Um negro em eterno exílio

A longa travessia de Carlos Moore, o ativista e intelectual que denunciou o racismo em Cuba e passou a vida perseguido pelos dois lados da Guerra Fria, até chegar ao Brasil e encontrar um país mergulhado numa crescente tensão racial

Arquivo Pessoal/Divulgação

Arquivo Pessoal/Divulgação

Aos 22 anos, Carlos Moore já tinha vivido mais do que a maioria das pessoas numa existência inteira. Já tinha conhecido a fome e a violência na pequena cidade cubana onde nasceu, já tinha desejado não ser preto e se esforçado por alisar o cabelo, clarear a pele com produtos arriscados e desachatar o nariz com prendedores, já tinha emigrado para os Estados Unidos e descoberto a luta pelos direitos civis, já tinha se apaixonado por Patrice Lumumba, o célebre líder congolês, e planejado um atentado ao consulado belga em Nova York para vingar-se de seu assassinato, já tinha se encantado com a revolução depois de um encontro com Fidel Castro, já tinha se tornado comunista e voltado a Cuba para colaborar com o processo revolucionário, já tinha descoberto que o regime cubano era tão racista quanto aquele que tinha derrubado, já tinha sido encarcerado uma vez por denunciar que o racismo persistia na revolução, já tinha sido condenado a quatro meses num campo de trabalhos forçados uma segunda vez pelo mesmo motivo, depois de abordar o próprio Fidel Castro em público, já tinha feito uma confissão, para não ser morto, de que havia se equivocado e de que não havia racismo em Cuba, já tinha se refugiado na embaixada da Guiné quando percebeu que seria executado de qualquer modo, já tinha fugido para o Egito e depois para a França, sem nenhum documento, já tinha sido rejeitado por um Jean-Paul Sartre convencido de que ele era “agente do imperialismo”, já tinha sido acolhido por um dos ideólogos da negritude, o grande poeta surrealista martinicano Aimé Césaire, já tinha virado segurança do ativista negro Malcolm X, quando este esteve em Paris, e já tinha sofrido de todas as formas pelo seu assassinato. Isso tudo aconteceu até os seus 22 anos. Depois, aconteceu muito mais.

Carlos Moore tem hoje 72 anos. E lança no Brasil a sua autobiografia: Pichón – minha vida e a revolução cubana (Nandyala), publicada aqui graças a um financiamento do público, via crowdfunding, e nos Estados Unidos em 2008, mesmo ano em que Barack Obama tornava-se o primeiro negro eleito presidente da maior potência global. O prefácio é de Maya Angelou (1928-2014), artista e ativista, ela mesma uma lenda, que desempenhou um papel crucial para que o então jovem Moore descobrisse sua identidade e a realidade brutal das mulheres negras.

Para alcançar a trajetória de Carlos Moore, é preciso compreender que, como filho de imigrantes jamaicanos, ele ocupava o degrau mais baixo da escala racial da sociedade cubana. Pior do que um negro cubano, era um negro imigrante das demais ilhas do Caribe. Em seu livro aparecem genocídios de imigrantes negros em Cuba dos quais a maioria jamais ouviu falar. Aos 13 anos, sua mãe já tinha sido estuprada e engravidada pelo padrasto. Com um filho do incesto, ela casou-se com outro imigrante jamaicano. Moore nasceria anos depois, entre vários irmãos. E jamais entendeu por que era rejeitado pela mãe, que o espancava a ponto de deixá-lo de cama por dias, coberto de talhos e hematomas, tendo chegado a desenvolver uma espécie de reação convulsiva. O pequeno Moore fazia buracos no quintal, para tentar escapar dessa mãe. Sua fotografia era a única que não estava pendurada na casa da família.

Um dia a mãe partiu, abandonando a todos. E só muito mais tarde, já adulto, ele descobriria a raiz da violência materna inscrita em surras cotidianas no corpo do filho. A vida de Carlos Moore pode também ser contada por uma longa travessia em busca de uma mãe e de uma identidade.

Anos atrás, depois de sofrer uma embolia pulmonar e flertar com a morte por três semanas, Carlos Moore conta ter resolvido seguir o conselho de seu grande amigo, o escritor americano Alex Haley (1921-1992), autor de A autobiografia de Malcolm X, e escrever suas memórias. Decidiu então mudar-se para o Brasil, onde desde 2000 vive em Salvador, com sua companheira, a guadalupense Ayeola. Do primeiro casamento, tem um filho que vive nos Estados Unidos. No Brasil, acolheu uma menina que morava numa favela e hoje já se tornou adulta e faz doutorado. Tem sete livros publicados, cinco deles traduzidos para o português e lançados no Brasil. Um deles – Fela, esta vida puta (Nandyala) – é a impressionante biografia de Fela Kuti (1938-1997), o criador do Afrobeat, com quem ele teve uma amizade profunda. Entre os seus vários exílios, Moore fez dois doutorados na Universidade de Paris VII, o primeiro em Etnologia, o segundo em Ciências Humanas.

Carlos Moore escolheu o Brasil, onde tinha amigos como Abdias do Nascimento (1914-2011), para se recolher e escrever sua autobiografia com tranquilidade, num país onde era quase desconhecido. Logo percebeu que o Brasil vivia um ponto de inflexão na luta contra o racismo, com as cotas raciais e as demais ações afirmativas. Como fez por toda a vida, engajou-se. Seu livro Racismo & Sociedade (Nandyala), lançado em 2012, tornou-se referência e polêmica. Carlos Moore está longe de ser uma unanimidade, dentro e fora do movimento negro, o que não parece preocupá-lo. Tornou-se um dos pensadores negros dedicados a esse tempo histórico muito particular do Brasil, definido por Moore como “o momento em que as máscaras começaram a cair”.

Desde a infância, Carlos Moore queria fugir, uma fuga profunda, com vários sentidos simultâneos. Acabou por passar a vida fugindo de perseguidores de todos os lados do espectro ideológico. Essa fuga interminável parece tê-lo levado a si mesmo, o único lugar de chegada que importa.

A entrevista a seguir foi feita durante seis horas, em dois dias consecutivos da semana passada, durante a estadia de Carlos Moore em São Paulo, para o lançamento de Pichón. Nela, ele fala sobre racismo, trajetória, identidade, mulher negra, exílio, assim como sobre as realidades do continente africano e de países como Cuba, Estados Unidos e Brasil. Pelo seu relato desfilam personagens que são ícones da história mundial do século 20, mas que talvez a maioria dos não negros desconheça, porque esta é uma história apagada por aqui – ou jamais contada.

À primeira vista, o que chama atenção neste negro de tantos mundos é a sua leveza, surpreendente em alguém que carrega uma trajetória tão pesada e ainda traz no corpo as cicatrizes das violências que começou a sofrer pela mão da própria mãe. Moore é acolhedor, carinhoso e sorridente, jamais se furta a uma pergunta difícil, e sua força aparece quando discorda do interlocutor e dá uma resposta demolidora. Claramente, como se verá, ele não tem tempo para conversas de salão.

1) O primeiro exílio de um negro: o do ser

Pergunta. Por que o senhor escolheu Pichón como título deste livro?

Resposta. O editor americano queria tirar esse título, dizendo que esse não era um título comercial. Eu falei que não mudaria, porque botei esse título para que as pessoas se interrogassem: o que é pichón? Pichón, na Cuba da minha infância, queria dizer “filhote de urubu”. Só mais tarde, já adulto, eu fui descobrir seu significado mais neutro, que era filhote de alguma ave. Em Cuba era o termo que usavam para nos humilhar. Aqueles negros que vinham do Caribe eram urubus, porque eram pretos e se dizia que roubavam empregos dos cubanos e que comiam carniça. E esta foi a palavra que mais me doeu. Me xingarem de “negro de merda” era normal. Todos os negros eram xingados de “negros de merda” pelos brancos. Mas somente certos negros eram xingados de pichón, somente os imigrantes e descendentes do Haiti, Jamaica, Barbados… Os negros cubanos têm nomes como Gonzalez, Díaz, Hernandez. Agora, um negro com nome Moore já se sabe que ele não é cubano, mesmo que tenha nascido lá, estado lá por 100 anos. Havia um ódio profundo, racista, dentro da sociedade cubana, para com aqueles filhos dos imigrantes, considerados mais primitivos, mais bárbaros, mais africanos. Mais negros. A negrura deles é exponencialmente maior, no sentido negativo. Então, eu falei: “Se esse é o termo que mais me feriu, durante a infância, é o que quero utilizar como título do livro”. Eu não o tiraria por nada.

P. O senhor teve uma vida de exílios. Mas, desde criança, parece que o senhor já se percebe como um exilado, num sentido mais profundo. Um exilado da pele, da língua, dos nomes, já que havia rejeição ao seu nome, por revelar que seus pais eram imigrantes jamaicanos. Como é isso?

R. Todos aqueles que nascem desse lado, que são negros, nascem num grande exílio. Um enorme exílio forçado. E, a partir daí, vêm todos os outros exílios que procedem dele e que criam outros novos lugares de exílio. Eu logo percebi que não tinha conexão com o mundo, fora uma conexão fictícia que o mundo branco me forçava a aceitar, a querer ser como eles. Aí já se criava um corte fundamental, que era o corte comigo. Eu não sabia quem eu era, porque eu queria ser outro. Porque esse outro é que era o bom, o bonito, o que todo mundo queria. Quando era pequeno, eu rejeitei minha mãe rapidamente por causa de toda essa brutalidade dela. E eu criei outra mãe na minha cabeça. Eu não falei disso no livro, mas eu criei uma outra mãe na minha cabeça, que era totalmente branca, que era loira, de olhos azuis, como eu via nas revistas cubanas.

P. Sua mãe era uma mulher brutal, mas, quando o senhor criou uma mãe imaginária, criou uma mãe branca, em vez de uma mãe negra. Isso vem de uma outra brutalidade, né?

R. Sim. Eu me retirava para o fundo do jardim para falar com essa mãe, e ela era carinhosa comigo, sempre sorridente e com uma voz suave, e nós fazíamos tudo juntos. Essa mãe de fantasia me trazia presentes, me trazia uns biscoitos de que eu gostava muito. Eu me colocava na escuridão, à noite, no fundo do pátio, entre dois coqueiros, e essa mãe vinha. Eu tinha uns 7 anos, e ela era real pra mim. Ela sempre me perguntava se eu estava contente. E eu dizia que não, que eu queria fugir, que ela me ajudasse a fugir. Toda minha infância eu passei meu tempo a querer fugir. Fugir foi a coisa mais poderosa da minha infância.

P. Fugir do quê? E para onde?

R. Eu ia andar, andar, andar, andar toda a noite, até chegar ao porto. Lá eu poderia me esconder entre aqueles enormes sacos de açúcar, num daqueles barcos. E esse barco me levaria para aquele país que era mítico pra mim, que era os Estados Unidos. Eu dizia à minha mãe branca: “Me leva, me leva pela mão”. E ela me dizia que não, que não podia. E às vezes eu esperava, e ela não vinha. Eu já estava totalmente alienado de mim. Queria ser branco, queria somente ter amigos brancos, queria mudar de pele, queria mudar de cabelo, de tudo. Esse foi o primeiro exílio, um exílio ontológico. Normalmente as pessoas sabem o que são, elas são o que são, não se colocam a questão. Mas eu não sabia, eu não queria ser o que eu era e, pelo fato de não querer ser aquilo, não sabia o que eu era.

P. Como é que é não saber o que se é?

R. Você se sente constantemente num estado de falta [a voz de Moore fica instável]. Não tenho a pele correta, não tenho o nariz correto, não tenho os lábios corretos, não tenho o corpo correto, não tenho. Tudo é falta. A única coisa que me salvou durante essa infância foi a minha inteligência [a voz se restabelece]. Porque na escola eu podia não estudar, e nas provas me dava bem, melhor que aqueles meninos brancos que estudavam o tempo todo.

P. E quando o senhor se olhava no espelho, o que enxergava?

R. Eu me via como alguém grotesco, sempre feio. E eu ainda era estrábico. Então as pessoas sempre diziam: “Pichón, pichón, pichón…”. Eu não me olhava no espelho. E, como na minha casa não havia nenhuma foto minha, isso era reforçado. Eu achava que era comigo, eu não tinha ainda essa percepção de que era com todos os negros.

P. Sua mãe negra, concreta, parece ter sido uma pessoa ambígua. Ao mesmo tempo em que ela o espancava constantemente e alisava o seu cabelo, era ela quem enfrentava os brancos e o incentivava a enfrentá-los. Como o senhor lidava com essa ambiguidade?

R. Ela foi a primeira pessoa que me falou da escravidão. A única que me ensinou a resistir, a única que me disse que eu tinha de enfrentar esse mundo. Meu pai era totalmente o contrário, ele buscava somente a aprovação dos brancos. E os brancos falavam que eu era a vergonha do meu pai. Mas da minha mãe tinham medo, os brancos temiam que ela fosse afrontá-los, porque ela fazia escândalos, fosse quem fosse. Os escândalos da minha mãe, nesta pequena cidade, eram maiúsculos. Mas eu só conseguia chegar perto dela aos domingos, quando ela escutava ópera no rádio e chorava. Ficava escutando essa música, remendando as roupas e chorando. Nestes momentos, ela me tocava.

P. Hoje, como o senhor olha para essa mãe?

R. Eu olho com a compreensão de que ela foi uma mulher estuprada pelo padrasto aos 13 anos. Meu irmão mais velho é filho de um estupro. Minha mãe chegou da Jamaica e, em alguns meses, já estava estuprada e grávida. Estou escrevendo um outro livro, chamado “As pegadas do caos”, que fala dessas realidades históricas. Neste livro, meus pais são os protagonistas. Através deles, vou falar da vida de todos os outros. Dessa pobreza imensa, dramática. Do ódio que enfrentaram em Cuba por serem negros imigrantes de ilhas caribenhas, considerados como bárbaros e primitivos. Pouco antes de ela morrer, eu conversei com minha mãe nos Estados Unidos, em New Jersey, onde ela estava morando. Foi Alex (Haley) que me disse: “Você precisa saber o que aconteceu”. Então fui falar com ela, e depois com o meu pai, que morava no Brooklyn. Foi quando soube por ela que não era filho do meu pai, mas do melhor amigo dele, a quem meu pai tinha confiado a sua família. Isso aconteceu quando meu pai precisou partir em busca de trabalho e passou muito tempo sem voltar. Ela, cheia de filhos, achou que ele tinha morrido. Quando meu pai finalmente retornou, ela estava grávida deste amigo. Era eu. Mas quando eu soube, eu tinha por volta de 40 anos. Depois, conversei com o meu pai. Ele estava sentado, tomando sol. Já estava cego. Ele me disse que minha mãe nunca deveria ter me contado, porque tinham um acordo sobre isso. Mas era uma cidade pequena, e eu passei a vida toda brigando com os outros meninos porque chamavam minha mãe de puta e eu não sabia por quê. Puta, puta, puta. E esses dois homens quase se mataram por causa dessa gravidez. Eu gravei toda a minha conversa com minha mãe e meu pai. Minha mãe me contou as coisas horríveis que passou. Toda a fome que passou. E os meninos vindo um atrás do outro, porque não sabiam como evitar os filhos. Ela sempre grávida. Me dei conta então do horror que tinha sido a vida deles. Eram vidas trágicas.

P. Mas seu pai, de fato, este que criou o senhor, ao contrário da sua mãe, aceitou o senhor por completo como filho, não foi?

R. Eu fui o favorito dele. Até hoje me lembro do odor desses charutos, e eu adoro charuto por causa disso, a única coisa que eu fumo é charuto. Me lembro do perfume que meu pai usava, era um perfume que de vez em quando traziam para ele dos Estados Unidos. Quando conversamos, eu agradeci a ele por todo o amor que ele me deu. Disse a ele o quanto o amava. E disse: “Você é meu pai”. O ciclo estava fechado.
2) A mulher negra: a mais esmagada entre os esmagados

P. Essa cisão, entre a mãe branca boa e a mãe negra ruim, impactou na escolha de suas parceiras sexuais, pelo que se pode perceber em sua autobiografia… Como foi isso?

R. Sim, porque essa transferência se faz para aquelas mulheres brancas que eu vou conhecer, que têm esse fenótipo e que correspondem a essa visão do que para mim é bonito. Tudo o que eu tinha que ser era bom na cama com elas. Não era uma relação, no sentido da intimidade de explorar profundamente o outro. Era uma performance. Eram relações sexuais ficcionalizadas. Cada encontro com uma mulher branca era como na novela. Eram mulheres que não conheciam nada sobre as questões raciais, só queriam bom sexo, um negro na cama que alimentava os fantasmas delas sobre o macho negro. E elas alimentavam os fantasmas que eu tinha. E estes fantasmas estavam ligados a essa outra visão, que poderia ser inclusive incestuosa, já que essas mulheres correspondiam àquela mulher mítica criada na minha infância. Que era boa comigo, que me trazia presentes. Então, o sexo era um grande presente. A relação profunda só começou a existir quando eu passo a conhecer mulheres negras, conscientes de quem são, que estavam se debatendo com o problema da identidade e que me forçaram a me debater com o problema da minha identidade. Aí foi onde começou o outro combate.

P. A história da sua mãe levou o senhor à história da mulher negra?

R. Sim. Eu comecei a compreender a história da mulher negra a partir de Maya Angelou e de todas as escritoras negras que se tornariam grandes, mas que na minha adolescência, em Nova York, eram as mulheres com quem eu passei a conviver, sem me dar conta da importância delas. Eu tenho uma dívida com as mulheres negras que é impagável, por terem me levado à compreensão de quem eu era. Assim, eu tenho o dever de participar dessa luta para que a mulher negra recupere a dignidade diante dessa sociedade, dignidade que lhe foi retirada brutalmente há 400 anos.

P. Qual é o papel de um homem negro diante da indignidade sofrida pela mulher negra?

R. Há uma situação de profunda solidão da mulher negra. A mulher negra é rejeitada universalmente, é pisoteada. Para ser um negro consciente, um ser humano consciente, um homem negro tem que olhar para esse aspecto. Não pode seguir como cúmplice desse esmagamento histórico da mulher negra. A mulher negra é o ser humano mais esmagado de todas as categorias de pessoas marginalizadas no mundo. E não se pode ignorar isso. É por isso que Obama fez algo extraordinário, ao levar essa mulher negra, de pele negra, à Casa Branca, como sua esposa, como mãe das suas filhas, quando, na realidade, a sociedade não programou isso. A sociedade programou para que alguém desse nível, desse sucesso, levasse automaticamente uma loira para a Casa Branca. Ele rompe um tabu e se transforma não somente no primeiro presidente negro, mas também no homem negro que devolve à mulher negra o sentido de autoestima e de respeito que essa mulher deve ter, em primeiro lugar. O sistema racista já inviabilizou a relação entre o homem negro e a mulher negra desde os tempos da escravidão. O racismo já determinou que brancas são para casar, mulatas para fornicar e pretas para trabalhar. Há quatro séculos que isso é lei. Então, quando um homem negro, como eu, compreende o que tudo isso quer dizer, ele começa a ter outro olhar para a mulher negra. Começa a buscar o diálogo com essa mulher, em lugar de pisoteá-la, em lugar de reproduzir toda a história de esmagamento. É um diálogo muito difícil, porque, durante quatro séculos, o homem negro e a mulher negra não tiveram uma situação que permitisse esse diálogo. Para derrubar o racismo é indispensável que o homem negro e a mulher negra tenham essa conversa.

3) A Cuba de Fidel: um regime que reproduziu o racismo

P. Por que o senhor decidiu escrever essa autobiografia?

R. Em 1996, eu passei por uma embolia pulmonar e fiquei três semanas entre a vida e a morte, num hospital de Trinidad e Tobago, onde trabalhava como professor universitário de Relações Internacionais. Pensei que, se eu morresse, tudo aquilo que eu precisava falar sobre a minha experiência com a revolução cubana se perderia. As pessoas têm uma visão de que foi uma revolução generosa, correta com todo mundo. E foi a pior repressão contra os homossexuais, contra os negros. Então eu pensei que, se eu sobrevivesse, sairia da universidade e iria para um lugar em que ninguém me conhecesse como militante, para escrever esse livro. Escolhi Salvador, na Bahia. A Bahia, para mim, é como se fosse um país. A culinária, a música, o candomblé… Queria um lugar onde eu pudesse viver tranquilamente e terminar essa obra.

P. Que buraco se abre na sua vida quando o senhor descobre que a revolução cubana está reproduzindo o racismo?

R. Foi um choque. Eu tinha uma necessidade ontológica de que brancos e negros pudessem juntos mudar a sociedade. Quando eu descubro que estão todos mentindo, e estão destruindo as organizações negras, destruindo o candomblé, destruindo tudo o que é negro, porque eles não querem conviver com essas diferenças, porque querem criar um negro novo, um negro submisso, um negro comunista, foi um grande choque. O que eles estavam propondo era um negro sem cor, um cubano sem cor. Mas eu queria minha identidade, eu não queria me diminuir e ser sem cor. Havia esse discurso de que éramos todos cubanos, só que a cor cubana continuava a ser a branca, já que só havia um negro em posição de comando, entre todos, que era manipulado por Fidel, como eu já tinha presenciado nos Estados Unidos. Aí eu disse “não”. Mas foi um choque grande chegar à conclusão de que esses dirigentes brancos não tinham a menor intenção de conviver com gente como eu. Nem posso descrever aquilo que Fidel Castro era para mim. Ele simbolizava a revolução, e a revolução era para mim como uma mãe substituta. Era aquela coisa que eu podia me entregar e amar e ser amado por ela. Ser aceito e amado por ela. Aceito como eu era. E que ela nunca mais ia me rejeitar. E então a encontro e ela me rejeita, como eu sou. E é por isso que eu cometo essas loucuras que eu vou cometer, porque estou convencido de que Fidel Castro não é parte disso. Que aqueles eram os mesmos brancos racistas de sempre, mas que eles não eram a revolução. Quando descobri que Fidel era aquele que estava à frente disso, aí caí em pedaços… Tudo isso aconteceu comigo quando eu não tinha nem 20 anos.

P. O senhor fez uma confissão, negando o racismo em Cuba, para escapar de mais uma prisão ou coisa pior. Como o senhor se sente com relação a isso?

R. Muitas vezes eu tenho me perguntado porque eu não aceitei ser fuzilado em lugar de confessar o que eles queriam que eu confessasse. Muitas vezes eu tenho me perguntado isso. E eu não tenho nenhuma resposta além daquela que eu tinha. Chegou um momento em que eu sabia que a morte estava ali e de que, para evitá-la, eu somente tinha que mentir. E esse foi o momento em que eu disse a mim mesmo: “Eu vou mentir”. Porque aqueles que estão me pedindo para mentir são mentirosos. Então eu estou traindo absolutamente nada. Eu nunca coloquei o nome de ninguém, nunca impliquei ninguém. Impliquei a mim, dizendo: “Fui eu”. Assumi toda a responsabilidade. O regime cubano pode exibir esse documento em qualquer momento e ele só mostrará que Carlos Moore disse que ele fez sozinho.

P. O senhor voltou a Cuba anos atrás para uma visita, reencontrou seus irmãos e conheceu sua família por parte do pai biológico. Como o senhor vê Cuba hoje?

R. A Cuba de hoje é muito mais complexa do que quando eu estava denunciando o racismo naqueles tempos. O fato de negar a existência do racismo fez com que o racismo ocupasse todos os espaços. Então o racismo se reforçou em Cuba. Ele não se expressa da mesma maneira que ele se expressava antes da revolução, na segregação racial, nos lugares públicos. Mas a segregação racial hoje é tão forte quanto aqui no Brasil. No poder político, econômico, coisas tão simples como o conteúdo da televisão. É muito forte. A única grande diferença que há na Cuba de hoje é que existe um número expressivo de negros que pertencem a uma classe média que estudou. Meus próprios irmãos, por exemplo, são todos profissionais. Para sobreviver, a revolução teve que profissionalizar os negros cubanos.

P. E essa não é uma mudança importante?

R. É uma mudança importante, porque vai entrar em colisão violenta com a Cuba que agora está surgindo com Raul Castro, que é essa Cuba capitalista, tipo chinesa. Porque essa é uma Cuba que exclui totalmente os negros profissionais e não profissionais. E aí vai haver uma colisão, porque existe agora uma massa de negros que pensam, que analisam, que compreendem a situação deles. O regime cubano vai ter que lidar com um problema enorme. Da mesma maneira que o Brasil, hoje, cada vez mais, está lidando com um problema cada vez mais forte, que é o reforço dessa classe média negra que está cada vez mais consciente sobre a sua situação.

P. E como o senhor vê Fidel Castro, esse homem que acabou tendo uma importância grande também na sua vida?

R. Fidel fez algo muito importante para Cuba, a revolução foi importante. Apesar de todas as coisas que têm acontecido, eu nunca teria preferido uma Cuba sem revolução. A revolução era necessária, em Cuba, e se converteu naquilo que se converteu. A revolução morreu, foi destruída, foi assassinada, mas o tempo em que a revolução existiu, como esperança que uniu realmente esse povo, que permitiu aos negros sonharem com uma sociedade nova e que permitiu a muitos brancos sonharem com uma sociedade em que essas diferenças raciais e esse conflito racial poderiam ser vencidos, esse foi um momento importante. Todas as reformas mais estruturais que a revolução fez, como saúde e educação, também foram importantes. O fato de que Fidel Castro foi um dirigente que teve a coragem de desafiar os Estados Unidos também foi importante. Agora, essa militarização exigida pela resistência contra os Estados Unidos converteu a sociedade cubana em uma Esparta, destruindo todos os espaços de expressão civil, que não voltaram mais.

P. O senhor faz uma diferença entre a revolução e o regime. Qual é?

R. A revolução é uma esperança coletiva. O ser humano está constantemente buscando ampliar os parâmetros de liberdade na existência dele, e a revolução é esse momento. Houve uma revolução russa? Houve. Ela morreu? Morreu. Houve uma revolução na China? Houve. Ela morreu? Morreu. Foi assassinada? Sim. Os povos colocam a revolução em movimento, e logo aqueles que manipulam os aparelhos de controle a assassinam. Então é sempre esse vai e vem. Esse conflito, essa contradição.

4) Encontros com Malcolm X e Aimé Césaire, desencontro com Sartre

P. O senhor viveu uma experiência muito particular, a de viver num mundo polarizado, que era o mundo da Guerra Fria, e ser suspeito nos dois lados, perseguido nos dois lados, sem lugar em nenhum lado. Como é essa experiência de encarnar um não lugar, no sentido mais profundo?

R. Havia gente que me acusava de ser agente do imperialismo, de um lado, outros me acusavam de ser agente do comunismo, do outro lado. Ao mesmo tempo. Me senti completamente injustiçado. Até o ponto em que eu não podia resistir mais. Você não consegue provar nada. Quanto mais você tenta provar alguma coisa, mais eles dizem que você está camuflando a verdade. Me dei conta de que, para aqueles que se dizem de esquerda, ou para aqueles que se dizem de direita, não importa a verdade. Para eles a verdade é algo relativo. Você tem um adversário, então você o elimina da maneira mais eficaz. E essa maneira mais eficaz é com calúnias. Mas essas mentiras destroem o ser humano que é o alvo desses ataques. Houve momentos em que eu senti que não poderia aguentar mais. Me lembro de pelo menos três momentos da minha vida em que eu seriamente contemplei a possibilidade de abolir a minha vida.

P. Poderia descrever um desses momentos?

R. Na última vez, falei com a minha atual companheira, Ayeola. Eu sentei com ela num jardim, em Guadalupe, e falei: “Eu não posso continuar mais, e nem consigo explicar a você a dor que estou sentindo”. Ela olhou para mim e disse: “Tá bem. Então faça. Eu vou compreender. Se você está sentindo tanta dor a ponto de querer abolir a sua existência, você deve fazê-lo”. Essa foi a coisa mais maravilhosa que alguém poderia ter feito por mim. Eu me senti livre, liberado, realmente livre. Essa autorização, da mulher que me amava, fez com que algo se quebrasse a partir daí. Eu comecei a viver tranquilo sabendo que, a qualquer momento, eu poderia tirar a minha vida. Passaram-se os meses, os anos… E isso me ajudou a lidar com essa situação de cerco permanente.

P. No lançamento do seu livro, na Livraria da Vila, em São Paulo, o senhor disse que a pessoa que mais o marcou foi Aimé Césaire. Por quê?

R. Porque era um homem de uma tranquilidade extraordinária em meio a todos os conflitos. Ele pertenceu ao Partido Comunista e saiu, por uma questão ética, a invasão da Hungria, e passou a ser atacado violentamente. E foi atacado também pelos grupos de direita, porque estava sempre pregando uma espécie de socialismo da negritude, para Martinica e para outros países negros. Ele me impressionou muito com o discurso sobre a questão colonial, especialmente aquela parte fantástica que me abriu janelas, quando ele disse: “Vocês estão condenando Hitler por quê? Isso é mentira. Como vocês podem condenar Hitler, quando vocês fizeram tráfico de escravos, quando vocês colonizaram toda a África? Trabalhos forçados, genocídios… Vocês não podem dizer nada contra Hitler. Hitler são vocês”. E ele falou também: “A única coisa que vocês podem dizer sobre Hitler é que doeu porque ele matou brancos! Ah… isso sim vocês podem dizer! Mas vocês não dizem que o único crime para vocês é que ele aplicou a brancos, durante um tempo curto, aquilo que vocês reservam aos negros desde séculos”. Isso me impressionou muitíssimo. Foi uma explosão na minha cabeça.

P. E como foi o seu “não” encontro com Sartre?

R. Quando eu chego a Paris, procuro Aimé Césaire e finalmente eu o vejo, e ele me escuta sobre o que está acontecendo em Cuba. E, ao final, ele afirma: “Eu não quero acreditar em tudo o que você me disse, não quero acreditar. Mas acredito”. E aí ele me disse que eu precisava ver várias pessoas, entre elas Sartre. Um jovem escritor, amigo íntimo de Sartre, arranja esse encontro, em um café. Eu vi Sartre lá, com os amigos dele, enquanto esse amigo comum vai dizer a ele que estou ali para conversar. Imediatamente, Sartre começa a gesticular e a dizer com a cabeça que não. Esse escritor voltou, então, até onde eu estava: “Sartre disse que não vai te receber, porque não fala com agentes do imperialismo”. Simone de Beauvoir e Sartre são gente que eu amo, são pessoas que liberaram mentes. Sartre foi aquele que abraçou a negritude, que escreveu um texto lindíssimo que se chama “Orfeu Negro”, onde ele explica aos intelectuais brancos, de esquerda e liberais, o que é a negritude. Coisas luminosas. Esse Sartre era fundamental na minha vida. Então, para mim, foi uma traição. Como se alguém me apunhalasse. Ele teve essa reação de conquistador, de não querer me ouvir. Foi muito duro. Mas ele foi fundamental na minha vida, no meu desenvolvimento como ser humano. Assim como Simone de Beauvoir. Tenho muito amor por esses dois… muito amor.

P. Qual foi a sua experiência com Malcolm X?

R. Quando eu o conheci, como líder nos Estados Unidos, eu não tinha amizade com ele. A amizade veio nesses momentos dramáticos em que ele estava caminhando para a morte. Naquele momento, ele estava com essa obsessão de rapidamente poder ajudar a insurreição no Congo. Eu tinha pouco mais de 20 anos e pensei que a única coisa que eu podia fazer era dar todo o meu apoio a Malcolm para que ele pudesse reunir os voluntários. Passei então a ajudar no recrutamento dessas pessoas. No período em que ele passou na França eu tive que dormir com ele no hotel. Ou seja, ele dormia e eu ficava desperto. Logo que ele acordava, eu dormia algumas horas. Ele se ocupava dos assuntos dele e logo buscávamos o lugar onde ele tomava café da manhã, porque ele tinha medo de ser envenenado no hotel. Eram os últimos momentos de Malcolm, e ele sabia. Ele me disse que só tinha horas ou dias, que estava indo para a morte. E constantemente ele estava me dizendo: “Você tem que prestar atenção ao que eu estou lhe dizendo, porque é a última vez que eu vou poder falar assim”. Então ele começou a me falar sobre tudo: sobre a mulher, sobre a vida, sobre a revolução, sobre como organizar os grupos na clandestinidade… Ele era um homem muito generoso. Não era uma pessoa efusiva, não era uma pessoa de abraços, era um homem muito contido. Mas tudo passava através dos olhos dele, de como ele sorria. E era uma grande paciência. Eu podia falar durante meia hora e ele não ia me interromper nunca. Ele ficava lá, atento a tudo o que eu ou outra pessoa estava dizendo. As pessoas têm essa visão de Malcolm somente como aquele grande agitador e tudo, mas Malcolm era um homem muito tranquilo, muito generoso, muito carinhoso…

P. E como o senhor recebeu a notícia do assassinato dele?

R. Quando eu soube da morte dele fazia frio, em Paris, e eu saí andando por horas. Esse foi um dos momentos mais difíceis pra mim. Eu tinha 22 anos. No assassinato de Patrice Lumumba, eu só queria vingança. Eu amei Lumumba sem jamais tê-lo visto, o amei pelas coisas que ele dizia. Havia uma fragilidade em Lumumba. Ele era um homem magro, alto, mas quando ele falava que criaria uma nação na qual os negros podiam ser respeitados, que todos os negros, de qualquer parte do mundo, poderiam ir ao Congo, foi uma revelação pra mim, aos 18 anos. Já com Malcolm era um sentimento de impotência total, porque eu tinha convivido com ele e o amava. Me lembro de um momento em que eu estava apresentando a ele recrutas para o Congo e uma das mulheres que prestaria ajuda como enfermeira o interrompeu. Eu me zanguei: “Não interrompa o brother Malcolm”. Malcolm parou, me olhou, botou a mão no bolso, sacou uma moeda de um dólar e disse: “Brother Carlos, o que tem do outro lado dessa moeda?”. Eu disse que não sabia. E o Malcolm falou: “Ok, nunca mais interrompa uma mulher, porque as mulheres sempre veem o outro lado da moeda”. Eu nunca me esqueci disso.

5) O Brasil, a maioria negra e a crescente tensão racial

P. O senhor pesquisou o racismo em vários países, em quatro continentes. O que é o racismo, no seu ponto de vista?

R. O racismo não é uma simples tecedura de preconceitos aberrantes, nem uma confabulação ideológica descartável, tampouco uma realidade oportunista surgida há pouco, e muito menos uma “doença”. Se trata de uma estrutura de origem histórica, que desempenha funções benéficas para um grupo, que por meio dele constrói e mantém o poder hegemônico com relação ao restante da sociedade. Esse grupo instrumentaliza o racismo através das instituições e organiza, por meio do imaginário social, uma teia de práticas de exclusão. Desse modo, preserva e amplia os privilégios sociais, o poder político e a supremacia total adquiridos historicamente e transferidos de geração a geração. Em uma sociedade já multirracial e mestiçada, ele serviria para preservar o monopólio sobre os recursos, para o segmento racial dominante. Seria um sistema total que se articula desde o início mediante três instâncias operativas entrelaçadas, porém distintas: 1) as estruturas políticas, econômicas e jurídicas de comando da sociedade; 2) o imaginário social total, que controla a ordem simbólica; e 3) os códigos de comportamento que regem a vida interpessoal dos indivíduos que fazem parte dessa comunidade. Assim, não é possível atacar o racismo em apenas um lugar, porque nada vai se modificar. Hoje em dia, o racismo atingiu tal grau de sofisticação que nega a si mesmo e pretende não existir. Negar a existência do racismo, transformá-lo em um tabu social, tratá-lo como “aberração” ou reduzi-lo à “discriminação” e ao “preconceito” é a melhor forma de encobri-lo e protegê-lo enquanto estrutura sistêmica. Por isso, sempre que o ser humano o nega ou simplifica, está automaticamente em “cumplicidade sistêmica” com ele.

P. E como o senhor vê o racismo no Brasil atual?

R. Brancos e negros estão travando aqui uma luta terrível. E os brancos nem sabem que estão dentro dessa luta. Alguns sabem e pretendem que a luta não existe. Mas só uma minoria, muito pequena, está consciente dessa luta e sabe que é uma luta. A maioria nem quer saber.

P. Há alguma peculiaridade no racismo do Brasil?

R. Não estou buscando nenhum lugar idílico, isso não existe pra mim. O que estou dizendo no meu livro Racismo & Sociedade é que temos de olhar para o racismo a partir dos modelos. O racismo aqui no Brasil corresponde a um modelo específico, e esse modelo veio da Península Ibérica. É o modelo de uma escravidão já naturalizada, onde os negros crescem dentro da escravidão, os negros se sabem escravos. Onde há um sistema clientelista, de onde há uma série de gradação de cores. Esta é uma escravidão que tem mil anos de ossificação. Nela, o subalterno dentro do sistema aceita a sua atividade, vê isso como normal. Nesse modelo, o racismo é o leite que amamenta o negro todos os dias.

P. Um racismo naturalizado?

R. Sim. Então todo mundo quer essa limpeza do ventre, da barriga. As mulheres negras buscam constantemente que seus filhos saiam da escravidão. E qual é a única saída? É que eles sejam pardos, que eles sejam mulatos. Uma situação de trânsito sexual entre o homem branco e a mulher negra. Porque aqui, quando você fala de miscigenação, fala de uma maneira geral, fala sem dizer que aquele que está miscigenando é o homem branco. Não é o homem negro que está miscigenando a raça branca, mas o homem branco que está miscigenando a raça negra. Quando chegam os espanhóis e os portugueses é o que primeiro eles fazem com as nativas e com as africanas. A mulher branca vem depois, com o sistema já estabilizado. Então, esse é um modelo muito mais difícil, porque tudo está naturalizado, tudo é normatizado. As coisas fluem, o sangue está fluindo no interior do sistema de uma maneira normal.

P. Parece que algo forte está acontecendo no Brasil nesse momento, no que se refere ao racismo, mesmo que muitos brancos não enxerguem ou não queiram enxergar. O quanto isso está relacionado à primeira geração de negros que chegou à universidade pelas cotas raciais?

R. É por isso que há tanto pânico. Eu cheguei aqui num momento em que o pânico começou a desencadear-se. O movimento negro fez um trabalho colossal neste país. E que chegou a interferir dentro dos partidos. Depois, quando vi esses negros entrando na universidade, levando com eles o candomblé, as favelas, os quilombos… A universidade ficou em estado de choque. Era um corpo estranho que tinha entrado lá, e eu me dei conta disso. Eles não viam a entrada de estudantes, eles viam a entrada de soldados estrangeiros. Viam esses estudantes como uma invasão da universidade. E eu me dei conta de que esse espaço sacrossanto, branco, tinha sido dessacralizado. Diante disso, começou uma reação tão forte, contrária, que continuou ascendendo até os nossos dias. Se complexificando, se tornando todo o tipo de oposição, com máscara política. Pela primeira vez os brancos nesse país ouviram falar que os negros eram majoritários. A população branca parece viver isso como um estupro. A raça negra é um falo e a sociedade branca é uma enorme vagina. Há uma tensão constante. Essa penetração nas universidades foi vista, simbolicamente, como algo muito, muito, muito profundo. E aí, imediatamente, a repulsa foi geral, dentro da sociedade branca. Com as cotas raciais e as demais ações afirmativas foram liberadas forças que ninguém conhecia. Percebi que havia um potencial real de mudança agindo dentro da sociedade. É nesse ponto que começo a ver, a sentir, que este país tem possibilidade de mudar esse quadro. As máscaras começaram a cair. E o Brasil é um país de máscaras, tantas máscaras…

P. É importante as máscaras caírem?

R. É importantíssimo. A sociedade americana tem essa possibilidade tão grande de discutir e de avançar nessa questão tão difícil, que é a questão racial, porque as máscaras aí são arrancadas com a maior facilidade. Já são várias gerações discutindo abertamente a questão racial. Aqui, não. Lá, quando se mata oito, nove negros numa igreja, se diz claramente que foram mortos porque são negros. Ponto final. Aqui, se queimam um índio, queimaram ele por alguma outra razão. Matam o negro e é a mesma coisa. Mas as máscaras estão caindo.

P. O mito da democracia racial é uma máscara que cai?

R. Ao quebrar o mito da democracia racial, o movimento negro quebrou a ideologia sobre a qual se sustenta esse país. Esse país tem se apresentado diante do mundo inteiro como o único país onde tudo está acontecendo bem entre brancos e negros. E os negros fora desse país acreditavam. Todo mundo falava do Brasil como um milagre, até que os negros daqui, em décadas de combate, finalmente quebraram o mito da democracia racial. Para recolocá-la aqui é impossível. Terão de inventar algo novo.

6) Os brancos e a negociação do poder

P. O que vai acontecer depois que as máscaras terminarem de cair?

R. Eu não sei o que vai vir…. Porque esses são momentos em que pode acontecer o melhor ou o pior.

P. E o que seria o melhor e o que seria o pior?

R. O melhor seria uma discussão dentro desse país, em que se discuta claramente quais são os problemas. Em que cada um diga o que tem dentro. Em que cada um diga o que tem a propor. Em que cada um diga qual a relação dele com esse país. A relação racial se sobrepõe a todas as outras considerações: de sexo, de gênero, de nacionalidade, de religião… Estamos chegando a um momento em que essas coisas estão sendo ditas. Algumas pessoas já se dão conta de que este é um país de maioria negra e isso funda um pânico existencial enorme, dentro dessa parte da população branca, na qual a mística da questão racial está enraizada, como na África do Sul. Eu vi essa mesma reação na África do Sul, quando começou a se falar em transferência de poder. A minoria branca nunca ouviu falar dela como minoria, ela nem se percebia como minoria. No Brasil dos últimos 15 anos, a consciência de que os brancos são minoria, num país que é majoritariamente negro, está crescendo. Surge então um pânico existencial, que está delineado por uma consideração racial.

P. O senhor acha que há no Brasil um Apartheid, com a diferença de que não está na Lei?

R. Aqui o Apartheid apenas não é jurídico. Mas está em todas as partes, em todos os lugares de poder e de decisão. Somente não há leis porque, dentro do modelo ibérico, o Apartheid é um Apartheid de consentimento. Os negros sabem onde estão os espaços dos brancos. Os brancos sabem onde estão os espaços negros. E até onde os negros devem ir. Todo mundo sabe qual é o seu lugar, e o lugar do branco é sempre dominante. Mas, agora, pela primeira vez na história desse país, a hora do questionamento chegou.

P. O senhor disse que o melhor que poderia acontecer seria uma discussão aberta, onde as coisas são colocadas com os nomes das coisas. E o que de pior pode acontecer?

R. O pior é o que já aconteceu na Alemanha. O racismo é fascismo. O racismo é nazismo. Só que nós estamos acostumados a pensar no nazismo como campos de extermínio. Mas o nazismo não é campo de extermínio, este é apenas um momento extremo dele. O extermínio simbólico e físico, sem os campos, está acontecendo todos os dias. E esse nazismo cotidiano, nazismo de todos os dias, é aceito. Porque a sociedade branca dominante está vendo como uma resposta à agressão dos negros, que estão chegando cada vez mais perto daquilo que eles não devem ter, que é o poder. Já existe a ideia, dentro da nação, de que tarde ou cedo os brancos vão ter que negociar aqui o poder político e econômico, como negociaram na África do Sul. Tarde ou cedo isso vai acontecer. Nos próximos 15 anos, com certeza, a maioria negra vai ter que estar refletida em todas as instâncias do poder político. Nunca o branco desse país pensou em termos de negociação racial. Com quem iria negociar? E por quê? Agora, pela primeira vez, essa ideia está entrando, simbolicamente, porque existe uma contestação negra. Às vezes é só um protesto por algo que está acontecendo na televisão, em que os negros dizem: “Não queremos isso”. E que os brancos dizem: “Que direito ele têm de dizer o que querem ou não querem? É simplesmente televisão…”. Mas os negros dizem que não querem esse tipo de lazer. Aí os brancos dizem que é fascismo dos negros. Isso demonstra que há um momento de confronto óbvio. Visual. Os estrangeiros veem isso mais facilmente do que os brasileiros. Eles chegam aqui e veem que a tensão é cada vez maior. O Brasil de hoje não é mais o Brasil de 15 anos atrás.

P. O senhor fala que não gosta do conceito de tolerância. Por quê?

R. A palavra tolerância veicula rejeição. E veicula imposição de todo um modo que é determinado por aquele que diz tolerar. Vou tolerar, mas o modo bom é o meu. Para mim, o importante é o comércio com o diferente. Essa espiritualidade, que nada tem a ver com religião, que é sentir a conexão com todos os outros que eu não conheço. Eu quero conhecer e ter uma relação com o diferente, como diferente. Quero poder formar parte do mundo dele também. Na medida em que eu possa. E querer ele também no meu mundo. Na medida em que ele também possa. É muito arrogante falar isso de tolerar. Quando alguém diz aqui no Brasil que tolera os negros, que não tem nada contra os negros, você já sabe que é um racista falando. É hora de quebrar essas máscaras. Diga então, francamente que você não gosta dos negros, que você acredita que são sujos, que são fedorentos, que são perigosos, que tem que cortá-los e castrá-los, também intelectualmente. Os negros são uma ameaça para o mundo ocidental, especialmente para o Brasil. O Brasil se elege como parte do mundo ocidental. Os brancos desse país se consideram representantes tropicais do mundo ocidental. Então, as reações deles são as reações do mundo ocidental. E o mundo ocidental se considera hoje invadido por negros e por árabes. Na Alemanha nazista, os judeus foram convertidos em negros. E cada vez que você converte um grupo branco em negro, você tem que subir o espaço do grupo branco para outro nível, por isso Hitler mudou para ariano. Agora, estão convertendo os árabes em negros, então eles têm que mudar a dimensão branca para ainda outra dimensão, supra branca. Porque os árabes são brancos nos países deles. E os brancos aqui no Brasil consideram que estão sendo invadidos pelos negros.

P. Como esse processo de “mais branco” estaria ocorrendo no Brasil?

R. Agora está havendo um problema aqui no Brasil. Na medida em que os negros que têm pele clara começam a dizer que são negros, já começa a ficar perto demais. Então, os brancos têm que mudar de categoria. É como a (cantora) Fabiana Cozza (uma das amigas que hospedou Moore em São Paulo) dizendo que é negra, e que quer ser reconhecida em sua negritude. Ao dizer isso, ela está subvertendo o sistema. E isso está acontecendo cada vez mais. Só que esse sistema foi criado exatamente para o oposto. Para que cada vez que um negro tivesse a pele mais clara, ele reforçasse o sistema da brancura nesse país. Estamos vendo agora um deslocamento da categoria branca para um nível superior de barbárie. É isso que estamos vendo nesse instante: um deslocamento da branquidão nesse país. Porque o negro está chegando perto demais. O esquema raciológico brasileiro está se quebrando e criando angústias dentro dessa sociedade branca. Essas angústias estão se expressado através de muitas coisas.

P. Qual deve ser o papel de um branco no Brasil de hoje, no que se refere ao racismo?

R. O Brasil é um lugar bem particular, no sentido das relações raciais. Particular não pelas razões que os brancos dizem, falando que as coisas acontecem de uma maneira diferente do resto do mundo. Não. Aqui, as coisas acontecem como acontecem em todos os outros lugares do mundo. A opressão do negro é brutal, é severa, é terrível. O negro tem sido confinado aqui aos piores lugares, no imaginário, no espaço físico, em todos os espaços. Mas o Brasil ocupa um lugar bem particular no sentido de que este é o lugar onde os negros são maioria. E isso quer dizer que os brancos não vão mudar de país. Os brancos da África do Sul não mudaram de país. Eles tiveram que compor. E os brancos do Brasil vão ter que compor com a maioria negra daqui. Porque é uma maioria negra que é cada vez mais maioria. E esse processo não pode mais ser revertido, porque não há mais possibilidade de imigração branca para esse país. Acabou toda a possibilidade de imigração europeia vindo para cá. Então, brancos e negros estão aqui numa competição demográfica, e os brancos já perderam. Os negros chegaram de novo a ser maioria nesse país. Como eram maioria ao final da escravidão. Depois da abolição, os brancos lidaram com essa realidade importando milhões de europeus. Davam todas as vantagens e privilégios a esses europeus, para que se assentassem aqui e, ao mesmo tempo, expulsaram os negros de todos os espaços da vida civil, esperando que eles morressem. Porque o plano era esse, era eugênico. E os brancos pobres iam mestiçando as mulheres negras, chegando a uma população de pele clara e de pele branca e de maioria branca de novo. Agora, essa maioria negra, que vai ser cada vez mais maioria, está cada vez mais consciente de sua negritude, de seus direitos, e consciente do fato que eles têm que governar esse país. Tarde ou cedo, haverá que se negociar.

P. E em que bases se dará essa negociação?

R. É uma negociação em torno de que tipo de país queremos. É uma conversa profunda. Não é simplesmente aquela conversa sobre o capitalismo. É saindo de uma conversa do capitalismo, do socialismo, que era aquela polarização que tínhamos até agora, baseada no “queremos o comunismo ou queremos o capitalismo”. Agora, não. A conversa é que tipo de país nós queremos. Agora é que essa conversa começou realmente no Brasil. Que tipo de país vai nos permitir viver de uma maneira correta, aqui, com todos os recursos naturais que temos. Acho que este é um país que reúne muitas condições para se chegar a um diálogo. E só se chega a esse diálogo através de um confronto em que as máscaras caiam e os negros digam o que querem desse país.

P. E qual seria o papel ético de um branco nesse momento?

R. Essa situação já está impactando nas consciências de brancos que estão começando a se dar conta de que esse mundo no qual eles estão vivendo não é aquele mundo no qual eles pensavam que viviam. Estão vivendo, de fato, num mundo que é um horror para a maioria da população. Então, nessas circunstâncias, vai haver forçadamente uma convergência entre dois tipos de consciências: uma consciência surgida das exigências éticas, de uma parte da população branca, que se encontra em contradição com ela própria, como indivíduo, e outra parte que não tem essa exigência ética. Ter uma visão de si mesmo é parte do ser humano. Quando certos brancos se descobrem formando parte de um bando de opressores, para estes é um grande problema. Mas, para muitos, isso não vai ter muita importância, porque os privilégios são tão grandes, que não é um problema. Eu tenho visto esse problema tornar-se cada vez maior para brancos desse país que se encontram em contradição ética consigo mesmos. Então, eu acho que essa situação vai crescer. Se eu não tivesse visto esse processo acontecer em outros lugares, eu não poderia me manifestar com a confiança que estou me manifestando agora. Eu não vou dizer que os brancos vão mudar, digo que certos brancos vão mudar. E que eles vão constituir uma reserva moral importante nesse país.

7) As duas Áfricas: a mítica e a real

P. Há essa dimensão mítica da África como origem. Mas, quando se fala em África, são várias as Áfricas. Qual foi o seu encontro – ou o seu confronto – ao andar por tantas delas?

R. Quando eu saio de Cuba, eu vou para o Egito, mas aí eu não encontro a África, eu encontro o mundo árabe. Vivo um ano no Egito, dentro do mundo árabe. Eu vou para a África real quando eu vou à Nigéria, pela primeira vez. E aí me encontro com uma África terrível. Uma África de dirigentes totalmente cínicos, corruptos, mercenários, assassinos. É um choque muito grande. Porque até então minha lógica era a de confronto com o mundo branco. E ali era o confronto com o mundo branco, ainda, mas através daquela coisa do (Frantz) Fanon: “Pele negra, máscaras brancas”. Essas classes dirigentes totalmente ocidentalizadas que estão oprimindo o povo. Resolvo esse conflito me unindo à África da resistência. Se eu não tivesse abraçado imediatamente a causa popular na África, eu teria me sentido totalmente destruído. Teria me tornado um cínico total.

P. Que papel ocupou essa África mítica na resistência dos negros ao longo da história?

R. Tivemos que inventar uma África mítica para resistir durante 400 anos. Não foi fácil atravessar 400 anos sem nenhuma referência positiva sobre você, sobre a raça negra. Tivemos que inventar uma África para servir de apoio moral e espiritual. Uma África que nos dissesse, que nos informasse constantemente que éramos seres humanos, vivendo 400 anos em um sistema que diz que você não é humano. Em que o branco é o único que é referência do que é humano, do que é belo, do que é bom, do que é justo, do que é limpo, e você… é somente sujeira. Quem resiste a isso? Então tivemos que inventar uma África que mantivemos em segredo, como as religiões. As religiões também tiveram esse papel de nos dar essas referências, de que não éramos sujeira… lixo.

P. E a África real?

R. Hoje, precisamos dizer: “Necessitamos desse mundo mítico. Mas, agora, olha para o mundo real. A África de hoje é essa. Onde os povos estão sendo trucidados por esses canalhas. Milionários, mercenários e totalmente vendidos ao exterior. E as guerras civis são por causa disso”. Então, havia que fazer as duas coisas: abraçar a África mítica para desmitificar essa África cruel. Ter forças para chegar até aqui, para então ter forças para confrontar a realidade de hoje. Hoje eu me sinto muito confortável. Eu vou para a África todo tempo, mas eu sei qual é o meu lugar. Eu não vou lá confraternizar com as elites africanas. As elites africanas são elites inimigas. Eu vou lá para fazer algo bem preciso. Sei onde está a linha de demarcação.

8) Conclusões do exílio: onde o humano é real

P. Quando lemos sua autobiografia, parece que são tantas vidas numa só. Nas últimas páginas do livro, o senhor escreve: “foi uma história quase inverossímil”. E, são tantos acontecimentos e tantas pessoas envolvidas, que podemos ter, mesmo, essa impressão. Por que os leitores devem acreditar na história que o senhor conta?

R. Não, eles não devem acreditar. Em primeiro lugar, eu não tento convencer. O livro foi escrito simplesmente porque eu fui levado a escrever esse livro, por alguém que me disse: “Você tem que contar isso que aconteceu”. E eu comecei a contar o que aconteceu. Isso aconteceu comigo. E se o governo cubano tem provas de que isso não aconteceu, que eles deem. E se outras pessoas têm provas de que isso não aconteceu, que deem as provas. Agora, que eu saiba, essa foi a experiência que eu tive. Isso foi o que aconteceu, com a minha mãe, com o meu pai, eu cresci desse modo, me revoltei desse modo, fui para os Estados Unidos e um dia uma mulher veio e mudou toda a minha vida. E foi assim, eu conto… estou contando. Eu poderia ter mudado minha história muitas vezes. O regime cubano me deu muitas possibilidades de entrar. Meu irmão foi para a União Soviética, se converteu em engenheiro, voltou pra Cuba, entrou no Partido Comunista. Todos os meus irmãos e irmãs estão dentro do sistema. Eu optei por uma vida de resistência, porque era o que eu sentia. E isso deu no que deu.

P. E quando o senhor olha para essa vida tão imensa, o que vê?

R. Eu não mudaria minha vida. Quando você está sentindo a pressão e a dor, você quer que essa pressão e essa dor cessem. Mas as oportunidades que eu tinha de fazê-las cessar não eram dignas. Então, eu me negava a tomar essas vias. Mas tive mil oportunidades de ser um dedo duro, de satisfazer a Inteligência Francesa, que estava me interrogando todo o tempo. Fui expulso de vários países, mas poderia ter me acomodado. Eu poderia ter mudado minha história muitíssimas vezes. Mas você não está fazendo uma história. Está vivendo uma vida.

P. E qual é a diferença?

R. A vida é todo dia e é uma vida de opções. Agora mesmo eu tenho opções diante de mim. Eu posso me calar aqui no Brasil. O mais prudente é que eu me cale aqui no Brasil. Porque podem me botar para fora do Brasil em 24 horas. Denuncio o racismo aqui há 15 anos e posso ser acusado de estar interferindo na vida dos brasileiros. É uma opção. Eu poderia optar por não fazer isso. Por simplesmente viver tranquilo no Brasil. Em nenhum momento a polícia veio na minha casa para me dizer o que fazer ou não fazer. Em nenhum momento o governo brasileiro interferiu na vida da minha família. Então, por que eu vou denunciar, me meter em uma situação na qual eu coloco a minha própria paz em risco? Mas minha opção é a de me manter fiel a essa vida que eu tenho até agora. Porque é a única coisa que me dá paz. Se eu faço qualquer outra coisa, eu não estou em paz.

P. O senhor se sente exilado, hoje?

R. Eu me sentirei exilado sempre. O exílio já cessou de ser para mim algo burocrático. Algumas pessoas cubanas dizem: “Ele não é exilado porque ele pode voltar para Cuba”. Eu volto para Cuba condicionalmente. Eles me dizem que eu não posso viver lá, residir lá. Mas essa é uma questão burocrática. E amanhã eles podem mudá-la também. Mas não vai mudar a maneira como eu me sinto. Eu faço parte de uma tribo de humanos que não se sente bem com nenhum desses sistemas. Que não se dá bem com esse tipo de mundo no qual estamos vivendo. Não me dou bem com esse Brasil que estou vendo aí. E amanhã saio do Brasil e vou para Trinidad e Tobago, vou para o Senegal, vou para a África do Sul, e não me dou bem com a situação desses países. Não me dou bem em Uganda, não me dou bem em nenhum desses lugares. Então eu sinto que o meu lugar é um lugar de viver com o meu tempo. E o meu tempo é o de afirmar certas coisas que deveriam ser evidentes, mas que não são evidentes. Afirmar que há possibilidades de que seja de outra maneira. Meu tempo é um tempo de dizer “não”. De resistir.

P. O senhor afirmou que o mais importante é viver de acordo com o seu tempo. O que isso significa, hoje?

R. Minha esperança se funda no possível. Eu acho que é possível o homem e a mulher chegarem a uma compreensão de que a opressão que o homem tem criado é totalmente negativa. Eu não acho que o masculinismo, o machismo e o sexismo sejam algo que não possa ser extirpado da nossa experiência humana. Eu acho que é possível que negros e brancos possam se ver de outra maneira. Eu acho que é possível parar as guerras, essas guerras sem sentido. Não estou dizendo que eu tenho uma solução, isso é diferente. Mas eu acho que é possível se sobrepor a todos os conflitos, que são conflitos religiosos, em torno das coisas que nós criamos, porque os deuses foram criados por nós, totalmente criados por nós. Não é o tempo de me filiar a uma facção ou outra facção. O meu tempo é o tempo das possibilidades.

P. O senhor disse que, na sua infância, não sabia quem era. Hoje, o senhor sabe?

R. Perfeitamente.

P. E quem é o senhor?

R. Eu sou um negro, que nasceu em Cuba, mas que superou sua “cubanidade”. Cuba não é uma referência para mim. É a referência de onde eu nasci, de onde está enterrada toda a minha infância, toda aquela coisa que me formou, mas Cuba não é o lugar que forma meu ser, minha identidade. Minha identidade atravessa fronteiras, atravessa muitas culturas, é algo muito mais elástico. Eu me sinto muito bem onde quer que eu esteja. Eu me reinvento onde eu estou morando, fundo uma família de amigos. Então, eu não vivo com essa angústia que vivem os cubanos que estão fora, de voltar para Cuba. Estou no Brasil, vivo o momento do Brasil, vivo os problemas do Brasil. E, quando eu for embora do Brasil, farei exatamente a mesma coisa. Me envolvi na luta política lá na Nigéria, no Senegal também. Em qualquer lugar que eu vou, eu me envolvo nas lutas daquele momento. Eu não quero estar envolvido numa nostalgia permanente. Os cubanos vivem com uma nostalgia de Cuba, querendo só escutar música cubana, comer comida cubana… A referência da minha vida é muito maior que Cuba, muito maior que o Brasil, muito maior que qualquer país. Não há um só país que possa concentrar a referência do que é a minha vida, do que é a minha identidade.

P. E o que referencia a sua identidade?

R. Aquilo que me faz sentir bem, como eu disse anteriormente, é estar de acordo com o meu tempo. Então, tudo aquilo que perturba aquele tempo, imediatamente suscita reações profundas em mim. É por isso que não preciso de definições. As pessoas dizem: “Mas você é de esquerda? Você é de direita?”. Constantemente estão querendo que eu me defina em termos de direita e de esquerda. Essas distinções eu conhecia antes, eu me definia assim. Mas onde é que está a linha de marcação entre esquerda e direita? Nós vemos às vezes os direitistas se comportarem como os esquerdistas, na questão racial. E os esquerdistas se comportarem como os direitistas, quando se trata da questão racial. Eu encontro esquerdistas que são homofóbicos. Encontro direitistas que são homofóbicos. Esquerdistas e direitistas encontram-se em tantos pontos. O que estou dizendo é que a coisa mais importante para mim é a linha de divisão ética, certas coisas na minha vida que eu considero invioláveis.

P. Que são?
R. Essa coisa da diferença. Eu bato nessa tecla constantemente. Porque, para mim, é o mais importante. A partir do momento em que a diferença não é respeitada, eu tenho que entrar em guerra. Por isso eu entro em guerra com a mestiçagem. Porque ela está dizendo que eu não tenho o direito de ter o fenótipo que eu tenho, de ter os cabelos crespos que eu tenho e de ser respeitado como sou. Que eu tenho que ter os cabelos diferentes, alisados, que não tenho que ter a pele negra, que meus filhos têm que ser cada vez mais brancos para serem respeitados dentro da sociedade. Eu digo não. Eu digo absolutamente não. Eu não me rendo a isso. Meus filhos têm que ser respeitados conforme eles nascem, com a pele negra, com os cabelos crespos, com os lábios grossos, com os narizes que eles têm. Eles têm que ser respeitados desse jeito. Então, essa é a linha de demarcação mais fina na minha vida. É ela que define praticamente todas as escolhas que eu faço.

P. O respeito à diferença?

R. Absolutamente. O fato de ter sido proscrito de Cuba por 34 anos me fez compreender que a nacionalidade é um jogo, é uma brincadeira. Que as fronteiras são coisas totalmente artificiais, que foram erigidas e convertidas em realidades sacrossantas. E que essas fronteiras não eram nada, porque cada fronteira em que eu ia me paravam, eu era suspeito. Eu ingressei numa tribo de suspeitos. Me dei conta de que toda essa força emocional de ser brasileiro, ser americano, ser cubano era um mito que os seres humanos tinham erigido como maneira de se mobilizar contra outros seres humanos. Eu viajava com um documento das Nações Unidas, passava muito tempo em cada fronteira, esperando que pudessem reconhecer que era autêntico. Isso me dava muito tempo para refletir sobre a condição humana. Ao longo dos anos, aquelas categorias de definição de separação foram caindo, uma por uma. Religião, nacionalidade, casta, classe social… À medida em que foram caindo, eu tive que buscar qual era o substituto real. Não o substituto ideológico, mas onde se encontrava a verdade do ser humano, seja qual for. Onde um ser humano é real? Cheguei a esse ponto no qual estou, no qual eu me identifico e me sinto bem. Acho que eu me encontrei. Eu gosto de quem eu sou. E acho que me encontrei na vida, me encontrei no universo, no sentido mais amplo. Me encontrei naquele espaço no qual eu me dou bem, que é esse espaço em que eu posso olhar para todas as diferenças, todas, e não me sentir ameaçado por elas. Eu não me sinto ameaçado por nenhuma diferença.

P. E onde um ser humano é real?

R. Pertencemos a uma espécie e não há consciência dessa espécie. Temos a consciência de definições ideológicas, mas a consciência da espécie não existe. Ser humano implica uma certa solidariedade e, para mim, a solidariedade é um dever. De mirar o outro que está sendo esmagado, que está sendo excluído, que está sendo discriminado, e se colocar ao lado dele. Em nome dessa espécie. Somos todos partes dessa espécie, que está ameaçada, inclusive, por causa de tudo o que faz. Quando ouço o Obama falar que o problema principal que nós temos não é o terrorismo, mas a mudança climática, aí ele toca algo em mim que eu alcancei a duras penas, depois de 34 anos de rejeições em todos os sentidos. Temos que ser solidários entre nós, temos que chegar a um acordo. Para defender a existência aqui, sobre a Terra. Se vamos continuar existindo é finalmente a coisa mais importante. A coisa mais importante de todas é essa: sentir solidariedade por gente que você nunca vai conhecer, por pessoas que ainda vão vir e você não vai encontrar. E eles têm que encontrar uma Terra habitável.

 

(Publicado no El País em 31 de agosto de 2015)

Um negro em eterno exílio

A longa travessia de Carlos Moore, o ativista e intelectual que denunciou o racismo em Cuba e passou a vida perseguido pelos dois lados da Guerra Fria, até chegar ao Brasil e encontrar um país mergulhado numa crescente tensão racial

Foto: Bunche Center/UCLA

Foto: Bunche Center/UCLA

Aos 22 anos, Carlos Moore já tinha vivido mais do que a maioria das pessoas numa existência inteira. Já tinha conhecido a fome e a violência na pequena cidade cubana onde nasceu, já tinha desejado não ser preto e se esforçado por alisar o cabelo, clarear a pele com produtos arriscados e desachatar o nariz com prendedores, já tinha emigrado para os Estados Unidos e descoberto a luta pelos direitos civis, já tinha se apaixonado por Patrice Lumumba, o célebre líder congolês, e planejado um atentado ao consulado belga em Nova York para vingar-se de seu assassinato, já tinha se encantado com a revolução depois de um encontro com Fidel Castro, já tinha se tornado comunista e voltado a Cuba para colaborar com o processo revolucionário, já tinha descoberto que o regime cubano era tão racista quanto aquele que tinha derrubado, já tinha sido encarcerado uma vez por denunciar que o racismo persistia na revolução, já tinha sido condenado a quatro meses num campo de trabalhos forçados uma segunda vez pelo mesmo motivo, depois de abordar o próprio Fidel Castro em público, já tinha feito uma confissão, para não ser morto, de que havia se equivocado e de que não havia racismo em Cuba, já tinha se refugiado na embaixada da Guiné quando percebeu que seria executado de qualquer modo, já tinha fugido para o Egito e depois para a França, sem nenhum documento, já tinha sido rejeitado por um Jean-Paul Sartre convencido de que ele era “agente do imperialismo”, já tinha sido acolhido por um dos ideólogos da negritude, o grande poeta surrealista martinicano Aimé Césaire, já tinha virado segurança do ativista negro Malcolm X, quando este esteve em Paris, e já tinha sofrido de todas as formas pelo seu assassinato. Isso tudo aconteceu até os seus 22 anos. Depois, aconteceu muito mais.

A primeira foto (1957)

A primeira foto, em 1957

Leia mais na minha coluna no El País:

“Todos os negros nascem num grande exílio forçado”

“O racismo já determinou que brancas são para casar, mulatas para fornicar e pretas para trabalhar”

“Para os que se dizem de direita ou de esquerda, não importa a verdade. Se você tem um adversário, você o elimina da forma mais eficaz: com calúnias”

“No Brasil, o racismo é o leite que amamenta o negro todos os dias”

“A penetração dos negros nas universidades, pelas cotas raciais, foi vivida pela sociedade branca como um estupro”

“Ao quebrar o mito da democracia racial, o movimento negro quebrou a ideologia sobre a qual se sustenta esse país”

Com Fidel Castro, em 1960

Com Fidel Castro, em 1960

“A descoberta de que os negros são maioria no Brasil gerou um pânico existencial na parcela branca da sociedade”

“Nos próximos 15 anos, a maioria negra vai ter que estar refletida em todas as instâncias de poder”

“Os brancos vão ter que negociar o poder no Brasil, como aconteceu na África do Sul. Não há mais como ‘branquear’ o país”

“Para uma parcela dos brancos, descobrir-se opressor é um grande problema. Esses brancos éticos serão uma reserva moral importante”

“Inventamos uma África mítica para resistir por 400 anos num sistema que dizia que não éramos humanos”

Com o poeta surrealista martinicano Aimé Césaire e o escritor americano Alex Haley   em 1987

Com o poeta surrealista martinicano Aimé Césaire e o escritor americano Alex Haley, em 1987

“Eu não estava fazendo uma história. Estava vivendo uma vida”

“Não me defino por nacionalidades. O meu lugar é o de viver de acordo com o meu
tempo”

“Me encontrei: posso olhar todas as diferenças e não me sentir ameaçado por nenhuma delas”

Com Malcom X, em 1974

Com Malcolm X, em 1974

 

LIVRO

“Pichón – minha vida e a revolução cubana” (Editora Nandyala) 

Lançada em inglês, em 2008, a autobiografia de Moore foi editada no Brasil graças a um financiamento coletivo. O vídeo abaixo foi feito para divulgar a campanha de financiamento.

Leia aqui a entrevista completa com Moore.

 

 

No Brasil, o melhor branco só consegue ser um bom sinhozinho

O cancelamento da peça ‘A Mulher do Trem’ por racismo mostra que a tensão racial no Brasil chegou a um ponto inédito, cujos rumos passaram a ser ditados pela nova geração de negros que alcançaram a universidade

 

Algo se rasgou em 12 de maio de 2015. Naquela noite, em vez de uma peça de teatro, A Mulher do Trem, oito atores sociais subiram ao palco do auditório do Itaú Cultural, em São Paulo, para discutir a representação do negro na arte e na sociedade. A decisão foi tomada depois que Stephanie Ribeiro, blogueira negra e estudante de arquitetura, protestou contra o uso de “blackface” na peça e o considerou racismo, iniciando uma série de manifestações nas redes sociais da internet. “O que me impressiona é que o debate sobre racismo e blackface é antigo, pessoas do teatro se dizem tão cultas e não pararam para pensar sobre isso? Reproduzir isso em 2015 é tão nojento quanto ignorante. Mas, né, esqueci que, quando o assunto é negro, não existe esforço nenhum em haver respeito”, escreveu no Facebook. E acrescentou: “Só lamento, não passarão”.

Não passaram. Diante de uma acusação tão perigosa para a imagem pública de um e de outro, a companhia de teatro Os Fofos Encenam e o Itaú Cultural decidiram suspender a peça e, no mesmo local e horário, acolher o debate. O espetáculo que se desenrolou no palco tem a potência de um corte.

O que aconteceu ali?

Temos vivido de espasmo em espasmo, como já escrevi aqui. Os dias têm sido tão acelerados que os anos já não começam nem terminam, mas se emendam. Enormidades se sucedem às vezes no espaço de minutos entre uma e outra. Torna-se cada vez mais difícil perceber o que é (ou será) histórico, no sentido daquilo que faz uma marca no tempo. Minha interpretação é que aquele debate, aquelas três horas numa noite da Avenida Paulista, pode virar uma citação no futuro. Pelo menos um sinalizador de um momento muito particular da sociedade brasileira, em que a tensão racial não pôde mais ser contida no Brasil e atravessou uma fronteira inédita. Como interpretação também é desejo, faço aqui a minha minúscula parte para que o debate tenha o lugar que lhe é devido. Como o historiador Nicolau Sevcenko afirmou uma vez, num outro contexto, há coisas que não devemos nos perguntar o que farão por nós, elas já fizeram. Acredito que este seja o caso aqui.

A atriz Roberta Estrela D’Alva, uma das debatedoras convidadas, iniciou sua apresentação falando sobre a percepção, ao entrar em contato com os protestos na internet, de que algo acontecia, algo que não teria acontecido mais de dez anos atrás, quando a peça foi montada pelo grupo Os Fofos Encenam. “Tem alguma coisa diferente nisso, porque tem manifestações sempre, mas que ganham essa projeção, e que foram ouvidas nesse sentido, de alguém que falou ‘não’ pra uma coisa e tomou essa dimensão que nós estamos vendo aqui agora… Eu acho que fazia tempo que a gente tava esperando, aguardando ou pedindo por isso. E não acho realmente que a peça é o foco. Eu acho que o que acontece na peça é sintoma de uma doença culturalmente transmissível, que é o racismo. E de uma relação muito espinhosa, que são os 400 anos de escravatura no Brasil”.

Só agora, depois das manifestações de 2013 e da reação virulenta de setores da sociedade à política das cotas raciais nas universidades e em outros espaços historicamente ocupados por brancos, parece ter se tornado possível um “não” que finalmente foi ouvido na Avenida Paulista. O ponto é que o racismo no Brasil é o debate sempre adiado e, desta vez, ele aconteceu, como muito bem colocou o mediador do evento, Eugênio Lima, DJ e ator: “A gente tem uma tarefa muito interessante nesse momento, que é conseguir dar forma a um debate que nunca se consegue dar forma por completo na história da sociedade brasileira. Toda vez que vai se tocar nesse assunto, se fala: não, não é exatamente o tempo bom. Não, vamos fazer um pouquinho mais pra frente. Não, agora não vai dar. Não, a gente tá muito próximo da escravidão. Não, a gente tá muito próximo dos anos 30, a gente precisa formar (primeiro) a nação. Não, a gente tá muito próximo do projeto da ditadura, a gente tá muito próximo da redemocratização, a gente tá muito próximo dos radicalismos. Então, o nosso desafio é proporcionar um debate que seja de fato um debate”.

Nada do que aconteceu naquele palco é simples. Ou fácil. É racismo? É censura? Estas eram as duas questões espinhosas que pairavam sobre o auditório enquanto as pessoas iam ocupando as cadeiras. Eram, talvez, mais um exemplo das falsas polarizações que têm assinalado o Brasil atual. Por seu potencial explosivo, muitos apostavam e até se preparavam para “um barraco” —e não um debate. Tanto que o mediador foi muito habilidoso ao reposicionar essas questões logo na abertura. Eugênio Lima colocou a necessidade de não escolher o caminho mais fácil, aquele que também poderia ser o caminho da oportunidade perdida, caso o debate se polarizasse entre censura, como o argumento dos brancos, e racismo, como o argumento dos negros: “A gente deve procurar não criar uma invisibilização da voz legítima do outro. Então, quando você chega num determinado momento e fala: é censura, ponto. É falta de liberdade de expressão, ponto. É racismo, ponto… Aí não tem como o outro conseguir dialogar. E a gente precisa dialogar. A gente precisa fazer um exercício de escuta”.

Eugênio Lima também apresentou-se de uma forma bastante interessante, deixando explícito o lugar de onde falava: “Eu não sou um mediador no sentido de que eu vou tentar atingir a média. Eu não estou equidistante entre as duas posições. Eu tenho uma história, uma história política, artística, que fala pelo meu posicionamento”.

Pego emprestada a explicação para este artigo —e para qualquer artigo, acredito eu. Não estou (ou sou) equidistante. Escrevo a partir da minha história e de como me descobri branca, e me redescubro a cada dia, nesse Brasil em que é “natural” pretos, pobres e periféricos morrerem. A própria escolha dos trechos que escolhi transcrever e reproduzir aqui, porque acho que ler é diferente de ouvir —e às vezes se escuta melhor lendo— fala de mim. O debate na íntegra pode – e deve – ser assistido aqui. O meu é um recorte próprio, com grifos próprios, no qual posso inclusive inverter a ordem e priorizar falas da plateia em detrimento da fala dos convidados. Até porque, de certo modo, não houve plateia. Os limites do palco foram ultrapassados e as manifestações do público foram tão ricas quanto a dos debatedores convidados. Apenas no final vou dizer o que o debate me provocou, as reflexões que me trouxe, para não atrapalhar o percurso de nenhum leitor atento, disposto a de fato escutar e, talvez, fazer o mais difícil: mover-se.

Um pequeno aviso, antes que as luzes do palco se acendam. Não se trata aqui de um jogo de “a favor” ou “contra”. Acho que vivemos numa época em que isso foi – ou deve ser – superado. Não são dois lados, são vários. É muito mais complicado. E o momento não está para simplificações. Precisamos avançar para o confronto real, complexo, que abarque as contradições de cada um. São contradições dialogando com contradições. A coerência de cada ator emerge da capacidade de acolher esse desafio.

Por fim, antes de pedir para desligar os celulares, devo dizer que várias pessoas me alertaram para não escrever sobre esse debate. Conto isso apenas para dar uma informação a mais sobre o quanto o protesto, a suspensão da peça e por fim o evento moveram placas tectônicas. Com variações, o aviso era: “O tema é espinhoso demais, os ânimos estão acirrados, você vai se queimar com todos os lados. Melhor ficar fora dessa”. Concluí que o risco de me “queimar” faz parte do privilégio e da responsabilidade de ter esse espaço.

Um pequeno contexto, antes que o espetáculo se inicie.

O evento ocorreu na véspera da comemoração da abolição da escravatura no Brasil, a lei Áurea assinada pela Princesa Isabel em 13 de maio de 1888. Uma abolição jamais completada, 127 anos depois. Neste momento, um jovem negro no Brasil tem um risco 2,5 vezes maior do que um jovem branco de morrer assassinado. De 2003 a 2012, a sociedade brasileira testemunhou – sem escândalo – o assassinato por armas de fogo de 320 mil negros. Imagine, para ter noção do significado, uma cidade de porte médio povoada por cadáveres com furos de bala – e que todos esses corpos têm a mesma cor. E imagine que, neste mesmo país, isso é tão naturalizado – e naturalizar é tornar natural o que não é – que apenas os mesmos se espantam. Esta é a trama que se desenrola nas periferias de São Paulo, nas delegacias e nas prisões, enquanto na Avenida Paulista, no auditório do braço cultural de um dos dois maiores bancos privados do país, o foco e as luzes estão sobre oito pessoas, brancas e negras, que falam a partir de lugares e de posições diversas.

O drama é maior porque os episódios de racismo no Brasil são abundantes e atravessam o cotidiano de um e de todos, de forma explícita ou inconsciente. Mas justamente Os Fofos Encenam, a companhia teatral que montou A Mulher do Trem em 2003, peça que lhe rendeu o prêmio Shell de melhor figurino, além de outras oito premiações, nunca teve qualquer identificação com o racismo. A peça é descrita como “comédia de circo” e a tradição circense no Brasil foi invisível por décadas, até ser resgatada e reconhecida também pela academia. Ainda hoje essa vertente teatral é marginalizada e enfrenta problemas para conseguir recursos. Assim, se sofrer uma acusação de racismo é difícil para a maioria, esse lugar é especialmente penoso para “Os Fofos”, como se verá mais adiante.

Se para o Itaú Cultural era crucial que o debate se realizasse em seu território, para alguns convidados e para parte do público soou arriscado aceitar subir ao palco ou ocupar a plateia do instituto. O Itaú Cultural tem uma atuação reconhecida por dar visibilidade a grupos e questões que sempre estiveram à margem, colaborando com a democratização da cultura, mas também é um fato que os bancos, no geral, têm tido sua imagem cada vez mais associada à desigualdade brasileira. Tanto é que, nos protestos, são os primeiros a serem apedrejados ou terem suas portas derrubadas ou os vidros quebrados por Black Blocs e outros grupos. A última eleição e a recessão em curso tornou essa relação ainda mais sensível. Assim, para muitos, foi difícil fazer justamente esse debate no espaço de um “representante do sistema financeiro”. Todas essas tensões estavam presentes e apareceram nas três horas de duração do evento.

Com tanto em jogo, o debate de fato aconteceu. Havia uma chance considerável de que virasse um bate-boca do tipo rede social, onde os ódios mútuos e as posições fechadas impedem a escuta e inviabilizam o diálogo e qualquer movimento de fato. Nos dias seguintes isso até aconteceu em alguns espaços da internet que repercutiram o evento, num triste rebaixamento. Mas não ali. E começo o debate pela bela aula dada por Mario Bolognesi, professor universitário e pesquisador do circo brasileiro, mostrando que a peça não usa blackface.

— Vou tentar falar um pouco do teatro praticado debaixo da lona, que tem neste país uma longuíssima história, que foi também escondida e não revelada. Só ultimamente, nos últimos 30 anos, é que pesquisadores têm se debruçado para desvendar a história deste teatro riquíssimo. (…) O circo brasileiro, na sua versão teatral, desde o início, acoplou a causa dos abolicionistas. (…) Também acolheu muitos escravos fugitivos, que foram encontrar no circo e no espetáculo uma possibilidade de realização. O circo brasileiro não sabe o que é esse negócio de blackface. Não sabe. Ele nunca trabalhou com esse referencial, nascido em meados do século 19 nos Estados Unidos. O circo brasileiro tem a sua vertente, a sua matriz europeia, que vem de uma tradição da comicidade popular que trabalha com personagens-tipos, o que é diferente de estereótipos. Personagens-tipos são condensações essenciais de características psíquicas, fundamentalmente psíquicas, mas também sociais. (…) E no circo brasileiro estes personagens-tipos se carregam como máscaras. (…) Essa máscara pode ser tanto algo que se acopla ao rosto como pode ser uma maquiagem. (….) E chega a nós por contrastes. Nós temos uma linhagem dos chamados “enfarinhados”. E temos uma outra linhagem de personagens que são os negros pintados de negro. Qual é o sentido disso para o teatro? O sentido é criar uma polaridade, inclusive visual, ou preferencialmente visual, porque, não nos esqueçamos, se praticava teatro ao ar livre pra muita gente. Portanto, o critério de visibilidade deve estar muito bem exposto, e as cores vermelha, preta e branca são as preferenciais deste universo, porque são visíveis à longa distância. No circo, essa polaridade (branca e negra) veio para realçar, trazer o cômico.

Fernando Neves, ator e diretor de Os Fofos Encenam, trouxe uma fala testemunhal nessa direção. Comédia francesa do século 19, A Mulher do Trem teria sido montada pela primeira vez no Brasil, em 1920, no Circo Colombo, mantido pelo seu avô:

— Eu demorei muito tempo pra entender o que era, o que minha família, como outras famílias de artistas, tinham feito aqui nesse país em relação à arte, ou seja, Teatro de Revista, o Circo-Teatro e o Teatro de Comédia. Eu venho de um ventre negro que já teve uma questão forte de entrar numa família de portugueses que chegaram aqui em 1890. Vindos com um circo. (…) Eu proibia a minha mãe, quando fosse alguém em casa, de falar que ela tinha sido vedete. (…) Foi aos 53 anos, em 2003, que eu falei: não, eu preciso falar sobre isso. Foi uma coisa impressionante essa questão de A Mulher do Trem, porque era a peça que levantava a praça, que meu tio escondeu de mim, que também foi duro arrumar material pra fazer pesquisa. E daí a gente fez, e quando a gente tentou dinheiro a gente não conseguiu nada. Então foi tudo na dificuldade eterna. (…) Eu comecei a entender o que era, pro ator brasileiro, a questão da composição e das máscaras. E que é uma questão muito difícil. (…) Porque envolve tipo psicológico, envolve temperamento. Então, é uma questão que infelizmente deveria ser matéria nas escolas. Pra, quando chegasse nessa discussão, eu não tivesse, ou ele não tivesse que falar: não tem nada com o blackface.

Mario Bolognesi é um pesquisador sério e levou ao debate, com toda a honestidade, a complexidade de quem estuda o tema em profundidade. Fernando Neves trouxe a dor de ter dado duro para encenar algo da tradição circense que estava oculto, algo que restava envergonhado tanto nas margens da sociedade como nas margens de si mesmo. Do ponto de vista estritamente conceitual, a peça da discórdia não usa blackface. O sentido é outro, neste ponto de vista. E é importante que isso seja dito e seja entendido. Mas, avançando um pouco mais, é obrigatório fazer a pergunta: quem dá os sentidos? E o que torna o blackface de fato blackface, o que só se completa ao ser assistido (ou, neste caso, não assistido)? Colocado de outro modo: quem diz o que é blackface? Quem o faz ou quem o reconhece?

Aqui, destaco um trecho da fala de Stephanie Ribeiro, a blogueira negra que iniciou o protesto com um post no Facebook. Sua fala interrompe conclusões fáceis. Ela dá conta de uma pergunta subjacente: deveriam, portanto, aqueles que se sentem violados, entender que não é este o sentido, que a rigor isto não é blackface, e seguir em frente?

— A gente começa desconstruindo a ideia de a pele natural ser a branca. Porque eu sou negra, eu sou natural, eu sou normal. Eu não sou exótica. Eu passo a minha vida inteira escutando que eu sou exótica, que eu sou diferente, que o meu cabelo é diferente. Essa é a minha vivência. É isso o que eu levo quando eu vejo aquela foto e vejo que aquela é a representação da pessoa branca para comigo, para com a minha avó, para com a minha bisavó, que eram negras, que foram escravizadas, que foram estupradas, que foram marginalizadas. Essa é a minha história e essa é a história que eu levo sempre e vou levar pra toda a minha vida porque não tem como eu ser negra um dia e não ser no outro. E aí entra a questão da peça e de toda manifestação feita pelo Facebook de várias pessoas negras, e da forma como isso foi recebido por algumas pessoas, de um jeito até racista, de achar que o negro não entende de arte, o negro não entende de cultura, o negro não sabe isso, o negro não sabe aquilo. Sabe quantas vezes na minha vida eu não vejo uma pessoa perguntando: “Ah, mas você faz arquitetura?”. E por quê? Eu não posso fazer arquitetura? Tem curso pra branco e tem curso pra negro? Ah, parece viagem, mas não! É a nossa capacidade, sempre sendo ignorada pela elite cultural paulista na arte. (…) Qual a visão de um homem branco sobre a minha vivência? Sabe? A gente já parou pra pensar isso? Eu não sei o que é ser branco, eu nunca vou saber. Eu sei o que é ser negro. E pautado no que eu sei, é difícil. E eu ainda sou uma mulher negra privilegiada, sabe? Eu tenho sorte de estar numa universidade. Eu sou uma mulher negra ainda de pele clara. Imagina as outras mulheres negras que não podem estar aqui! Que estão limpando o chão, que estão lá, sei lá, cuidando de vários filhos. E isso me ofende porque, quando a gente coloca a imagem do branco para com nós, é uma imagem tão ofensiva, tão estereotipada, que não tem essa de ser máscara, de ser tipo. É a minha imagem toda vez que eu vejo na TV, toda vez que eu vou numa peça. É sempre a mesma coisa. É ou a mulher negra para sexo, ou a mulher negra Globeleza, ou a mulher negra é empregada. Ah, mas por que a mulher negra é empregada? Porque a gente vive num país que, pós-abolição, a mão de obra negra era abundante. Então o que que a gente faz com essa mão de obra abundante? Vai dar chances? Vai dar estudo? Não! Vamos colocar eles pra limpar, lavar e passar. É aí que entra o estereótipo. Não é só pintar a cara de preto. O estereótipo que a peça reforçava é esse estereótipo da mulher negra em vários sentidos: no cabelo, na forma de se portar. Porque estava escrito no próprio site dos Fofos, quando eu fui ler, que ela era intrometida. Então, o problema não é essa peça, mas o problema é a visão das pessoas brancas sobre nós. Essa visão a gente não vai aceitar mais, porque hoje a gente tem voz, hoje a gente pode falar. Que seja no Facebook, que seja com pichação, que seja da forma que for. Eu não aceito.Eu não vou me calar.

Mas, sendo ou não blackface, a arte não é o território da liberdade? A peça em questão não teve um papel crucial ao levar esse debate até esse ponto e, assim, realizar um corte na sociedade? O corte se deu pelo fato de a peça não ser encenada. Mas não seria mais correto que ela fosse encenada e o debate ocorresse logo depois, com o potencial de ser ainda mais rico? A questão então torna-se não mais o “racismo”, mas a “censura”?

Aimar Labaki, dramaturgo, diretor e ensaísta, apresentou um ponto de vista interessante sobre isso. E trouxe ao debate algo fundamental: a necessidade do confronto como parte do processo de construção da democracia.

— A questão do negro no Brasil é igual a duas outras questões pra mim: primeiro, a questão dos desaparecidos e dos torturadores, isto é, a nossa verdade histórica que ainda está, de alguma forma, enterrada, e a ideia de que uma justiça possa vir a realmente servir pra todo mundo. É igual à questão da liberdade sexual, isto é, que a questão do gênero, a questão das opções sexuais sejam normalizadas, pelo menos do ponto de vista legal, e a vida vai fazer com que o óbvio se estabeleça, que cada um viva como quer. Por que estas três questões são importantes? Porque são as três questões que nos impedem de, de verdade, nos sentirmos parte de uma nação e de nos sentirmos parte de um Estado que nos representa em alguma medida. E eu não estou falando só da questão da representação política, que é uma crise pela qual passa o mundo inteiro e que não é uma crise só brasileira. Aqui foi piorado pelo fato de a ditadura ter acabado com uma ou duas gerações de pessoas que poderiam ter o conhecimento de como se mover publicamente e fez com que a nossa educação, nesse sentido, fosse atrasada tanto. Faz 30 anos que acabou a ditadura, mas o (José) Sarney só se aposentou no ano passado e ainda está indicando gente. Ainda tem militar que não obedece ao chefe do comando que é o presidente da República, quando o presidente da República manda entregar documentos que são do Estado, não são do Exército. Então, nós estamos há 30 anos construindo pela primeira vez uma democracia formal, mas nós não temos um espírito democrático, nós não temos um espírito de República. Nós ainda estamos tentando construir isso, e construir um aprendizado de como discutir em público. Porque democracia não é paz. Democracia é luta cotidiana, é debate cotidiano entre os diferentes. E nós temos medo do debate, nós temos medo do confronto. E é preciso aprender a se confrontar. Nesse sentido, essas três questões – a questão do negro, a questão dos torturados e da punição aos torturadores, e a questão da liberdade sexual – é que nos impedem, como diz o poeta, de conseguirmos transformar essa vergonha numa nação. Isso posto, eu acho que pra todas as três questões vale a preocupação permanente de compreender que essa democracia está em construção. E, nesse sentido, não me parece o caminho mais adequado você pedir ou você lutar pela supressão de qualquer representação que te incomode (…) Nesse caso, a representação também é uma forma de manutenção de uma visão de mundo que perpetua o racismo. E eu concordo com isso. Eu acho que essa visão tem que ser apagada, mas ela não pode ser apagada pela força, ela não pode ser apagada pelo silêncio.

Stephanie Ribeiro dá uma resposta:

— Eu queria começar falando que talvez eu seja muito radical, porque, na minha concepção de mundo, pessoas brancas não dizem como pessoas negras devem lutar. Então, se eu quero fazer um boicote, eu vou fazer. Se a gente quer se unir contra uma peça, a gente vai se unir. Porque é isso o que a gente tá debatendo aqui. São anos e anos de pessoas negras não tendo voz. São anos e anos de pessoas negras sendo silenciadas, invisibilizadas. São anos e anos que a representatividade não vem. A representatividade, num país onde 54% da população é negra, não deveria nem ser discutida. Quando a gente se manifesta, a gente não tá censurando, a gente só tá pautando o que ninguém tinha pautado até então porque não tem a nossa vivência. (…) Tem que ter um esforço das pessoas pra entender o que é ser negro no país. Você nunca vai saber o que é viver na minha pele, mas pelo menos pode não reforçar ideias como essa de… “natural é a pele branca”, entendeu? Isso é desconstrução, isso é leitura de gente negra. Gente negra fala, gente negra escreve, e não é de hoje, entendeu? (…) Quando é que eu vou ter o privilégio de não saber o que eu sou? Agora, vocês têm o privilégio de não saber o que eu sou, me marginalizar, me oprimir, e ainda me chamar de censuradora. É ótimo esse privilégio! Essa ação foi muito importante, porque ela foi feita no Facebook, com várias pessoas, principalmente militantes jovens. E é essa força que vem vindo que não vai se calar, gente. Eu acho que é importante as pessoas se abrirem pra escutar essas vozes. Mas essa abertura tem que vir com o diálogo, principalmente, de que pessoas brancas não pautam a luta dos negros. Ninguém vai dizer como a gente deve agir, porque ninguém sabe o que é ser a gente e ninguém sabe tudo o que a gente já passou.

Ao final, Aimar Labaki faz uma espécie de tréplica:

— Eu realmente fiquei emocionado com o que a Stephanie falou, no sentido de que eu nunca vou saber o que é ser negro. Eu sou branco. E, apesar de ter nascido na extrema pobreza – não parece, mas é verdade –, eu tive uma série de sortes que, se eu fosse negro, eu não teria. Então, o meu ponto de vista é de classe média, branco, olhando para a minha realidade. E, desculpa, eu sou interlocutor também. Vocês vão ter que falar comigo também. Eu tenho que falar com vocês, vocês têm que falar comigo. Não acho que a gente seja tão diferente quanto parece. Do meu ponto de vista, a questão do racismo eu vejo de uma forma intelectual, eu não vejo de uma forma emocional. (…) Por isso é que eu entendo e concordo quando você diz: “Não importa se é blackface ou não, é racismo”. Da mesma forma, eu digo: não me importa se é racismo ou não, é censura. (…) Se você tira uma peça de cartaz, seja lá qual for, porque uma parte da população, por mais que seja a maior parte da população, não quer que ela aconteça, nós abrimos um precedente num país que é autoritário, num país onde não há tradição de liberdade de expressão. Você abre a Caixa de Pandora. Em seguida você vai ter os reacionários, você vai ter os militares, você vai ter o diabo a quatro querendo que as coisas não sejam apresentadas porque eles acham que não estão representados nela. Isso não significa que se deva calar a boca de ninguém, muito menos do Movimento Negro.

Um homem na plateia fará, muito mais tarde, um recorte aqui:

— Sou preto, pobre, pederasta e professor. Eu sou, nesta ordem, esses quatro “Ps”. E entendi que o preto vem antes de tudo isso no Brasil, e não só no Brasil. Acho que essa dimensão da cor, sempre que ela vem à tona, a gente recua. E esse recuo já não é mais possível. Eu acho que o que tá acontecendo aqui hoje é sinal de uma mudança estrutural no país que a gente não pode negligenciar e que diz respeito à sociedade, mas também ao teatro que nós fazemos, ao teatro de grupo. Isso é sinal de que alguma coisa muito complexa está acontecendo neste país. (…) Não é uma questão de representação. A cor não se representa. É isto que, de certo modo, o blackface denuncia. Porque o negro é uma outra coisa, além da sua cor. São relações que estão em jogo e que talvez o teatro tenha tido dificuldade de elaborar. Tá na hora de a gente se perguntar o que é que nós estamos conseguindo elaborar neste momento em que de fato uma mudança está acontecendo. Ela não aconteceu. Ela está acontecendo. E ela é perigosa. Ela é perigosa porque o outro existe. E eu também me defino pelo outro. E eu não posso, na minha lógica, reproduzir a lógica da supressão. Eu não estou com isso dizendo que nós vamos ouvir os brancos e eles vão nos pautar. Eu só tô querendo dizer que talvez a gente tenha, como negro, de ser capaz de elaborar uma imagem do branco. E nesse momento é que a sociedade muda.

Fernando Neves, de Os Fofos Encenam, faz um desabafo. E uma conclusão.

— A gente fez apresentações, em 2003, e a peça foi pro baú. Quando ela retoma, a gente leva um susto. O Eugênio fala assim: “Fernando, pensa o que é isso. É uma coisificação de uma ideia que traz muito sofrimento pra muita gente só de olhar. Não precisa ver a peça”. Eu falei: é um totem. É um totem. Então tá errado, a máscara de circo não foi feita pra isso. A minha família, todo o trabalho, tudo, quem fazia essa máscara era a minha mãe. Ela não foi feita pra isso. Ela foi feita pra divertir. No circo, drama é pra chorar e comédia é pra rir. Ela não foi feita pra ridicularizar ninguém. Tanto é que, se vocês olham os tipos de A Mulher do Trem, a mulher que faz a dona da casa, ela tem o nariz torto, a boca torta. Não é assim, que o negro tá pintado e todo mundo tá com cara e pele boa. Não é. Tá todo mundo ridicularizado. Porque era isso que o circo fazia. Então, quando o Eugênio me explicou o que era isso, eu falei: então essa máscara tem que sair de cena. Ela não pode ficar, ela não foi feita pra isso. Como várias vezes, durante a História, várias máscaras e vários tipos tiveram que sair de cena. Eles se ressignificam e voltam. O teatro é vivo. (…) Para tudo! (…) Essa máscara tá fora de cena. Ela tem que sair de cena. Porque ela não foi criada pra causar dor em ninguém. Porque é tudo o que a gente não quer na vida. E nossa arte, tudo o que a gente tá fazendo, não se baseia nisso. Eu não quero, e nenhum dos Fofos quer. (…) Então, o que eu queria dizer é que apoio essas falas que ouvi até agora, tão sábias. Eu apoio plenamente. E… estas máscaras estão fora. (…) A gente tem que trabalhar na alegoria que existe na arte popular pra trazer reflexão. Antes, ela era forma. Agora ela tem que ter um engajamento. Ela é posta pra gente discutir. Eu quero agradecer muito e pedir desculpa a todos que eu tenha ofendido (…) Foi uma coisa que me machucou demais. E me trucida, porque isso é tudo o que eu não queria na minha vida. Então, essa máscara tá fora de cena, como tá fora qualquer tipo de preconceito, qualquer tipo de racismo e qualquer tipo de violência.

Fernando Neves chora.

O espetáculo tornou-se o debate (ou o debate tornou-se um espetáculo?), que abarcou não apenas o palco, mas a plateia, e as reações nas redes sociais provocadas por ele. Parte do público apropriou-se de A Mulher do Trem e subverteu-a. Sem ser encenada, a peça teatral provocou uma outra cena, que também a contém. Arte e política como categorias indissociáveis, imunes a delírios de pureza e de significados em si e para si. Profanadas, sempre, pelo mundo e pelas circunstâncias. Teatro.

Aqui, talvez, seja o momento de eu dizer como me senti neste debate, de forma totalmente honesta e até difícil pra mim. Como Aimar Labaki, a ideia de um espetáculo não ser apresentado, ser censurado, seja por quais motivos forem, ainda que se diga que não é censura, mas decisão do grupo, o que seria autocensura, me arrepia. A ditadura, a censura e a repressão são bem vivas na minha memória, e eu temo exceções, porque elas botam o pé na porta e abrem espaço para que o pior vire regra. Afinal, quem vai dizer quais são os bons motivos para suspender um espetáculo? Quem será mais igual do que os outros, parodiando A Revolução dos Bichos, de George Orwell? Um boicote da peça teria me parecido mais democrático, mas não a suspensão da peça. Protestos na porta do Itaú Cultural, o que possivelmente aconteceria se ela fosse encenada – perspectiva, aliás, que deve ter assustado os envolvidos –, causariam comoção e discussão. E a peça lá, no palco, provocando e sendo provocada, para possivelmente nunca mais voltar do mesmo jeito.

Porém, uma outra percepção foi se tornando mais forte na medida em que eu escutava os negros. Talvez tenha sido preciso fazer esse corte dentro do corte. Porque talvez o fato de eu pensar sobre isso como uma censura, num momento de construção de uma democracia cheia de buracos, seja um privilégio meu, como branca, que não sei o que é ser negra neste país. Posso escrever sobre isso, como escrevo, posso tentar vestir a pele negra, como tento, mas ser é de outra ordem. E esta ordem eu preciso admitir que não alcanço. E talvez a ruptura seja a única forma para aqueles que não têm privilégios serem escutados pelos que têm privilégios. Talvez seja este o momento do Brasil. E talvez seja importante que assim seja, porque já se passou tempo demais para uma abolição não ter sido completada. Talvez a escravatura só acabe, de fato, a partir de rupturas como esta.

Para mim, a síntese veio por esta fala de um homem jovem e negro na plateia, que tinha grandes chances de estar morto, mas está vivo:

— Meu nome é Max. Eu sou ator… Eu era ator, mas eu me tornei produtor cultural por ausência, por necessidade de produções culturais em que eu me sentisse um pouco mais digno. Digno. Acho que é a palavra perfeita pra ocasião. Eu vou falar a partir da minha pele preta natural e do meu cabelo normal, embora alguém em 1930 tenha dito que existiam cabelos normais e outros sei lá o quê. Né? Decidiram o que era normal e o que era natural. (…) É interessante como o branco treme quando vai perder o privilégio. Então, de repente, quando você toca no privilégio daquele que sempre pôde falar como quiser, de quem quiser, na altura que quiser, alguém fala: “Eu não gostei”, e chamam essa pessoa de Estado. Né? (…) Os negros, que nunca tiveram sequer grandes papéis no Estado, são censuradores. Não houve Ministério Público, não houve DOPS, não houve Conselho da Comunidade Negra, não houve SEPIR (Secretaria Especial de Promoção da Igualdade Racial) mandando, enviando. E ninguém nem foi perguntar aos Fofos se era censura ou não. (…) As pessoas assim… com um treme-treme de perder esse espaço. Eu acho que é aí que o copo tem que esvaziar. A gente, enquanto homem, vai ter que perder privilégios para dar espaço às mulheres, aos homossexuais. A gente, enquanto sudestinos, vai ter que abrir espaço nos editais pra que o Norte seja contemplado também. E talvez os brancos ainda não conseguiram dar um milímetro de passo pra perder seus privilégios. Ou pra compartilhar os privilégios nas universidades. Compartilhar o privilégio desse diálogo. Eu fiquei com medo de ter que fazer barraco aqui, (…) achando que ia ter uma palestra de pessoas justificando o blackface. Eu tava preparado pro barraco. Sério mesmo. Nunca vi o mercado financeiro abrir espaço pra um debate desse. Nem o Estado, nem o mercado financeiro. (…) Eu quero colocar essa questão pras pessoas pensarem o que é esse privilégio. Uns amigos falam: “Mas eu não tenho privilégio de ser branco!”. Eu falo: você tem avô, avó? “Tenho”. Então você já é branco, porque a maioria dos negros não conhece os avós. Você pode andar na rua sem o carro da polícia pelo menos parar um pouquinho pra dar uma olhada em você? Ele nem sabe o que é isso. Você para um táxi e ele para? Ele nem sabe o que é isso. Então, você tem um monte de privilégio de ser branco. Só que você tem o privilégio do privilégio de nem pensar nos seus privilégios.

Fiquei pensando sobre a enormidade desse privilégio, que é o de não ter que pensar nos meus privilégios. E fiquei pensando a partir de um grupo no qual tenho a pretensão de me incluir: o dos brancos não racistas, o dos brancos que denunciam o racismo e lutam contra ele. Percebo que, por mais profundo que seja o discurso do branco, por mais articulado, ele fala a partir de um lugar do qual teme ser deslocado, consciente ou inconscientemente. E, assim, sempre que possível, adere, aliviado, ao discurso mais intelectualizado, aparentemente limpinho, que no caso das cotas era o de que raça é algo que não existe ou que o problema do Brasil é social e não racial etc etc. E aqui, talvez, o discurso de adesão capaz de manter as boas aparências seja o da censura ou da liberdade de expressão. De certo modo, o discurso do melhor branco é sempre contemporizador.

Esses brancos bacanas, cool, esperam que os negros fiquem satisfeitos com a “abertura lenta, gradual e segura”. O ponto de vista é sempre o da concessão. E concessão é a palavra escolhida por aquele que tem o privilégio de conceder. Talvez o problema no Brasil, com relação à questão racial, seja semelhante ao da redistribuição da renda. Mesmo os brancos bacanas querem avançar na igualdade sem perder nada. Os negros ascendem sem que os brancos percam um centímetro do seu privilégio, o que começa pelas empregadas domésticas. Porque privilégio de branco é cláusula pétrea na sociedade brasileira. E aqui aproveito para sugerir que assistam à Casa Grande, filme no qual a Senzala é a presença – ou onipresença – não nomeada.

Os negros não podem se impacientar, ao contrário, precisam agradecer a benevolência. E, quando questionam, e em especial quando questionam gente bacana, aqueles que têm certeza de fazer o certo, a conversa muda de tom. É fácil se unir contra os trogloditas, e no Brasil há sobra deles. E contra os bacanas, os cool, como é que fica? E escrevo sem ironia, porque me incluo nesta conta. Escrevo com dor, porque a incompletude da abolição colocou gente de fato digna, brancos dignos, numa situação com poucas saídas a não ser um confronto que começa dentro, com a dureza dessa realidade que, enquanto não mudar, impede qualquer branco de ser de fato digno. É essa a tragédia que precisamos encarar: a impossibilidade de um branco ser digno neste país enquanto a realidade dos negros não mudar. A verdade brutal é que, no Brasil, o melhor branco só consegue ser um bom sinhozinho.

Não quero ter a última palavra. Quero acrescentar duas falas que representam minhas melhores esperanças, ainda que eu saiba que esperança também é um privilégio de poucos.

A primeira é do mesmo homem da plateia que se apresentou como “4 Ps”:

— A pergunta talvez seja: neste contexto, que é novo, como é que nós inventamos uma outra sociedade? Porque, como professor de História do Teatro Brasileiro, eu não estou interessado em revisar a história do teatro brasileiro, eu estou interessado em inventar uma outra História. Acho que este é o ponto.

E termino com Roberta Estrela D’Alva, juntando duas falas que ela fez em momentos diferentes do debate. Na primeira, ela se referia a uma questão colocada pelo professor Achille Mbembe, com quem viajou pela África:

— O que nós vamos ter que deixar morrer em nós, brancos e negros, para que haja a transcendência, para que haja o encontro? Porque os copos estão cheios. O que a gente vai ter que derramar para que comece a penetrar? (…) Para a gente transcender vai ter que ser junto. Não tem nós e eles. O racismo não é um problema do negro, é um problema da sociedade. E nós todos somos a sociedade.

No meu teatro, Estrela D’Alva tem a última palavra:

— Se a paz não for para todos, ela não será para ninguém.

(Publicado no El País em 25/05/2015)

 

O que lembraremos antes de esquecer?

O Alzheimer como doença irredutível aos heróis e às ilusões que a modernidade nos legou

 

Chris Graham tem 39 anos e tem Alzheimer. Ex-militar, casado, três filhos, ele herdou a mutação genética que causa um tipo raro de demência, conhecido como “Alzheimer familiar”. O pai morreu da doença aos 42 anos. Seu irmão, Tony, tem 43 anos, está internado numa instituição e já não consegue falar nem se alimentar sozinho. Outros parentes já morreram, todos ao redor dos 40 anos. Chris, que já começa a ter pequenos lapsos de memória, foi desligado do exército em janeiro, depois de 23 anos de serviço. Em seguida, virou notícia na imprensa britânica, com repercussão internacional: anunciou que partiria neste mês de abril para uma aventura de bicicleta de 26.000 quilômetros, pela costa do Canadá e dos Estados Unidos, na tentativa de mudar a percepção que o mundo tem do Alzheimer. Na campanha “Dementia Adventure – The Long Cycle Around,ele arrecada dinheiro para a pesquisa de uma cura para a doença que possa beneficiar as gerações futuras, o que pode incluir seus próprios filhos. Ao explicar por que decidiu encarar o que chama de “a viagem da minha vida”, prevista para durar um ano, Chris brinca: “Não deixarei algo pequeno como a demência ficar no meu caminho”.

Em suas próprias palavras, Chris Graham carrega em sua empreitada “uma bicicleta, senso de humor e a boa e velha determinação britânica”. Na lógica da “guerra contra a doença”, ele explica: “Para mim, é simples: é preciso atacar diretamente o inimigo, por isso quero ajudar a apoiar as pesquisas”. Até mesmo o primeiro-ministro, David Cameron, elogiou sua “garra e determinação fora do comum”. Chris Graham virou, em mais de uma declaração e reportagem, uma “inspiração”. Entre seus doadores, a palavra “épico” aparece como adjetivo para o desafio. Entre as dezenas de definições, uma se destaca: “herói”.

É nesse ponto que o surgimento de Chris Graham e sua ousada aventura me inquietam. O Alzheimer, uma doença que até então se mostrava irredutível aos heróis, parece ter ganhado um. Mas qual é a travessia mais profunda de Chris, para muito além da quilometragem sobre uma bicicleta pela costa de dois países em outro continente? E o que ela diz sobre essa época?

Em geral, o Alzheimer, que responde por cerca de 70% dos casos de demência, é relacionado ao envelhecimento. A possibilidade bem mais rara de aparecer em pessoas entre os 30 e os 50 anos, como Chris Graham e parte de sua família, ficou conhecida a partir do belo filme Para Sempre Alice, ainda em cartaz nos cinemas, que deu à atriz Juliane Moore o Oscar de melhor atriz em 2015. O filme é baseado no livro de mesmo nome escrito por Lisa Genova, PhD em neurociência pela universidade de Harvard. Nele, Alice Howland, uma renomada professora de linguística, palestrante e autora de obras de referência na sua área de pesquisa, descobre a doença logo após seu aniversário de 50 anos. Herdara do pai e, antes que pudesse ficar com raiva daquela distante e confusa figura paterna, cujo alcoolismo havia mascarado a demência, descobriu que a legara a pelo menos um de seus próprios filhos. As palavras, para Alice, que vivia delas, vão rapidamente se tornando uma paleta de cores que ela já não mais alcança.

Em Para Sempre Alice, num certo momento há um diálogo revelador entre a protagonista e sua filha mais nova, que resume de forma muito precisa o que é a doença na percepção de quem está no momento mais brutal, aquele em que percebe o que está perdendo apenas porque ainda não perdeu tudo. A filha pergunta a ela qual é a sensação de ter Alzheimer. E ela responde:

“Sei que não estou confusa nem me repetindo neste momento, mas, minutos atrás, não consegui me lembrar da palavra cream cheese e estava tendo dificuldade para acompanhar a conversa entre você e seu pai. Sei que é só uma questão de tempo até essas coisas tornarem a acontecer, e o intervalo entre as ocorrências está ficando menor. E as coisas que acontecem estão ficando maiores. (…) Não confio em mim mesma. (…) Eu sei o que estou procurando, mas meu cérebro não consegue chegar lá. É como se você resolvesse que queria aquele copo de água, mas sua mão se recusasse a pegá-lo. Você lhe pede com delicadeza, você a ameaça, mas ela não se mexe. Por fim, pode ser que você consiga fazê-la se mexer, mas aí ela pega o saleiro, ou derruba o copo e derrama toda a água na mesa”.

A tragédia do Alzheimer ou de qualquer outra demência é o desaparecimento de si. Ao matar as células do cérebro, a doença assassina a memória, a ponto de aquele que é não se lembrar mais de quem é. E, assim, deixar de ser. Aos poucos, ou às vezes de forma acelerada, a pessoa passa a já não reconhecer seus filhos, o homem ou mulher que ama ou amou, a casa onde viveu, os objetos que contam dela, as palavras de seu alfabeto, o mapa da geografia cotidiana. Sem memória não somos nada além de um invólucro de carne que não reconhece a si mesmo. Os doentes de Alzheimer, em estágio avançado, são vistos como aqueles que respiram mas não existem. Entre as tantas brutalidades à espreita de um corpo mortal, talvez a de que esse corpo insista em viver quando há tanto tempo já foi desabitado, esse corpo como uma casa abandonada e vazia, despida de móveis e de lembranças, seja a perspectiva mais assustadora.

Ao descobrir a doença aos 34 anos, porém, Chris Graham traz outros dilemas ao palco em que se colocou. Neles, ele parece nos despir, nós como pessoas dessa época, em mais de um sentido. Se para os velhos que se descobrem com Alzheimer a ameaça maior é se esquecer de quem são, esquecer-se de suas realizações e daquilo que os constituiu, para Chris a questão parece ser outra, pelo menos no que se pode depreender de suas entrevistas públicas. Para Chris, a questão, ainda, é criar uma memória. Numa das cenas de Para Sempre Alice, quando ela visita uma casa que abriga pessoas com vários tipos de demência, em busca de um lugar no futuro perigosamente próximo, a funcionária aponta para um velho que dá passos vagos com o andador e diz: “Este é o fulano. Ele fez parte da equipe que botou o primeiro satélite no espaço”. Para Chris, a questão parece ser a de que ele ainda precisa colocar o seu satélite no espaço antes de se esquecer que o fez.

Aos 34 anos, se você não tem um talento bem acima da média ou é especialmente sortudo, e poucos o são, você ainda está se debatendo para se assegurar, mesmo que intimamente, do seu lugar. É o estágio intermediário entre a eternidade dos 20, que já ficou para trás, onde tudo era possível, e o espectro dos 40 logo ali na frente, em que o balanço virá, junto com os primeiros sinais, ainda suaves, de que o corpo já começa a trair. Com um pouco de sorte e um esforço maior, ainda há tempo para uma virada, mas ela será feita com pernas menos rijas. Chris, que sonhava viajar, conseguiu como militar ingressar no serviço de correio postal. Mas quem achará isso tão importante quando ele se for?

Ao saber que morreria jovem e, antes de morrer, se esqueceria de si, Chris parece ter se preocupado em construir um legado —ou uma memória para legar. Mais importante do que aquilo que ele não se lembrará parece ser a possibilidade de que não se lembrem dele da forma como ele gostaria de ser lembrado. Mais importante do que não ser para si é não ser para os outros. E não apenas os outros perto, seus filhos, sua mulher, seus amigos, mas o mundo inteiro. É assim que, aos 39 anos, ele empreende essa travessia de bicicleta que inclui uma volta pela costa dos Estados Unidos, o país do culto aos heróis, por excelência. A terra dos winners (vencedores) —e, por consequência, dos losers (perdedores), já que um não pode existir sem o outro.

A bicicleta tem a marca do mundo sustentável e também a marca da saúde e da potência, já que é preciso estar em ótima forma física para dar conta da quilometragem. É o contrário da fraqueza e da deterioração física, dos passos claudicantes de um corpo com dificuldades para se sustentar, que assinalam tanto a doença quanto a velhice —duas marcas que pertencem ao Alzheimer, como era visto até então. Completando ou não sua travessia, na campanha de divulgação e de arrecadação de sua aventura, Chris já se tornou uma “inspiração”. Já se tornou até mesmo um exemplar do brio do homem britânico em sua disposição de conquistar o Novo Mundo, a ponto de sua determinação ser elogiada pelo primeiro-ministro. Mesmo antes da partida, Chris Graham já tinha cumprido boa parte da sua jornada de herói.

É, ao mesmo tempo, pungente e trágica a travessia mais profunda de Chris Graham, sua volta não medida em quilômetros. Inventar uma vida é a tarefa mais fascinante de um humano, exatamente pelo tanto de improvável e de absurdo que contém. É, como sabemos, a nossa primeira ficção. E a empreendemos nus e com tão pouco. Parece que Chris se arrancou do esquecimento antes do esquecimento, do lugar de vítima de uma doença terrível e, no caso dele, precoce demais, e deu uma volta no destino. Uma volta que só pode se consumar na narrativa e no legado para o outro, já que, no fim da jornada, ele próprio se esquecerá de tudo isso antes de morrer tragicamente cedo.

Jamais subestimo os sentidos criados por um outro para a sua vida. Mais ainda num momento tão limite. Chris Graham tenta algo admirável com o pouco que tem. E sua empreitada produz não só informação como reflexão sobre a doença, o que sempre ajuda a reduzir preconceitos e ignorância. Mas, como Chris se aventura em público, para fora, sob as luzes dos holofotes, penso que é importante pensar também nos ecos públicos de sua escolha e do que ela diz sobre esse mundo como parte da reflexão possível sobre o acontecimento produzido por ele.

O Alzheimer parecia ser uma doença irredutível às ilusões de potência que a modernidade nos deu. Não havia como arrancar heroísmo dali, já que não havia como fazer um herói de uma pessoa esquecida de tudo o que fez ou foi, esquecida até mesmo da própria doença. Se havia um herói, o Alzheimer marcava justamente a sua queda e a ruína do seu mundo. O Alzheimer se mostrou mais irredutível à potência até mesmo que a “loucura” (aspas bem escolhidas), já que em alguns momentos houve gênios loucos nas artes e na literatura, e houve aqueles arrancados do anonimato dos hospícios pela transcendência de sua obra ali descoberta.

Para o Alzheimer parecia não haver essa saída. A doença do esquecimento costuma ser a lembrança perturbadora da velhice e da morte, tudo o que essa época abomina e teme mais do que qualquer outra. As pessoas com Alzheimer ou outro tipo de demência em estágio avançado são reduzidas a vagar pelos corredores de instituições como os mortos-vivos da série pós-apocalíptica Walking Dead. Ou a se deixar esquecer numa cadeira ou numa cama, os olhos vazios, a cabeça tombada. São essas as imagens que chegam até nós. O Alzheimer nos lembra que, ao final, com ou sem demência, a velhice e a morte são nossa certeza intransponível já ao nascer e nenhuma ciência foi capaz de nos salvar dela. De certo modo, as cirurgias plásticas mascaram a perda da juventude mais do que a adiam. E a longevidade é, ao mesmo tempo, uma bênção e uma maldição, já que é também preciso conviver por mais tempo com o declínio, assim como com o mundo da gente que morre antes da gente, condenados a um crepúsculo em câmera lenta.

Chris Graham talvez seja a primeira tentativa, ou pelo menos a que mais repercutiu, de se forjar um herói no Alzheimer. Um herói jovem e ainda potente, capaz de uma grande aventura forçando seus músculos a pedalar uma bicicleta em outro continente. A doença do esquecimento é usada, em fascinante paradoxo, para produzir uma memória heroica.

Até então, os heróis da guerra contra as doenças que continuam a nos matar, concreta ou simbolicamente, eram portadores de outras patologias, como o câncer. Podemos lembrar, entre inúmeros exemplos, de Randy Pausch, o professor americano com câncer pancreático que escreveu A Lição Final. Para ele, morrer parecia ser um fracasso. Lutar contra o tumor e não vencê-lo poderia colocá-lo num lugar inaceitável para a sociedade americana e para si mesmo, ao transformá-lo, ainda que de forma involuntária, num perdedor. Pausch superou esse impasse ao transformar o fim de sua vida num exemplo de sucesso. Ele não pôde vencer o câncer, que o matou em 2008. Mas, naquilo que era essencial para ele e para a sociedade a qual pertencia, vencera. Conseguira fazer do seu morrer um best-seller internacional. Deixava para seus filhos o legado de um lutador. Ele, que até então era apenas um bem sucedido professor universitário, alcançou a fama e o mundo ao escrever um livro considerado “inspirador”. Um livro de alguém que se recusava a desistir de combater a doença.

Em Para Sempre Alice, num determinado momento a personagem lamenta não ter câncer em vez de Alzheimer, o que garantiria a ela uma imagem positiva na sociedade. Diz algo mais ou menos assim: “Eu poderia andar por aí com fitinhas coloridas no braço e arrecadar fundos para campanhas da doença”. Em vez disso, restou a ela o vexame de não se lembrar das aulas que tinha de dar, de onde estava quando fazia sua corrida habitual, dos nomes dos colegas, da receita de pudim de pão do Natal, do sabor do sorvete que há décadas era sempre o mesmo pedido na sorveteria. Logo em seguida já não acharia o banheiro da própria casa e deixaria de reconhecer os mais próximos, gerando primeiro pena, depois desconforto, por fim fuga. Em vez de admiração, ela agora produzia constrangimento no universo em que se acostumara a brilhar. O Alzheimer a tornava alguém que não conseguia acompanhar conversas e, por fim, a transformou num bibelô de carne incômodo na vida dos que amava, seu esquecimento uma lembrança terrível de um futuro que ninguém quer. Na ficção de Alice ainda não existia a realidade de um Chris Graham, provocando aplausos e exibindo potência no ato que precede o fim.

Como disse à imprensa Hilary Evans, da Alzheimer’s Research UK, organização para a qual Chris Graham levanta fundos, “é urgente conseguir mais investimento em pesquisa, já que para cada cientista que trabalha no campo das demências há seis ou sete envolvidos na pesquisa do câncer”. Talvez alguns pensem, com bastante senso lógico, que o que faltava para aumentar o investimento na busca para uma cura do Alzheimer fosse juventude e uma história inspiradora, já que os velhos esquecidos em corpos deteriorados são algo que a população prefere esquecer. Para essa virada de imagem Chris Graham parece ter sido um surpreendente candidato.

Cada um arranca sentido da forma que pode e, como já disse antes, mas não custa repetir, é preciso manter profundo respeito pelos significados que o outro conseguiu criar diante da brutalidade da doença e da morte. A vida nada mais é do que criação e recriação de sentidos. Meu problema com a imposição de “lutar” contra a doença, e de algum modo “vencer” a morte, é justamente a sua valorização como a melhor forma de lidar com a doença e a morte. Ou, pior, como a única forma digna. Tenho uma desconfiança aguda da cultura dos heróis, de modo geral, mais ainda quando envolve doença e morte. Do mesmo modo que abomino a cultura dos winners e losers, que contamina cada vez mais o Ocidente e já infectou a sociedade brasileira.

Ninguém vence a morte. E ninguém consegue ficar jovem para sempre. Me parece que a narrativa da guerra pessoal contra doenças que matam apesar de toda a tecnologia existente é um tanto duvidosa. Tão digna quanto a escolha de Chris Graham e de Randy Pausch é a escolha de todos os anti-heróis que escolhem usar o tempo que lhes resta perto dos que amam, em casa, sem alarde, ou se enfiar em algum canto que gostem enquanto for possível, sem virar notícia. Assim como há dignidade em se isolar ou em escolher não fazer nenhum tratamento. E acredito que há dignidade também em preferir tirar a própria vida antes que a doença o faça. Da vida só sabe quem a vive. Do final da vida também.

Digo isso porque testemunhei várias vezes, muitas mesmo, a opressiva imposição a quem tem uma doença que o levará à morte. Tanto por parte dos médicos e outros profissionais da saúde, como por parte dos familiares, que não suportam a ideia de perder aquela pessoa nem o aviso que a morte do outro sempre é sobre o seu próprio fim. Como se não bastasse ter uma doença que provoca dor e declínio físico, ou esquecimento e fragilidade, ainda é imposto àquele que adoece o imperativo de “lutar”, mesmo quando a luta já não é possível. Há tanta coragem em lutar quanto em aceitar que não é possível lutar e preferir passar o tempo que resta sem grandes epopeias midiáticas nem intervenções cirúrgicas ou tratamentos com remédios pesados que apenas roubam a qualidade da vida que ainda é vida. Não acredito que exista grande vantagem para o morto quando o elogiam no velório, dizendo: “Foi um lutador. Lutou até o fim”. Como se isso lhe conferisse valor, ou mesmo amenizasse a “traição” de ter fracassado e morrido, deixando todos os outros sós e apavorados. Mas até mesmo a personagem Alice, ao fazer seu último discurso, não mais na universidade, mas num evento de Alzheimer, sucumbiu à tentação ao dizer: “Eu não estou sofrendo (???!!!!!). Eu estou lutando.” Os “???!!!!!”são intromissão minha.

Sobre o Alzheimer, já não mais imune à narrativa dos heróis de guerra, recomendo com muita, mas muita veemência mesmo, um premiado documentário chamado Alive Inside: a Story of Music and Memory, que pode ser traduzido como “Vivo Por Dentro: uma História de Música e Memória”. Para quem tem Netflix, ele está lá, com legendas. Mas também pode ser comprado no próprio site. É a trajetória real do americano Dan Cohen, um assistente social que trabalhou com computadores a maior parte da vida, por instituições que abrigam pessoas com Alzheimer e demências variadas, instituições onde os corpos estão submetidos à cultura da medicalização. Dan pediu ao diretor do filme, Michael Rossato-Bennett, que gravasse sua experiência por um dia, mas Michael se encantou de tal maneira pelo que testemunhou que ficou três anos gravando. Dan, um homem um pouco encurvado, meio careca, um par de óculos comuns, roupas quase antiquadas, começando ele mesmo a envelhecer, tem uma obsessão: colocar fones de ouvido entre as orelhas de gente esquecida de si mesma. Em seguida, liga a música que a pessoa mais gostava ou, quando não consegue descobrir qual é pelas conversas com familiares, tenta músicas da época de sua juventude.

Dan, alguém por quem passaríamos na rua sem notar, é, ele mesmo, emocionante. Mas o que acontece quando ele bota fones de ouvido entre as orelhas de gente que parecia morto-vivo, zumbizando numa dessas casas de velhos, é totalmente acachapante. Descobrimos então que aquelas pessoas estão “vivas por dentro”. Henry é um deles. Cabeça tombada, olhos vazios, não reconhece nem a própria filha. Henry só respira. E então Henry escuta a música da sua vida. E o que testemunhamos é alguém ressuscitando, um daqueles milagres de gente.

Henry levanta a cabeça, arregala os olhos. Henry canta, Henry dança com os pés, Henry dança com as mãos. Henry lembra. O que ele lembra? A época mais feliz. Que, como de hábito, não é nenhum momento apoteótico, nada que vire notícia, apenas o tempo em que ele, ainda menino, fazia entregas de bicicleta para uma mercearia. Henry estava vivo, a gente é que não sabia. E, quando ele revive, ao seu redor todos também revivem, uma velha senhora orvalha os olhos e sabemos o que ela está sentindo porque também sentimos. O retorno de Henry ao mundo dos vivos, num vídeo de poucos minutos, foi colocada na internet antes da finalização do documentário e se transformou num fenômeno viral, com milhões de acessos. Não faço o link aqui porque acho que Henry é ainda mais bonito no contexto do documentário.

O neurologista e escritor Oliver Sacks, que no início deste ano contou sobre como decidiu viver o seu morrer numa carta belíssima, aparece algumas vezes no documentário para explicar a ação da música sobre o cérebro humano. Há também outros “especialistas”, a parte menos interessante e um pouco excessiva do filme, mas justificada pela necessidade de legitimar uma proposta tão heterodoxa e muito mais barata que o doping coletivo que costuma se fazer nessas instituições. Oliver Sacks é sempre fascinante, como quando explica porque a música se faz ponte entre o mundo de dentro e o de fora: “A música é inseparável da emoção. Portanto, não é apenas um estímulo fisiológico. Se funcionar irá chamar a pessoa inteira, as diversas partes do cérebro, a memória e as emoções. (…) O filósofo Kant disse que a música era arte vivificante. E Henry foi vivificado. Voltou à vida”.

A música vivificou Henry e vários outros. O que Schubert fez por Denise e os Beatles por Marylou é incrível. Entre todos, o que mais me toca é Johnny, o homem sem uma orelha. Ah… Johnny. O que ele descobriu de si e, ao olhar ao redor pela primeira vez depois de tanto tempo, descobriu dos outros, dos que chamou de “minha turma”, é lindo. Johnny é lindo. Mas não vou contar mais, porque estragaria a experiência que cada um terá se quiser.

Johnny e todos os anti-heróis cujo grande feito, a gigantesca travessia, é despertar pela música e recordar sua extraordinária vida comum, nos lembram de acordar. E nos trazem a eterna questão da morte, tão inevitável quanto o morrer: o que lembraremos antes de esquecer? Ou, dito de outro modo: o que é realmente importante na nossa vida? Agora, enquanto a vivemos?

O que Chris Graham lembrará no final tragicamente humano que o espera, depois de sua jornada de herói, ao escutar a música da sua vida?

A doença e a morte podem assustar. E assustam. Mas elas também lembram os vivos de não se esquecer de viver.

(Publicado no El País em 27/04/2015)

O vírus letal da xenofobia

O primeiro teste no Brasil deu negativo para o ebola, mas positivo para o racismo

 

Uma epidemia, como Albert Camus sabia tão bem, revela toda a doença de uma sociedade. A doença que esteve sempre lá, respirando nas sombras (ou nem tão nas sombras assim), manifesta sua face horrenda. Foi assim no Brasil na semana passada. Era uma suspeita de ebola, fato suficiente, pela letalidade do vírus, para exigir o máximo de seriedade das autoridades de saúde, como aconteceu. Descobrimos, porém, a deformação causada por um vírus que nos consome há muito mais tempo, o da xenofobia. E, como o outro, o “estrangeiro”, a “ameaça”, era africano da Guiné, exacerbada por uma herança escravocrata jamais superada. O racismo no Brasil não é passado, mas vida cotidiana conjugada no presente. A peste não está fora, mas dentro de nós.

Foi ela, a peste dentro de nós, que levou à violação dos direitos mais básicos do homem sobre o qual pesava uma suspeita de ebola. Contrariando a lei e a ética, seu nome foi exposto. Seu rosto foi exposto. O documento em que pedia refúgio foi exposto. Ele não foi tratado como um homem, mas como o rato que traz a peste para essa Oran chamada Brasil. Deste crime, parte da imprensa, se tiver vergonha, se envergonhará.

Não sei se há desamparo maior do que alcançar a fronteira de um país distante, nessa solidão abissal. E pedir refúgio, essa palavra-conceito tão nobre, ao mesmo tempo tão delicada. E então se sentir mal, e cada um há de saber como a fragilidade da carne nos escava. Corrói mesmo aqueles que têm o melhor plano de saúde num país desigual. Ele, desabitado da língua, era desterrado também do corpo. Para alcançar o que viveu o homem desconhecido, porque o que se revelou dele não é ele, mas nós, é preciso vê-lo como um homem, não como um rato que carrega um vírus. Para alcançá-lo é preciso vestir o homem. Mas só um humano pode vestir um humano.

E logo ouviu-se o clamor. Não é hora de fechar as fronteiras?, cobrou-se das autoridades. Que os ratos fiquem do lado de fora, onde sempre estiveram. Que os ratos apodreçam e morram. Para os ratos não há solidariedade nem compaixão. Parece que nada se aprendeu com a Aids, com aquele momento de vergonha eterna em que os gays foram escolhidos como culpados, o preconceito mascarado como necessária medida sanitária.

E quem são os ratos, segundo parte dos brasileiros? Há sempre muitos, demais, nas redes sociais, dispostos a despejar suas vísceras em praça pública. No Facebook, desde que a suspeita foi divulgada, comprovou-se que uma das palavras mais associadas ao ebola era “preto”. “Ebola é coisa de preto”, desmascarou-se um no Twitter. “Alguém me diz por que esses pretos da África têm que vir para o Brasil com essa desgraça de bactéria (sic) de ebola”, vomitou outro. “Graças ao ebola, agora eu taco fogo em qualquer preto que passa aqui na frente”, defecou um terceiro. Acreditam falar, nem percebem que guincham.

“Descrever uma epidemia é uma forma magistral de revelar as diversas formas de totalitarismo que maculam uma sociedade. Neste quesito, os brasileiros não economizaram. A divulgação, por meios de comunicação que atingem dezenas de milhões de pessoas, da foto de um homem negro, vindo da África, como suspeito de ebola, foi a apoteose do fantasma do estrangeiro como portador da doença”, afirmou a esta coluna Deisy Ventura, professora de direito internacional da Universidade de São Paulo, pesquisadora das relações entre direito e saúde, autora do livro Direito e Saúde Global – O caso da pandemia de gripe A (H1N1). “Veja que este fantasma é mobilizado em relação aos pobres, sobretudo negros, nunca em relação aos estrangeiros ricos e brancos. O escravagismo, terrível doença da sociedade brasileira, associa-se ao desejo conjuntural de dizer: este governo não deveria ter deixado essas pessoas entrarem. É uma espécie de lamento: tanto se esforçaram as elites para branquear este país, e agora querem preteá-lo?”

A África desponta, de novo e sempre, como o grande outro. Todo um continente povoado por nuances e diversidades reduzido à homogeneidade da ignorância – a um fora. Como disse um imigrante de Burkina Faso à repórter Fabiana Cambricoli, do jornal O Estado de S. Paulo: “Os brasileiros não sabem que Burkina Faso é longe dos países que têm ebola. Acham que é tudo a mesma coisa porque somos negros”. Ele e dezenas de imigrantes de diversos países da África estão sendo hostilizados e expulsos de lugares públicos na cidade de Cascavel, no Paraná, onde o primeiro caso suspeito foi identificado. Tornaram-se “os caras com ebola”, apontados na rua “como os negros que trouxeram o vírus para o Brasil”.

O ebola não parece ser um problema quando está na África, contido entre fronteiras. Lá é destino. O ebola só é problema, como escreveu o pesquisador francês Bruno Canard, porque o vírus saiu do lugar em que o Ocidente gostaria que ele ficasse. “A militarização da resposta ao ebola, que com a anuência do Conselho de Segurança das Nações Unidas, em setembro último, passou da Organização Mundial da Saúde a uma Missão da ONU, revela que a grande preocupação da comunidade internacional não é a erradicação da doença, mas a sua contenção geográfica”, reforça Deisy Ventura.

O homem a quem se acusou de trazer a doença para o Brasil, para o lugar onde o vírus não pode estar, sempre foi um sem nome, um ninguém, um não ser. Só é nomeado, ganha rosto, para mais uma vez ser violado. Para que continue a não ser enxergado, porque nele só se vê a ameaça, que é mais uma forma de não reconhecê-lo como humano. Ele, o rato.

A história do liberiano que morreu de ebola nos Estados Unidos expõe o labirinto. Ele tinha 18 anos quando a guerra civil começou a matança que só terminaria em 250 mil cadáveres. No campo de refugiados na Costa de Marfim conheceu uma mulher e teve com ela um filho. Ela conseguiu migrar para os Estados Unidos com a criança de três anos, ele seguiu para um campo de refugiados em Gana. Só em 2013 conseguiu voltar ao seu país devastado. Em setembro, finalmente, obteve o visto para entrar nos Estados Unidos, para casar com a mãe de seu filho e ver o menino, agora quase um adulto, se formar no ensino médio. Antes de partir, um gesto de solidariedade: ajudou a levar uma vizinha com ebola para o hospital. Sem saber, carregou com ele o vírus da doença para além das fronteiras. O labirinto era sem saída, o futuro só existia como passado, e ele morreu nos Estados Unidos. O filho do qual ficou exilado por 16 anos não pôde se despedir do pai. O legado da saudade do pai era a marca de um flagelo deixado no filho pelo olhar do Ocidente. Para os mesmos de sempre, o exílio ultrapassa a vida.

Para o homem que alcançou o Brasil em busca de refúgio e teve sua dignidade violada na exposição de seu nome, rosto e documentos, ainda existe a espera de um segundo teste para o vírus do ebola. Não importa se der negativo ou positivo, devemos desculpas. Devemos reparação, ainda que saibamos que a reparação total é uma impossibilidade, e que essa marca pública já o assinala. Não é uma oportunidade para ele, é para nós.

É preciso reconhecer o rato que respira em nós para termos alguma chance de nos tornarmos mais parecidos com um humano.

(Publicado no El País em 13/10/2014)

 

Página 26 de 29« Primeira...1020...2425262728...Última »