Presente de Dilma azeda o Natal no Semiárido

Às vésperas das festas de fim de ano, o governo federal rompe a parceria com a organização que abalou os alicerces da indústria da seca ao implantar mais de 370 mil cisternas de alvenaria no sertão nordestino. E começa a distribuir cisternas de plástico

Parte do Brasil conhece o sertão nordestino pela literatura, com clássicos como “Vidas Secas”, de Graciliano Ramos, e “Morte e Vida Severina”, de João Cabral de Melo Neto. Também conheceu o semiárido pela imprensa, nas constantes denúncias de corrupção e desvio de verbas públicas em obras que deveriam combater a seca, mas estagnavam nas mãos privadas de coronéis. Nos últimos anos, porém, a paisagem do sertão estava mudando, graças a um movimento iniciado em 2003. No primeiro ano do governo Lula, a ASA (Articulação no Semiárido Brasileiro), uma rede que reúne centenas de organizações não governamentais, procurou o presidente para propor uma parceria para a construção de cisternas de alvenaria no sertão nordestino. Seus interlocutores eram Frei Betto e Oded Grajew, então no governo. Assinalado pela sua origem de retirante, de menino pobre do semiárido que migrou com a mãe e os irmãos de Caetés, em Pernambuco, para São Paulo, Lula acolheu a ideia. Ele conhecia bem a aridez geográfica e a imutabilidade dos desmandos políticos que faziam da sua terra um lugar brutal. O resultado deste esforço entre governo federal e sociedade civil organizada foram 371 mil cisternas de cimento, envolvendo 12 mil pedreiros e pedreiras das comunidades e beneficiando mais de 2 milhões de brasileiros em 1.076 municípios. Algo grande, muito grande, para quem acompanha a história do Nordeste brasileiro. Basta andar pelo semiárido para ver que, quando há vontade política, é possível fazer milagres de gente. A presença da água, com a implantação coletiva de uma simples cisterna, tem mudado não apenas a economia, mas a autoestima do povo que vê florescer a vida e também a possibilidade de reescrever sua história – desta vez como autor, e não mais como personagem.

Tudo ia muito bem até este mês de dezembro, quando a coordenação da ASA foi informada pelo Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS) que suspenderia o pagamento dos recursos para o “Programa Um Milhão de Cisternas”. O governo anunciou que pretendia mudar os arranjos para o Plano Brasil Sem Miséria e ampliaria os convênios com os estados – sinalizando o afastamento das organizações não governamentais do processo. A ASA foi aconselhada a negociar com os estados e municípios.

O que isso significa? Muito.

A ASA fará uma manifestação em Petrolina (PE) na manhã desta terça-feira, 20/12, para protestar contra a ameaça ao Programa Um Milhão de Cisternas e para denunciar que a sociedade civil organizada está sendo excluída do governo de Dilma Rousseff.

Milhares de sertanejos partirão de diferentes estados nordestinos para se reunir em Petrolina e alertar o país para uma possível volta às velhas práticas do passado, quando a indústria da seca era a única coisa que vicejava no semiárido brasileiro e qualquer arremedo de solução era usado como moeda eleitoral.

O rompimento da parceria com a ASA é anunciado no momento em que a opinião pública está predisposta a considerar qualquer ONG fraudulenta. Como foram denunciados muitos “malfeitos” nos convênios entre algumas organizações não governamentais e ministros demitidos, como Orlando Silva e Carlos Lupi, não há melhor hora para romper com a sociedade civil organizada. E fazer parecer que as ações são um esforço de moralização dos recursos públicos. Esquece-se – talvez por conveniência – que o surgimento das ONGs é resultado direto da redemocratização do país. E também que uma parcela significativa delas não apenas é honesta, como tem operado uma grande transformação nas relações e nos resultados em várias áreas cruciais.

A sociedade civil organizada tem – e para parte dos políticos é aí que mora o incômodo – impedido que as verbas públicas sejam interceptadas e manipuladas por grupos instalados em setores estratégicos. E assim, impedido governos, em todos os níveis, de agradar aliados com a possibilidade de administrar uma parcela polpuda das verbas públicas. É claro que há ONGs corruptas, que se aliaram a políticos corruptos, para lucrar com o dinheiro do povo. Mas demonizar todas elas é uma esperteza de quem está doido para voltar ao modelo antigo – e é também má fé e desrespeito com o avanço conquistado pela sociedade brasileira nas últimas décadas.

Em novembro, o ministro Gilberto Carvalho, da Secretaria-Geral da Presidência da República, afirmou que o governo separaria “o joio do trigo”. Disse mais: “As organizações sérias não têm nada a temer”. Pesquisei, então, em que lugar se situa a ASA na paisagem da sociedade civil organizada. Descobri que, na opinião do governo federal, a ASA é “trigo” da melhor qualidade.

Pela seriedade e competência da sua atuação, a rede já recebeu uma dezena de prêmios. Entre eles, o Prêmio de Direitos Humanos do governo federal, na categoria “Enfrentamento da Pobreza”, entregue pelo próprio Lula no final de 2010. E também um prêmio da ONU, que a considerou “uma referência de gestão e inclusão social no campo do acesso à água e do direito à segurança alimentar e nutricional das famílias carentes do semiárido”. Em entrevista à TV Brasil, em novembro, Luiz Navarro, secretário-executivo da Controladoria Geral da União (CGU), disse que algumas organizações não governamentais apresentavam mais condições de realizar determinadas ações do que o Estado. Entre os exemplos, afirmou que haviam acabado de avaliar o Programa Um milhão de cisternas, da ASA: “Nossa avaliação é extremamente positiva. Não sei se o Estado teria o mesmo dinamismo para fazer o que essas ONGs têm feito”.

Sendo esta a opinião do próprio governo federal e de seus órgãos de fiscalização, por que o governo decidiu suspender a parceria com a ASA?

“O governo rompeu a parceria com a ASA. Mas os ladrões não estão no nosso meio”, afirma Naidison Baptista, coordenador da rede. “Nós não somos construtores de cisternas apenas, nós somos uma rede de organizações da sociedade civil que influencia na política para o semiárido como parte do processo democrático. Temos orgulho de ter pautado o governo federal para a construção de cisternas e de políticas de convivência. Se você voar hoje sobre o semiárido, vai ver os pontinhos brancos. São as cisternas. As pessoas não entram mais na fila da água em troca de voto. Cortamos a raiz do coronelismo do Nordeste. Então perguntamos: por quê?”.

A ASA atua usando o conhecimento da comunidade e estimulando que as pessoas se apropriem coletivamente do processo de construção de cada cisterna. É a comunidade que decide em conjunto quem vai receber a cisterna primeiro, a partir de critérios como pobreza, número de crianças e de idosos, se a mulher é a chefe de família etc. Cada família participa da construção da cisterna, que dura cerca de cinco ou seis dias, e fornece a água para a vizinha enquanto não chegar a vez dela. Para a construção é usada a mão de obra da cidade ou povoado e o material das lojas dos pequenos comerciantes, movimentando a economia local. É também a agricultura produzida em cada região que fornece a alimentação. Para a ASA, a implantação de uma cisterna é mais do que uma obra: é a construção de um espaço social de onde tem emergido novas lideranças e uma juventude ativa. Mudança socioeconômica e política importante em uma região historicamente dominada por oligarquias em que sempre coube aos sertanejos ou se submeter a algum “painho” – ainda que com pinta de moderno – ou migrar para o centro-sul. “A água estava concentrada na mão de poucos”, resume Baptista. “Com as cisternas, a água foi repartida.”

Na tecnologia social da ASA, a implantação das cisternas não é vista como favor do governo, mas como direito. Não é assistencialismo, mas política pública. As pessoas são estimuladas a exercer a cidadania e a tomar suas próprias decisões, coletivamente – tornando o voto de cabresto cada vez mais difícil. Bem diferente, portanto, de um modelo assistencialista/populista que forma gerações de eleitores agradecidos a um pai ou mãe magnânimos. Seria isso que estaria incomodando o governo federal e seu amplo e heterogêneo espectro de aliados às vésperas das eleições municipais de 2012? Espero – sinceramente – que não.

No mesmo período em que a ASA foi informada de que não receberia os recursos para os próximos meses, o Ministério da Integração Nacional anunciou e comemorou a instalação da primeira de 300 mil cisternas de polietileno, em meio a campanhas de protesto das comunidades do semiárido que rejeitam o equipamento de plástico. O governo alega que as cisternas de polietileno podem ser produzidas em grande escala e assim atingir um número maior de famílias com mais rapidez. Segundo o governo, não se trata de substituição de uma tecnologia por outra, mas de complementação.

A ASA apresenta argumentos convincentes para condenar as cisternas de plástico. “Elas custam mais do que o dobro do valor das cisternas de alvenaria. Enquanto a nossa custa R$ 2.080, a de plástico custa R$ 5.000. Ou seja: se fosse só o dobro, com o mesmo valor as empresas fazem 300 de plástico – e nós construiríamos 600”, diz Baptista. Pelos cálculos da ASA, para cada 10 mil cisternas de alvenaria instaladas, há uma injeção de R$ 20 milhões na economia local. Com as de plástico, a maior parte dos recursos públicos ficará nas mãos dos empresários. Na mesma lógica, a população se tornará para sempre dependente das empresas para a manutenção e a reposição, já que não dominará a técnica. Quando existe qualquer problema com as cisternas de alvenaria, o pedreiro da comunidade resolve de forma simples.

“Em vez de construir, as pessoas vão receber as cisternas de presente. Das mãos de quem? É o que vamos ver. E a gente sabe que, como simples beneficiárias, do meio para o fim do processo as famílias não cuidam mais. Temos vários exemplos de cisternas que foram entregues prontas e que hoje não funcionam mais porque as comunidades não se envolveram em sua construção, não tem o sentido do pertencimento”, diz o coordenador da rede. “É a volta da indústria da seca, com grandes obras nas quais a população fica à margem, e o dinheiro na mão de grupos.”

É possível ter uma ideia de quem vai ganhar com a mudança. Mas, por quê?

Por que um trabalho que funcionava tão bem, a ponto de ser elogiado e premiado pelo governo federal, está sendo descartado pelo governo federal? Se funciona bem, por que mudar? Seria porque funciona bem demais? Espero, sinceramente, que não.
A seguir, reproduzo parte da nota divulgada pela ASA:

“Após oito anos de parceria com o Governo Lula, a decisão do governo federal, expressa pelo Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS), de não mais renovar os Termos de Parceria com a Articulação no Semiárido Brasileiro (ASA), pode levar ao fim uma das ações mais consistentes de garantia de água para as famílias do meio rural semiárido: o Programa Um Milhão de Cisternas (P1MC) e o Programa Uma Terra e Duas Águas (P1+2). Sem dúvida, o maior programa com apoio governamental de distribuição de água e de cidadania, em uma região onde antes só existia fome, miséria e a indústria da seca. (…) A argumentação é de que a partir de agora o governo federal vai priorizar a execução do Programa, que integra o Plano Brasil Sem Miséria, apenas via municípios e estados, excluindo a sociedade civil organizada. A sugestão dada pelo MDS é que a ASA negocie sua ação em cada um dos estados contemplados. Para além da parceria com estados e municípios, o governo também anuncia a compra de milhares de cisternas de plástico/PVC de empresas que começam a se instalar na região. Ou seja, o governo não apenas rompe com a ASA, mas amplia a estratégia de repasse de recursos públicos para as empresas privadas. Consideramos isso um retrocesso, o que pode gerar um retorno claro e nítido a velhas práticas da indústria da seca, onde as famílias são colocadas novamente como reféns de políticos e empresas, tirando-lhes o direito de construírem sua história”.

Reproduzo também a nota divulgada pela Assessoria de Comunicação do MDS diante das primeiras manifestações de surpresa e protesto contra a decisão governamental. O título da nota é: “O Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS) reafirma que não existe ruptura na parceria estabelecida com a Articulação do Semiárido Brasileiro (ASA) para a construção de cisternas”. Mas o texto não diz isso. Reproduzo-o na íntegra para que algum leitor possa encontrar o que eu não encontrei. O texto refere-se apenas – e de forma pouco clara – à “reavaliação e ampliação do arranjo institucional” e à “importância de todos os parceiros”. Com relação à ASA, limita-se a reconhecer e elogiar o trabalho já realizado:

“Uma das prioridades do Governo Federal é garantir que os brasileiros das áreas rurais tenham acesso à água para consumo e para a produção de alimentos. No Plano Brasil Sem Miséria, o programa Água Para Todos definiu a ambiciosa meta de atender 750 mil famílias rurais com água para beber no semiárido, até 2013, e de assegurar água para a produção agrícola de outros milhares de famílias. Atingir este objetivo exige a reavaliação e a ampliação do arranjo institucional vigente até então, incluindo a formação de novas parcerias estratégicas entre diversos ministérios, órgãos públicos, estados, municípios e organizações da sociedade civil. O MDS reafirma a importância de todos os parceiros no sucesso desta agenda, visando ao atendimento integral das famílias que hoje não têm acesso à água de qualidade para manutenção de sua condição de vida. O MDS está empenhado na preparação das condições de atuação para o próximo exercício, no menor prazo possível, dentro das novas regras que orientam a atuação de todas as unidades do Governo Federal no próximo exercício. Em relação à AP1MC/ASA, o MDS reconhece e valoriza os resultados alcançados na construção de mais de 300 mil cisternas, numa parceria exitosa ao longo dos últimos nove anos”.

Para terminar, reproduzo também o texto escrito por um integrante da Comissão Pastoral da Terra sobre o presente natalino de Dilma Rousseff aos nordestinos. A ironia do texto, como se verá, não é opcional. Quem fala agora é Roberto Malvezzi, o Gogó:

“O presente da presidente Dilma ao povo do semiárido neste Natal já está decidido: uma cisterna de plástico. A presidente é uma excelente gerente, pessoa íntegra e acima de qualquer suspeita. Quando criou o ‘Água para Todos’ nos encheu de alegria. Afinal, agora iríamos acelerar a construção das cisternas para beber e produzir. Mas a presidente preferiu doar centenas de milhares de cisternas de plástico para os nordestinos. Descartou o trabalho histórico da Articulação no Semiárido Brasileiro (ASA) e vai trabalhar exclusivamente com os estados e municípios. Claro que essa decisão está acima de qualquer interesse eleitoreiro, ou dos coronéis do sertão, ou dos 10% das empresas fabricantes do reservatório. Dilma é uma mulher honrada. Claro que os empresários enviarão junto com as cisternas pedagogos, exímios conhecedores do semiárido, que farão a educação contextualizada realizada a duras penas por milhares de educadores da ASA. Esses pedagogos evidentemente conhecem o semiárido, o regime das chuvas, a pluviosidade de cada região, como se deve cuidar dos telhados, das calhas. Irão pelo sertão, pelas serras, pelos brejos, gastarão dias de suas vidas em meio às populações para realizar com um cuidado sacerdotal as tarefas que a questão exige. Claro que os políticos farão, antes de entregar as cisternas, uma crítica ao coronelismo nordestino, ao uso da água como moeda eleitoral, afinal, já superamos os períodos mais aberrantes da política nordestina. Quando a cisterna quebrar, os pedreiros capacitados saberão reparar os estragos, sem depender da empresa, e as cisternas de plástico não virarão um amontoado de lixo no sertão. As empresas também enviarão agrônomos para dialogar com as comunidades como se faz uma horta com a água de cisterna para produção, uma mandala, uma barragem subterrânea, uma irrigação simples por gotejamento. Claro, o interesse das empresas e dos políticos é continuar o trabalho pedagógico da ASA tão premiado no Brasil e em outros lugares do mundo. Não temos, portanto, nada a protestar. A presidente e a ministra (Tereza) Campello são exímias conhecedoras do Nordeste, mesmo tendo nascido no Sul e Sudeste. Conhecem cada palmo da região, dessa cultura, cada um de seus costumes. Claro que não nos enviarão mais sapatos furados, roupas rasgadas em tempos de seca, como acontecia antigamente. Até porque o trabalho da ASA eliminou as grandes migrações, a sede, a fome, as frentes de emergência e os saques. Mesmo não sendo nordestinas, nem jamais tendo vivido aqui, conhecem a região melhor que o povo que aqui nasceu ou aqui habita. Portanto, gratos por tanta generosidade. Vamos conversar com os milhões de beneficiados envolvidos na convivência com o semiárido. Eles vão entender as razões da presidente e da ministra e vão retribuir com a generosidade que lhes é peculiar. O povo do semiárido jamais esquecerá que, no Natal de 2011, ganhou como presente da presidente Dilma Roussef uma cisterna de plástico”.

De minha parte, chego ao fim deste ano perplexa. Cresci ouvindo que o Brasil era o país do futuro, mas não podia acreditar porque passei a infância e a adolescência numa ditadura que torturava gente como a então jovem Dilma Rousseff. Participei dos comícios das “Diretas Já” e cobri como jornalista as primeiras eleições da redemocratização. Muito mais tarde, testemunhei e escrevi sobre a eleição de Lula e o comício da vitória, em 2002. Nos últimos anos, já madura, ouço que o futuro chegou. E estava começando a acreditar, pelo menos em alguns aspectos. E não é que agora, às vésperas de 2012, anunciam com eufemismos que podemos estar voltando ao passado também no sertão nordestino? Não há de ser por saudades da literatura de Graciliano Ramos e de João Cabral de Melo Neto, porque esta é a única que com certeza não voltará.

(Publicado na Revista Época em 19/12/2011)

Uma defecou, outra filmou: a vida sem recalques

Uma reflexão sobre barbárie e civilização a partir de um vídeo da internet

A cena diante da câmera:

Desde a semana passada circula um vídeo na internet em que uma mulher, totalmente nua, defeca em uma agência bancária de Aracaju. Em seguida, ela se atira no chão, de costas, como se sentisse um grande prazer. Alguém, talvez um funcionário da agência, a cutuca. Ela reage com agressividade, levanta-se e empunha a calcinha suja de fezes como uma arma ao caminhar pelo hall. Depois, volta, limpa as fezes no chão com a roupa. E sai, nua e altiva. A porta da agência é rapidamente fechada. E lá fora ela parece proferir alguns xingamentos.

Isso é o que se vê no vídeo. Mas há algo menos explícito, que não pode ser visto, mas que vale a pena enxergarmos.

A cena por trás da câmera:

Desde o início da gravação, ouvimos uma risada feminina, talvez de quem filma a cena ou está ao lado de quem filma. Não parece ser aquele riso nervoso, que às vezes nos sucede diante de algo inusitado. Parece mais uma risada de alguém que se diverte com a cena. A risada vai aumentando. Ao final, quando a mulher já está fora do banco, a dona da risada faz um comentário: “Está com o demônio no corpo.”

Isso não se vê no vídeo. Apenas ouvimos.

Ao assistir às imagens, senti incômodo. Mas fiquei tão incomodada com a mulher nua e defecando quanto com a mulher filmando a cena. (E aqui vou tratá-la como mulher, por causa da voz, mas não faz a menor diferença se for um homem.) Ao investigar a razão do meu incômodo, percebi que estava diante de dois atos pré-civilizatórios: um óbvio e escancarado, o outro menos visível, mas não menos chocante.

O que é uma mulher nua defecando em uma agência bancária? Somos nós, quando ainda estávamos na natureza – e antes de nos tornarmos cultura. Naquele momento, ela era como um bebê que sente vontade de fazer cocô e faz. Vira-se no chão com visível prazer e alívio. E então é alcançada pelo homem – a Lei – que a cutuca dizendo que ela não pode fazer aquilo. Lembrando-a, portanto, do contrato social. A mulher reage ainda como natureza, ameaçando o homem com suas fezes. E, de repente, algo que também está nela retorna. Ao limpar as fezes no chão, ela volta a se inscrever na cultura.

Não é possível afirmar se a mulher está vivendo algum tipo de surto, mas me parece mais delírio do que protesto. Por que os atos dessa mulher chamam atenção é óbvio. A grosso modo, nos tornamos civilizados no momento em que sacrificamos a nossa natureza, recalcando nossos instintos mais primitivos, para garantir a vida em sociedade. Não podemos mais sair por aí fazendo o que bem entendemos, como defecar nus no meio de uma agência bancária quando sentimos vontade. É preciso procurar um banheiro, chavear a porta, usar papel higiênico, lavar bem as mãos depois e, quem sabe, até aplicar um spray para mascarar o mau cheiro. A repressão de nossos instintos, em todas as esferas do humano, tem um custo alto. Mas, em troca, ganhamos a segurança proporcionada pelo contrato social. A mulher que defeca na agência bancária quebra o contrato que garante a vida em sociedade (na nossa, pelo menos) e por isso se torna perturbadora.

O que me parece é que a mulher que a filma também quebra, mas isso não é interpretado desse modo nem por quem está presenciando a cena nem por quem assiste ao vídeo. Por que não podemos estuprar quem desejamos ou matar quem odiamos? Porque isso nos devolveria a um estado de natureza. Temos de reprimir nossos instintos e, assim, abrir mão de nossa liberdade. Nesse processo, é necessário enxergar o outro como uma pessoa, um semelhante, alguém com direitos, para que o pacto se torne possível. Por que, então, é aceitável que alguém filme a cena de um ser humano em total desamparo e a dissemine na internet? Por que esse ato não é visto como um rompimento do contrato social?

Quem filma a cena e muitos dos que a assistem, a julgar pelos comentários, não reconhecem mais na mulher nua que defeca em público uma semelhante – uma humana. Esse estranhamento os autorizaria a desnudá-la de uma forma muito mais profunda, para além das roupas, diante não apenas dos clientes da agência bancária, mas do mundo inteiro. Ou talvez a reconheçam tanto como uma igual, ao invejar sua liberdade selvagem, defecando no banco enquanto eles esperam na fila para pagar alguma das muitas contas sempre chatas, caras e burocráticas da vida em sociedade, que precisam imediatamente se afastar dela. E afastam-se filmando e expondo o que consideram sua diferença.

Ao filmar a cena e ao difundi-la na rede, embora exponha a mulher por completo, aquela que a filma não a enxerga de fato nem por um segundo. Porque para enxergar é preciso se identificar com o outro. Se em algum momento a mulher que filma tivesse conseguido se identificar com a mulher filmada, acredito que a teria protegido – e não a exposto mais.

Nesse sentido, embora seja a mulher filmada que esteja sem roupas, é a mulher que filma a mais nua entre as duas. É isso, no meu ponto de vista, o mais interessante desse vídeo e o que me faz trazê-lo para esta coluna: ele revela mais da mulher que filma do que da mulher filmada. Mas, em geral, não chama atenção o fato de alguém filmar uma pessoa em total e visível desamparo. Isso é visto como “normal” e aceitável. Minha hipótese, porém, é de que é um ato de barbárie, na medida em que deixa de reconhecer o outro como humano. Ao apontar e amplificar a barbárie que acredita estar na outra mulher, é ela que se torna bárbara.

Assim, ambas – a mulher filmada e a mulher que filma – se igualam ao eliminar o recalque e dar vazão aos seus instintos sem se identificarem uma com a outra. Uma não se reprimiu ao defecar em público, a outra não se reprimiu ao filmar a cena. A primeira exibiu as próprias fezes no ambiente de uma agência bancária, a segunda exibiu as fezes da outra para milhares de pessoas no ambiente da internet. Por que uma causa espanto e a outra não?

Pessoalmente, acho mais ameaçadora ao pacto civilizatório a mulher que filma do que a mulher que caga.

(Publicado na Revista Época em 12/12/2011)

Você consegue viver sem drogas legais?

Como Pedro descobriu que tinha se tornado uma “máquina humana” – ou um “bombado psíquico”. E como sua história fala do nosso tempo e de muitos de nós

Pedro – o nome é fictício porque ele não quer ser identificado – é um cara por volta dos 40 anos que adora o seu trabalho e é reconhecido pelo que faz. É casado com uma mulher que ama e admira, com quem tem afinidade e longas conversas. Juntando os fundos de garantia e algumas economias os dois compraram um apartamento anos atrás e o quitaram em menos de um ano. Este é o segundo casamento dele, e a convivência com os dois filhos do primeiro é constante e marcada pelo afeto. Ao contrário da regra nesses casos, a relação com a ex-mulher é amigável. Pedro tem vários bons amigos, o que é mais do que um homem pode desejar, acha ele, porque encontrar um ou dois bons amigos na vida já seria o bastante, e ele encontrou pelo menos uns dez com quem sabe que pode contar na hora do aperto. A vida para Pedro faz todo sentido porque ele criou um sentido para ela.

Ótimo. Ele poderia ser personagem de uma daquelas matérias sobre sucesso, felicidade e bem-estar. Mas há algo estranho acontecendo. Algo que pelo menos Pedro estranha. Há dois anos, Pedro toma Lexapro (um antidepressivo), Rivotril (um ansiolítico, tranquilizante) e Stilnox (um hipnótico, indutor de sono). Dou os nomes dos remédios porque os psicofármacos andam tão populares que se fala deles como de marcas de geleia ou tipos de pão. E o fato de nomes tão esquisitos estarem na boca de todos quer dizer alguma coisa sobre o nosso tempo.

Pedro conta que a primeira vez que tomou antidepressivo, anos atrás, foi ao perder uma pessoa da família. A dor da perda o paralisou. Ele não conseguia mais trabalhar. Queria ficar quieto, em casa, de preferência sem falar com ninguém. Nem com a sua mulher e com os filhos ele queria conversar. Pedro só queria ficar “para dentro”. E, quando saía de casa, sentia um medo irracional de que algo poderia acontecer com ele, como um acidente de carro ou um assalto ou ser atingido por uma bala perdida. Ele mesmo pediu indicação de um bom psiquiatra a uma amiga que trabalha na área. Pedro sentia que estava afundando, mas temia cair na mão de algum charlatão do tipo que receita psicofármacos como se fossem aspirinas e acredita que tudo que é do humano é uma mera disfunção química do cérebro.

O psiquiatra era sério e competente. Ele disse a Pedro não acreditar que ele fosse um depressivo ou que tivesse síndrome do pânico, apenas estava em um momento de luto. Precisava de tempo para sofrer, elaborar a perda e dar um lugar a ela. Receitou um antidepressivo a Pedro para ajudá-lo a sair da paralisia porque o paciente repetia que precisava trabalhar. A licença em caso de luto – dois (!!!!) dias, segundo a legislação trabalhista – já tinha sido estendida por um chefe compreensivo. Por Pedro ser muito bom no que faz recebera o privilégio de duas semanas de folga para se recuperar da perda de uma das pessoas mais importantes da vida dele. Pedro não queria “fracassar” nessa volta. E não “fracassou”. Com a ajuda do antidepressivo, depois de algumas semanas ele voltou a produzir com a mesma qualidade de antes. Três meses depois da morte de quem amava, ele já voltara a ser o profissional brilhante.

Pedro tomou o antidepressivo por cerca de um ano, com acompanhamento rigoroso e consultas mensais. Como não agradava nem a ele nem era o estilo do psiquiatra que escolheu, pediu para parar de tomar o remédio. O psiquiatra concordou, e Pedro foi diminuindo a dose da medicação até cessar por completo. Tocou a vida por mais ou menos um ano e meio.

Neste intercurso, ele se tornou ainda mais criativo. Aumentou o número de horas de trabalho, que já eram muitas, porque se sentia muito potente. Pedro multiplicou o seu sucesso, que sempre foi medido por ele não pela quantidade de dinheiro, mas de paixão. E achava que tudo estava maravilhoso até começar a ter insônia. Pedro dormia e acordava, sobressaltado. Sem conseguir voltar a dormir, pensamentos terríveis passavam pela sua cabeça. Pedro pensava que perderia todo o seu sucesso, a sua possibilidade de fazer as coisas que acreditava e às vezes temia morrer de repente. As noites de Pedro passaram a ser povoadas por catástrofes imaginárias, mas bem reais para ele. E, toda vez que saía de casa pela manhã, voltara a ter medo de ser atingido por alguma fatalidade, por algo que estaria sempre fora do seu controle.

Algumas semanas depois do início da insônia, Pedro paralisou de novo. Não conseguia trabalhar – e este, para Pedro, era o maior dos pesadelos reais. Voltou ao consultório psiquiátrico e há dois anos toma os três remédios citados. Pedro, que sempre tinha olhado com desconfiança para a prateleira de psicofármacos, começou a achar natural precisar deles para enfrentar os dias e também as noites. “Que mal tem tomar uma pílula para dormir?”, dizia para a mulher, quando ela o questionava. “Ou tomar umas gotas de tranquilizante para não travar o maxilar de tensão? Ou 15 mg de antidepressivo para vencer a vontade de se atirar no sofá e ficar apenas olhando para dentro?” Sua mulher conta que ele parecia o Capitão Nascimento, em “Tropa de Elite”, tomando comprimidos no banheiro e dizendo à esposa: “Isso aqui não tem problema nenhum. Todo mundo faz isso. Não tem problema nenhum”.

Em 2011, Pedro teve momentos em que achou que tudo estava muito bem mesmo. E, se para tudo ficar tão bem era preciso tomar algumas pílulas, não tinha mesmo problema nenhum. Pedro talvez nunca tenha produzido tanto como neste ano e, por conta disso, até ganhou um aumento de salário sem precisar pedir. Mas, às vezes, não com muita frequência, ele se surpreendia pensando que algumas dimensões da sua vida tinham se perdido. Pedro não tinha mais o mesmo desejo pela sua mulher, e o sexo passou a ser algo secundário na sua vida. Não tinha mais tanto desejo pela sua mulher nem desejo por mulher alguma. “Efeito colateral do antidepressivo”, conformou-se.

Pedro trabalhava tanto que tinha reduzido às idas ao cinema, os encontros com os amigos e a pilha de livros ao lado da cama continuava no mesmo lugar. Ele também tinha perdido o interesse por viagens de lazer com a família, porque estava ocupado demais com seus projetos profissionais. Pedro constatou que os momentos de subjetividade eram cada vez mais escassos na sua vida. E, embora o trabalho lhe desse muita satisfação, ele tinha eliminado uma coleção de pequenos prazeres do seu cotidiano. Por volta do mês de setembro, Pedro começou a sentir uma difusa saudade dele mesmo que já não conseguia ignorar.

“Devagar eu comecei a perceber que tinha criado uma vida que não podia sustentar sem medicação. E tinha aceitado isso. Como, acho, boa parte das pessoas que conheço e que tomam esse tipo de remédio”, conta. “Eu só consigo fazer tudo o que faço porque tenho essa espécie de anabolizante. Sou um bombado psíquico. Vivo muitas experiências todo dia e não tenho nenhum tempo para elaborar essas experiências, como não tive tempo para elaborar o meu luto. É uma vida vertiginosa, mas é uma vida não sentida. Às vezes tenho experiências maravilhosas, mas, na semana seguinte, ou na mesma semana, já não me lembro delas, porque outras experiências se sobrepuseram àquela. E sei que só durmo porque engulo pílulas, só acordo porque engulo pílulas. Só suporto esse ritmo porque engulo pílulas. Até pouco tempo atrás eu achava que tudo bem, então eu ficaria tomando pílulas pelo resto da vida. Em vez de mudar meu cotidiano para que ele se tornasse possível, eu passei a esticar meus limites porque sabia que podia contar com os medicamentos e, se voltasse a cair, me iludia que bastaria aumentar a dose. Eu me tornei uma equação: Pedro + medicamentos. Aos poucos, porém, comecei a perceber que não é essa vida que eu quero para mim. Tem algo errado quando a vida que você inventou para você só é possível porque você toma três comprimidos diferentes para poder vivê-la. E, talvez, daqui a pouco, eu esteja tomando Viagra para ter desejo pela mulher que amo. Isso aos 40 anos. E, com o tempo, os efeitos colaterais desses remédios vão causar, pelo prolongamento do uso, doenças em outras partes do meu corpo. Eu sei que muita gente, como eu, já se habituou a achar que é normal viver à custa de pílulas. Mas, se você parar para pensar, isso é uma loucura. Isso, sim, é doença. E os médicos estão nos mantendo doentes, mas produtivos, usando os remédios para ajustar a máquina a um ritmo que a máquina só vai aguentar por um certo tempo. De repente, percebi que eu era uma máquina humana. E que eu estava usando remédios legais como se fossem cocaína e outras drogas criminalizadas. E o mais maluco é que todo mundo acha que tenho uma vida invejável e que está tudo ótimo comigo. Por serem drogas legais, por causa da popularização de coisas como depressão e síndrome do pânico, todo mundo acha normal eu tomar pílula para ter coragem de sair da cama de manhã e pílula para conseguir dormir sem ter medo de morrer no meio da noite. De repente, me caiu a ficha, e eu comecei a enxergar que estamos todos loucos, a começar por mim. Loucos por achar que isso é normal.”

Com a autorização de Pedro, procurei o psiquiatra dele para uma conversa. É um profissional inteligente e sério. E foi de uma honestidade rara. Perguntei a ele porque receitava psicofármacos para gente como Pedro. “Porque vivemos num mundo em que as pessoas não têm tempo para elaborar o que é do humano. Muitas vezes eu me deparo com essa situação no consultório. Vejo uma pessoa ali me pedindo antidepressivo porque não consegue mais trabalhar, não consegue mais tocar a vida. Eu sei que ela não consegue mais trabalhar nem tocar a vida porque é a sua vida que se tornou impossível, porque precisa de um tempo que não tem para elaborar o vivido. É óbvio que não é possível, por exemplo, elaborar um luto ou uma separação em uma semana e seguir em frente como se nada tivesse acontecido. Assim como não é possível viver sem dúvidas, sem tristezas, sem frustrações. Tudo isso é matéria do humano, mas o ritmo da nossa vida eliminou os tempos de elaboração. Essa pessoa não é doente – é a vida dela que está doente por não existir espaço para vivenciar e elaborar o que é do humano. Só que esse cara precisa trabalhar no dia seguinte e produzir bem ou vai perder o emprego. Então eu dou o antidepressivo e faço um acompanhamento sério, com psicoterapia, para que esse cara possa dar um jeito na vida e parar de tomar remédios. É um dilema e não tem sido fácil lidar com ele, mas é neste mundo que eu exerço a profissão de psiquiatra. Porque no tratamento da depressão, de verdade, a doença, de fato, é muito difícil obter resultados, mesmo com os medicamentos atuais. Assim como outras doenças psíquicas, quando são doenças mesmo. Os resultados são muito mais lentos – e às vezes não há resultado nenhum. A maioria das pessoas que estamos medicando hoje não é doente. E por isso o resultado é rápido e parece altamente satisfatório. Estas pessoas só precisam dar conta de uma vida que um humano não pode dar conta.”

Pedro, que nunca foi adepto das famosas resoluções de Ano-Novo, desta vez se colocou uma que talvez seja a empreitada mais difícil que já enfrentou. “Estou reduzindo progressivamente a dose dos medicamentos e vou parar até março. Minha meta, em 2012, e talvez leve muitos réveillons para conseguir alcançar isso, é criar uma vida possível para mim. Uma vida e uma rotina que meu corpo e minha mente possam dar conta, uma vida em que seja possível aceitar os limites e lidar com eles, uma vida em que eu tenha tempo para sofrer e elaborar o sofrimento, e tempo para usufruir das alegrias e dos pequenos prazeres e da companhia dos que eu amo. Sei que vai ter um custo, sei que vou perder coisas e talvez tenha até de mudar de emprego, mas acho que vai valer a pena. Não quero mais uma mente bombada, nem ser uma máquina bem sucedida. Quero só uma vida humana.”

Torço por Pedro, torço por nós.

(Publicado na Revista Época em 05/12/2011)

O mundo invisível de cada um

Estirado no calçadão, o mendigo cobre o rosto, inventa paredes e conta uma história para si mesmo. Em casa, nós fazemos o mesmo

O homem está esticado no canteiro da Avenida Sumaré, em São Paulo. Seu corpo está exposto. Mas ele cobre a cabeça com um daqueles cobertores que nunca vi em outra cama que não as calçadas. Fala com alguém que não podemos enxergar. É uma discussão sobre macarrão. Apurando o ouvido, é possível perceber que ele pede macarrão a alguém, mas a pessoa recusa. Ele insiste, porque tem fome de macarrão. Gostaríamos de seguir escutando a conversa, mas sentimos que ficar ali seria como profanar as paredes invisíveis que ele construiu com seu cobertor de mendigo. E seguimos em respeito à privacidade do homem exposto ao mundo.

Na volta, ele continua ali. E agora ele geme. Demoramos a entender, até enxergar a braguilha aberta e perceber que ele se masturba. A descoberta não nos choca, nem nos ofende. Não é um homem exibindo sua ereção para os passantes. Mas um homem que só tem como casa e como paredes aquele cobertor de mendigo. Ele não nos remete a nenhuma tara. Ao contrário. Ele nos lembra as crianças bem pequenas, na fase em que acreditam que, ao tapar os olhos com as mãos, se tornam invisíveis. Ninguém mais pode enxergá-las porque não enxergam ninguém. “Siscondi”, elas dizem, com as mãozinhas sobre os olhos. Aquele homem ali, masturbando-se no canteiro da Sumaré com a cabeça coberta, “siscondeu”.

Seguimos porque, naquele momento, a melhor forma de vê-lo era fingir que não o víamos. Enxergá-lo era acreditar que ele se escondeu. Que o cobertor era ao mesmo tempo parede e teto. A melhor forma de respeitá-lo era fingir junto com ele que, lá fora, havia um dentro.

Seguimos comovidos, como sempre ficamos diante de um homem em uma luta feroz pela vida que escapa. Aquele homem com o rosto tapado, mas exposto a tudo, só tinha morte e inventava a vida. Estirado no asfalto, com apenas um cobertor para se proteger do tempo e da multidão, ele desejava. Desejava macarrão, desejava uma mulher. Era para ele estar quase morto, e em certa medida estava. Mas ele fingia viver. Fingia tanto que vivia.

Acho que os moradores de rua são o espelho que mais tememos. Por isso, na maior parte do tempo em que eles tentam chamar a nossa atenção, reclamando de sua fome, de seu frio, usamos nossos olhos como paredes para não enxergá-los. Na maior parte do tempo, somos nós que fingimos não vê-los por muitas razões. Uma delas é porque encarnam nossos medos mais fundos.

Suspeito de que os comerciantes que os escorraçam da porta de suas lojas o fazem não porque não reconhecem um humano ali – mas porque reconhecem. E temem o que veem mais do que podem confessar. Porque mesmo os mais duros entre nós pressentem a textura de cristal da vida, que se parte com tanta facilidade quanto profundos são os cortes que deixa para trás. E, à noite, quando estamos sós, é raro aquele que não teme perder as paredes e o teto que o protegem, mas nem tanto.

Diante de um morador de rua, tememos que um dia o mundo que criamos – e que nos custa tanto manter em pé sobre nossos ombros – possa ruir. E estaremos lá, indefesos na vitrine. Por isso, em geral, a parede que eles não desejam, mas que se mostra inabalável, é a dos nossos olhos. Fingimos que não os vemos não porque eles são diferentes – e sim porque são semelhantes demais. Mas, quando eles erguem seus frágeis muros para fazer o que todos nós fazemos entre os nossos de tijolos, apontamos. Quando apontamos, com nossos dedos e nossos gritos de decência ofendida, fingimos mais uma vez não enxergar o que enxergamos.

Ao seguirmos nossos caminhos cientes disso o suficiente para deixarmos as paredes invisíveis do morador de rua da Sumaré intocadas, pensei que era esse mesmo jogo de olhar e não olhar que rege a vida cotidiana de todos nós. Que constrói a cada dia a miséria de nossa pequeneza. A cada manhã custa muito para boa parte de nós levantar da cama. E nos levantamos ajeitando nossa máscara – ou os farrapos que restam dela – com a mesma esperança do morador de rua ao cobrir o rosto com o cobertor.

Saímos para a rua torcendo para que não nos descubram, mas a multidão está lá. No ponto de ônibus, no escritório, em toda parte. Morrendo de medo e farejando a fragilidade do outro para expô-la, na expectativa de que não descubram a sua. Apontando. Sempre apontando, enquanto em seus interiores o medo é uma sucuri que dá voltas.

É assim que nos reduzimos todo dia, na incerteza de nossa superioridade – e por isso mesmo afirmando-a o tempo todo. Em meio a tantos sorrisos de plástico, sabemos que nossos iguais esperam apenas que nosso pé falseie num degrau para se atirar sobre nós. E quando gritamos a nossa dor de existir, nossas chagas expostas como leprosos do mundo antigo, virarão as costas pela nossa inconveniência.

Diante da verdade do nosso desespero, terão paredes no lugar dos olhos e cimento enfiado nos ouvidos. Mas, se a raiz branca de nossos cabelos tingidos aparecerem, vão apontar. Se a barriga espichar a camisa, vão apontar. Se a caspa polvilhar nossa blusa, vão apontar. Se a unha estiver roída, vão apontar. Se o suor manchar a nossa roupa, vão apontar. Se gaguejarmos e nossas mãos tremerem, vão apontar. Há sempre gente demais pronta a desnudar nosso ridículo.

Espero que, diante do morador de rua da Sumaré, ninguém tenha chamado a polícia. E que ele tenha sido feliz em seu mundo invisível, onde as mulheres o desejam e um prato de macarrão o espera depois do amor. Olhar para dentro é também um olhar de súplica por humanidade. Um olhar que pede, que sonha, que fantasia, que se imagina mais bonito, mais forte, mais amado. Ali, exposto e indefeso em seu desamparo, o morador de rua conta histórias para si mesmo. Estirado na impossibilidade, ele se torna possível pela narrativa. Para além da tragédia, é grande e é belo o mendigo que inventa uma vida e estremece de gozo estirado no meio fio.

Protegida por paredes de tijolos, com as cortinas azuis da janela fechada, eu me encontro com o morador de rua em uma esquina de humanidade, para além de todas as diferenças impostas por um país desigual. Tenho certeza de que só me mantenho viva por causa do mundo invisível onde ninguém pode me alcançar para me ferir e posso fingir que a vida faz sentido mesmo quando não faz. Ali, quando os zumbis do mundo de fora me acossam com seus dedos sujos de sangue, invento a beleza e me reinvento como possibilidade. Alguns olham para dentro e enxergam apenas vísceras. Outros, horizonte.
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Em minha coluna de 14/11, intitulada “A dura vida dos ateus em um Brasil cada vez mais evangélico”, escrevi sobre o crescimento da intolerância religiosa na vida cotidiana brasileira, com a multiplicação das novas igrejas pentecostais nas últimas décadas. Indagado sobre o meu artigo em uma entrevista ao jornal The New York Times, o pastor Silas Malafaia me chamou de “tramp”. A palavra de língua inglesa significa “vagabunda”. A afirmação do pastor é autoexplicativa: ao atacar minha honra por discordar de minhas ideias, ele proporciona a maior prova do acerto e da relevância do meu artigo.

(Publicado na Revista Época em 28/11/2011 e atualizado em 30/11/2011)

Lembrar para esquecer

O que fazer com a memória? Documentário acompanha a viagem de quatro filhos em busca da vida do pai, um sobrevivente do Holocausto, nos campos de concentração nazistas

– Alô, é do sanatório? Sim, David Fisher fugiu. Mas eu estou aqui com ele. Querem fazer o favor de buscá-lo? Ele está visitando campos de concentração. É sua ideia de férias.

A brincadeira é feita por um dos irmãos do cineasta israelense David Fisher. Neste momento, David e seus três irmãos estão numa van a caminho dos campos de concentração onde seu pai, Joseph, foi confinado pelos nazistas na Segunda Guerra Mundial. É o início da viagem, e eles fazem muitas piadas sobre o fato de terem aceitado o convite do irmão maluco, abandonado suas próprias famílias e iniciado as férias mais estranhas da sua vida. Assim começa “Six million and one” (Seis milhões e um), filme exibido na mostra competitiva do IDFA, um dos festivais de documentários mais importantes do mundo, realizado em Amsterdã, na Holanda, de 16 a 27 deste mês.

O filme toca numa questão em aberto: como a segunda (ou terceira) geração de sobreviventes do Holocausto – ou de qualquer outra tragédia humanitária – lida com a memória. O que se faz com o horror? É possível esquecer? Ou é possível fingir que esquecemos? Ou ainda: como esquecer aquilo que só conhecemos como lembrança dos pais (ou avós)? Há uma diferença entre aquilo que esquecemos porque pode ser lembrado e aquilo que fingimos esquecer porque não podemos lembrar. E por isso ecoa dentro de nós dia após dia.

Os irmãos de David acreditavam que o melhor jeito de lidar com a memória era não lidar. Mas um dia David ligou para suas casas e convidou-os para uma viagem ao passado presente do pai. David tem a autoridade do irmão mais velho. E por esta ou por outras razões naquele momento inconfessáveis, eles aceitaram o convite. Irônicos, afetuosos, rabugentos, mas sempre íntimos, os quatro adultos com rugas no rosto e cabelos rajados de cinza iniciam a jornada rumo ao horror que também os constituía sem jamais ter sido pronunciado.

Enquanto vivera, o pai quase nada havia contado sobre sua vida nos campos de concentração. Apenas os lugares onde esteve e pouco mais. Mas, dois anos antes de morrer, ele escreveu suas memórias num caderno. É o legado do pai. E é este diário que agora queima nas mãos dos filhos. E que David foi o único a ler. “Por que eu preciso passar por isso?”, reclama a irmã, única mulher no grupo. “Eu não preciso visitar campos de concentração. Sempre carreguei isso dentro de mim. Isso sempre esteve lá, no nosso café da manhã.”

Por quê? É o que eles descobrem nessa saga familiar. Em um dos momentos mais belos do filme, todos estão sentados dentro do túnel construído pelos judeus para ser uma fábrica subterrânea de fuselagem para aviões nazistas. É um lugar claustrofóbico e insalubre, e nas paredes há marcas das unhas dos prisioneiros. Pouco antes, o responsável pelo lugar havia dito: “Não é possível que seu pai tenha sobrevivido dez meses cavando esse túnel. A sobrevivência média dos judeus que cavavam era de uma semana”.

O pai sobreviveu a isso e a bem mais do que isso. E ali, no túnel, já varridos por sentimentos contraditórios, os filhos fazem a catarse que pertence a todas as famílias – e que, afinal, é a prova de que sobreviveram. Falam de desamor, de ciúmes, de desamparo, de rivalidades, de raiva. Brigam, choram e riem. E então é preciso sair do túnel e seguir adiante.

Por que é importante lembrar? Essa é a pergunta que diz respeito não só a David e a seus irmãos, mas a todos nós. Por causa dessa indagação universal o filme tem lotado as salas de cinema de Amsterdã. Tudo o que é vergonhoso ou aterrorizante costuma ser relegado ao esquecimento. “É melhor não mexer nisso”. Ou “não vamos falar disso”. Ou ainda o clássico “com o tempo você esquece”. Ou o pior de todos: “não aconteceu”. A verdade, como anos atrás me ensinou uma judia que fugiu da Alemanha nazista e teve a mãe incinerada num campo de concentração, é que, “com o tempo, a gente não esquece”.

Não há como esquecer, é o que também afirmam os veteranos americanos com quem David conversa para saber como foi o dia da libertação. “Nós não sabíamos que havia um campo de concentração ali. Então, quando encontramos os judeus presos lá dentro, sem água nem comida, eles nos cercaram, nos agarraram. Eles tinham fome. E nós demos comida. E demos cigarro porque pediram. E pensávamos que fumariam o cigarro, mas eles comeram o cigarro”, conta o velho soldado. Nesse momento, o queixo do seu companheiro de tropa começa a tremer e logo todo o seu rosto treme. “Nós demos comida, e eles morreram duas horas depois porque o estômago deles não suportava tanta comida. Eu me sinto culpado porque dei comida, e eles morreram.”

É sobre a capacidade humana de produzir horror que o pai de David escreve. “Às vezes, um nazista entrava no dormitório e acordava um de nós. E escolhia outro, muito maior e mais forte para sentar sobre o peito do mais fraco até que ele morresse asfixiado. Eu fingia que estava dormindo enquanto isso acontecia”, é um dos trechos do diário. Ou: “Dentro do túnel, eles botavam gente puxando a carroça no lugar dos cavalos. Lembro de um pai e de um filho, poloneses. O nazista mandou que o filho chicoteasse o pai, mas o menino se recusou. O pai, temeroso pelo filho, ordenou: me chicoteie bem forte”.

Só há um jeito de esquecer o horror: lembrar. É por saber disso que David empurra os irmãos para uma travessia que lhes permita sair mais vivos do outro lado. Se não lidamos com a memória do horror, seja ele qual for na vida de cada um, ele pulsa dentro de nós como um buraco negro que nos engole de dentro para dentro. O horror fica ali, vagando livremente por cada centímetro de nossa vastidão interna, numa repetição sem fim e sem destino. É por isso que no Brasil é preciso que todos compreendam que o acesso à memória é um direito inalienável de cada ser humano – não como vingança, mas para que se possa deixar de vagar pelo não dito e seguir adiante.

A certa altura do documentário, David reproduz um filme caseiro. É o aniversário de uma criança da família. O pai está lá, batendo palmas e quase sorrindo. Mas o pai não está lá. O pai escreveria no diário depois: “Como não podemos esquecer, somos todos atores”. Ele também poderia ter dito: “Como não podemos lembrar, somos todos atores”. Joseph Fisher poderia ter sido o “six million and one”, mas não foi. E, como tantos sobreviventes, é consumido pela culpa. “Por que eu?”, é a indagação incessante que faz a si mesmo.

Só no parapeito da morte o pai sente-se pronto para dar um lugar para o horror. Pela memória do único texto que precisa interpretar, o pai finalmente pode deixar de atuar. O pai então escreve o diário – e transforma o monstro que o come por dentro em palavra escrita. Mas, para que sua sobrevivência ao Holocausto tenha sido não uma morte, mas uma vida, ele precisa endereçar essa memória. Pois a carta que não chega ao seu destino para ser lida pelo outro não é uma carta, mas um esquecimento sem lembrança. E é assim que o diário chega às mãos de David.

Entre todos os irmãos, David é o único capaz de compreender que precisam percorrer o caminho do pai como filhos. David entende que o pai escreve o diário não apenas para poder esquecer, mas para que os filhos tenham uma chance de lembrar. Se, para o pai, foi um diário, caberia aos filhos encontrar a sua forma de materializar e nomear o inominável. Como disse recentemente o psicanalista Paulo Endo, em uma banca de doutorado na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, numa frase que é para todos nós: “Em vez de ser perseguido pelo trauma, é preciso perseguir o trauma”. É o que David e seus irmãos fazem ao seguir as pegadas do pai.

Para arrancar os pés do passado e avançar rumo ao futuro é preciso antes fazer marca. Essa é a beleza do humano que, se é capaz de produzir tanto horror, também é capaz de criar beleza a partir do horror. O filme exibido hoje nos cinemas do mundo é a marca que permitiu a David e seus irmãos seguirem adiante levando o legado do pai como vida – e não mais como morte. “Six million and one” é uma bela cicatriz.

(Publicado na Revista Época em 21/11/2011 )

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