Pedófilo é gente?

É preciso reconhecer a face humana daquele que nos horroriza

Li muitas reportagens e artigos sobre pedofilia desde que estourou o mais recente escândalo da Igreja Católica. O tema é difícil para mim. Decidi escrever sobre ele apenas porque me parece que um aspecto foi esquecido – ou quase – nas inúmeras ótimas abordagens. O sofrimento. Pedófilos não são monstros, como a maioria de nós preferiria. São gente. E muitos deles – não todos – sofrem pelos atos que cometeram. E preferiam não ser o que são.

Para quem estava em Marte nas últimas semanas. A polêmica aumentou de tom depois de o New York Times denunciar que o atual papa, Bento XVI, teria encoberto os crimes do padre Lawrence Murphy, nos Estados Unidos, quando ainda era cardeal. O padre, hoje morto, é acusado de abusar de 200 meninos surdos. O suposto envolvimento do papa na ocultação da violência é negado com veemência pelo Vaticano. As denúncias de pedofilia cometidas pelo clero católico continuam, nos Estados Unidos e em diferentes países da Europa. Em algumas delas, Bento XVI tem sido acusado de encobrir os casos ou demorar a tomar providências em períodos anteriores ao papado.

Interessa-me aqui falar menos da Igreja Católica e do papa – e mais de nosso olhar sobre a pedofilia e o abuso sexual. Nunca faz bem para a compreensão de problemas complexos dividir o mundo entre bons e maus, bandidos e mocinhos, monstros e homens. A vida fica supostamente mais simples, mas é uma simplicidade falsa, já que nada se resolve se não encaramos a humanidade daquele que nos provoca horror.

O abuso sexual cometido contra crianças nos horroriza. E acredito que nos horroriza por várias razões, algumas delas óbvias. Mas também porque a maior parte dos abusos é infligida dentro de casa, por familiares. Os abusadores mais frequentes são pais, padrastos, tios, primos, irmãos. Algumas vezes mulheres: mães, madrastas, tias, primas, irmãs.

As estatísticas mostram que as mulheres abusariam bem menos que os homens, mas há dúvidas sobre isso. Como afirma uma psicanalista com quem conversei: “Às mães e às mulheres, em geral, são permitidas algumas liberdades com os filhos, enteados, sobrinhos. Alguns comportamentos parecem mais naturais às mulheres que aos homens. Me parece que o abuso cometido por mulheres é ainda mais mascarado. No presídio feminino onde eu trabalho, há uma ala para abusadoras. E ela está cheia”.

O fato é que o abuso sexual está sempre muito mais perto do que gostaríamos. E, quando paramos para pensar com honestidade, em geral conhecemos alguém próximo que foi abusado ou abusou. E muitas vezes nós também silenciamos.

Em 1997, percorri o Rio Grande do Sul para fazer uma grande reportagem sobre abuso sexual infantil. Eu não queria entrevistar apenas as vítimas, queria escutar também os abusadores. Alguns na cadeia, outros seguindo a vida nas ruas. Nunca me recuperei desta reportagem. Por causa dos horrores que ouvi – e vi. Mas principalmente por causa da quantidade e da intensidade da dor. Eu esperava o sofrimento das vítimas. Nada me preparou para o sofrimento dos “monstros”. Não de todos, é preciso dizer. Há aqueles que não têm conflitos – e, portanto, não sofrem. Mesmo estes, continuam humanos.

Encontrei abusadores despedaçados pelo que tinham feito – e pelo que tinham vontade de continuar fazendo. Fora a cadeia, não havia nada para impedi-los de seguir abusando. E alguns deles queriam ser impedidos. A prisão impede de abusar, mas sem ajuda e tratamento, é muito difícil não reincidir quando saem dela. Se a estrutura de assistência às vítimas de abuso sexual é precária, para abusadores ela é quase nula.

É bem difícil olhar com compaixão para um homem ou mulher que usou de sua autoridade e poder para abusar sexualmente de uma criança. E gozou exatamente deste poder total sobre a vítima, inteiramente submetida ao seu desejo. Mas acho que precisamos tentar. Lembro de ter ficado em conflito com meus sentimentos. Porque nos casos em que foi possível, eu escutava a dor de ambos – da vítima e de quem a violou. Em alguns casos, ambos sofriam de forma atroz. Não se trata de relativizar a responsabilidade de quem abusa. Estou apenas apontando que pode existir sofrimento neste percurso – e não apenas bestialidade, ainda que a bestialidade seja sempre humana.

Dois abusadores me marcaram mais. Um deles era uma mulher – o único caso feminino que encontrei – que havia feito sexo com o filho de 14 anos. O menino estava destroçado. Ele me disse: “Eu queria parar a minha mãe, mas ficava com dó de dar um tapa nela. Nunca vou perdoar meu pai por me deixar sozinho com ela. Eu só quero morrer”. A própria mãe me contou que o filho fugia, que um dia o arrancou de debaixo da cama, onde havia se escondido dela. No caso do garoto, o sofrimento era ainda mais avassalador porque não havia como negar que ele sentiu desejo – ou não teria tido ereção.

O desejo da vítima não é algo tão raro em casos de abuso. Mas é muito difícil para as vítimas lidar com ele sem se sentirem culpadas ou responsáveis. O abusador manipula este sentimento: “Você chora, mas você está gostando”. Quando eu perguntava a esta mãe por que tinha infligido o incesto ao filho, ela repetia: “Eu fiz para salvá-lo”. Nem a mãe nem o filho tinham qualquer assistência.

O outro abusador que nunca pude esquecer foi um adolescente de 15 anos. Ele havia molestado sua meia-irmã de três anos. “Eu não queria machucar”, ele repetia. E talvez não quisesse mesmo. Não sei. Enquanto entrevistava o adolescente, familiares o chamavam de monstro. Seus pais só concordavam em um fato: preferiam que ele estivesse morto. Poucas vezes vi alguém tão só no mundo. Se era mesmo um monstro – era um bem desamparado.

É difícil ter compaixão, eu sei. Mas há algo na história destes dois que pode nos ajudar a ampliar nosso olhar. A mulher que violou o filho havia sido estuprada pelo próprio pai, aos 7 anos. E, depois da violência, foi retirada de casa e passou a vida trabalhando como doméstica na casa de estranhos. O adolescente que abusou da meia-irmã fora violado aos 2 anos. No caso dele, o mesmo pai que o chamava de monstro havia abusado dele quando era pouco mais que um bebê. E nunca foi punido por isso. Este pai era um pedófilo que teve de deixar a vizinhança porque dava balas a garotinhas para masturbá-lo. Quando o pai saiu de casa, a mãe culpou o filho e o enviou para a casa da avó.

Os dois abusadores que acabamos de odiar, portanto, teriam nossa compaixão se voltássemos alguns anos no tempo. Se voltássemos à época em que eram crianças chorando depois de terem sido arrebentadas pelos respectivos pais. A monstra seria uma garotinha estuprada e, depois, jogada na casa de estranhos para trilhar uma vida de trabalho doméstico infantil. O monstro seria um bebê violado também pelo pai e depois punido pela violência sofrida ao ser separado da mãe.

Quando nos dispusemos a enxergar além da primeira camada, os sentimentos fáceis desaparecem. E começam os conflitos. Acredito que são os conflitos que nos levam além.

Os pesquisadores do tema discordam sobre a relevância da repetição no quadro do abuso sexual. Alguns dizem que é um traço frequente, outros que nem tanto. Nos casos que investiguei, como repórter, foi marcante. Não significa que todas as crianças abusadas, ao crescer, serão abusadoras se não tiverem ajuda. Cada pessoa vai elaborar a violência que sofreu – diferente para cada uma em seu significado e suas circunstâncias – de maneira única.

É possível afirmar que, na história de uma parcela dos abusadores, há histórico de abuso sexual na infância. Um dos pesquisadores que me ajudava na reportagem cuidava de um caso que fora confirmado em pelo menos quatro gerações: o bisavô, o avô, o pai e agora o filho, todos tinham sido violados e violaram sua respectiva prole. Neste caso, sempre meninos. A esperança do psicólogo era conseguir quebrar esta linhagem de repetição com responsabilização e tratamento.

Outro traço comum e igualmente terrível é a trajetória das mães das meninas violadas. Parte delas também sofreu abuso na infância. Sem nunca ter recebido assistência, ao eleger um companheiro, escolhe inconscientemente um abusador. E, claro, não consegue proteger suas filhas. Estas mães são responsáveis pelo que acontece em suas casas. Não há dúvida sobre isso. Mas são más? Também elas são monstruosas e merecem nosso escárnio?

Lembro de duas mulheres – mãe e filha. Quando as entrevistei, a mãe tinha 37 anos. Havia sido violada pelo pai aos 9 anos. Era uma mulher simples, muito tímida. Ela contou: “Quando eu tinha 12 anos, senti uma coisa mexendo na minha barriga. Achei que era lombriga. Mas era um bebê do meu pai”. Mais tarde, ela se casou. Teve esta filha. E quando a menina completou 9 anos, o pai abusou dela. Quando as encontrei, a garota também tinha uma filha do próprio pai. Viviam todos na mesma casa. Já tinham pedido ajuda ao conselho tutelar e à polícia, mas até aquele momento nenhuma das instituições parecia saber o que fazer com o caso.

Nada é fácil neste tema. O que parece claro é que só há chance para todos se houver uma quebra do silêncio que costuma cercar estes crimes, especialmente quando acontece entre as quatro paredes do lar – ou entre os muros da Igreja Católica e de outras instituições. Em casos de violência contra crianças, os adultos precisam responder pelos seus atos – ou por ter encoberto a violência de terceiros. Mas é preciso mais do que interromper e punir: é necessário amparar e ajudar vítimas e algozes a elaborar os atos que sofreram ou os que cometeram, com tratamento e de todas as maneiras possíveis. Ou tudo poderá se repetir, num ciclo interminável de sofrimento.

Para quem estiver disposto a olhar para a face do abusador e nela reconhecer um homem – e não um monstro – recomendo um filme excepcional. Com uma interpretação magistral de Kevin Bacon, O lenhador (The Woodsman, 2004) é um filme delicado e corajoso, fácil de achar em qualquer locadora. Seu mérito é não reduzir a vida a uma batalha entre monstros e homens. Ao acompanharmos a trajetória do personagem principal, compreendemos que o pior monstro é o homem que o habita. A ele e a todos nós, de diversas maneiras.

O papa e sua igreja – sempre mais humanos e terrenos do que os fiéis e eles mesmos gostariam – vivem um momento delicado. Penso que, para além das obrigações legais e éticas de qualquer cidadão, o que faltou aos representantes do clero que sabiam o que acontecia e nada fizeram foi um dos pilares do cristianismo: compaixão. Pelas vítimas. E também pelo pedófilo. Acredito que o padre Lawrence Murphy e todos os seus colegas que cometeram o mesmo crime mereciam a compaixão de serem impedidos, também pela sua igreja, de continuar violando crianças.

(Publicado na Revista Época em 05/04/2010)

Tão lindo, tão podre

A história do telefone poderia ter sido escrita por Shakespeare

Quando fui visitar a exposição “Tão longe, tão perto”, esperava uma obra técnica. Imaginava aprender alguma coisa e só. Afinal, se você convida alguém para ver uma exposição sobre a história das telecomunicações, não espera ouvir um: “uau!”. Não da maioria das pessoas, pelo menos. Entrei achando “hum, bonito” e, de repente, comecei a me sentir numa das tragédias de William Shakespeare. Fiquei completamente envolvida e quase perdi a hora do próximo compromisso.

A exposição, promovida pela Fundação Telefônica, conta nossa aventura em busca daquilo que nos constitui como humanos: a capacidade de nos comunicar. Percorremos uma linha do tempo que é de todos. Ao mesmo tempo, construímos nosso próprio percurso, a partir da memória dos sons da nossa vida. Temos poucas chances, em um mundo tão barulhento, de silenciar e ouvir os sons que ouvimos sempre – de um jeito que não ouvimos nunca. Com o sentido de que eles nos constituem tanto quanto nossas células e nem sempre estiveram aqui. Ou algum adolescente urbano acha que há vida possível sem o bip do MSN na tela? Tudo isso pode ter começado há 200 mil anos, quando uma mutação genética teria dado origem à voz humana. Mas, sem voz, haveria o humano?

Esta foi exatamente a parte que me capturou. O físico Peter Schulz, curador da exposição, teve a ousadia de contar uma história demasiado humana. É uma história de gente, do começo ao fim. Nela, conseguimos sentir a glória, mas também a dor e a miséria dos grandes homens. E a inveja, as trapaças, as vilanias. Sim, sim, há algo de podre no reino do telefone. William Shakespeare (1564-1616) poderia ter escrito mais uma de suas peças arquetípicas se houvesse conhecido o escocês Alexander Graham Bell (1847-1922).

Você acha que Bell inventou o telefone? Pois é, eu também achava. Passei a vida acreditando nisso e no monstro do lago Ness. Mas não, ele não inventou. Não sozinho – e talvez nem com a participação mais vistosa. A história do telefone, este aparelho que moldou a nossa cultura desde o fim do século XIX, é fascinante. Não pela grandeza de seus protagonistas, mas pela pequeneza dos grandes cientistas. Por ela, acompanhamos estes homens aspirando à divindade enquanto escorregam na mais tosca humanidade.

Poucas vezes se viu tantas trapaças ou acusações mútuas de trapaças como na invenção do telefone. Depois de Bell patentear como seu, no início de 1876, o invento levou mais de um ano para começar a ser comercializado. Mas apenas poucos meses para a primeira de dezenas de processos na Justiça. Algumas das controvérsias se arrastaram até a morte dos protagonistas e tiveram algum tipo de solução só agora, no início do século XXI. Como a de meu personagem favorito nesta tragédia, um italiano chamado Antonio Meucci.

Ele está para os italianos como Santos Dumont para nós, brasileiros. Enquanto nós brigamos para que o mundo reconheça a primazia de Santos Dumont na invenção do avião – e não os Irmãos Wright –, os italianos brigam para que o mundo admita que foi Antonio Meucci o inventor do telefone. E tem boas razões para isso – como também nós.

Meucci (1808-89) parece ter sido um daqueles sujeitos geniais que, enquanto inventavam geringonças que melhoravam o mundo, eram enganados por quase todos. Estou aqui, cheia de pruridos na ponta dos dedos para escrever sobre ele, porque há tanta paixão nesta história, não apenas nos protagonistas, mas naqueles que defendem um ou outro lado, que é difícil alcançar o homem.

O que parece claro é que Meucci era um sujeito de convicções – e pagou um preço alto por defendê-las. Boa parte da pesquisa para a invenção do telefone foi feita em seu exílio em Cuba, para onde fugiu com a mulher depois de ter sido preso duas vezes por participar do movimento de unificação italiana. Em 1849, quando Graham Bell tinha 2 anos de idade, ele já tinha desenvolvido em Havana um tratamento à base de choques elétricos para curar doenças como o reumatismo. Ao preparar-se para aplicá-lo, ouviu a voz do paciente, em outro quarto, através de uma peça de fio de cobre que os conectava. Percebeu que tinha ali algo mais importante que qualquer descoberta anterior e se mudou para Staten Island, nos Estados Unidos, na tentativa de desenvolver seu invento.

Na América, Meucci viveu cercado por refugiados italianos. Chegou a abrigar Giuseppe Garibaldi em sua casa. Não conseguia compreender a língua nem administrar bem seus recursos, naufragando em vários negócios. Foi ficando cada vez mais pobre. Ainda assim, seguia. Em 1856, montou um sistema telefônico para que, de seu laboratório, pudesse se comunicar com sua mulher, doente e paralisada numa cama. Em 1860, a descrição de uma demonstração pública de seu telefone foi publicada por um jornal de Nova York. Mas não parece ter sobrado nenhuma cópia.

Cada vez mais pobre, Meucci vendia os direitos de muitas de suas invenções para sobreviver. Nunca a que batizou de “telectrophone”. Um dia, o navio a vapor em que viajava explodiu. Ele sobreviveu, mas com queimaduras muito graves. Doente e desesperada, sua mulher vendeu os protótipos que encontrou a um comerciante de objetos usados. Entre eles, o do telefone. Tudo por 6 dólares. Quando Meucci deixou o hospital, talvez tenha pensado que seria melhor estar morto. Correu atrás dos compradores para recuperar o trabalho de uma vida. Foi informado que tudo fora revendido a “um jovem misterioso”.

Meucci atravessou noites de insônia e trabalho duro para reconstruir sua invenção. Conseguiu. Mas não a soma para reivindicar uma patente definitiva. Registrou uma espécie de patente provisória, em 1871. Conseguiu renová-la em 1872 e 1873. E não mais depois disso. Neste período, foi enganado outras vezes, teve documentos e modelos “perdidos” por empresários que prometiam ajudá-lo a realizar testes. As desventuras de Meucci parecem intermináveis.

Enquanto escrevo, fico imaginando aquele homem apaixonado, tropeçando na língua inglesa e na esperteza alheia, ansioso por reconhecimento em um terno puído pelas ruas da América. Em 1876, Bell registrou a patente definitiva do telefone. Meucci o processou, mas perdeu. Morreu pobre, amargurado e quase anônimo.

Somente mais de um século depois, em 11 de junho de 2002, o Congresso dos Estados Unidos reconheceu sua participação na invenção do telefone. Se Antonio Meucci tivesse 10 dólares para pagar a renovação do registro provisório, possivelmente nenhuma patente poderia ter sido registrada por Alexander Graham Bell. Dez dólares em troca de uma vida.

O italiano Antonio Meucci não foi o único personagem trágico deste drama real. O americano Elisha Gray (1835-1901) requereu a patente do telefone poucas horas depois de Bell, no mesmo dia. Mais uma longa batalha judicial. Outro cientista, o francês Charles Bourseul (1829-1912), pode ter sido o primeiro a sugerir que o som é transmitido pela eletricidade. O alemão Johann Philipp Reis (1834-74) inventou um aparelho que transmitia notas musicais e uma ou duas frases em 1860. A primeira delas: “Das Pferd frisst keinen Gurkensalat” – O cavalo não come salada de pepino.

Todos estes homens representavam as grandes mentes do seu tempo. E realizaram grandes obras. Mas incineraram-se na paixão de serem únicos. Perguntei ao curador da exposição, o físico Peter Schulz, da Unicamp, quem, afinal, havia inventado o telefone. Ele me deu uma bela resposta: “Grandes desenvolvimentos envolvem muita gente e dificilmente ocorrem a personagens únicos. No caso do telefone fica evidente uma coisa: eles (Bell, Meucci, Reis…) são inventores do aparelho de telefone, mas depois disso foi preciso uma série de desenvolvimentos para que existisse a telefonia. Como fazer uma rede de telefones? Como fazer o sinal passar por quilômetros e quilômetros sem perder intensidade? Muitos outros foram necessários para que a ‘prática cultural’ chamada telefonia existisse. Eu acredito muito nos desenvolvimentos como aventuras coletivas”.

Minha próxima pergunta a Peter foi: Por que homens tão grandes, capazes de criar algo tão belo e mudar o mundo, se revelaram capazes de tantas baixezas? Peter respondeu: “A pesquisa científica é uma atividade humana como outra qualquer, sujeita a vaidades, fraudes, disputas, etc. A ciência passa uma imagem de neutralidade e objetividade que é falsa. O fato de as leis da física, por exemplo, serem as mesmas aqui ou nos confins do universo, não garante a objetividade da atividade do cientista. Qual é a escolha do que se pesquisa? Depende de quem paga a pesquisa. A física está cheia de problemas que não são pesquisados mais, não porque foram encontradas as respostas, mas porque saíram de moda. Existem alguns mitos sobre a neutralidade e ‘pureza’ da ciência que deviam ser revistos. O sucesso da ciência levou à sua idealização tanto dentro quanto fora da atividade científica. Do ponto de vista psicológico, a comunidade científica está cheia de Adrianos e Ronaldos”.

Terminei nossa conversa perguntando se a necessidade de ser “o” herói ou “o” gênio ainda movia a pesquisa científica hoje. Peter afirmou: “A necessidade de um herói foge do âmbito exclusivo da ciência, que, quando considerada como uma atividade humana qualquer, faz com que a questão do herói seja a mesma que no esporte, política, artes… O cultivo da ideia do herói, gênio, etc continua. A valoração do prêmio Nobel, por exemplo, alimenta esta idolatria. A exposição dos excêntricos também. Um exemplo típico é o matemático russo, (Grigori) Perelman, que recusou importantes prêmios e vive recluso. Acho que é insanidade mesmo, mas o público gosta… Não é muito diferente do culto à reclusão do J. D. Salinger ou mesmo de Rubem Fonseca, Greta Garbo… O grosso da atividade científica é bastante rotineiro, mas a pressão pela primazia é grande. Primazia pode garantir financiamento e oportunidades de trabalho melhores. A ciência é algo fantástico…mas continua sendo feita por seres humanos”.

A dimensão shakespeariana da invenção do telefone nos leva para além dos aspectos curiosos. Se o telefone, como cultura, mudou e vem mudando toda a nossa relação com a vida e uns com os outros, assim como os conceitos de tempo e espaço, a forma como ela é apresentada também muda o que somos e como nos movemos pelo mundo.

Quando o professor ensina a uma criança que Alexander Graham Bell inventou o telefone, está dizendo muito mais que isso. 1) Que as invenções acontecem num lance de genialidade de poucos – e não num processo contínuo e cumulativo do trabalho de muitos. 2) Que tudo acontece de repente em uma determinada mente privilegiada – e não, como de fato é, com trabalho árduo e exaustivo, que muitas vezes dá em nada. 3) Que é possível e desejável fazer, seja lá o que for, sozinho, se quiser virar verbete de enciclopédia, estátua na praça ou nome de rua. Portanto, o trabalho coletivo e geralmente anônimo não teria valor aos olhos do mundo.

A forma como é contado o processo de descoberta também molda a nossa cultura. Quando aprendemos na escola que é Alexander Graham Bell o inventor do telefone – simples assim – estamos sendo deseducados. Ou formados para um mundo bem ruim. A história da invenção do telefone, como aprendemos na exposição, é muito mais rica, multidisciplinar, também para entender a matéria da qual somos feitos. E, talvez, para nos tornarmos melhores. Um bom professor faria, no mínimo, um belo debate sobre ética.

O conteúdo que comunicamos por meio destas maravilhosas invenções nos transforma. Fico pensando quem seríamos nós se pais e professores ensinassem que foi necessário não um cientista, mas muitos para construir uma obra em permanente construção. Que não são heróis, e sim homens, que mudam o mundo em que vivemos. Que a aventura – na ciência ou em qualquer âmbito do conhecimento – é sempre coletiva. E que dependemos uns dos outros neste esforço solidário. Se fosse este o conteúdo comunicado, o quanto seríamos diferentes? O quanto nosso mundo seria diferente?

Agora, se me convidarem para a exposição, eu posso dizer: “uau!”.

P.S. – Para quem se interessar: “Tão longe, tão perto – as telecomunicações e a sociedade” permanece no Museu de Arte Brasileira da FAAP (Rua Alagoas, 903, prédio 1 – Higienópolis), em São Paulo, até 23 de maio, de terça a sexta, das 10h às 20h, aos sábados, domingos e feriados, das 13h às 17h. A entrada é gratuita. Visitas orientadas para grupos, no programa educativo, podem ser agendadas pelo telefone: (11) 3662-7200. Mais informações pelo site www.taolongetaoperto.org.br .

(Publicado na Revista Época em 29/03/2010)

A era dos adultos infantilizados

Se não conseguimos crescer, como será possível educar os filhos?

Na semana passada, um amigo me enviou um email com o anúncio de um personal organizer. Ele sugeria que eu contratasse um desses “profissionais” para arrumar a minha mesa. Era uma sacanagem, claro. Eu detenho o título de autora da mesa mais bagunçada da Época desde que entrei na equipe da revista, em janeiro de 2000. Nesse quesito, sou imbatível. Na minha mesa, é possível encontrar, convivendo ecumenicamente lado a lado (ou um em cima do outro), um saco de salgadinhos, uma imagem de São Francisco de Assis, uma lagosta de borracha e um dicionário de sinônimos. Isso em apenas um cantinho. Às vezes preciso escrever com os cotovelos grudados no corpo, porque não tenho outro lugar para apoiá-los. Embora venha cogitando ter uma mesa organizada há umas duas décadas, na minha bagunça pessoal eu acho tudo e não perco nada – ou quase nada. É o meu jeito.

Mas há algo bem interessante na brincadeira do meu amigo. A multiplicação de termos como personal e coach diz muito sobre a época em que vivemos. E sobre os adultos que nos tornamos.

O conceito de infância, como o conhecemos, se consolidou no Ocidente a partir do século XVIII. Até o século XVI, pelo menos, assim que fossem desmamadas e conseguissem se virar sem as mães ou as amas, as crianças eram integradas ao mundo dos adultos. E, como tal, eram responsáveis pelas consequências de seus atos. A infância, como idade da brincadeira e da formação escolar, ao mesmo tempo com direito à proteção dos pais e depois à do Estado, é algo relativamente novo.

Nem sempre as crianças significaram a promessa para o futuro tanto de uma família como de uma nação. A infância não é um conceito natural ou determinado apenas pela biologia. Como tudo, é também ou principalmente uma invenção cultural, um fenômeno histórico implicado nas transformações econômicas e sociais do mundo dos humanos, em permanente mudança e construção.

Me parece que hoje há algo novo nesse cenário. A partir do século XXI, vivemos a era dos adultos infantilizados. Uma espécie de infância permanente do indivíduo. Não é por acaso que os coaches proliferam. Coach, em inglês, significa treinador. Originalmente, treinador de times e de esportistas. Mas que foi ampliada para treinador de tudo, inclusive de como viver: os life coaches. Personal trainers têm função semelhante. Treinar alguém para se exercitar, comer, se vestir, namorar, conseguir amigos e emprego, lidar com conflitos matrimoniais e profissionais, arrumar as finanças e também organizar os armários e a mesa de trabalho, como na sugestão do meu amigo.

Nesses conceitos importados dos Estados Unidos, o país que transformou a infância numa bilionária indústria cultural e de consumo, a ideia é a de que, embora estejamos no que se convencionou chamar de idade adulta, não sabemos lidar com nenhum aspecto da vida sozinhos. Coaches e personal trainers podem ser eufemismos para uma função muito parecida com a da babá. Crescemos, terminamos a escola, constituímos família ou não, vamos para o mercado de trabalho, mas precisamos de alguém que arrume nossa mesa e nossa casa, nos ensine a comer direito, nos diga como namorar e conseguir amigos, nos treine para impressionar o chefe e conquistar uma promoção. Nos ensine, em programas diários, semanais, mensais e anuais, como num planejamento das metas de uma empresa, a viver, como no caso dos life coaches.

Ao nos reduzirmos a adultos que precisam de babás por total incapacidade de lidar com qualquer aspecto da vida, do sentimental ao profissional, a que renunciamos? A muito. Mas o principal é que renunciamos à responsabilidade. A construção contemporânea de infância está fundamentada no conceito de que, tanto no estatuto social quanto no jurídico, crianças são seres com direito à proteção e à educação – mas sem responsabilidade pelos seus atos. Crescer, tornar-se adulto, é justamente passar a responsabilizar-se pelos seus atos. Mas, no caso das novas gerações de 20, 30, 40 anos, se isso ainda vale para o estatuto jurídico, parece perder força no estatuto social.

Os adultos desse início de milênio parecem prolongar a infância no sentido da não-responsabilização. São sinais, aqui e ali, de uma transformação na forma de ver a si mesmo – e de ser visto. É corriqueiro testemunhar, seja no bar ou na empresa, gente que fica muito surpresa porque seus atos motivaram uma reação indesejável, uma conseqüência pela qual precisam responder. Nesse momento, vemos adultos com cara de surpresa, olhos arregalados como os de uma criança. Parecem pensar: “Mas por que eu, que sou tão bacana, tão inteligente, tão cool?”. Quando podem, chamam os pais, os advogados…. os coaches para salvá-los. A expectativa, como um direito adquirido, é a de que sempre serão “perdoados”.

Da mesma maneira, encarnam a geração do “eu mereço”. Se não há responsabilidade pelos seus atos, também não há responsabilidade pelas suas conquistas. Está cada vez mais diluída a ideia de trabalhar por aquilo que se quer com a consciência de que custa tempo, esforço, dedicação. Escolhas e também perdas, frustrações. Alcançar sonhos, ideais ou mesmo objetivos parece ser compreendido como uma consequência natural do próprio existir, de preferência imediata. É uma espécie de visão contemporânea da ideia mística de destino, de predestinação. Ou apenas uma questão de usar a estratégia certa. E, para nos ensinar a traçá-la, buscamos um business coach.

O “eu mereço” vem a priori. “Eu mereço porque eu sou eu”. Ou: “Eu existo, logo mereço”. O fazer por merecer foi eliminado da equação. Quando essa crença, tão fundamentalista quanto os preceitos de algumas religiões, fracassa, aí é hora de buscar o happiness coach (treinador de felicidade), o dating coach (treinador de relacionamentos amorosos), ohealth coach (treinador de saúde), o conflict coach (treinador de conflitos matrimoniais e profissionais), o diet coach(treinador de alimentação saudável). O life coach. É estarrecedor verificar como as gerações que estão aí – e as que estão vindo – parecem não perceber que a vida é dura e dá trabalho conquistar o que se deseja. E, mesmo que se esforcem muito, haverá sempre o que não foi possível alcançar.

Muito se tem falado e escrito sobre a falta de limites das crianças de hoje. E aqui o “de hoje” faz realmente sentido. A partir da constatação de que as crianças não param quietas um minuto, em lugar nenhum, a psiquiatria criou síndromes no mínimo curiosas. A indústria dos medicamentos estimulou a disseminação de drogas no mínimo questionáveis. Foram tecidas teses de todo o tipo, algumas delas bem estapafúrdias. Ou no mínimo curiosas.

Afinal, os professores choram em sala de aula pela prepotência dos alunos. E ninguém mais aguenta crianças berrando nos restaurantes, falando nos cinemas, atropelando nos corredores. Eu, que sou bem pouco tolerante não só com crianças mal-educadas, mas com gente mal-educada, em geral reclamo. Os pequenos e rosados pimpolhos costumam me olhar com os olhos estalados: “Mas eu sou tão fofo! Por que você não gosta de mim?”. E as mães, indignadas por eu não me render ao encanto de seus rebentos, também me olham ofendidas: “Mas ele é tão fofo! Todo mundo gosta dele. Você deve ter algum problema!”. E lá vem a ofensa predileta para atingir uma mulher: “Sua mal-amada!”.

Para além das boas hipóteses das muitas teses e debates sobre o fenômeno da infância insuportável, me parece que vale a pena pensar sobre quem são os pais dessas crianças. Se os pais são adultos infantilizados, que não conseguem se responsabilizar pelas suas vidas – e muitos nem acham que precisam… –, como esperar que suas crianças se responsabilizem? Como esperar que os pais sejam pais se continuam sendo filhos?

Esses pais continuam sendo filhos ao não responsabilizarem-se pelas suas vidas. Ao permitir que seus filhos façam o que bem entendem, não só dentro de casa, mas no espaço público, estão escolhendo o que dá menos trabalho. Sim, porque educar, botar limites, se importar, dá muito trabalho. E exige tempo, gasto de energia, esforço. Amor. O mais fácil é deixar para lá. Ou bater a porta da rua e deixar que a babá – a de seus filhos – se vire. Mas há algo mais.

Me parece que a permissividade com os filhos é uma permissividade consigo mesmo. Se os filhos encarnam o ideal dos pais, se neles estão colocados os desejos e as melhores esperanças dos pais, não seria de esperar que o ideal de pais infantilizados seja o de que os filhos possam tudo? Bem ou mal, ainda que andem pelo mundo como se não tivessem responsabilidade nem por si mesmos nem pelos destinos do planeta, em alguma medida esses adultos precisam lidar com as consequências de seus atos – ou não-atos.

É de se esperar que, para os filhos, desejem, consciente ou inconscientemente, que possam fazer tudo sem nenhuma espécie de retaliação. Aos filhos, tudo deve ser permitido. Algo como: “se para mim não está sendo assim, que pelo menos seja para os meus filhos”. Um ideal tão óbvio como é o desejo que os filhos se formem na universidade para os pais que não puderam estudar ou que o filho tenha casa própria para os pais que viveram a vida inteira de aluguel.

Desde que a infância se tornou um depositário do futuro, os pais desejam que os filhos realizem aquilo que não puderam realizar. Não seria lógico que os pais que se tornaram adultos sem se responsabilizar pela vida – sem sair da infância, portanto – desejem que os filhos possam fazer tudo? Nesse sentido, é ainda mais grave do que parece: ao permitir tudo, esses pais estão fazendo o melhor que podem para o cumprimento de suas mais caras esperanças.

Há muito para pensar. E, por enquanto – ufa! – ainda não inventaram um think coach.

(Publicado na Revista Época em 16/11/2009)

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