Para que tantos relógios se o tempo nos escapa?

Uma breve reflexão sobre a correria sem destino

Na casa da infância do meu pai havia um relógio de parede. Era precioso e ainda hoje persiste, enquanto a casa vai virando natureza no meio do mato. Meu pai e sua família viviam na zona rural de Ijuí, no interior do Rio Grande do Sul, num povoado de colonização italiana chamado Picada Conceição. Lá meu avô plantava e socava erva-mate, numa lida cotidiana que envolvia os filhos homens. Minha avó e as filhas ocupavam-se com a polenta, as cucas e a sopa, as galinhas, as roupas, a casa. O relógio de parede marcava o tempo da vida, solene sobre a mesa das refeições de domingo. Cabia aos mais velhos dar corda no relógio. Mas às vezes alguém esquecia e o tempo escapava. Descobriam então a vida parada sobre suas cabeças.

E agora? Como saberiam as horas? Redescobriam o que fingiam não saber. O relógio era só o reconhecimento de algo que já estava lá de tantas maneiras. Era a máquina do tempo numa vida em que tudo que era vivo ao redor seguia seus próprios desígnios. Acordavam com o galo, seu relógio com coração, e seguiam o dia orientados pelo sol. Esqueciam-se de dar corda porque raramente o relógio era consultado. Gostavam de ouvi-lo tiquetaquear, apenas. Orgulhavam-se da engenhosidade de sua máquina. Eles que descendiam de mortos de fome do outro lado do mundo.

Depois de algumas semanas, o silêncio do relógio tornava-se incômodo. Sentiam uma vaga inquietação imiscuindo-se pelas paredes da casa, a desconfiança de que as máquinas não deveriam parar. Tampouco se arriscavam a deixá-lo assinalar horas erradas, desarranjando o funcionamento do mundo. Meu avô então designava um dos filhos mais velhos para buscar o tempo na cidade. E, claro, fazer algumas compras. A 13 quilômetros, a cidade ficava longe para quem só contava com suas duas pernas ou as quatro do cavalo, sempre requisitado para tarefas mais sérias. E nunca se ajeitava o cavalo ou se aprumava a aranha para uma missão solitária. Só iam até lá, onde se sentiam deslocados com suas roupas de roça, para se abastecer do pouco que não trocavam por ali mesmo ou não encontravam no bem abastecido bolicho do Tio Chico. E para se apossar do tempo.

Meu avô entregava a um dos filhos seu próprio relógio de bolso, sempre parado porque só era usado em casamentos e outras ocasiões solenes da vida pública dos homens. Preso a uma corrente encimada por uma moeda de prata com a efígie de Dom Pedro II, era das poucas riquezas materiais do meu avô, herdada dos que vieram antes. O encarregado guardava o relógio no próprio bolso, esforçando-se para não machucá-lo com os calos de uma mão feita na enxada, encilhava o cavalo e galopava até Ijuí. Lá, no centro da praça principal, dava as costas para a igreja católica e postava-se diante da evangélica – ambas de frente uma para a outra e em lados opostos. Era uma traição à sua fé, mas justificava-se. Era na torre dos evangélicos que se exibia um relógio onipresente. Seus ponteiros regiam as horas da cidade. É preciso compreender que naquele tempo relógios eram bens valiosos. E possuir o tempo era para poucos.

Com máxima dedicação, um dos meus tios dava corda no relógio de bolso e acertava os ponteiros. Conferia. Enfiava o tempo no bolso. E galopava de volta. Na infância do meu pai, o tempo chegava a cavalo. Meu avô acertava os ponteiros do relógio da parede e a máquina voltava a tiquetaquear sobre a família. A ordem se restabelecia.

Meu pai herdou este grande respeito pelo tempo. Cada um de seus três filhos ganhou um relógio ao completar 10 anos. Por alguma razão ele e minha mãe chegaram à conclusão de que esta era uma idade em que podíamos começar a nos responsabilizar pelo tempo, a carregá-lo no pulso. Era um presente muito esperado e a compra do relógio envolvia uma série de debates e incursões à relojoaria de confiança. Não só porque exigia um grande investimento financeiro para o padrão de nossas posses, mas porque embora os de pulso fabricados em escala tivessem mudado os hábitos, naquela época ainda nenhum relógio era qualquer. Lembro de ter ficado algumas noites sem dormir pensando qual era o melhor modelo porque, ainda que não compreendesse a dimensão filosófica da escolha, intuía a sua importância. Este relógio marcaria o tempo da minha vida inteira.

Percorro agora a linha do tempo da minha trajetória errática cercada por relógios. A começar pelo do computador onde escrevo. Tudo ao meu redor marca a passagem do tempo, do celular ao forno de micro-ondas. As horas estão por toda parte, mesmo que eu não as queira. O tempo e as máquinas do tempo converteram-se em mercadoria ordinária.

Nem lembro em que momento perdi meu primeiro relógio, o da vida inteira, nem sei quantos outros tive até decidir que não precisava carregar nenhum no pulso porque o tempo havia se banalizado ao meu redor. Desconfio que esta perda da solenidade dos relógios tenha relação com a perda da consciência do tempo na vida de todos nós. Tantas marcações por todos os lados e o tempo se esvai como se fosse barato como um relógio de camelô. Vendemos o tecido de nossas vidas por muito pouco porque confundimos tudo.

Meu avô sabia que tempo não era dinheiro. Nunca se iludiu a esse respeito. Ele, que acompanhava o ciclo da vida das plantas e dos bichos, que dependia da terra, das chuvas e das estações, sabia que o tempo é tudo o que há entre a vida e a morte. É a riqueza imaterial da vida de um homem, de uma mulher. Não tinha estudo para conhecer as moiras da mitologia, mas pressentia que a elas pertenciam os fios do seu destino.

É muito mais verdadeira do que alcançamos a frase que todos repetimos pelos nossos dias: “Não tenho tempo”. Mas não é corriqueira e muito menos é natural. É, na verdade, uma tragédia sem herói. Desconfie sempre do que parece um dado da natureza, algo da ordem imutável do mundo, do qual você não tem como escapar. Isto sim é ilusão criada e reproduzida. Só não conseguimos escapar da morte, mas podemos morrer em vida se entregamos nosso tempo. Talvez não exista nada mais importante do que pensar sobre o que você quer fazer com o tempo que é seu. Porque se não tem tempo para o que é importante para você, para as pessoas importantes para você, por alguma razão, em algum momento, você decidiu se desapossar de você. É preciso empreender este caminho sempre árduo de resistência e voltar a encarnar o próprio corpo.

Semanas atrás um jornalista gaúcho me perguntou se eu tinha me tornado “meio baiana”, agora que, na opinião dele, eu podia dispor do meu tempo. O preconceito era claro. E a provocação também. Respondi que a questão era de outra ordem. Gosto muito da Bahia e nunca vi ninguém trabalhar tanto quanto os nordestinos em São Paulo, se era a isso que ele se referia. Perguntei a ele, então, que se gabava de correr o dia inteiro (como alguém se orgulha disso?), o que tinha feito naquele dia. Do que ele se lembrava quando parava de correr, o que tinha sido importante naquelas 12 horas entre a manhã e a noite. Ele emudeceu, mudou de expressão várias vezes. Não sabia o que dizer. Tinha feito tanto e nada.

Acho que este é um bom exercício. Pelo menos para mim. Quero chegar ao final do dia e lembrar o que fiz sem esforço. E achar que vivi bem aquele dia. Que amei bem. Que trabalhei bem. Que estava lá.

Meu avô sabia que o tempo não pertencia ao relógio. O tempo não está fora, como somos levados a acreditar. Está dentro. Só nós podemos marcá-lo. É o que fazemos com nosso tempo que dá a medida da nossa vida.

(Publicado na Revista Época em 20/09/2010)

Cólica

Senti a primeira contração no avião. Ao lado, um executivo lia o jornal e enfiava um dedo disfarçado no nariz. Um dedo bem rápido, como se estivesse apenas coçando. Atrás de mim uma criança chutava o banco. A mãe não vai fazer nada? Não, ela parecia aliviada pelo seu pequeno psicopata estar se ocupando de outra vítima. A dor funda. Não é possível. Cólica a esta altura do mês? Pelos meus cálculos, faltavam cinco dias para a menstruação. O que era aquilo? A dor me repuxava o ventre, depois as costas. Será que foi o sanduíche do avião? Não, lembrei. Aquele voo não tinha sanduíche. Eu tinha comido bolachinhas de água e sal com margarina. Cavouquei a bolsa em busca de um remédio. Qualquer um. Doía tanto que eu tomaria um comprimido para mal de Parkinson se achasse algum. Achei um bem colorido. Colei o dedo na campainha da aeromoça que demorou a vir. E nem tentou sorrir quando chegou. Eu preciso de um copo d’água para tomar um remédio. Só um momento, senhora. E partiu. Meu vizinho de banco esquecera o lado de dentro do nariz e olhava para mim. Está passando bem? Enxaqueca, menti. A aeromala veio com um copo de plástico. Sem gelo. Engoli três comprimidos de uma vez e fechei os olhos. Senti algo líquido escorrer pelas minhas pernas. Agora eu pingava vermelho no chão. Não muito, só um pouco. Apertei o botão de novo e desta vez não larguei até que ela chegasse. Daria para alcançar meu casaco que está junto com minha bagagem de mão? Desta vez, eu ouvi. Ela grunhiu. E me atirou o casaco com um olhar mortífero. Não liguei. Com aquela dor eu não me abalaria com Hitler se ele estivesse ali. Me enrolei no casaco, na esperança de que o que quer que fosse que escorria de mim não me denunciasse. Senhores passageiros, estamos em procedimento de descida. Mantenham os cintos afivelados e as poltronas na vertical. Eu já estava colada no teto. Me dobrei de dor enquanto o avião dava um bico rumo ao chão. Quando finalmente as portas se abriram eu senti meu rosto queimar. Sempre fui assim. Me cubro de manchas vermelhas e queimo quando sinto dor. Esperei todos os passageiros saírem e me levantei vacilante. Aparentemente meu sangue se confundia com o carpete escuro. Caminhei do jeito que pude arrastando a mala de rodinhas. Pelo menos eu estava no chão. Eu não queria morrer no ar, com um cara de terno tirando meleca do nariz e uma criança me chutando. Me atirei pela porta do banheiro feminino do saguão e perdi toda a vergonha. Sempre achei curioso como a dor nos faz perder todos os pruridos num segundo. Por favor, estou com intoxicação alimentar e se não entrar vou fazer tudo aqui mesmo. As mulheres da fila cobriram a camada de base com uma camada de cara feia, mas abriram espaço. Me tranquei no cubículo, a bunda batendo na tampa do vaso. Quase arranquei o zíper da saia. Esbocei um sorriso cansado ao lembrar que a manicure tinha insistido para que eu deixasse as unhas compridas da última vez. Bendita Rose. Enfiei meus dedos de unhas compridas dentro de mim. Arranquei meus ovários com dois puxões. Pensei em jogar na privada, mas seria sacanagem entupir o vaso. Embrulhei-os em algumas voltas de papel higiênico e os atirei no lixo que transbordava. Puxei a saia, fechei o zíper, ajeitei minha camisa branca e saí aliviada. Olhei no relógio. Ufa. Ainda daria tempo de chegar à reunião com o cliente.

Uma história de luz

Dez anos da vida de um jornal que reconhece a vida

Quando morreu, ele tinha umas poucas roupas usadas demais, uma flauta doce e uma pasta onde guardava sua certidão de nascimento, a carteira de identidade e recortes de jornais. Na parte de dentro da capa desta pasta, ele escrevera: “Luciano Felipe da Luz – jornalista e jornaleiro do Boca de Rua”. Tudo estava ali. Com esta frase ele se inscreveu no mundo e morreu como um homem. Só pôde morrer como um homem porque viveu como um.

A frase que ele escolhera para se identificar, para atravessar o espaço e quebrar com palavras a ausência de si, é a chave para acessar a vida que se foi mas fica no registro. Quem apenas decodificasse a frase sem conseguir lê-la, poderia se enganar com o legado do homem-garoto. Num olhar superficial, ele era um menino que morria cedo, aos 20 e bem poucos anos. Tinha marcas demais no corpo, toda uma existência contada ali em cicatrizes de facadas, de surras, de picadas, um mostruário completo de todas as formas de violência inventadas, um mostruário da humanidade contada pelas suas tripas. Tanto em tão pouco, uma confusão que a vida faz com o tempo e o espaço.

Mas tudo que estava ali contado nas cicatrizes daquele corpo no necrotério só existia porque ele tinha se tornado “Luciano Felipe da Luz – jornalista e jornaleiro do Boca de Rua”. Era no conteúdo da pasta que ele nomeava, nos recortes de jornal que ele escrevia com outros garotos com destinos parecidos, mas jamais iguais, que ele havia se tornado o homem que morreu.

Dito de outra maneira. Ele havia nascido Luciano Felipe da Luz. Mas só se tornou Luciano Felipe da Luz ao começar a escrever-se no jornal. Ao escrever-se, ele tornou-se homem. E só se completou homem porque passou a ser lido como homem. Esta é a sutileza de sua identidade – “Luciano Felipe da Luz – jornalista e jornaleiro do Boca de Rua”. Ao colocar no mesmo patamar o jornalista e o jornaleiro, ele intuiu que escrever e ser lido eram partes do mesmo mistério. Como jornalista ele se escrevia, como jornaleiro ele se fazia ler. Luciano Felipe da Luz eliminara ali, na frase do seu legado, a mercadoria. Ele, que até então havia sido a sobra do capitalismo.

O que faz de um homem um homem? O que nos faz o que somos? A narrativa, a capacidade de nos contarmos. Mas não só. O tornar-se homem só se completa na possibilidade de ser lido, no reconhecimento da história de cada um pelo outro. É naquele reconhecimento que vemos nos olhos de quem amamos ao acordar que nos humanizamos, que nossa humanidade se reedita a cada manhã. Por isso nenhum homem pode ser uma ilha – na frase perfeita que já se tornou um clichê. Porque só somos no outro. E o outro só é em nós.

Quem era Luciano Felipe da Luz antes de tomar posse do seu corpo pela escrita? Era Mercedez. Ganhou este nome por causa do caminhão Mercedes Benz que o atropelou um dia. Não tinha sido o único atropelamento. Ele fora atropelado 12 vezes. Numa delas, ganhou este batismo tão literalmente das ruas. Sem reconhecimento, seu corpo levou ainda um tiro na cabeça, algumas facadas e mais tarde foi assinalado também pelas marcas da Aids.

Arrastando seu corpo sem palavras pelas ruas de Porto Alegre, Mercedez não era visto. Há várias formas de não ver um outro. Infelizmente exercitamos todas elas e sempre inventamos uma nova. Deixamos de reconhecer um homem – no homem – quando pensamos que sua dor não nos diz respeito. É só ao desconhecer o outro como um igual que a desigualdade de condições de vida se torna aceitável. Comum, banal e principalmente alheia a nós.

Com Mercedez era assim, um menino que cresceu nas ruas sem ser visto. Quando era visto, era sempre pelo olhar da violência. Do nosso, que não o enxergava, de outros que como ele disputavam os restos da rua, da polícia que o espancava. Tudo o que conhecia era ser marcado por esta violência, por um olhar que não o via. Porque entre as piores formas de não ver alguém está aquela que só enxerga seu estereótipo. No caso dele, um garoto de rua, um maloqueiro, um vagabundo, um sujo, um feio, um malvado. Um problema para as autoridades, uma mazela social para os especialistas, um estorvo que atrapalha o tráfego e suja as calçadas para a maioria. Não causa espanto que, sendo assim, Mercedez tenha sido atropelado tantas vezes, inclusive uma delas por um caminhão Mercedes Benz.

O que causa espanto é que Luciano Felipe da Luz tenha sobrevivido a todos os atropelamentos, inclusive o do seu batismo. Mais tarde, quando ele começou a se contar pela palavra (e não apenas pelas cicatrizes no corpo), dizia que era “filho da luz”. Se uma interpretação parcial dos fatos mostrava que ele era filho do abandono – de vários abandonos –, ele se agarrava ao fio do sobrenome e com ele construiu uma outra verdade narrativa que repetia nas ruas: “Eu sou filho da luz”. Este parto de palavras pode ter dado a ele uma maternidade que lhe permitiu viver dentro dos seus possíveis. A narrativa que fez de sua origem deu a ele uma mãe que era luz. E com o que pareceria pouco para muitos, Luciano Felipe da Luz desfez parte de suas trevas.

Quando duas jornalistas, Clarinha Glock e Rosina Duarte, começaram a inventar um jornal escrito e vendido por garotos de rua em Porto Alegre, encontraram-no estirado na calçada junto às paredes de um colégio de elite onde guardava carros. Sujo, chapado e esquecido de si. Devagar, bem aos poucos, ele foi se agarrando a este fio que permitia a vida – esta maternidade narrativa que dava a luz e não a morte. Sem negar o Mercedez que era parte dele, resgatou-se como Luciano. Parecia pouco, era tudo. O suficiente para cuidar do seu corpo, agora que ele era constituído também por palavras, estas cicatrizes da alma.

Agora que não o viam mais como resto, mas como “jornalista e jornaleiro”. Agora que ele se apresentava diante do cidadão com seu crachá de jornalista e jornaleiro e oferecia o jornal que ele também escrevia. Senhor, senhora, meu nome é Luciano Felipe da Luz e eu tenho uma história. Pela primeira vez, então, dois mundos dialogavam sem medos mútuos. E descobriam que só as palavras atravessam pontes. São gestos no ar.

Infelizmente não para ninguém, mas para a humanidade inteira, a Aids já o devastava há tempo demais e o cuidado com um corpo que agora podia ser marcado também pelo amor só o roubou pouco tempo mais da morte – o que não é pouco, mas também é. Morreu na luz. No Campo Santo, a parte do cemitério reservada aos pobres, foi sepultado pelos amigos e colegas do jornal. Que perguntaram ao coveiro porque ele, como todos ali, era apenas uma cruz com número – sem foto nem nome. A resposta era que ali os corpos eram enterrados com menos de sete palmos e desenterrados depois de algum tempo para dar lugar a outro corpo de pobre.

Decidiram então registrar sua vida por escrito no jornal – e assim Luciano Felipe da Luz morreu como um homem que viveu, morreu inscrito na história. Antes, eles apenas desapareciam, invisíveis na morte como na vida. Agora, homens como ele, jornalistas e jornaleiros, morrem. E isso é um jeito de permanecer como vida.

Luciano Felipe da Luz, jornalista e jornaleiro do Boca de Rua, ficaria feliz ao saber que um dia, depois da sua morte, seus colegas de jornalismo e jornaleirismo fizeram também um filme. Nele, apresentavam Porto Alegre aos moradores de rua de São Paulo. Numa das exibições, no Centro Cultural Santander, na capital gaúcha, um espaço cultural muito valorizado e simbolicamente dentro do cofre de um antigo banco, foram barrados ao chegar. Ensinado a interceptar roupas velhas e pobres, o segurança intimou: “Quem são vocês?”. Um deles se adiantou: “Nós somos os autores”. E entraram.

Sim, eles são autores. Como autores podem viver. Como dizia Luciano Felipe da Luz: “A minha vida é sempre a sua. Se liga gente boa”.

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boca de ruaO Boca de Rua, um projeto da ONG Alice, completou 10 anos. O jornal, publicado a cada três meses, conta histórias de um mundo até então invisível, agora escrito, fotografado e grafitado por 15 moradores das ruas de Porto Alegre que se encontram uma vez por semana para decidir a pauta e reeditar a vida. Os analfabetos ditam suas palavras, todos se escrevem de alguma maneira com a ajuda de todos. Depois, é vendido nas ruas da capital por seus autores. Cada um tem a sua cota de exemplares e a renda pertence a eles.

A comemoração de aniversário, marcada para este domingo, foi suspensa porque choveu em Porto Alegre e na rua não tem telhado. Mas haverá festa quando o sol chegar. E o sol agora aparece. Aos jornalistas e jornaleiros que tornaram o Boca de Rua possível, a minha homenagem. Afinal, um jornal é exatamente isso – ou pelo menos deveria ser: o reconhecimento da vida.

Em palavras.

(Publicado na Revista Época em 13/09/2010)

A lesma

Ela estava na parede do quintal do meu apartamento. Não um quintal exatamente. O meu é um quadradinho de cimento com uma listra de grama raquítica no térreo de um edifício decadente. O sol bate ali apenas uma vez por dia, no muro encardido. Eu me encosto ao cimento frio e o sol mal esbarra em mim. Foi assim que a vi na outra extremidade, nas sombras. Molenga, escura, com uma carapaça que eu perfuraria com a unha.

No dia seguinte, na mesma hora, eu corri atrás do sol e lá estava ela. Havia avançado apenas uns poucos centímetros. No dia seguinte, a mesma busca e ela apenas uns centímetros mais. Esqueci o sol. Estava obcecada por ela. Quanto tempo vive uma lesma? Pesquisei. Nove meses. Uma gestação humana. E a cada dia aquela andava apenas alguns centímetros. A vida toda e ela nunca sairia do meu quadrado de quintal. Senti a claustrofobia que ela não sentia. E naquele dia, ao sair, demorei mais a voltar para casa.

Agora eu a espiava à noite, arrastando-se sobre o próprio ventre. Deixando como marca no mundo apenas uma gosma. Que marca era eu? Quem me olhasse veria uma mulher de meia-idade, nem gorda nem magra, arrastando a barriga no chão. Como a lesma, eu queria me habitar. Ser minha própria casa. Mas tinha medo que me furassem com a unha. E mandei botar mais uma tranca na porta.

Fui possuída pela compulsão de jogar sal sobre o corpo dela. Queria ferir a lesma. Arrancá-la de si. De mim. Libertá-la. A mim. Apenas um pouquinho. Uma experiência só. Joguei uma pitadinha. E algo nela se desvaneceu. Não devo mentir. Apreciei a sensação. Mas naquela noite ela me apareceu gigante no teto do quarto, suas antenas acusando-me.
Convenci-me que era um sonho. Um pesadelo. Voltei a ela dois centímetros depois. Será que ela teria filhotes? As lesmas são hermafroditas, completas. Mesmo assim, desafiam o mito de Platão e copulam com a parte avessa de uma igual. Escolhem necessitar-se. E eu tão faltante, incompleta de todo, não encontro. Fiquei com raiva dos bebês dela que eu não teria. E naquele dia botei mais um naco de sal, um quase nada, sobre o que eu julgava ser seu perfeito órgão reprodutivo.

Chega. Era eu a banalidade do mal. Agora eu queria que ela vivesse. Passei a colocar plantas diferentes no seu caminho. Insetos que não a ameaçavam. Construí para ela uma existência marcada pela novidade do mundo. A cada dia eu lhe preparava uma surpresa. Uma cor, um gosto, um cheiro. E sons que eu não tinha certeza de que ela escutava. A lesma do meu quintal conheceu a obra completa de Ludwig Van Beethoven e moveu o ventre sobre o concreto no ritmo de João Gilberto. Eu achava que a Bossa Nova combinava com ela.

Numa manhã acordei e ela não estava lá. Desnorteada, pela primeira vez bati na porta da vizinha de muro. Da dona do outro apartamento térreo. Deixei cair uma camiseta no seu lado, menti. Vasculhei o quintal da mulher que já cogitava chamar o zelador, assustada ao me ver mergulhada em seus baldes à procura de uma roupa que não existia. Nada.

Ela não poderia voar. Será que algum gato a tinha devorado? Um passarinho? Mas não havia passarinhos. Apenas nós éramos vivas ali. Talvez eu a tivesse conhecido no nono mês e ela sucumbira de morte natural. Será que as lesmas desencarnavam? Lambi seu rastro no muro em busca de sua alma. Seu gosto em mim me pertencia.

Deitei para não dormir. E para não levantar da cama. Não mais comia nem tentava capturar o sol. Agora, era eu que andava por centímetros. Lúcida demais para ser, eu apenas estava. A lesma que havia sido toda a novidade do meu mundo partira. E agora, ao olhar meu quadrado de quintal, eu não sabia o que fazer com as décadas que me restavam. Ninguém soube, porque não escrevi nenhum bilhete. Mas este foi o meu último pensamento.

Palavras em busca de adoção

A amplidão do vocabulário é a mesma da vida

Adote uma palavra antes que ela desapareça. Esta é a proposta de um site encantador, criado pelo Oxford English Dictionary. Você abre o site e há uma tela cheia de palavras carentes. Elas saltitam, se exibem, dão piruetas, na tentativa de chamar sua atenção. Basta passar o mouse em qualquer uma e ela começa a gritar: “Me escolha!” ou “Sim! Sim! Eu!” ou “Olá!” ou “Aqui!”. Se você clicar, aparece o significado e a ficha de adoção. E sugestões de como usá-la em diferentes contextos. Você elege sua pequena órfã e se compromete a levá-la para passear na vizinhança, enturmá-la no cotidiano. Nas conversas de bar, nos bilhetes e nos emails, nos pedidos de informação e até nas brigas e nas declarações de amor. A utopia contida na criação do site é que, se cada uma destas palavras zumbis voltarem literalmente à boca do povo, elas serão de novo letra viva.

Pena que é em inglês. Espero que o Houaiss ou o Aurélio ou qualquer outro dicionário ou universidade ou pessoa faça um site igualzinho com a zumbilândia do nosso português. Enquanto isso não acontece, podemos fazer a nossa parte para que o dicionário da língua portuguesa no Brasil não se torne um livro de óbitos.

Por que uma palavra morre? Como as pessoas, por várias razões. Larápio, por exemplo. Para quem já esqueceu, é um sinônimo de ladrão. Foi usado bastante no passado, inclusive pela imprensa. Hoje, está relegado ao arcaísmo. Acabaram-se os larápios? Como sabemos, muito antes pelo contrário. Mas talvez tenha acabado um certo jeito de olhar para aquele que furta ou é desonesto de outras maneiras – e a palavra larápio não deu mais conta de todas as variações de meliantes (outra!) que surgiram. Ou ainda, foi considerada emproada demais para os novos tempos. Agonizou por esvaziamento de sentido. E outras palavras precisaram nascer para atender às novas necessidades.

Quando uma palavra morre é um mundo inteiro que morre com ela. Quando uma palavra da língua portuguesa falada no Brasil desaparece, é um jeito de ser brasileiro que desaparece com ela. Um jeito de ser e de estar, de sentir a realidade, de olhar para os sentimentos e para o outro. E outras formas de ser e de estar surgem ou se impõem com palavras recém-nascidas. Como tudo que é vivo, a língua muda. E quanto mais se transforma, agrega sinônimos e gírias, mais rica é a língua e também a cultura que ela expressa.

Como amo as palavras, adoro vê-las nascer e sofro quando morrem. Tenho esta nostalgia de mundos. Mas sofro menos pelas que foram aposentadas porque perderam sentido – e mais pelas invisíveis. Arrisco dizer que há um número maior de palavras invisíveis do que de palavras arcaicas. No esforço de simplificar a linguagem para que o leitor possa compreender o texto, por exemplo, abandonamos uma população de palavras mais intrincadas. Como todas as escolhas, esta também não ficou impune. Simplificar, neste caso, pode ter significado reduzir. E, junto com o número de palavras, também nós nos apequenamos.

O vocabulário também nos confina. Quando é limitado, é nosso mundo que se torna emparedado. Tente se imaginar sem palavras. Ou melhor: tente ser sem palavras. É impossível. Pensamos, sentimos, amamos, desejamos, brigamos, sonhamos, existimos – com palavras. Sempre com palavras. Onde estamos? Não em São Paulo, Porto Alegre, Rio, Brasília, Macapá, Recife, Paris, Miami, Pindamonhangaba ou Anta Gorda. Estamos nas palavras. Habitamos as palavras. Somos palavras. Quando estamos e somos nas mesmas poucas palavras, somos e estamos menos. É como ter a chance de viajar pelas galáxias e preferir se fechar numa quitinete.

Em minhas andanças de repórter pelos muitos Brasis, entrei em contato com algumas construções de linguagem e invenções de palavras que ampliaram minha capacidade de perceber a realidade. Vinham de analfabetos que faziam literatura pela boca. Como os Raimundos da Terra do Meio, no Pará, ou os habitantes dos muitos sertões do Nordeste. Ou as “pegadoras de meninos” da floresta amazônica, no Amapá, que enquanto aparavam bebês pariam palavras. Como Nazira Narciso, ao me explicar que fez o parto da neta porque a parteira mais experiente havia se recusado por ser “barriga particular”. Ahn? “Não tem marido”, cochichou ela. Ou a caripuna Dorica, de 96 anos, me explicando o ofício: “Parteira não tem escolha, é chamada nas horas mortas da noite para povoar o mundo”.

Todos “cegos das letras”, como diziam, mas donos de um vocabulário tão rico como a vida. Recriavam-se nas palavras como os grandes inventores da língua escrita, autores do cânone como Guimarães Rosa e Manoel de Barros. Porque o vocabulário é pobre quando a vida é pobre. Não materialmente, mas de experiências.

Não dá para saber o que veio antes, se a vida ou a palavra. Vivemos com um vocabulário medíocre porque a vida é medíocre? Ou a vida é medíocre porque o vocabulário é medíocre? O que se perde quando usamos as mesmas palavras para um mundo tão diverso é que deixamos de enxergar o mundo em toda a sua largueza. Ele está lá, mas não conseguimos nomeá-lo. Então, ele está – mas não para nós. É uma maneira de ser cego, surdo e mudo com todos os sentidos funcionando.

A rigor, não existem sinônimos perfeitos, uma palavra que tenha exatamente o mesmo significado que outra. Há palavras que expressam quase o mesmo que uma outra. Mas o quase, na língua como na vida, faz toda a diferença. “Cão” e “cachorro”, por exemplo. Parece o mesmo. Mas não é. O cão contém um distanciamento, uma frieza, que o cachorro não tem. Ou o cachorro expressa uma proximidade, contida na própria sonoridade da palavra, mais comprida, musical e leve, que o cão jamais alcançará na sua dureza de uma sílaba só. Quando tomamos tudo pelo mesmo, perdemos as nuances. Abrimos mão da graça.

Acredito que a resistência da palavra se dá na arte. Especialmente na música e na literatura – seja ela oral ou escrita. E o empobrecimento da língua às vezes acontece nos meios de comunicação de massa. Em programas de TV, por exemplo, que uniformizam a linguagem por acreditar que, se não o fizessem, não seriam entendidos por todos. Só que não existe uma linguagem padrão. O que existe é um vocabulário que se impõe pela hegemonia política e econômica. No caso de muitos programas de TV que se pretendem nacionais – e aqui não falo de nenhuma rede específica, até porque quase todas seguem a mesma cartilha –, fala-se uma espécie de paulistanês e carioquês culto, como se esta fosse a suposta língua portuguesa do Brasil.

Mas como, se o Brasil é exatamente a convivência e o diálogo de suas diferenças, se a riqueza do país e da língua se dá na diversidade? Seria muito estúpido esperar que uma ribeirinha da Amazônia usasse as mesmas palavras que um rapper da periferia de São Paulo. Que rearranjassem as palavras da mesma maneira se vêm de uma história, de uma geografia e de um estar no mundo tão diverso. Isso não os torna menos brasileiros ou faz com que pertençam menos à mesma nação – pelo contrário. Esta diversidade expressa também na linguagem é talvez a mais forte identidade do Brasil. Mas há que resistir ao seu apagamento.

Mesmo na internet, que muitos encaram como a eclosão das singularidades, duvido um pouco que de fato seja isso que esteja acontecendo. Sem negar sua fabulosa importância, o que vejo, por enquanto, é a reprodução de tribos que já existiam. Um diálogo entre iguais que se fortalecem, o que não é pouco. Mas não um diálogo de diferentes, que é o que poderia ser mais interessante. Ampliaram-se as vozes, mas parece que, para além de seus pertencimentos, seguem surdas umas às outras.

Ao deixar o Rio Grande do Sul e ir para São Paulo, eu mudei de várias maneiras. A única que lamento é a mudança que se deu pelas palavras. Para escrever no que se costuma chamar de imprensa nacional – mas que é a imprensa paulista e (cada vez menos) carioca –, abri mão de porções da minha identidade. Em vez de guri e guria, passei a falar e a escrever menino e menina. Em lugar de tu, você. E assim por diante.

Mais do que trocar palavras, o que perdi foi uma paleta de tons e de cores. Eu era capaz de expressar uma mesma realidade ou sentimento de várias maneiras, de nomear um animal ou um objeto com diferentes palavras. Era herdeira de uma língua portuguesa do interior do extremo sul do Brasil, cujo vocabulário se enriqueceu tanto pela apropriação promovida pelos imigrantes europeus quanto pelo legado mais antigo deixado junto com seu sangue por índios, espanhóis e portugueses na demarcação do território.

Eu falava um português vivo o suficiente para dar conta de uma experiência singular. É natural, por exemplo, que no Sul tenhamos uma variedade maior de expressões para o frio do que no Norte e Nordeste. Que, por sua vez, terá uma riqueza maior de termos forjados numa vivência mais solar. Em São Paulo, me pasteurizei. Mantive a experimentação da língua feita pelos personagens reais cujas histórias contava, mas minha própria voz ficou mais padronizada.

Agora empreendo um caminho de volta, que não é volta porque sou outra. Voltar é sempre uma impossibilidade. Ainda bem. Resgato o que há de mim nas palavras esquecidas, mas a partir desta experiência de uma década em São Paulo. Escolho ser uma soma dissonante – alargada por tudo o que vivi. Dentro de mim ecoam as vozes de todos que me marcaram.

Há duas semanas, escrevi um “cusco” numa crônica que faço em outro site e fiquei muito faceira. Ah, sim, quando eu cheguei a São Paulo eu era “faceira”, às vezes até “louca de faceira” e em alguns dias “mais faceira que terneiro novo” – e não feliz. A vantagem, no meu caso, é que basta botar o pé na casa da minha infância que tudo volta. Minha mãe mesmo, professora de português e literatura e a melhor doceira do país (na minha isenta opinião), tem um vocabulário próprio. Há coisas que só ela diz. Ninguém sabe de onde tira. Nem ela. Esta invenção é parte essencial do que ela é. E nos proporciona grandes momentos.

Sempre desejei que um dia alguém me perguntasse qual é a minha palavra preferida. Eu tenho uma. É uma palavra que me tomou desde a primeira vez que a li. Eu intuo o seu significado, mas resisto a buscá-la no dicionário. Às vezes tenho isso, gosto de conhecer por mim mesma antes que alguém me explique. Posso passar anos apalpando uma palavra ou um conceito dentro de mim até me decidir a partir em seu encalço no mundo de fora.

No caso dessa palavra, era importante que ela guardasse um pouco do seu mistério, indevassável até para mim que a amava. Queria que ela ficasse um pouco hermética, já que o amor é sempre misterioso. Quando a pronuncio dentro de mim, sou possuída por ela. Eu sinto a palavra, vivo ela – nela. E nunca a escrevi em texto. Não sei se por ciúmes ou por não achar nenhum contexto à altura. Não é um arcaísmo nem um regionalismo. É uma palavra da língua culta. Título de um livro de um de meus autores preferidos, um japonês chamado Junichiro Tanizaki.

Decidi dar a minha palavra para vocês. VORAGEM. Eu sou esta palavra. E agora, por amor, vou interromper esta coluna para finalmente procurar o que ela significa no Dicionário Houaiss. (Dois minutos depois…) Aí está: “1. Tudo aquilo que é capaz de tragar, sorver, destruir com violência; 2. Redemoinho de água que se forma no mar ou no rio, cujo giro arrasta as coisas para o fundo; sorvedouro, turbilhão; 3. Grande profundeza, abismo; 4. Aquilo que provoca grandes arroubos, que arrebata, mortifica ou consome”. É tudo isso e ainda o que ela é para mim. Em mim. E o que pode ser ressignificado a partir de cada um.

Inspirada pelo site savethewords.org, escrevi esta coluna para lançar a ideia de usar uma palavra nova a cada dia. Não uma nova para todo mundo, mas uma nova para cada um. A cada manhã uma palavra inédita, pescada do oceano fundo e escuro onde elas habitam como peixes escorregadios. Uma decisão existencial mais profunda do que pode parecer à primeira palavra.

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P.S. – Se você puder, conte aqui qual é a sua palavra preferida. Como a conheceu e o que significa para você. Conte a sua história de amor com uma palavra. Ou o que uma delas fez pela sua vida. A gente conversa sobre tanta coisa – livros, filmes, sapatos, política, futebol, tecnologia, a vida alheia… –, por que não sobre palavras? Afinal, para dizer que estamos sem palavras precisamos de pelo menos duas delas.

(Publicado na Revista Época em 06/09/2010)

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