nos encontramos no seu hotel. Rosângela tem apenas 50% da visão em um olho, por causa de uma toxoplasmose que provocou lesões em sua retina. E no outro enxerga “sujo”, por causa de outra doença. No Boca de Rua, ela assim se apresenta: “Sou desenhista com curso em Valência, na Espanha”. O relato de sua vida é como sua visão – fragmentos, imagens às vezes borradas.

Rosângela pegaria o avião de volta perto do meio-dia. Levei o gravador. E ela gravou as coordenadas do local onde estava o seu romance: enterrado nas margens do Guaíba, em Porto Alegre, entre o fogo e o rio, com uma pedra por cima. Mais não direi. Se algo acontecesse com ela, eu deveria enviar essa gravação para Rosina Duarte, jornalista da ONG Alice, responsável pela supervisão do Boca de Rua. “Você tem certeza de que as informações são suficientes para encontrar o livro?”, perguntei, aflita. Vivi quase 17 anos em Porto Alegre e mesmo assim tinha certeza de que teria de escavar o Guaíba inteiro se quisesse encontrá-lo. Mas Rosângela garantiu que as coordenadas estavam claríssimas e que Rosina entenderia.

Conversamos então sobre a palavra escrita, o dentro e o fora. Agora, que ela desenterrou o livro, mandei perguntar se podia publicar nossa conversa. Rosângela disse “sim” – e aqui estamos.

– Por que você enterrou seu livro na beira do Guaíba?
Rosângela – Ali é o meu pátio. Porto Alegre, a Usina do Gasômetro, a orla do rio…

– Que necessidade te fez enterrá-lo?
Rosângela – A necessidade de não perder. Eu já tinha perdido duas outras vezes. Uma vez deixei num banheiro público, outra num banco da Redenção (parque de Porto Alegre). Consegui recuperar, mas aí já tinha vivido o sofrimento de perder, a perda já tinha se tornado real para mim, e isso me deixou transtornada. Por isso, quando tive de viajar, eu não tinha outra alternativa. Não tinha mesmo outra alternativa: precisava enterrá-lo. Este medo de perder… na rua é muito real.

– E o que significa aquilo que está enterrado?
Rosângela – É uma esquizofrenia. Ele (o livro) é como a rua: em cada esquina a gente encontra uma coisa nova, um dia diferente, uma situação, uma circunstância momentânea. Ele é assim. De capítulo em capítulo, de frase em frase, de palavra em palavra. Na maioria das vezes cai numa ironia, numa poesia, num vazio, num delírio, no caos. A metade deste trabalho eu fiz em casa, e a outra metade eu fiz na rua. Então ele toma rumos diferentes. Ele começa com um romance normal que acontece, de amor, e depois ele vai tomando esta forma de arte, e depois política. Então, quando eu venho pra rua, a rua entra ali, mas ela entra sutilmente, ela entra como reflexão. E no final ele se transforma numa alucinação, nesse caos que é a sociedade, tudo.

– De que as pessoas morrem na rua?
Rosângela – Morrem de morte. Morrem de morte… moral. De frio, de chuva, de fome, de negligência. Morrem de assassinato, mesmo. Morrem de estupidez. Morrem pelo poder do qual outras pessoas se apropriam. Um exemplo: não abrir o acesso ao albergue onde tem a proteção de chuva, em dias de chuva. As pessoas se molham e só vão ser atendidas daí a duas horas, três horas, e são pessoas que estão doentes. E aquilo ali, a garoa, mata. Mata. Mata porque eu peguei documentos de hospitais de pessoas que depois de uma chuva foram internadas. Depois de ficarem molhadas, com a roupa molhada, ficaram doentes. Agrava. E de agravo em agravo morrem de negligência.

– É difícil sair do hotel e voltar pro albergue?
Rosângela – Não, porque eu necessito do isolamento, do meu tempo, mas não necessito de luxo. Estar lá é o que me garante a observação daquilo tudo, daqueles detalhes. Me joguei num mar, sabe? É um lugar pequeno, mas, ao mesmo tempo, tu podes ficar ali anos e anos e vai haver sempre ondas distintas.

– Você já dormiu na rua?
Rosângela – Sim, eu tentei chegar o mais próximo possível da realidade.

– É mais difícil viver na rua sendo mulher?
Rosângela – É difícil, é complicado. Um cara chegou em mim me obrigando a dar dinheiro pra ele, e eu achei aquilo um absurdo e o enfrentei. Nos enfrentamos. Colocamos o nariz no nariz do outro. E ele disse que tinha uma faca. E me mostrou. Era uma faca enorme, de açougue. Um cabo branco. E me ameaçou. E eu disse pra ele que ele fizesse o que quisesse. Só que pensei, por um momento, qual era a arma que eu podia usar contra ele. E só podia ser uma arma mental. Eu podia desarmar ele mentalmente, eu tinha que fazer aquilo, não tinha outra alternativa. Pensei: vou dizer uma coisa bem absurda, que não tenha nada a ver com nada, pra ele raciocinar e dispersar. Eu olhei pra ele e eu disse assim: “Eu não vou te comer! Eu não vou te comer!”.

– E aí?
Rosângela – Ele realmente desarmou completamente. No final, começou a rir. Eu tinha dito que não iria estuprá-lo.

– E qual é a diferença que você percebe entre as ruas de São Paulo e as de Porto Alegre?
Rosângela – Quando eu vi as dimensões das ruas… Uma coisa é tu andares em Porto Alegre 30 km, 40 km por dia, na rota, vendendo jornal. Outra coisa é São Paulo, é fazer a Paulista. Acho que eu esperava que aqui fosse ter mais comida, mais sobras na rua. E não há. É por isso que eu acho que as pessoas estão intimidando. As pessoas da rua, de certa forma, intimidam os demais, pedindo. Porque, por um lado, as pessoas se negam a ajudar, e, por outro, aquelas pessoas estão ali. E são pessoas.

– Você achou as ruas de São Paulo mais duras?
Rosângela – Achei. Mais violentas, mais duras. Porto Alegre, por pior que esteja a situação, as pessoas deixam coisas na rua. Já encontrei um espumante europeu geladíssimo num Ano-Novo. Há como sobreviver. As pessoas colocam comida na rua, que é o que a gente chama de “macaquinhos”. Eu não sei se existe isso aqui. As pessoas deixam comida pendurada pra gente na frente de casa. Então nós temos almoço. E nós temos os albergues. Há um albergue, o Felipe Diehl, que é cinco estrelas. Nos fornece roupa, comida. E comida muito boa. Até churrasco a gente come. Só que eu não estou lá. É o lugar que eu menos vou.

– Por quê?
Rosângela – Porque lá tem tudo. Eu quero ir no albergue onde não tem e onde eu tenha de denunciar. Ali é que eu tenho que trabalhar (como repórter).

– Você pintava, e então perdeu parte da visão. Por isso começou a escrever?
Rosângela – Pela dificuldade da visão e até pelo choque… porque perder a visão, pra quem quer ver as cores, é muito, muito complicado. Eu precisava resgatar essa vida de arte.
Entrar numa tela, sabe? Poder divagar ali, escrever, descrever. Eu pintava desde os 6 anos de idade. E esculpia. E até os 40 anos essa foi a minha inscrição, a minha forma de me comunicar com a vida, com o mundo.

– Naquela vez em que perdeu o livro, o que você perdeu?
Rosângela – Naquele momento eu perdi o meu ego, que era a única coisa que eu tinha, sabe? Eu não consegui me recuperar mais, porque perdi tudo o que tinha feito.

– Sua história?
Rosângela – Não, mas a poesia… A história, não. A história é o que menos me interessa. O que me interessa é a poesia, o além da história. Eu nem decidi ainda se vou publicar, nem sei se é possível o “Escárnio” existir como livro. Mas se eu decidir vai ser pelos outros, mesmo, porque eu já li.

– E é o suficiente você já tê-lo lido?
Rosângela – Pra mim é. Pra mim, realmente é.

– Você embrulhou o livro em que, antes de enterrá-lo?
Rosângela – Em sacolas de supermercado. Muitas.

– Você enterrou seu livro, mas, mesmo assim, não se recuperou de tê-lo perdido antes. E mesmo tendo achado o seu romance, a perda continuou em você. Por quê?
Rosângela – É como agora. Enterrei, mas não avisei ninguém onde estava enterrado. E se acontecer alguma coisa? Talvez um dia escavem lá pra fazer a Copa do Mundo e encontrem.

– Eu acho linda essa história de um livro enterrado…
Rosângela – Eu não vejo como lindo, isso. Eu vejo como desespero…

– Como você escreve?
Rosângela – A lápis. Lápis 6B.

– Por que lápis?
Rosângela – Porque ele é um lápis pra desenhar, um lápis macio. É por isso que eu digo que eu pintei um quadro. Eu tive de sintetizar um pouco, por falta de folhas, se quiser saber. Quando eu cheguei na rua, eu não tinha nem folha de ofício. Porque eu gosto de folhas limpas, sem linhas. E pra comprar uma folha, um maço de folhas de ofício, eu tinha que ter grana. E eu não tinha grana. Sabe? Naquele momento, eu não tinha… Eu não sabia como fazer. Eu pedi folhas de ofícios e pudim. Não ganhei nenhum.

– E como é escrever?
Rosângela – Vou limpando… Como eu faço as esculturas. Limpando, limpando, limpando… Eu comecei ele ao contrário. Porque eu tenho mania de ler ao contrário, de pegar o jornal e começar do fim. E no início eu também não conseguia entender, no início eu não elucidava as coisas, estava tudo nas entrelinhas. Eu fui trazendo isso. Como pintar.

– Qual é a diferença de se expressar com palavras?
Rosângela – Ah, foi incrível poder fazer isso. Arte é tridimensional. Com as palavras eu posso ir além das três dimensões. Eu posso cortar essa imagem como se cortasse com um punhal de dois fios… que não deixa nem cicatriz, sabe? Que corta a imagem e pode ir no âmago, no cerne, dentro, na víscera. Eu não me detenho no objeto, mas no que faz isso acontecer. O pensamento é o que leva ao movimento. O pensamento é o que leva à forma, é o que dá uma forma completa àquilo. Então eu aproveitei a história que eu contei, uma história comum, de vida, que acontece com qualquer pessoa, pra trazer todas essas nuances. E aí fui trazendo frases, palavras que eu já ouvi, que eu já vi, e fui colocando. Eu fui escolhendo palavras com muito cuidado.

– O que é a palavra pra você?
Rosângela – A palavra é o imaterial. Porque ela vai além das coisas. As coisas são… coisas. Mas poder falar o que eu imagino, por exemplo: que dentro daquela parede lá, daquele prédio, daquele tijolo, o barro que tá ali, como foi construído, quem fez. Isto é muito mais do que um tijolo.

– Como é dormir num albergue? Como é nunca estar sozinha, pelo menos fisicamente?
Rosângela – Eu durmo com 20 pessoas, mas na verdade eu não sei quantas têm. Porque são pessoas doentes, há pessoas que falam consigo mesmas. Então, não sei quantas são. Tem muitas. Então aquilo ali também foi pra mim uma experiência incrível. E o “Escárnio” vem assim, ele é assim. Uma situação termina e começa outra. É como a rua, onde a gente nunca sabe o que vai acontecer, o que vai encontrar, o que vai comer. Na casa, não. Na casa a gente sabe.

– Você queria um texto que fosse como a rua?
Rosângela – É. Tivesse essa forma. Eu uso poucas palavras que definem a rua, quase nem falo, mas ela entra ali. E quem ler vai entender como a rua está presente ali. Mas ela aparece nas entrelinhas. Porque, na verdade, eu não escrevo. Na verdade, acho que eu escondo mais do que mostro.

– Como?
Rosângela – O que está escrito, muitas vezes, é uma forma de não dizer nada. Terminar… aquele pensamento numa poesia. Especificamente em poesia, entende? O caos das palavras. Não dizer nada ou subentender aquilo. Isso o Mário Quintana fez espetacularmente bem. Mas… eu nunca escrevi e nunca havia lido um romance na vida.

– Não?
Rosângela – Não.

– Qual foi o primeiro?
Rosângela – O meu.

– O seu?
Rosângela – Sim, o que eu escrevi. Porque eu detestava romance. Quando criança, eu não lia nada. Eu desenhava tudo. Pintava a roupa do Mickey, os cachorrinhos, os animais… Isto era o que eu fazia. Mas, ao escrever, eu queria escrever poesia, eu queria fazer o contrário das coisas reais, pormenorizadas, da linguagem dos documentos. Então fui escolhendo as palavras que fossem distorcendo um pouco, terminando em irreverência. Eu queria fazer poesia no nada. Fazer poesia no absurdo. Fazer o absurdo mesmo. E também o ridículo. E o impossível que é transformar o humano em além do humano.

– Como é pintar com palavras? Qual é a diferença?
Rosângela – Pois eu não vejo essa diferença. É por isso que eu digo que é como um pincel. Eu digo: vou fazer exatamente como eu faço quando pinto. Porque é a diferença entre buscar e encontrar algo. E o “Escárnio” foi isso. Foi o encontrar… Eu não busquei, mas eu joguei, eu fiz uma estrutura de texto, uma história, e as outras eu fui jogando, fui colocando tudo ali e e fui buscando sentido. E fui encontrando frases incríveis. Eu acho que eu fui encontrando ali formas expressivas, que outros encontraram da mesma maneira, porque não há outro caminho senão passar por isso, entende? Elas vão automaticamente se agrupando, como um entendimento.

– Como você se sente depois que escreve?
Rosângela – Completa. Assim… quando consigo completar um pensamento, eu me sinto completa.

– Como foi acordar em São Paulo?
Rosângela – Eu acordei em um dos metros quadrados mais caros do mundo, que é a Avenida Paulista, aqui onde estão os tesouros. Aqui tem muita grana, enquanto eu lido com a miséria, com a fome, com a dor. Com a negligência. Então são duas coisas que fazem refletir. Eu estou aqui na Avenida Paulista, eu não estou debaixo de uma aba. Eu estou num hotel, com conforto. Então, este é o meu dentro. Mas, na verdade, é fora, entende? Hoje eu estou saindo daqui. E a rua é um sumidouro. Ele (o livro) é sobrevivência. Eu desistiria se não me tirasse da morte, porque a rua é um sumidouro.

Despedi-me de Rosângela no portão de embarque. Enquanto o avião não aterrissou em Porto Alegre, as palavras enterradas de Rosângela enterraram-se em mim como chumbo. Eu tinha o mapa do tesouro de outro, mas não entendia o mapa – e tinha dúvidas se alguém entenderia. E se o pior acontecesse e não conseguíssemos desenterrar as palavras que eram a vida de Rosângela, a sua não-morte? Mas Rosângela voou, aterrissou e voltou a trocar as asas pelos pés. E agora ela desenterrou seu livro.

O que, afinal, Rosângela enterrou? E o que desenterrou?

Escrever um livro é sempre desenterrar, acho eu. As palavras estão em algum lugar bem fundo de nós. Não um fundo que conhecemos, mas aquele lugar sem lugar que fica abaixo do fundo falso que existe em nossos interiores. Desenterrá-las significa arrancar um pouco de sangue dos nossos confins. Um livro é sempre meio ensanguentado, um pouco de vísceras, alguns miolos, um resto que não se sabe se é humano ou alienígena. Mas Rosângela desenterrou as palavras simbolicamente, como faz qualquer escritor – para depois enterrá-las literalmente. E botou uma pedra por cima, como fazemos para garantir que os mortos não escapem como outra coisa, como algo vivo demais para nos dar sossego, como algo capaz de nos assombrar. Ao enterrar na beira do rio o que desenterrou do fundo de si, o que Rosângela fez?

Ela nos conta que enterrou as palavras porque não queria perdê-las. E talvez esta seja a diferença. Antes de se escreverem, as palavras estão lá – dentro de nós, mas perdidas para nós. Ao desenterrar as palavras, escrevendo-as, Rosângela encontrou as dela. É isso o que ela diz quando explica que é preciso encontrá-las. E é também por isso que, naquele momento, bastava que ela tivesse lido as palavras. Se fosse publicá-las, seria para os outros. Então precisou enterrá-las para não perdê-las, agora de uma forma literal. Porque se as perdesse, o que aconteceria? Ela teria desenterrado as palavras de si e as perdido, o que significa que não poderia mais encontrá-las, nem dentro nem fora. As palavras seguiriam existindo, mas em lugar nenhum. Esta seria a perda insuportável – um tipo de morte.

E agora, Rosângela tirou a pedra, cavou e desenterrou as palavras. O que isso significa?

Talvez um dia Rosângela nos conte.

(Publicado na Revista Época em 07/01/2013)

 

O silêncio não existe

Ser surdo a si mesmo não é uma deficiência auditiva, mas causa deformação

Uma amiga me emprestou sua casa no meio do mato para eu escrever uma história. Eu andava acuada na cidade, atordoada com o excesso de barulho dentro e fora de mim. Às vezes tenho essa sensação, a de que a barreira do dentro e do fora se rompe e já não consigo distinguir se o ônibus cheio de som, fúria e fumaça preta sobe a Teodoro Sampaio ou sobe alguma rua que passa raspando pelo meu pulmão direito. Viro eu mesma um pedaço maltratado de São Paulo e preciso partir em busca de outras geografias que me curem o corpo. Eu pensava buscar silêncio, só para descobrir mais uma vez que o silêncio não existe.

É curiosa essa ilusão que compartilhamos de que o campo, o mato, a praia escondida, a natureza menos tocada são paisagens de silêncio. Nem o deserto é silencioso, descobri anos atrás, ao passar 20 dias na Mauritânia, acompanhando Toco Lenzi, um aventureiro que atravessava o Saara sozinho e a pé, puxando um riquixá. Ali descobri que o próprio silêncio não é silencioso. Ao contrário, a ausência de som rugia no meu ouvido num tom desconhecido.

Perturbada por essa voz sem voz, eu lia sem parar à noite na minha barraca, quando lá fora a temperatura despencara dos mais de 40 graus do meio-dia para abaixo de zero. Lia histórias sobre as grandes expedições do passado porque a minha pequena aventura estava me assombrando. Eu não temia os beduínos que às vezes surgiam como que materializados da areia, nem os animais que deixavam marcas no acampamento pela manhã. Eu temia esse som que eu não decifrava, mas que falava com partes de mim que eu também não sabia onde moravam.

Dois anos depois dessa experiência, passei dez dias num retiro de meditação vipássana, no interior do Rio de Janeiro, em que era proibido falar e até mesmo olhar para as outras pessoas. Aprendi a ouvir o meu lado de dentro e descobri que eu era tão silenciosa quanto uma lagoa habitada pela família inteira do Monstro do Lago Ness, incluindo primos distantes. Dias depois de ter voltado, eu ainda era despertada no meio da noite pelo barulho que continuava ressoando dentro de mim e que agora eu tinha aprendido a escutar. Levantava da cama e ia me postar diante do meu marido, notívago como um vampiro, que lia na poltrona. “Meu corpo não cala a boca”. Depois, com o tempo e o abandono da disciplina de meditação, perdi a capacidade de me ouvir e agora só escuto os roncos do meu estômago sempre esfomeado.

Neste fim de ano, me enfiei no meio do mato em busca de silêncio. De novo. Eu precisava descobrir as palavras que nadavam em mim como peixes não muito dispostos a serem pescados, para contar uma história de ficção com prazo para entregar. Um grande escritor, não lembro qual, disse que as palavras são peixes que nadam no nosso lago inconsciente, mas eu tenho minhas dúvidas. Me parecem mais criaturas não nomeadas que rastejam no lodo de um fundo falso. Mas, seja o que forem as palavras, eu esperava atiçá-las com iscas de silêncio.

Logo ao chegar, experimentei o estranhamento de entrar em qualquer casa que pertença a um outro. É como um mapa que fala de caminhos que só fazem sentido para alguém que não está ali. Não falo apenas dos livros e dos CDs, dos móveis e da disposição dos objetos no banheiro ou da decoração, mas do que restou esquecido. É o esquecimento, mais do que a lembrança, que fala de nós.

De imediato fui registrando as aranhas, muitas aranhas de tipos diferentes, que só extermino se chegarmos ao ponto do ou eu ou ela, o passarinho que fez ninho na janela do banheiro, as formigas carregando um besouro morto. Esse tipo de besouro tem a conformação física de um tanque de guerra e, ao voar, faz o barulho de uma Harley-Davidson. (Ouvi dizer que o ronco das Harleys é patenteado. Se não for mais uma lenda, devem royalties ao “rola-bosta”, o nome popular desse besouro.) Me identifico com ele, que está sempre caindo de costas, pernas pra cima. Me dá a impressão de que gasta a vida tentando virar do lado certo, ficar em pé, como eu também.

E então… o vi. Um confete de carnaval entranhado no piso de cimento queimado. O que ele contava? Me enterneceu mais do que qualquer outra coisa aquele confete esquecido ali. A marca humana. Um carnaval, uma busca de felicidade, teria dado certo, teria sido alegre? E lá estava ele, um bailarino sem pernas. Caído ao final de um movimento.

Quando eu ainda vivia em Porto Alegre, uma leitora me enviou um álbum de fotografias que havia sido encontrado no lixo. Ela não pôde suportar a ideia de uma vida jogada fora, como se fosse uma casca de banana, e despachou o álbum envolto em papel-manteiga, para que eu desse um sentido à memória de um outro. Vi estranhos nascendo, crescendo, sumindo, casando, tendo filhos, envelhecendo. Na última página, a longa saga familiar se encerrava, sem explicação alguma, com a foto de duas coristas em pose sensual. Como a avisar que a vida é desacerto, como se dissesse: “Cuidado, não me entenda rápido demais”. Durante boa parte da minha vida, essa foi a minha frase preferida. Cuidado, não me entenda rápido demais. E era o que o confete parecia dizer, deslocado naquele ambiente. Eu sabia que, se ele falasse, falaria de mim, não de si mesmo, não de como havia restado ali.

Deixei-o e me sentei no lado de fora. Essa casa que falava comigo é quase orgânica, tem a postura de quem pede desculpas por estar ali. Só a enxerga quem chega perto da sua porta, porque tem a cor ocre da terra vermelha e as árvores a apertam. É uma casa quase natureza. Fico sempre tentando me enfiar na pele dos outros, para entender como se sentem e por que dizem o que dizem e fazem o que fazem. Mas desta vez fui compelida a tentar algo novo, ao olhar para as árvores e perceber que elas não estavam ali como um cenário. Aquelas árvores, cuja respiração eu acreditava ouvir, estavam ali possivelmente antes de mim e estarão para além de mim. Se uma delas pudesse me ver, o que veria? Qual seria a sua perspectiva?

Talvez a árvore me percebesse só como um relance, uma cor fugaz, como uma daquelas imagens que a gente faz rodar com muito mais velocidade para adiantar o filme no aparelho de DVD. Para nós ela é uma vida que se inscreve pela imobilidade. Mas não é, seu tempo é que é outro. Ela se move, mas não somos capazes de enxergar. Sem que antes tivéssemos nos encontrado, essa árvore tinha protagonizado um balé que ninguém viu. No meu nascimento seus galhos esboçavam um gesto, agora outro e, quando eu morrer, terão formado um quadro sutilmente diferente. Todo o meu álbum de fotografias cabe em apenas um de seus “pas de valse”. Ela, que é apenas um indivíduo, como eu. E como o besouro que bate a cabeça no tronco e vira de patas pro ar, abreviando suas chances de chegar vivo a 2013. Não há nenhuma hierarquia entre nós. Estamos todos os três apenas vivendo, tentando.

Mas eu escuto o silêncio da árvore e, ao deitar à noite para dormir, sei que a vida do mato é mais barulhenta que a minha esquina em São Paulo. Eu abro os olhos no escuro e há vaga-lumes no quarto. Eu tentando dormir e aqueles moços (ou seriam as moças?) acendendo o traseiro para atrair companhia. “Eu estou aqui!”, aviso, na tentativa de despertar alguma compostura, mas estão acesos. Me ignoram e continuam piscando sobre a minha cabeça: sexo, sexo, sexo. Bem perto, eu tenho certeza, alguma aranha tece a sua teia à espera de presas que serão devoradas lentamente. E logo ali uma fêmea de louva-a-deus pode estar mastigando o pai dos seus filhos e pensando, como no livro de Alessandro Boffa: “Hum… crocante, com fibras”. A sinfonia da natureza de que nos falam os poetas é uma orgia. Às vezes sangrenta.

Talvez eu não seja uma pescadora, afinal, mas uma aranha, tecendo uma armadilha para as palavras e depois mastigando-as com minha boca cheia de dentes. Eu posso ouvir que não há silêncio. O que buscamos, talvez, quando buscamos silêncio, é só a possibilidade de ouvir mais do mundo. Os sons, quando se repetem dia após dia, nos ensurdecem. E a primeira voz que deixamos de escutar é a nossa. Descubro na casa do mato que é da minha voz que tenho saudades na minha esquina de São Paulo, é ela que o ônibus da fumaça preta emudece quando sobe a rua.

Ser surdo a si mesmo é uma surdez sem nenhuma deficiência auditiva, mas muito, muito triste. O que chamamos de silêncio, afinal, talvez seja apenas a nossa voz.

Passo a vassoura sobre o confete. Cutuco um pouco para arrancá-lo dali. Ele não sai.

(Publicado na Revista Época em 31/12/2012)

 

“Malditos maias!”

Uma história real de fim do mundo

– Acabou. Acabou tudo – ela me anunciou, pelo telefone, na fatal sexta-feira, 21 de dezembro de 2012.

– Não acabou. Continua tudo igual. Se quiser ter certeza, vá a um shopping. Tá todo mundo lá, comprando, se empurrando e se xingando – respondi, ranzinza como um duende fazendo hora-extra para terminar uma Barbie Malibu.

Mas para ela tinha acabado. Mesmo. A menstruação atrasara e ela, distraída de si, pensou que era gravidez. Aos 46 anos, e ela acreditou que seria mãe de novo. Um risco, um disparate, uma reviravolta em uma vida tão programada quanto pode ser uma vida. “O que eu vou fazer?”, dramatizara ela durante toda a semana. E se imaginava dando a notícia para a família na ceia de Natal. Tal qual uma Maria, mas desvirginada nos anos 80, numa Brasília verde limão ao som de Legião Urbana. Anunciaria uma nova vida antes de trinchar o peru.

Por que você não faz o exame de farmácia?, nós, as amigas, perguntávamos. Ela não queria. Só tinha conseguido horário com o médico na sexta-feira e tinha decidido que só faria o exame antes de sair de casa para a consulta. Não fazia nenhum sentido e, por isso, entendi que ela desejava aquela expectativa. Mariana (o nome é fictício, a seu pedido) estava gostando de sonhar com uma nova maternidade, fora de hora, imprevista, alterando o curso de uma vida que, eu sabia, ela começava a achar tão suculenta quanto uma uva-passa. Estava gostando de se descabelar diante das amigas, do marido, sobre o “absurdo de ser mãe com quase 47 anos”. E ouvir de algumas – não de mim – uma série de histórias de mulheres que tinham gestações saudáveis e bebês roliços “até com muito mais idade do que você”.

Parei de insistir que fizesse logo o tal do exame lá pela quarta-feira, assim que percebi seu inebriamento com a novidade. Ser uma boa amiga (e uma boa mulher, mãe, filha etc), acho eu, é tanto falar a verdade mais dura, quando necessário, quanto embarcar alegremente nas fantasias de quem amamos e enlouquecer junto. No caso de Mariana, a razão me mostrava que uma gravidez nessa altura da vida, com dois filhos já crescidos e a perspectiva de um cotidiano mais desamarrado de obrigações de todo tipo dali pra frente, podia não ser a melhor ideia. Isso sem falar nos riscos de uma maternidade tardia, já que não sou adepta da falácia de que a medicina resolve tudo e cada uma pode adiar a gravidez o quanto quiser. Fiz um rápido cálculo mental e me arrepiei ao imaginá-la enfrentando uma adolescência com mais de 60. Se a maturidade ajuda, porque, pelo menos na teoria, com a idade a gente fica – ou deveria – ficar mais sábio, minha experiência é a de que, para educar um filho, é necessário também uma boa dose de vitalidade física. Dupla, on the rocks.

Para Mariana, naquele momento, aquele era um cálculo menor. Ela precisava daquele inesperado, acolhia-o por inteiro. Logo, também eu passei a brincar com cenas inusitadas de um bebê fora de estação. Então, a sexta-feira chegou. Trazendo com ela o fim do mundo.

Quando o o telefonema de Mariana me alcançou, eu já empreendia minha tradicional fuga natalina. Alinhada a uma considerável parcela da humanidade, eu tinha certeza de que, como nos dizeres precisos de um cartaz que circulou pelas redes sociais, “o problema não é o mundo acabar, mas continuar do mesmo jeito”. E tratava de desaparecer no meio do mato, colocando uma distância regulamentar entre mim e o shopping center mais próximo. Não sei como é com vocês, mas, nas semanas que antecedem o Natal, eu sofro o maior número de agressões verbais, miradas de ódio e demonstrações de total falta de educação de todo o ano. Por isso, já faz algum tempo que, sempre que possível, escapo do espírito natalino e desapareço até dias de maior civilidade.

A voz de Mariana no telefone era de alguém que estava vendo o gigantesco meteoro do filme de Lars Von Trier se aproximando. Eu até olhei para um lado, olhei para o outro, por um momento dominada pelo medo atávico da voz dela, transmitido pelo sinal do celular. Não, não havia nenhum meteoro no horizonte. Não um visível, pelo menos. O que aconteceu?, finalmente perguntei. “Eu não estou grávida. Eu sou uma idiota. Não enxerguei o óbvio”, ela despejou, agora com a voz molhada. E, numa frase que terminou num soluço arrancado das tripas: “É menopausa”.

Silêncio. Eu sabia que poderia desfiar uma série de lugares comuns sobre a menopausa ser algo natural, que chega para nós todas, e não uma doença ou uma deformação ou mesmo uma maldição. Mas isso seria trair uma dor que eu também era capaz de compreender. Ela mesma continuou a falar, antes que eu balbuciasse qualquer coisa: “Eu estava me sentindo potente, entende. Jovem, até. Eu, tão imperfeita, tão atrapalhada com o dia a dia, tão frustrada em tanta coisa que não cheguei a ser. E, de repente, a possibilidade de um bebê. Eu, essa porcaria, ia gerar uma vida”.

Eu sabia que ela sabia que não era uma porcaria. Mas, naquele momento, Mariana precisava se chicotear. E eu precisava escutar. “E agora é oficial. Envelheci. Meu útero está morto. Nem capim nasce de mim, entende? Acabou.” Sim, eu entendia. Mariana foi lembrada no dia do fim do mundo que, desde que nascemos, há um meteoro vindo em nossa direção. E, um dia, com sorte mais tarde do que cedo, ele nos alcançará.

Liguei há pouco para ela do meu não-Natal. Mariana pintava as unhas de amarelo. Por alguma razão cuja lógica me escapa, ela acreditava que daria um toque de estilo quando trinchasse o peru. “Entrei na menopausa no fim do mundo”, já conseguia rir de si mesma. “Malditos maias!”

Desliguei sabendo que minha amiga seguia, agora com um luto a mais.

Para aqueles que acreditaram no fim do mundo e para aqueles que não acreditaram: nosso mundo acaba várias vezes no espaço de uma vida. Mas sempre temos a chance de recomeçar, dando outros sentidos para as marcas que carregamos, sentidos que nos permitam criar novas versões de nós mesmos ou pelo menos olhar para a atual com mais generosidade. Um dia, porém, o meteoro chega. E chega para todos, sem que nenhum de nossos tremendos esforços e vastas ilusões seja capaz de mudar o final.

São muitos os pequenos fins de mundo – e desconfio que os grandes apocalipses nos distraem dessa verdade, como tantas outras manchetes em neon que nos cegam dia após dia. Enquanto o meteoro se aproxima, vai se distanciando de nós a imagem de nosso retrato de 20 anos, quando ainda nos iludíamos que tudo era possível. É um pequeno mundo que acaba quando já não podemos contar com a ignorância que nos fazia viver como se houvesse sempre amanhã. É um pequeno mundo que acaba no primeiro cabelo branco ou na primeira queda, na primeira ruga ou na primeira dor na coluna, no exame de colesterol que anuncia refeições com menos delícias, na ereção que não vem ou não vem nem tão fácil, nem com o mesmo vigor de antes. É um pequeno mundo que acaba no momento em que percebemos que já não seremos bailarinas clássicas ou jogadores de futebol ou escreveremos o romance que mudará a história da literatura universal ou faremos a descoberta que nos levará ao Nobel – no exato instante em que descobrimos que precisamos adaptar nossos grandes planos.

Também é um pequeno mundo que acaba quando o relógio do avô quebra engolindo um tempo que não volta mais, quando vendemos nossos brinquedos de infância para um colecionador para pagar a conta do colégio do filho ou quando olhamos para aquele grande amor que agora lê jornal no sofá da sala e já não o reconhecemos. Ou quando é o outro que já não nos reconhece e duvidamos da nossa capacidade de continuar acordando e dormindo sem nos enxergarmos refletidos no olhar daquele que partiu para refletir outras faces. Ou quando descobrimos que o pai da infância não é nem um herói, nem um tirano, mas um homem – ou a mãe é menos sagrada do que nos fizeram acreditar, mas uma mulher cheia de contradições como todas as outras. E ainda não sabemos que estas são boas notícias. É um pequeno mundo que acaba quando ouvimos que a empresa já não precisa de nossos serviços porque há alguém com mais MBAs, mais idiomas, mais juventude e que custa mais barato que nós. É ainda um pequeno mundo que acaba a cada morte de quem amamos, nos deixando às tontas por aí, sem saber como se faz para transformar falta em ausência.

A cada um desses pequenos apocalipses temos a chance de recomeçar. Partidos, aos pedaços, às vezes colados como um Frankenstein de filme B. Enquanto o meteoro não chega há sempre um possível que podemos inventar. Se os anúncios de fim do mundo servem para alguma coisa, além de fazer piadas e encher os bolsos de alguns espertos, é para nos lembrar de que o mundo acaba mesmo. Não em apoteose coletiva, com dia e hora determinados, mas na tragédia individual, sem alarde e sem aviso prévio, que desde sempre está marcada na vida de cada um de nós.

Meus votos de Natal e Ano-Novo pós-apocalipse são: não adiem os começos, porque o fim já está dado.

(Publicado na Revista Época em 24/12/2012)

A educação tem sotaque

Ao completar 10 anos, a Olimpíada de Língua Portuguesa mostra que a escola exerce seu papel quando acolhe a diversidade – não só de experiências, mas também da linguagem na qual a vida se expressa

“Ê, Ê, Ê… Morena/ Ô, Ô, Ô… Machada/ Ê, Ê, Ê… Graúno/ Ô, Ô, Ô… Pelada.
O vaqueiro solta a voz/ No oco do mundo,/ Com seu aboio triste,/ Em poucos segundos,/ Encanta gente e gado./ Eita aboio profundo!”

O trecho acima é palavra escrita de um menino chamado Henrique Douglas de Oliveira, de 12 anos. Filho de vaqueiro, ele transcendeu – virou a vida do pai em poesia. Ao fazê-lo, tornou-se um dos 20 vencedores da Olimpíada de Língua Portuguesa Escrevendo o Futuro.

Eu só tinha passado pela terra do Henrique, José da Penha, no Rio Grande do Norte, quando acompanhei Gretchen, a rainha do rebolado, em sua peregrinação por circos mambembes do interior nordestino, para fazer um documentário. Gretchen aparece numa cena do filme, falando com a dona do circo, pelo telefone, com o Brasil diante dela feito mapa, óculos se fazendo de equilibrista no nariz: “Zé de José?”. Era José da Penha, menos de 6 mil habitantes, aonde Gretchen vai atrás do povo, ela que vai a Brasis aonde bem poucos vão. Mas, quando estive lá, eu não sabia que José da Penha era também uma terra rica de Henriques. Por não saber, eu era mais pobre e também não sabia disso.

Foi o que eu descobri, quando, semanas atrás, aterrissaram dois calhamaços lá em casa, contendo 152 textos, divididos em quatro categorias: poesia, crônica, memória literária e artigos de opinião. Eram os finalistas da Olimpíada de Língua Portuguesa. Em 2012, esse programa de educação envolveu cerca de 100 mil professores e cerca de 3 milhões de alunos, de 40 mil escolas, em mais de 5 mil municípios brasileiros. Eu tinha aceitado o convite para participar como jurada da comissão julgadora nacional, mas não tinha avaliado bem a trabalheira em curto espaço de tempo. Pensei: “Ai!”. Mas doeu só até começar a ler.

Percebi duas coisas: 1) que falta faz esse Brasil com sotaque não só no falar, mas também na escrita; 2) que falta faz esse contar que não está nos jornais para nos contar de nós. Só então alcancei o privilégio de receber notícias dos tantos Brasis dos quais poucas notícias nos chegam, em várias línguas portuguesas – e não numa só. Os melhores textos eram justamente aqueles como o do Henrique, que não tentaram encaixotar a vida na linguagem dominante (mais ou menos essa que eu uso aqui, disseminada pelo Brasil especialmente pelos telejornais). Os melhores textos eram aqueles que carregaram para a escrita a variação linguística do seu Brasil, com palavras e ritmos nascidos de uma experiência diversa de ser brasileiro.

A Olimpíada de Língua Portuguesa, para quem não conhece, é um concurso de textos entre escolas públicas de todo o país. Mas é muito mais do que isso, porque a ideia é iniciar uma transformação, pela palavra escrita, tanto no modo de ver o mundo, como a si mesmo – um modo de ver por escrito que ultrapasse os limites da escola e contamine a família e a comunidade, transformando-as também. Porque uma palavra só é com relação a um outro – e uma escola só é com relação à sua comunidade. Fora disso ela implode, perde a si mesma, arrastando família, comunidade, professores e alunos nessa perdição, que é o que temos testemunhado nas últimas décadas no país.

Fazendo uma ponte com outros saberes e olhares do Brasil, a Olimpíada retoma a ideia do que um guarani-caiová (“Kaiowá” com “k” e “w” quando eles mesmos escrevem) chamaria de “palavra que age”, como já contei em outra coluna, ou até “palavra-alma”, aquela que circula pelo corpo. E como essa palavra age. Dentro e fora. Os estudantes descobrem que a palavra escrita, quando é escrita não apenas para cumprir tarefa ou para agradar ao professor, não como algo chato ou esvaziado de sentido, mas sim para expressar a experiência, registrar a memória e transcender a vida, mobiliza forças. Ao mobilizar forças, coisas acontecem.

Algumas delas bastante reveladoras, como conta Sônia Madi, coordenadora da Olimpíada. Numa cidade do Mato Grosso, no curso do programa, professora e alunos montaram na escola um painel sobre as graves questões ambientais. Foi destruído. Em outra cidade, uma aluna discutiu em seu texto de opinião a legitimidade ou não da candidatura a prefeito de um homem que havia cometido um assassinato, mas ainda não tinha sido julgado. Ela e a mãe sofreram ameaças. A ponto de a mãe pedir para a filha desistir de continuar na Olimpíada. A garota permaneceu.

Nestes casos, a escola documentou aquilo que acontecia na vida, mas nem sempre era registrado pela imprensa – e provocou reações de quem, escorado no poder, não estava acostumado a ser questionado. Provocou também conhecimento, debate e ação na comunidade. Como a professora Elisângela de Araújo e um grupo de alunos de Cruzeiro do Sul, no Acre. No curso das atividades propostas pela Olimpíada, eles criaram um folheto para os moradores com o objetivo de barrar o que poderia ser chamado de morceguicídio. Como os morcegos eram populosos na região e não são animais simpáticos aos olhos humanos, apesar da recente febre vampirística, eram vítimas de chacinas cotidianas. Ao compartilhar conhecimento com a comunidade, mostrando que os morcegos tinham uma função importante no meio ambiente, inclusive como agente de reflorestamento, esse grupo de professora e alunos cumpriu o papel da escola – fez uma intervenção.

É como palavra que age que os trabalhos são propostos à rede pública do país. Coordenada pelo Cenpec (Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária), com financiamento da Fundação Itaú Social e, desde 2008, também do Ministério da Educação, a Olimpíada completou uma década. Na primeira edição, em 2002, o estudante Ronilson da Silva Procópio desfilou em carro de bombeiro pelas ruas de Benjamin Constant, no Amazonas, por tê-la vencido. Os criadores do programa tiveram certeza de que o projeto tinha dado certo: já não era apenas jogador de futebol que desfilava em carro aberto pelas ruas do Brasil.

Cada edição da Olimpíada dura dois anos – nos pares é realizado o concurso de textos, nos ímpares a formação de professores. Todas as secretarias municipais de educação são convidadas a participar e, as que aderirem, elegem uma pessoa que vai coordenar a campanha no município – integrando tanto escolas municipais quanto estaduais, superando já de início a costumeira e boba rivalidade entre as duas redes. As escolas/professores que aderirem recebem um manual com oficinas de escrita, sempre com a ideia de ampliação de repertório e da construção de uma experiência que vá muito além do concurso e da escola. O tema é o mesmo para os quatro gêneros: “o lugar onde vivo”.

Os alunos que trabalham com poesia, da quinta e sexta séries do ensino fundamental, são estimulados a conhecer os poetas da sua comunidade. Em memória literária, no sétimo e oitavo ano, buscam a história das pessoas mais velhas, rompendo a barreira das gerações e valorizando o conhecimento do outro. Em crônica, gênero do nono ano do ensino fundamental ou do 1o do ensino médio, o desafio é encontrar as marcas da cidade, as frestas nas quais a vida se reedita no cotidiano. Como faz uma das estudantes, ao descobrir que, na sua cidade, onde não tem nenhuma rua plana, os verbos mais conjugados são “descer” e “subir”. Nos textos de opinião, escritos pelos alunos da 2a e 3a séries do ensino médio, devem abordar os vários lados de uma questão que mobiliza – ou deveria mobilizar – a comunidade. E, a partir daí, posicionar-se.

Cada escola elege seus melhores textos, nos diferentes gêneros, e disputa a etapa municipal. E assim por diante, até chegar a nacional. Os selecionados de cada estado participam das oficinas regionais, para as quais viajam com seus professores, o que já é um prêmio. Quem participou da oficina de crônica, entre outras atividades, ganhou uma câmera e entrevistou um fotógrafo sobre a apreensão do momento; quem trabalhou com memória literária ouviu do maestro João Carlos Martins: “No momento em que você usa a memória para aprimorar aquelas qualidades que você recebeu, você realmente está construindo o seu futuro”.

É neste momento que surgem depoimentos como o do menino que explica seu processo criativo: “A pessoa escreve na ponta do lápis, a pessoa vai escrevendo de letra em letra, de pouquinho em pouquinho, e quando vê já tem uma estrofe. Eu gosto de trabalhar com rima porque a rima é divertido, a rima dá um diferente sentido na estrofe”. Ou a menina indígena que conta: “Lá na reserva, o povo diz que é indígena. Mas aqui na cidade não fala que é, por medo de ser… como é que se diz? Rejeitado. Eu falo, pra quem quiser ouvir”.

Ao ler os textos, descobrimos Brasis que a maioria de nós desconhece. Roberta Oliveira Morim, aluna da professora Rosangela Aparecida Morim, da Escola Estadual Anita Ramos, nos conta que, em Douradoquara, no estado de Minas Gerais, “não tem shopping, não tem churrascaria, não tem pizzaria, não tem funerária, não tem feira, não tem zoológico, não tem Pronto-Socorro, não tem espaço cultural, não tem parque, não tem quase nada”. É importante observar com que inteligência ela faz a sua crítica. E com que inteligência ela reconhece uma riqueza que só há lá, na sua aldeia: “Mas aqui tem uma coisa que cidade nenhuma tem. Sabe o que tem aqui? O jumento do tio Joãozinho”. Ficamos sabendo então que, em Douradoquara, a população não acorda nem com despertador, nem com apito de fábrica, nem com galo: acorda com jumento. Quem anuncia o dia por lá, pontualmente, às 6h da manhã, é o zurro do Paioso, um “jumento pega” de pelos acinzentados e metro e trinta de altura.

“Relógio Jumento” foi uma das cinco vencedoras nacionais, na categoria crônica. Desde que li, não tem dia que eu acorde em São Paulo – neste último domingo acordei com o foguetório dos corintianos às 5h30 da manhã – sem que eu lembre do Paioso. Que, graças à Roberta, agora também faz parte do Brasil que me habita.

Em memória literária, um dos cinco textos vencedores foi o extraordinário “O tempo, o chiado e as flechas”. Escrito por Jhonatan Oliveira Kempim, de 13 anos, e orientado pelo professor Alan Francisco Gonçalves de Souza, da Escola Municipal Teobaldo Ferreira, de Espigão d’Oeste, em Rondônia, ele documenta um conflito real, mas o transcende pela literatura. Assumindo a primeira pessoa da narradora, ele conta o encontro entre indígenas e posseiros na derrubada da floresta amazônica nos anos 70. Mas o faz usando o chiado da panela de pressão como metáfora da invasão de um mundo pelo outro.

Ao escutar o chiado da panela, um barulho que não pertencia ao seu universo, um pequeno indígena apavorado disparou uma flecha que alcançou a garganta do filho daquele que derrubava a mata e com ela o território do outro, acreditando nas promessas de progresso do Brasil Grande da ditadura militar. Duas crianças inocentes numa guerra que não lhes pertencia.

Ao transformar memória em palavra, aquela que narra se descobre em terra arrasada, cercada por grades e muros eletrificados. Identificada não mais com o “progresso” que foi buscar, mas com as últimas árvores sobreviventes e com rios que têm sede. Descobre que ela também resta em um mundo no qual até o chiado da panela se calou, porque tanto o indígena quanto o invasor foram sequestrados de si.

Nesta edição de 2012, há muitas pistas para reflexão. Trago algumas delas para cá. No quesito “as notícias que o Brasil nos dá”, destaco que boa parte dos textos de opinião escritos pelos estudantes revela a preocupação das pequenas e médias cidades com o impacto, no meio ambiente e na vida das pessoas, das grandes obras de infraestrutura promovidas pelo Estado e também pela intervenção de grandes empresas em áreas como a mineração. Me chamou a atenção o fato de que essa preocupação não alcança expressão correspondente na imprensa que tem como missão documentar a história cotidiana do país, na qual me incluo.

Um outro ponto importante é perceber a procedência dos trabalhos vencedores na etapa nacional. Entre os 20 vencedores, nas quatro categorias, quatro são de Minas Gerais, três do Paraná, dois do Rio Grande do Norte e dois do Ceará. E cada um dos seguintes estados tiveram um vencedor: Acre, Amapá, Rondônia, Pará, Paraíba, Pernambuco, Sergipe, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Nesta relação chama a atenção pelo menos duas ausências: São Paulo e Rio de Janeiro, sendo que São Paulo participou com o maior número de textos na etapa inicial.

Outro dado revelador é que, entre os 20 vencedores, apenas quatro são estudantes de escolas nas capitais: Natal, Recife, Macapá e Rio Branco. Entre os 152 finalistas, a proporção é semelhante: apenas 24 estudam em capitais – o equivalente a 16%. Olhando apenas para finalistas fora das capitais, 64% vivem em cidades com até 50 mil habitantes.

Vale a pena pensar no que isso significa. E várias hipóteses podem ser levantadas. Sônia Madi, a coordenadora da Olimpíada, acredita que uma das questões decisivas para o resultado é o envolvimento da comunidade em todo o processo, das oficinas aos textos. “Em cidades pequenas, a comunidade adota a ideia e se envolve com as atividades. A Olimpíada é um acontecimento”, diz. “Já nas maiores, especialmente nas capitais, tudo é mais difícil. Em São Paulo, por exemplo, os professores já vivem a dificuldade de ir de uma escola à outra, de dobrar período, tudo é mais complicado.”

Me arrisco a sugerir uma hipótese, entre as tantas que podem ser examinadas. Quem conhece as periferias do Rio e de São Paulo sabe que tanto as experiências quanto as variações linguísticas pelas quais as experiências são expressadas são riquíssimas. Tão ricas quanto diversas entre si – e diversas das realidades dos muitos interiores do Brasil. Só na periferia de São Paulo, que conheço um pouco, a quantidade de palavras que precisaram ser criadas para dar conta da realidade é enorme. Mas talvez a escola não esteja conseguindo acolher essas variações linguísticas, já que elas não apareceram nos textos – pelo menos naqueles que eu li.

Imagino que seja muito difícil para um estudante se expressar com palavras que não sejam as suas – traduzindo uma experiência de periferia com uma linguagem falada nos Jardins. Uma espécie de “preconceito linguístico” que pode ter sido reproduzido em parte das escolas. Isso acontece quando a escola não consegue construir a ponte com a comunidade na qual está – e na qual se realiza como escola.

É apenas uma das hipóteses a ser investigada e posso estar equivocada. O fato é que a riqueza encontrada em manifestações artísticas como o hip-hop ou em eventos literários como a FLUPP (Festival Literário das UPPs, realizado nas comunidades do Rio neste ano) e a Cooperifa (o maior sarau literário do país, reeditado a cada quarta-feira na periferia da Zona Sul de São Paulo) não apareceram na Olimpíada.

Neste sentido, sempre lembro do poeta Sérgio Vaz, da Cooperifa, numa entrevista que fiz com ele anos atrás. Um intelectual reclamou ao poeta: “Na Cooperifa vocês ensinam a escrever errado! Vão acabar deixando recado na porta da geladeira com ‘nóis vai’”. Sérgio Vaz retrucou, com a verve habitual: “Primeiro, que não tem geladeira pra botar recado. Segundo, que quando nóis vai, nóis vai mesmo”.

O que a Olimpíada nos mostra é que, quando a escola pública cumpre o seu papel, o Brasil dialoga. E dialoga pela diversidade – tanto de experiências quanto de variações da língua portuguesa. Quando a escola pública perdeu qualidade e prestígio, a classe média desertou. Mas o que poucos pais percebem é que uma escola não se define apenas pela competência em transmitir conteúdos programáticos, mas também e principalmente pela capacidade de ser um espaço de convivência dos diferentes.

No momento em que a escola privada vira um gueto de classe, cada vez mais fechada em si mesma, ela perde uma das principais razões de ser de uma escola, na medida em que só é possível o convívio entre iguais. É por isso que, na minha opinião muito pessoal, mesmo aquelas que são consideradas as escolas privadas de excelência do país, com aprovações massivas nos vestibulares das melhores universidades, são escolas que falham tremendamente na sua missão de educar.

As consequências dessa deformação naquilo que é a essência da educação a gente percebe nas ruas. Assim, me parece, as lições da Olimpíada de Língua Portuguesa, que bota a dialogar a filha de um plantador de fumo da região sul com o filho de um vaqueiro do Nordeste, dizem algo crucial não só para a escola pública, mas também para a privada. Se quisermos ter educação de qualidade neste país, é preciso derrubar os muros – tanto os reais quanto os simbólicos – e dialogar.

Dialogar a partir da experiência de cada um, com a experiência de todos os outros. Quando a educação se precariza, não é apenas de falta de mão de obra qualificada que o Brasil padece – mas de brasileiros capazes de reconhecer a experiência do diferente e dialogar com ela, em todos os espaços da vida. Porque é neste diálogo que um país cresce – ou se torna.

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P.S. – Recomendo – com muita veemência – que, sobre a língua portuguesa, assistam à conferência do linguista Carlos Alberto Faraco sobre a “senhora dona norma culta” e o “pretoguês” (clique aqui).

(Publicado na Revista Época em 17/12/2012)

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