Tarifa não é dinheiro, é tempo

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Fotos: Rovena Rosa/Agência Brasil

É por recusar a brutalização da vida que manifestantes se tornam uma ameaça perigosa e são violentamente reprimidos

Tempo não é dinheiro. E tarifa é tempo, não dinheiro. São sobre tempo, portanto, e não sobre dinheiro, os protestos contra o aumento das passagens do transporte público em 2016, como foram os de 2013. Se não for resgatada a potência do que está em jogo nas ruas de São Paulo e de outras cidades do Brasil, tudo se repetirá como farsa. E a Polícia Militar brutalizará os corpos já brutalizados pela tarifa e, principalmente, pela vida monetarizada. A vida reduzida à lógica do capital.

(…)

Vale lembrar da frase de lembrança sempre urgente do professor Antonio Candido, um dos intelectuais brasileiros mais importantes do século 20: “O capitalismo é o senhor do tempo. Mas tempo não é dinheiro. Dizer que tempo é dinheiro é uma brutalidade. Tempo é o tecido de nossas vidas”. Quando se vai às ruas protestar contra 20 centavos, como em 2013, ou contra 30 centavos, como agora, em 2016, não é “só” sobre 20 ou 30 centavos. Ainda que seja também, o protesto é principalmente sobre algo que, ainda que o capitalismo bote preço, escapa do capitalismo. Não existe uma “natureza” inerente ao tempo que diga que ele tem preço. Existe política e cultura, existe criação humana.

(…)

 

Quando os manifestantes vão às ruas levantando a bandeira da tarifa zero estão em conflito com a visão de setores dos governos e da sociedade que defendem ideias opostas. Tentar apagar os conflitos, sem enfrentá-los com debate e com escuta, como historicamente o Brasil fez em temas como o racismo, leva a uma “pacificação” que todos sabemos falsa. É o “confronto” – e não o conflito – que pressupõe inimigos a serem esmagados, espancados com golpes de cassetete e intoxicados com gás.

(…)

Vandalizar pessoas em nome da defesa do patrimônio é a ordem para manter a ordem de que gente vale pouco. A tarifa é cara justamente porque a carne humana é barata.

A insubordinação dos que andam, a que a PM é instada a reprimir, é a de dizer que seu tempo tem valor – e este valor não é meramente monetário. É essa a rebelião que precisa ser esmagada antes que avance pelas ruas. O movimento a ser interrompido pela força, antes que interrompa o trânsito dos privilégios, é aquele que lembra que tempo não é dinheiro, mas o tecido da vida. É aquele que reivindica o tempo “para os afetos, para amar a mulher que escolhi, para ser amado por ela, para conviver com meus amigos, para ler Machado de Assis”.

Leia o texto completo na minha coluna no El País

Fotos: Rovena Rosa/Agência Brasil

Tarifa não é dinheiro, é tempo

É por recusar a brutalização da vida que manifestantes se tornam uma ameaça perigosa e são violentamente reprimidos


Tempo não é dinheiro. E tarifa é tempo, não dinheiro. São sobre tempo, portanto, e não sobre dinheiro, os protestos contra o aumento das passagens do transporte público em 2016, como foram os de 2013. Se não for resgatada a potência do que está em jogo nas ruas de São Paulo e de outras cidades do Brasil, tudo se repetirá como farsa. E a Polícia Militar brutalizará os corpos já brutalizados pela tarifa e, principalmente, pela vida monetarizada. A vida reduzida à lógica do capital.

Há duas linhas principais na narrativa dos protestos por parte da imprensa. Uma destaca o fato de que o aumento da tarifa de ônibus, trens e metrô de São Paulo, de 3,50 reais para 3,80 reais, foi menor do que a inflação. A outra aponta o “confronto” da Polícia Militar com os manifestantes para impedir a depredação e o “vandalismo” do patrimônio. Essas duas abordagens, intimamente ligadas, aparecem como naturais, como se houvesse uma ordem “natural” que dissesse respeito à “natureza” das “coisas como as coisas são” que precedesse a vida e a política – e também a tarifa do transporte público e a ação das forças de segurança do Estado. São os dogmas não religiosos que mesmo uma parte da imprensa laica reproduz.

Na primeira linha narrativa está implícita a afirmação de que, se a tarifa subiu menos que a inflação, não há razão para os manifestantes protestarem. Seria óbvio que, na ponta do lápis, é preciso que a inflação seja reposta para que o sistema possa seguir operando. Assim, subir menos que a inflação seria uma benesse pela qual a população deveria ficar agradecida. A afirmação embutida é de que a lógica da vida é monetária. E, principalmente, a de que tarifa de transporte não é uma questão de política, mas de saber fazer contas.

A segunda linha narrativa transforma a Polícia Militar na principal protagonista, na medida em que as forças de segurança do Estado decidem qual será o desfecho da manifestação – ou se vão jogar bombas de gás, disparar balas de borracha e descer o cassetete no começo, no meio ou no fim dos protestos. Esta é a pergunta suspensa sobre cada ato contra o aumento da tarifa. E é com “naturalidade” que isso é descrito, como se a PM fosse um corpo autônomo e como se sua ação não dissesse respeito a uma visão de mundo nem fosse resultado de uma ordem do governador. É também como se governador e PM não tivessem que prestar contas à população. A atuação da PM diria respeito à ordem “natural” das coisas – e não à política. “Manter a ordem” seria uma ordem acima da ordem, sem necessidade de passar pela pergunta obrigatória sobre que ordem é essa que se pretende manter.

Esses dogmas laicos – e os laicos podem ser piores do que os religiosos, porque escondem o que são – servem para encobrir o que está em jogo nos protestos contra o aumento da tarifa do transporte. E, principalmente, que esse protesto seja nas ruas e que seja sobre transporte – e não sobre outra dimensão da vida. Esses dogmas laicos servem para encobrir que se trata de tempo – e não de dinheiro. Trata-se de patrimônio imaterial, intransferível, de cada pessoa – e não de patrimônio material, comercializável, rentável, de corporações ou estados. Esses dogmas laicos servem para encobrir que os protestos são políticos, sim, mas políticos no sentido profundo da política, que diz respeito a como as pessoas querem estar com as outras no espaço público. E de como querem viver o que de mais importante têm ou tudo o que de fato têm numa vida: tempo.

Vale lembrar da frase de lembrança sempre urgente do professor Antonio Candido, um dos intelectuais brasileiros mais importantes do século 20: “O capitalismo é o senhor do tempo. Mas tempo não é dinheiro. Dizer que tempo é dinheiro é uma brutalidade. Tempo é o tecido de nossas vidas”. Quando se vai às ruas protestar contra 20 centavos, como em 2013, ou contra 30 centavos, como agora, em 2016, não é “só” sobre 20 ou 30 centavos. Ainda que seja também, o protesto é principalmente sobre algo que, ainda que o capitalismo bote preço, escapa do capitalismo. Não existe uma “natureza” inerente ao tempo que diga que ele tem preço. Existe política e cultura, existe criação humana.

É de política que se trata quando se protesta contra a apropriação do tempo. A lógica dos protestos é a de que tudo pode se mover, porque cultura e porque criação humana. É também a lógica do possível, não do já cimentado. Assim, a lógica dos protestos não se sujeita a dogmas. Ela se sujeita ao sujeito. E o sujeito, quando sujeitado, objeto se torna. É essa a conversão feita pela lógica da monetarização e pela lógica da brutalização dos corpos pela PM: reduzir o sujeito a objeto para que nada se mova. Para impedir que isso se repita como farsa, é necessário reafirmar a gestão do tempo como uma experiência da política.

Pesquisas que relacionam quantidade de tempo de trabalho e valor monetário da tarifa, como a realizada pelos economistas Samy Dana e Leonardo Lima, da Fundação Getúlio Vargas, são importantes. Em São Paulo, uma pessoa precisava trabalhar, em 2015, cerca de 13,30 minutos para pagar a passagem. Já em capitais que costumam ser admiradas e elogiadas como o melhor do capitalismo, onde os serviços de transporte público apresentam qualidade reconhecidamente melhor, as tarifas são mais baixas e até muito mais baixas: Londres (11,30 minutos), Madri (6,20 minutos), Nova York (5,80 minutos) e Paris (4,50 minutos).

A exposição da discrepância dos valores monetários, provando que é possível ter uma tarifa bem menor mesmo em países capitalistas, é fundamental para começar a desconstruir as contas e revelar o material que nelas está embutido, para muito além da reposição da inflação. É essencial para fazer as perguntas mais complicadas, aquelas necessárias para a compreensão de por que no Brasil há uma tarifa tão cara para um serviço tão péssimo. Mas talvez o mais importante desse tipo de pesquisa seja chamar a atenção para o elemento principal, o tempo.

Vale a pena destacar o fato de que uma parcela das pessoas trabalha mais de 13 minutos em São Paulo para pagar uma única passagem de ônibus ou trem para alcançar o local de trabalho. Para a ida e a volta é quase meia-hora de vida. E muitos pegam mais do que um ônibus e um trem para a ida e para a volta, engolindo mais vida. E isso sem contar o tempo médio que cada um leva neste percurso, às vezes horas. De vida. Também vale a pena lembrar que, para o lazer, falta.

Me refiro a pessoas – e não a “trabalhadores” – para não reduzir a larga dimensão de uma existência a trabalho ou à monetarização dos corpos. Assim, esse tipo de pesquisa serve para lembrar não que tempo é dinheiro, mas justamente a negação dessa monstruosidade: tempo não é dinheiro. É isso que os manifestantes contra a tarifa lembram a todos ao ocupar as ruas. Mas sua voz é encoberta pelos dogmas laicos. Que, como todo dogma, recusam qualquer dúvida.

Quando a voz é encoberta, a política e a possibilidade de mudança são caladas. Pela força, como se vê. O papel reservado à PM é justamente o de manter uma ordem ordenada por aqueles que detêm o poder de dizer qual é a ordem que vale. De sujeitos da sua ação política, do seu verbo, os manifestantes são reduzidos nas ruas a objetos da ação de um outro, que conjuga o verbo silenciar usando o estrondo das bombas. E assim impede o debate sobre o transporte como um direito social, recentemente incluído na Constituição, mas ainda não expresso na prática cotidiana.

Aqueles que defendem a tarifa zero, como o Movimento Passe Livre (MPL), principal articulador dos protestos de 2013 e de 2016, acreditam que não é o usuário que deve pagar individualmente pelo serviço, mas o conjunto da sociedade, para que todos tenham acesso ao direito de ir e vir. Como acontece, costuma lembrar o engenheiro Lúcio Gregori, secretário de Transportes na gestão de Luiza Erundina, na coleta de lixo, na educação e na saúde, entre outros exemplos, com melhores ou piores resultados. Acontece porque a sociedade entende que é importante garantir o acesso a todos. Há várias propostas circulando de como isso poderia ser implementado, mas esse debate é obscurecido e seus interlocutores reprimidos.

A tarifa zero é controversa? É. Como tudo o que pertence à esfera da política. Talvez menos controversa do que a ideia de um serviço essencial estar submetido à rentabilidade dos empresários do ramo. Mas, qual é a ameaça tão grande à ordem e aos dogmas, que não é possível sequer levantar um cartaz pela tarifa zero sem levar bomba de gás ou um cassetete na cabeça ou no lombo? Essa é a pergunta óbvia que qualquer um deveria fazer antes de sair defendendo a repressão aos manifestantes ou dizendo que a tarifa zero é irreal. Numa democracia não há nada que não possa – ou mesmo deva – ser debatido pela sociedade. Numa democracia o único imperativo acima de qualquer discussão é este: a obrigação legal e ética de dialogar sobre tudo. Neste caso, dialogar antes de impor um aumento de 30 centavos.

Dialogar não é uma escolha para governantes eleitos, como o governador de São Paulo, Geraldo Alckmin (PSDB), e o prefeito de São Paulo, Fernando Haddad (PT). Ambos perdem sua legitimidade se não dialogam com os múltiplos atores da sociedade dentro do sistema que os elegeu. É a obviedade seguidamente esquecida de que o poder não lhes pertence, foi apenas a eles delegado pelo voto. Que Alckmin e Haddad, que representam PSDB e PT, estejam juntos nessa empreitada do aumento da tarifa sem o necessário diálogo com a sociedade sobre como se mover em São Paulo é mais uma prova da corrosão da política partidária, com a crescente perda de sua capacidade de representação. O fato de que Haddad, um prefeito que tem ousado na mobilidade urbana, enfrentando a rejeição de setores das classes média e alta paulistanas, esteja ao lado de Alckmin, um governador conservador que costuma reclamar que os movimentos são políticos, como se pudessem ser qualquer outra coisa, estejam alinhados no aumento da tarifa, embora não na violência da PM, revela o quanto esse tema é espinhoso. Mais um motivo para ser debatido – e não o contrário.

É necessário prestar atenção às palavras usadas para narrar os protestos. “Confronto”, por exemplo, pressupõe forças semelhantes, e pressupõe que essas forças semelhantes ocupam um mesmo lugar simbólico. Quando usado em discursos, títulos e textos da imprensa para descrever os protestos e a ação da PM, esse termo pode estar a serviço do apagamento de uma dimensão fundamental dessa relação: os manifestantes são cidadãos exercendo seu direito de protesto e as forças de segurança do Estado deveriam estar protegendo esse direito. Apaga-se assim o fato de que é de normalidade democrática que deveria se tratar – e não de um lado e de outro lado, como se fosse uma guerra e se tratasse de inimigos.

Nas vezes em que isso é questionado, ouve-se frases como a do governador Geraldo Alckmin (PSDB), esquecendo-se subitamente de que elogiou a PM que espancou adolescentes nas manifestações contra a “reorganização escolar”: “Manifestação legítima e pacífica é positivo, é nosso dever acompanhar e dar segurança. Outra coisa é vandalismo seletivo”. Para justificar que a polícia que comanda violou a lei ao jogar bombas e disparar balas de borracha contra manifestantes, é usual sacar da manga do terno uma outra expressão: a “manifestação pacífica”.

Essa expressão contém pelo menos dois pontos sobre os quais vale a pena refletir. O primeiro é que, mesmo que uma pequena parte dos manifestantes deprede o patrimônio, isso não autoriza a PM a abusar da força. É para fazer melhor que isso que ela deveria ser treinada, já que não se trata de uma gangue de rua, mas das forças de segurança do Estado. Que parte da sociedade tolere e seguidamente aplauda que a PM atue como uma gangue de rua, truculenta e despreparada, é preocupante.

O outro ponto, e este é mais insidioso, é o de insinuar que conflito é algo negativo. O espaço público, como tão bem disse o arquiteto Guilherme Wisnik, é um lugar de conflitos: “O grande atributo da esfera pública é mediar o conflito, porque a sociedade, em si, é conflituosa. A ideia de um espaço sem conflitos é ideológica, uma pacificação irreal. Quando um espaço público não tem conflito é porque ele não está cumprindo sua função”.

Quando os manifestantes vão às ruas levantando a bandeira da tarifa zero estão em conflito com a visão de setores dos governos e da sociedade que defendem ideias opostas. Tentar apagar os conflitos, sem enfrentá-los com debate e com escuta, como historicamente o Brasil fez em temas como o racismo, leva a uma “pacificação” que todos sabemos falsa. É o “confronto” – e não o conflito – que pressupõe inimigos a serem esmagados, espancados com golpes de cassetete e intoxicados com gás.

É preciso prestar mesmo muita atenção às palavras antes de reproduzi-las ou de assumir um discurso que pode ser o mesmo do opressor. Quando os manifestantes “param” ruas de São Paulo, eles não estão parando. Ao contrário. Eles estão andando nas ruas de São Paulo. Movendo-se. Quando “interrompem” o tráfego, eles não estão interrompendo. Os carros param para que as pessoas andem. Movam-se. É exatamente para que não se movam que a PM “encurrala” e “cerca”, “reprime” com bombas de gás, balas de borracha e cassetete. É exatamente para que não andem que a PM “detém” ou “prende” ou “imobiliza” manifestantes que depois são soltos porque não há nem nunca houve justificativa legal para detê-los ou prendê-los ou imobilizá-los. A grande subversão, afinal, é andar. Mover-se. É preciso impedir que andem para que nada se mova “na ordem natural das coisas”.

Para que serve a PM com seu aparato de guerra? Para controlar os corpos com golpes de cassetete, balas de borracha e bombas de gás e manter o mover-se como valor meramente monetário. Para impedir que as pessoas perguntem por que não podem andar. A PM está lá para proteger o “patrimônio”. Mas não o patrimônio humano, este é barato na lógica da monetarização: mais de 13 minutos de vida para pagar uma passagem de ônibus. Os corpos dos que querem andar podem ser espancados, intoxicados, violados porque a vida humana, pelo menos a da maioria, tem valor baixo. O que não pode é “depredar” o patrimônio de fato caro, o material.

A PM vandaliza pessoas para proteger patrimônio. Mas o discurso é perversamente invertido para que os “vândalos” sejam os que quebram cimento, vidro e ferro e não os que perfuram carne humana. Se seguidas vezes a PM vandaliza manifestantes antes de qualquer depredação do patrimônio, é possível pensar que isso acontece tanto porque a PM está a serviço de produzir “vândalos” e “confronto”, para encobrir a reinvindicação das ruas no noticiário, quanto pelo fato de que o patrimônio que ela de fato está protegendo 24 horas por dia é o do status quo, e este está ameaçado desde que o primeiro manifestante bota o pé na rua.

Vandalizar pessoas em nome da defesa do patrimônio é a ordem para manter a ordem de que gente vale pouco. A tarifa é cara justamente porque a carne humana é barata.

A insubordinação dos que andam, a que a PM é instada a reprimir, é a de dizer que seu tempo tem valor – e este valor não é meramente monetário. É essa a rebelião que precisa ser esmagada antes que avance pelas ruas. O movimento a ser interrompido pela força, antes que interrompa o trânsito dos privilégios, é aquele que lembra que tempo não é dinheiro, mas o tecido da vida. É aquele que reivindica o tempo “para os afetos, para amar a mulher que escolhi, para ser amado por ela, para conviver com meus amigos, para ler Machado de Assis”.

Passaremos.

(Publicado no El País em 18 de janeiro de 2016)

1500, o ano que não terminou

Quem chorou por Vitor, o bebê indígena assassinado com uma lâmina enfiada no pescoço?

Estava quase terminando um texto mais “filosófico” para esse início de ano. Percebo que minha escrita mudou, que desde 2013 escrevo com lâminas. E sinto falta de outros temas e espaços. Sinto falta das delicadezas também na escrita. E pensei que não era possível que na virada do ano, quando até São Paulo esvazia, não conseguisse.

Soube então do assassinato do Vitor. Sua morte não virou notícia, para além da imprensa local, que também não deu tanto espaço assim. Como algo assim acontece com tão pouco espanto. Como é possível que o país não pare por causa da morte dessa criança, que não seja notícia no mundo inteiro, que a gente não passe dias chorando. Que a gente não se mova.

Um bebê.

Dizem que a gente não deve escrever com o fígado. Eu sempre escrevo (também) com o fígado.

Continue lendo no El País.

Garoto estava com a mãe na rodoviária (Foto: Gabriel Felipe/RBS TV)

Foto: Gabriel Felipe/RBS TV

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1500, o ano que não terminou

Quem chorou por Vitor, o bebê indígena assassinado com uma lâmina enfiada no pescoço?


Um menino de dois anos foi assassinado. Um homem afagou seu rosto. E enfiou uma lâmina no seu pescoço. O bebê era um índio do povo Kaingang. Seu nome era Vitor Pinto. Sua família, como outras da aldeia onde ele vivia, havia chegado à cidade para vender artesanato pouco antes do Natal. Ficariam até o Carnaval. Abrigavam-se na estação rodoviária de Imbituba, no litoral de Santa Catarina. Era lá que sua mãe o alimentava quando um homem perfurou sua garganta. Era meio-dia de 30 de dezembro. O ano de 2015 estava bem perto do fim.

E o Brasil não parou para chorar o assassinato de uma criança de dois anos. Os sinos não dobraram por Vitor.

Sua morte sequer virou destaque na imprensa nacional. Se fosse meu filho, ou de qualquer mulher branca de classe média, assassinado nessas circunstâncias, haveria manchetes, haveria especialistas analisando a violência, haveria choro e haveria solidariedade. E talvez houvesse até velas e flores no chão da estação rodoviária, como existiu para as vítimas de terrorismo em Paris. Mas Vitor era um índio. Um bebê, mas indígena. Pequeno, mas indígena. Vítima, mas indígena. Assassinado, mas indígena. Perfurado, mas indígena. Esse “mas” é o assassino oculto. Esse “mas” é serial killer.

A fotografia que ilustrou as poucas notícias sobre a morte do curumim mostra o chão de cascalho e concreto da estação rodoviária. Um par de sandálias havaianas azul, com motivos infantis. Uma garrafa pet, uma estrelinha de brinquedo, daquelas de fazer molde na areia, uma tampa de plástico do que parece ser um baldinho de criança, uma pequena embalagem em formato de tubo, um pano florido amontoado junto à parede, talvez um lençol. É apresentada como “local do crime” ou como “os pertences do menino”.

Essa foto é um documento histórico. Tanto pelo que nela está quanto pelo que nela não está. Nela permanece o descartável, os objetos de plástico e de pet, os chinelos restados. Nela não está aquele que foi apagado da vida. A ausência é o elemento principal do retrato.

Os indígenas só podem existir no Brasil como gravura. Apreciados como ilustração de um passado superado, os primeiros habitantes dessa terra, com sua nudez e seus cocares, uma coisa bonita para se pendurar em algumas paredes ou estampar aqueles livros que decoram mesas de centro. Os indígenas têm lugar se estiverem empalhados, ainda que em quadros. No presente, sua persistência em existir é considerada inconveniente, de mau gosto. Há vários projetos tramitando no Congresso para escancarar suas terras para a exploração e o “progresso”. Há muitos territórios indígenas devidamente reconhecidos que o governo de Dilma Rousseff (PT) não homologa porque neles quer construir grandes obras ou porque teme ferir os interesses do agronegócio. Há uma Fundação Nacional do Índio (Funai) em progressivo desmonte, tão fragilizada que com frequência se revela também indecente. No passado, os índios são. No presente, não podem ser.

Como diz o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, os indígenas são especialistas em fim de mundo, já que o mundo deles acabou em 1500. Tiveram, porém, o desplante de sobreviver ao apocalipse promovido pelos deuses europeus. Ainda que centenas de milhares tenham sido exterminados, sobreviveram à extinção total. E porque sobreviveram continuam sendo mortos. Quando não se consegue matá-los, a estratégia é convertê-los em pobres nas periferias das cidades. Quando se tornam pobres urbanos, chamam-nos de “índios falsos”. Ou “paraguaios”, em mais um preconceito com o país vizinho. No passado, os índios são alegoria. “Olha, meu filho, como eram valentes os primeiros habitantes desta terra.” No presente, são “entraves ao desenvolvimento”. “Olha, meu filho, como são feios, sujos e preguiçosos esses índios fajutos.” Os índios precisam ser falsos porque suas terras são verdadeiras – e ricas.

Se Vitor era um entrave, esse entrave foi removido. Por isso essa foto é um documento histórico. Se houvesse alguma honestidade, é ela que deveria estar nas paredes.

Parece não bastar que Vitor, um bebê de dois anos, passasse semanas no chão de uma rodoviária porque a violência contra seu povo foi tanta e por tantos séculos e ainda hoje continua que seus pais, Sônia e Arcelino, precisam deixar a aldeia para vender artesanato. A preços baixos, porque desvalorizados são os artesãos. É importante perceber o nível de desamparo que leva alguém a considerar rodoviária um lugar seguro e acolhedor. Terminais rodoviários são locais de passagem, e a família de Vitor, assim como a de outros indígenas, abriga-se lá porque há movimento. Rodoviária é lugar de ninguém. E por isso nela costumam caber os mendigos, os meninos de rua, os bêbados, as putas, os loucos, os párias. E os índios. Ou cabiam. E já não cabem mais.

Rodoviárias são espaços de circulação de estranhos, e por serem “os outros”, os estrangeiros nativos, os indígenas acreditam que neste não lugar têm chance de escapar da expulsão. Mas seguidamente são expulsos. Parte da população dos municípios em que os indígenas aparecem com seu artesanato acha que a rodoviária é boa demais pra índio. Ou pra “bugre”, como são chamados em algumas regiões do sul do país. “A rodoviária é o cartão postal da cidade, período que tem tanta gente viajando, chegando. Que imagem vão levar da cidade?”, justificou um comerciante de São Miguel do Oeste, também em Santa Catarina, para justificar a expulsão dos indígenas do local antes do Natal.

Vitor já não estraga nenhum cartão postal. Dele não há nem mesmo um rosto. A foto de sua ausência não comoverá milhões pelo planeta como aconteceu com o menino sírio trazido pelas ondas do mar. A morte dos curumins não muda nenhuma política.

Antes que me acusem de precipitação, exagero ou injustiça, é preciso dizer: os “cidadãos de bem” não querem que crianças indígenas tenham seus pescoços perfurados. De jeito nenhum. Apenas que elas fiquem longe da vista. Em outro lugar em que não contaminem, sujem ou enfeiem. Mas também não nas suas terras, se estas forem ricas em minérios, férteis pra soja ou boa pra gado pastar. Aí também é abuso. Desapareçam, apenas. Mas matar, não, matar é maldade.

2015 foi o ano em que esse discurso deu ao Brasil o bicampeonato. O deputado estadual Fernando Furtado, do Partido Comunista do Brasil (PCdoB), foi reconhecido como “Racista do Ano” pela organização Survival International por seu pronunciamento antológico, ao se manifestar numa audiência pública: “Lá em Brasília, o Arnaldo viu os índios tudo de camisetinha, tudo arrumadinho, com flechinha, tudo um bando de viadinho, que tinha uns três que eram viado, que eu tenho certeza, viado. Eu não sabia que tinha índio viado, fui saber naquele dia em Brasília… Tudo viado. Então é desse jeito que tá, como é que índio já consegue ser viado, boiola, e não consegue trabalhar e produzir? Negativo!”.

O parlamentar se referia aos Awá-Guajá, considerados um dos povos mais vulneráveis do planeta. A conquista de Fernando Furtado, porém, não é inédita. Outro parlamentar, Luis Carlos Heinze, este deputado federal pelo Partido Progressista (PP) do Rio Grande do Sul, já tinha subido ao pódio em 2014, com a seguinte declaração: “O governo… está aninhado com quilombolas, índios, gays e lésbicas, tudo o que não presta”. Tudo indica que o Brasil é quase imbatível para o tricampeonato. Fala-se tanto em país polarizado, mas a premiação prova que os indígenas são um raro ponto de unanimidade entre certa direita e certa esquerda dessa grande nação.

Vitor, o bebê assassinado, vivia na aldeia Condá, no município de Chapecó, no oeste de Santa Catarina. Os crimes cometidos pelo Estado contra o povo Kaingang da região sul do Brasil estão registrados no Relatório Figueiredo, um documento histórico que se acreditava perdido e que foi descoberto no final de 2012. O relatório, datado de 1968, documentou o tratamento dado aos povos indígenas pelo extinto Serviço de Proteção aos Índios (SPI). No total, o procurador Jáder Figueiredo Correia dedicou 7.000 páginas para contar o que sua equipe viu e ouviu. Quem quiser compreender por que Vitor se abrigava no chão da rodoviária de Imbituba em vez de passar os meses de verão seguro, saudável e feliz na sua aldeia, tem uma rica fonte de informações no documento disponível na internet. Vai descobrir, entre outras atrocidades, como antepassados de Vitor chegaram a ser torturados e a viver em condições análogas à escravidão para que suas terras fossem desmatadas e exploradas pelos não índios, em pleno século 20. É possível que alguns destes “empreendedores” sejam avós daqueles que hoje acham que indígenas como Vitor sujam o cartão postal de suas cidades.

Depois do assassinato do bebê, a Polícia Militar prendeu o suspeito de sempre. Um rapaz pobre, em liberdade provisória, com “uma pequena quantidade de maconha e cocaína na mochila”. Como não havia nenhum indício contra ele, foi liberado. Em seguida, foi preso outro jovem, hoje considerado o principal suspeito. A polícia procurava alguém bastante genérico: com mochila e boné e tipo físico semelhante ao que aparece num vídeo gravado por uma câmera de segurança. A suspeita de policiais militares é de que o assassino estaria “incomodado com a presença dos indígenas no local”. A Polícia Civil mencionou como possíveis motivações “preconceito”, “surto” e “problemas psicológicos”. Em nota, o CIMI afirmou: “O Conselho Indigenista Missionário manifesta preocupação com o clima de intolerância que se propaga, na região sul do país, contra os povos indígenas. Um racismo – às vezes velado, às vezes explícito – é difundido através de meios de comunicação de massa e em redes sociais”.

Quem de fato assassinou Vitor talvez seja investigado, julgado, condenado e punido, o que já é uma raridade em mortes de indígenas no Brasil, marcadas pela impunidade. Mas é preciso fazer perguntas mais complicadas. Quem armou essa mão? Que encruzilhada histórica permitiu que Vitor fosse o bebê escolhido pelo assassino, independentemente de sua sanidade ou insanidade – e não o meu filho ou o seu? Onde estamos nós nesta foto em que estamos sem estar?

Tem se dito que 2015, um ano de crise no Brasil e horror em todas as partes, é o ano que não terminou. 2016 seria apenas um looping. Faz sentido. Na véspera deste Natal, Antônio Isídio Pereira da Silva, líder rural e ambientalista no Maranhão, foi encontrado morto. Era mais um assassinato anunciado. Há um ano foi arquivado o pedido de inclusão do agricultor no programa federal de proteção aos defensores de direitos humanos. Ele se preparava para denunciar mais um desmatamento ilegal numa região com graves conflitos de terra quando foi assassinado. Também no Natal, cinco jovens denunciaram policiais militares do Rio por tortura e roubo. Segundo seu relato, eles voltavam em três motos de uma festa quando foram detidos por PMs da Unidade de Polícia Pacificadora de Coroa, Fallet e Fogueteiro. Além de torturas com faca quente, isqueiro e socos, um deles teria sido obrigado a fazer sexo oral no amigo. Em São Paulo, levou apenas dois dias para ocorrer a primeira chacina de 2016, com quatro mortos na periferia de Guarulhos. Suspeita-se de vingança pela morte de um PM dias antes na região.

Começamos como acabamos. Nada, portanto, nem começou nem acabou. Quem continua morrendo de assassinato no Brasil, em sua maioria, são os negros, os pobres e os índios. O genocídio segue diante da indiferença, quando não aplauso, do que se chama de sociedade brasileira. Começamos 2016 como acabamos 2015. Obscenos. Os fogos do Ano-Novo já fracassam no artifício. Estamos nus. E nossa imagem é horrenda. Ela suja de sangue o pequeno corpo de Vitor por quem tão poucos choraram.

Dizem que 2015 é o ano que não acaba. Ou que 2013 é que não chega ao fim.

Para os indígenas é muito mais brutal: o ano de 1500 ainda não terminou.

(Publicado no El País em 4 de janeiro de 2016)

É política sim, Geraldo

Enquanto o Brasil vive o rebaixamento do exercício político, os estudantes paulistas mostraram que é possível estar com o outro no espaço público

Estudantes protestam em São Paulo na última sexta-feira. MIGUEL SCHINCARIOL AFP (Reprodução do El País)

Estudantes protestam em São Paulo na última sexta-feira. MIGUEL SCHINCARIOL AFP (Reprodução do El País)

O Brasil no final de 2015: a bacia do Rio Doce foi destruída, e a lama avança sobre o oceano; o presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha (PMDB), um homem investigado por crimes de lavagem de dinheiro e corrupção, que escondeu contas na Suíça, dá início ao processo que pode resultar no impeachment da presidente Dilma Rousseff (PT), depois de constatar que deputados petistas votariam contra ele no Conselho de Ética, numa ação que pode cassar seu mandato; a Polícia Militar do Rio de Janeiro dispara 111 tiros e fuzila cinco jovens negros porque passeavam de carro à noite; as brasileiras não podem engravidar porque há um surto de microcefalia causado por vírus transmitido pelo Aedes aegypti e aquelas que estão grávidas foram condenadas a viver em pânico diante do zumbido de um mosquito; o governador de São Paulo, Geraldo Alckmin (PSDB), autoriza a PM a jogar bombas de gás e a bater em estudantes de escolas públicas.

Obscenidade é a palavra que chega mais perto, mas é fraca demais para representar o Brasil atual. E também ela fracassa. Procuram-se palavras que deem conta do excesso de real da realidade. A crise de representação assumiu proporções inéditas. E o ano ainda não acabou.

Diante desse despedaçamento, há que se cuidar para que as palavras disponíveis, aquelas que dão nome a conceitos cuja construção é o que de melhor a humanidade criou, não sejam pervertidas e restem também elas obscenas. É neste ponto, profundo, que o governador Geraldo Alckmin (PSDB) cometeu um ato simbólico de extrema violência, para além da truculência concreta de sua polícia nas ruas de São Paulo. Em 2 de dezembro, no Palácio dos Bandeirantes, ele afirmou:

– Não é razoável obstrução de via pública, é nítido que há uma ação política no movimento. Há uma nítida ação política.

A frase do governador foi amplificada pela imprensa, em títulos de jornais e chamadas nas rádios, TV, internet. O governador denunciando o movimento dos estudantes que ocupavam as escolas públicas de São Paulo em protesto contra um plano que, em nome da “reorganização escolar”, fecharia mais de 90 escolas e remanejaria mais de 300.000 alunos. Mas, vale repetir, o que o governador denuncia? Que o movimento é político. Qual seria a acusação? É óbvio que o movimento é político. E a melhor qualidade do movimento é justamente a de que é político.

É pelo exercício da política que se alcançou o que de melhor existe na experiência humana. E não pela força, pela imposição, pelo extermínio do diálogo e das ideias e, vezes demais, das pessoas que discordam. Onde a política é suspensa, a aniquilação se instaura. Para Alckmin, porém, a julgar pela sua declaração e pelos seus atos, a política é obscena. Tanto que ele precisa denunciá-la. E insinuar que os estudantes estão sendo instrumentalizados por interesses partidários e ideológicos. É fundamental que se preste atenção a um governador, com ambições de ser presidente da República, que iguala a política à obscenidade. Ou à abominação, outra palavra que pode nos iluminar nesse momento em que a crise de representação alcança também as palavras.

Voltemos à declaração do governador: “Não é razoável obstrução de via pública”. É assim que a frase começa. Para ele, protesto, manifestação, algo do cerne da democracia, é “obstrução da via pública”. O que se impõe nesta afirmação de Alckmin? A voz que vale é a daquele que quer passar. A via pública pertence àqueles que querem passar com seus carros. Passar, portanto, sem parar para escutar. É forte, porque Alckmin tem demonstrado governar assim, passando sem escutar. Se necessário, passando por cima, como se viu.

O que foi a imposição da “reorganização escolar” sobre a comunidade, senão um “passar sem escutar”? E o que aconteceu? O ato autoritário foi enfrentado com política. Os estudantes ocuparam o espaço público para reafirmar a necessidade de dialogar, para dizer que imposição não era possível num regime democrático. A reação foi recebida pelo governo como uma afronta à ordem e à autoridade. Mas como, se esta é uma democracia? Quem não dialoga é ditador. Diante do impasse, entre considerar a política uma obscenidade e, ao mesmo tempo, governar num estado democrático, Alckmin fez o quê? Se ele queria passar sem escutar, com seu carro e com seu decreto, o governador fez o quê? Chamou aquela que restou da ditadura: a Polícia Militar.

Como afirmou Fernando Padula Novaes, chefe de gabinete da Secretaria de Educação, é “guerra”. A palavra reveladora de como o governo se relaciona com aqueles que discordam, neste caso os estudantes, foi usada mais de uma vez numa reunião cujo áudio foi divulgado pela repórter Laura Capriglione, do coletivo Jornalistas Livres. O encontro com cerca de 40 dirigentes de ensino contou também com a anunciada presença de um militante da Ação Popular, movimento de jovens do PSDB. Na reunião, Padula demonstrou a necessidade de “desqualificar” o movimento de resistência e mostrar que a “radicalização” estava “do lado de lá”.

E, assim, na lógica de “guerra”, Geraldo Alckmin respondeu ao exercício da política com bombas de gás, com golpes de cassetete e agressões físicas e psicológicas, como humilhar e carregar à força um garoto de 18 anos pendurado de cabeça para baixo. Respondeu com repressão, como já tinha feito nas manifestações de 2013. Respondeu como um general alinhado ao golpe de 1964 responderia durante os anos de chumbo. A Polícia Militar é o que sobrou de lá, aqui. E, se como analistas de segurança pública têm dito, a polícia está descontrolada, está descontrolada porque governantes precisam controlar. E impor: passar sem escutar. Passar sobre a política. “Limpar” as ruas dos pretos e dos pobres e também dos que fazem política.

Enquanto as imagens nas ruas expunham a violência da Polícia Militar contra os estudantes, a maioria deles adolescentes, este era o discurso do governador: “A polícia dialoga, a polícia conversa, a polícia pede para as pessoas saírem, a polícia dá tempo para as pessoas saírem. Agora, não pode prejudicar quem precisa trabalhar. Então, é preciso ter o mínimo de bom senso. A polícia faz todo o trabalho, ela é capacitada, é treinada, tem paciência…”. O governador, e esta não é uma constatação banal, está satisfeito com a ação da PM. A desconexão entre o discurso da autoridade máxima do estado de São Paulo e a realidade documentada por vídeos e fotografias nas ruas de São Paulo é um fato a ser levado a sério.

É uma enormidade o que os estudantes paulistas deram ao país neste mês de resistência. Enquanto a política em Brasília, aquela feita por profissionais do ramo, era rebaixada a chantagens e tomaladacá, adolescentes deram ao país uma lição de política em sua expressão mais completa. Organizaram-se, ocuparam 196 escolas, responsabilizaram-se por elas – consertando, limpando e cuidando – e impediram que, num país e num estado em que a péssima educação pública escava um abismo, mais de 90 escolas fossem fechadas por decreto. Foram reprimidos violentamente por isso. Muitos apanharam, dezenas foram detidos, centenas sofreram as consequências das bombas de gás. Mas resistiram. E venceram. E, como o que venceu foi a política contra o autoritarismo da verdade única e da força bruta da PM, vencemos todos.

Em 4 de dezembro, o governador foi obrigado a recuar: suspendeu a “reorganização escolar”. O secretário de Educação, Herman Voorwald, deixou o cargo. Geraldo Alckmin recebeu uma lição de política dada por crianças e adolescentes. Ao ver sua popularidade despencar, conforme pesquisa do Datafolha publicada no mesmo dia em que anunciou o adiamento das mudanças até 2017, o político que iguala a política à obscenidade descobriu que não era mais possível mandar a Polícia Militar passar por cima do povo para sua verdade única passar.

Geraldo Alckmin recuou com uma frase do Papa Francisco: “Sempre que perguntado entre a indiferença egoísta e o protesto violento, há uma solução sempre possível, o diálogo”. Ainda que óbvio, é uma questão de respeito restabelecer os fatos para não perverter as palavras. “Indiferença egoísta”: pode ser relacionada ao governo, que tentou impor sem debate um projeto controverso, criticado por educadores, que fechava quase uma centena de escolas e atingia centenas de milhares de alunos. “Protesto violento”: fotografias e imagens documentam a violência da PM contra os estudantes. “Diálogo”: é o que os alunos reivindicavam, enquanto no interior do governo se anunciava “guerra”. Diálogo é justamente política. Como aquilo que se faz é mais revelador do que aquilo que se fala, o governador fez seu anúncio e deixou a sala sem falar com a imprensa.

Não foi apenas Geraldo Alckmin que aprendeu algo importante com os alunos da escola pública –ou deveria ter aprendido. Há dois pontos aos quais é preciso prestar bastante atenção. Um deles, que já havia se tornado claro nas manifestações de 2013, é o de como uma parcela da imprensa da redemocratização ainda está intoxicada pelos tempos da ditadura e da censura, entre outras hipóteses para a escolha dos termos usados na cobertura. Adolescentes levam bombas e borrachadas das forças de segurança do Estado e parte da imprensa chama de “confronto”. A cada protesto nas ruas, várias reportagens começavam pelas agruras causadas pela interrupção do trânsito, como se o trânsito fosse a entidade mais importante desse acontecimento político, relacionado à grande tragédia nacional, a educação, numa hierarquia de valores bastante iluminadora. Adolescentes eram encurralados e agredidos pela PM e parte da imprensa definia como “confusão”. A PM reprimia violentamente os alunos que protestavam e uma parcela da mídia descrevia o fato como um ato de “dispersão”. Nomear os fatos com precisão é tarefa obrigatória do jornalismo.

Ao pensar nas manifestações contra o aumento das passagens do transporte público, em 2013, desponta outro ponto crucial: qual é o limite da opinião pública? Ou, de forma mais explícita: em quem a polícia pode bater sem causar assombro e reação, ou sem que isso provoque a queda de popularidade do governador? O que os protestos contra o fechamento das escolas mostraram é que usar violência contra alunos adolescentes é um limite para os cidadãos. Desta vez, não foi possível transformar os estudantes em “vândalos” e ganhar a opinião pública, como ocorreu em 2013, usando como justificativa a ação violenta dos black-blocs. Geraldo Alckmin apostou que conseguiria repetir 2013, quando num primeiro momento houve uma reação massiva contra a violência da polícia e, em seguida, com a conversão de manifestantes em “vândalos”, na narrativa de parte da imprensa, a opinião pública passou a apoiar a repressão policial, por ação ou omissão.

É importante pensar sobre isso, porque enquanto a violação da lei pela polícia não for rechaçada, independentemente de contra quem for, seguiremos muito mal. Se pode bater neste, mas não naquele (ou matar, como acontece nas periferias e favelas), continuaremos involuindo no pacto civilizatório. E os governantes autoritários seguirão com chance de passar sua verdade única sobre a política, calando a democracia com bombas de gás e golpes de cassetete.

O fracasso na conversão de estudantes em “vândalos” para a opinião pública, apesar de todos os esforços, revela que a escola ainda têm um lugar forte no imaginário coletivo. A educação pública, tão abandonada, tão desrespeitada, tão desinvestida nestas últimas décadas, ainda ecoa na população como um valor. Ainda ressoa a consciência de que uma escola, neste país, não pode ser fechada. Muito menos dessa maneira. A escola, tão maltratada, ainda é um símbolo positivo.

Há aqui uma lição profunda que os estudantes das escolas públicas deram não apenas ao governador, mas ao conjunto da sociedade que acredita em saídas individuais, em geral na de matricular o filho na escola privada para pelo menos salvar o seu da tragédia educacional brasileira. Quando já se tornava difícil acreditar que houvesse uma saída, os estudantes se apropriaram das escolas e, com a ajuda de parte dos pais, passaram a cuidar dela. Coletivamente, como comunidade, como cidadãos. Cuidam do que ninguém mais de fato cuidava.

Acho que ainda não chegamos perto de alcançar o tamanho desse gesto, que nestas últimas semanas levou gente que nunca tinha pisado numa escola pública a oferecer de comida a serviços. Pessoas de todas as áreas têm se apresentado para dar aulas nas escolas ocupadas. Alunos de universidades prestigiadas, aquelas em que os estudantes da escola pública foram ensinados a acreditar que nunca entrariam, pediram para os secundaristas irem até a faculdade explicar o movimento. Os estudantes conseguiram derrubar muros que quase ninguém acreditava que ainda poderiam cair. E uma estudante ouviu de uma visitante no domingo, na Escola Estadual Fernão Dias Paes, a primeira ocupada na capital paulista, uma frase simbólica: “Tenho orgulho de viver numa cidade em que você existe”. Como escreveram os repórteres Felipe Resk e Rafael Italiani, do Estadão, a escola que tem o nome de um bandeirante “se tornaria símbolo da resistência ao Palácio dos Bandeirantes”. Recusando tal pai-fundador, os alunos cobriram a estátua do “matador de índios”, na frente da escola, com um saco preto.

Os estudantes que ocuparam escolas e ruas estavam até então na posição de restos. Eram os estudantes que o Estado fingia educar, em escolas abandonadas, caindo aos pedaços, em aulas com professores muito mal pagos, desmotivados e despreparados. Eram os alunos que nunca teriam muita chance na vida porque recebem uma péssima educação. Eram os estudantes “violentos” e “perdidos” da escola pública, eram também os pretos e os pobres da escola pública. Eram aqueles que restavam na condição de objetos, também de discursos eleitoreiros e de slogans indecentes. Os herdeiros do processo de redemocratização lento, frágil e precário que vivemos há 30 anos, das ações imperfeitas de inclusão social, provaram que, se a moldura do espaço público for a democracia, há lugar para as diferenças, há lugar para o outro. Aqueles que muitos acreditavam “sem futuro”, porque sem presente, ensinaram aos adultos que a política é o exercício de estar com o outro no espaço público.

De onde veio a boa notícia no rio de lama e de obscenidades que se transformou o país, no concreto e no simbólico? Dos meninos e meninas das escolas públicas. Educaram o governador, educaram a sociedade. E fizeram o que parecia impossível no atual momento do Brasil: resgataram a política.

(Publicado no El País em 7 de dezembro de 2015)

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