Um abraço em Bangladesh

Quando uma fotografia nos arranca da cômoda posição de espectadores distantes e nos obriga a olhar para ver

Uma mulher chamada Taslima Akhter esgueirava-se pelos escombros da fábrica de roupas que desabou em Bangladesh, em 24 de abril, quando os viu. Como descrever o que ela, fotógrafa e ativista bengalesa, viu? Taslima registrou, fez uma fotografia que girou o mundo nos últimos dias e se tornou o símbolo do que não pode ser esquecido. E talvez o que se possa dizer é que o que ela viu nos obriga a ver. Ver mesmo. Não como costumamos assistir às imagens das grandes tragédias ou examinar a galeria de fotos de corpos e de rostos distorcidos das vítimas e das faces desesperadas dos familiares, numa solidariedade difusa, mas distante, que nos permite trocar de canal ou mudar de página no minuto seguinte. Ver é mais do que isso. É transpor distâncias geográficas e barreiras culturais e ser lançado para perto, bem perto mesmo. Perto o suficiente para se reconhecer num outro rosto, em outros olhos, ainda que fechados porque mortos. E não poder esquecer porque agora eles estão em nós, tatuados em nossa pele invisível. Isso é ver. E é raro quando acontece.

O que Taslima viu pode se inscrever no DNA da humanidade como aconteceu com a foto da menina correndo nua após seu vilarejo ser atingido por uma bomba de napalm durante a Guerra do Vietnã. O que ela viu e documentou foi um último abraço em Bangladesh.

(Foto: Taslima Akhter)

(Foto: Taslima Akhter)

Talvez não houvesse nada para ser dito depois dessa foto. Talvez essa foto exija um silêncio também de letras. Mas, neste caso, silenciar pode significar esquecer que Bangladesh está bem próximo de nós não apenas de modo subjetivo, mas concreto. Próximo o suficiente para estar sobre a nossa pele – a visível.

É possível que, no momento em que somos alcançados por esse abraço final, alguns estejam vestindo uma roupa feita por este homem, esta mulher ou por algum dos mais de mil mortos do desabamento, um número que não para de crescer. Ou enfiados numa camiseta, num jeans, num vestido, saia ou blusa feita por alguns dos milhões de bengaleses, a maioria mulheres, que, neste exato instante, cortam e costuram, em prédios insalubres, em jornadas extenuantes, em regime semelhante ao de escravidão, as peças que serão vendidas pelas grandes marcas ocidentais, em vitrines brilhantes e assépticas – as peças que serão compradas também por nós.

Este homem, esta mulher, que se abraçam num útero de terra, concreto e ferros retorcidos, ganhavam, em média, para trabalhar da manhã à noite, dia após dia, costurando roupas para nós, 77 reais por mês.

A força desse último abraço é o que está além do gesto. É a humanidade resgatada que os arranca não dos escombros, mas dos números, para lembrar o que não fomos capazes de ver – ou não quisemos – quando ainda eram vivos e respiravam e sonhavam. Agora os enxergamos, e eles não apenas nos comovem, mas nos assombram. E é crucial que nos assombrem.

Taslima contou à Time:

– Eu tenho feito muitas perguntas a respeito do casal que morreu abraçado. Tenho tentado desesperadamente, mas ainda não achei nenhuma pista a respeito deles. Eu não sei quem são ou qual relação eles tinham. Passei o dia inteiro do desabamento no local, assistindo aos trabalhadores serem retirados das ruínas. Lembro do olhar aterrorizado dos familiares, eu estava exausta mental e fisicamente. Por volta das 2 horas, encontrei um casal abraçado nos escombros. A parte inferior dos seus corpos estava enterrada sob o concreto. O sangue que saía dos olhos do homem corria como se fosse uma lágrima. Quando os vi, não pude acreditar. Era como se eu os conhecesse, eles pareciam muito próximos a mim. Eu vi quem eles foram em seus últimos momentos, quando, juntos, tentaram salvar um ao outro – salvar sua vidas amadas. Cada vez que eu olho para essa foto, me sinto desconfortável. Ela me assombra. É como se eles estivessem me dizendo: “Nós não somos um número, não somos apenas trabalho e vidas baratas. Nós somos humanos como você. Nossa vida é preciosa como a sua, e nossos sonhos são preciosos também”.

No dia anterior ao desabamento, trabalhadores ouviram barulhos semelhantes ao de explosões e entraram em pânico. Um engenheiro examinou os pilares e, vendo as rachaduras, teria pedido ao proprietário que esvaziasse o prédio de oito andares, que abrigava pelo menos cinco confecções na periferia da capital, Daca. O proprietário, Mohammed Shoel Rana, teria dito: “Isto não é uma rachadura, não é um problema”. Os operários foram obrigados a continuar produzindo e as confecções seguiram funcionando. E nenhuma autoridade pública o impediu de abrir as portas do complexo de fábricas no dia seguinte. Este homem é descrito pela imprensa local como um vilão completo, que construiu o prédio expulsando proprietários de terra e corrompendo autoridades (que queriam ser corrompidas), suspeito também de estar envolvido com o tráfico de drogas e de armas.

Seria fácil encontrar apenas um vilão para culpar. Ou mesmo alguns vilões, que já foram presos pela polícia de Bangladesh. O problema, no mundo globalizado, é que, se seguimos a cadeia de produção e de responsabilidades, ela chega a nós. É indecente quando os líderes das grandes grifes ocidentais se mostram escandalizados com a tragédia, sugerindo que não sabiam que era assim que viviam os trabalhadores na ponta do processo produtivo. É igualmente indecente quando alguns anunciam que deixarão de produzir em Bangladesh. Como se, depois dos enormes lucros obtidos por anos de exploração, simplesmente abandonar a cena sem se comprometer com a melhoria das condições de trabalho, de salário e de existência dos trabalhadores que os serviram – alguns deles com a vida – fosse moralmente defensável.

Só valia – e segue valendo a pena – terceirizar a produção em países como Bangladesh porque o trabalho é barato, já que análogo à escravidão. Bangladesh é o segundo exportador mundial na área têxtil, perdendo apenas para a China, porque a mão de obra não custa quase nada. Um estudo do Institute of Global Labour and Human Rights mostrou que uma mesma camisa, se fosse produzida nos Estados Unidos, custaria US$ 13,22. Em Bangladesh custa US$ 3,72. Nos Estados Unidos, o custo da mão de obra corresponderia a 57% do valor total da camisa. Em Bangladesh, corresponde a 6%. É o trabalho que não vale quase nada e por isso a camisa sai muito mais barata para todos, menos para aqueles que vivem e morrem sem valor. É por essa razão que, como sempre se soube, terceirizar a produção em Bangladesh tornou-se um lucrativo negócio para as grandes marcas internacionais. E só deixará de ser se o custo de ter a imagem associada à escravidão e agora à morte de mais de mil pessoas for maior.

Não há espaço para se iludir com supostas boas intenções e lamentos de ocasião. Para as grandes marcas ocidentais e seus muito bem pagos executivos as vidas humanas não parecem importar. O que importa são as cifras. É aí que entramos nós, os consumidores. Bem menos inocentes do que gostaríamos. Também nós gostamos de comprar roupas e qualquer outro produto barato. E torna-se um pouco difícil acreditar que não tínhamos alguma ideia de como nossas roupas eram – e são – feitas. De que, como diz Taslima, a roupa só é barata porque as vidas de quem a produz são tratadas como baratas – tão baratas que podem morrer soterradas nos escombros da fábrica porque outras vidas baratas as substituirão.

É só com a nossa pressão sistemática e cotidiana – e com uma mudança de comportamento – que essa realidade pode mudar. Desde que deixamos, há muito, de comprar diretamente do produtor, que em muitos casos era o nosso vizinho, consumir tornou-se uma responsabilidade muito maior. Querendo ou não, com mais ou menos consciência, cada um de nós está envolvido na tragédia de Bangladesh. E só nós podemos transformar o que hoje é barato em algo tão caro que ninguém ouse tratar uma vida humana como descartável.

Quando catástrofes criminosas como esta acontecem, há um momento em que a máquina do mundo se abre e podemos vislumbrar o quadro completo. Aquele que na maior parte do tempo permanece oculto. Dificilmente ligamos os pontos entre as fábricas nas quais trabalham pessoas em condições sub-humanas às vitrines iluminadas e sedutoras que exibem sonhos de consumo feitos por quem não pode sonhar. Mais difícil ainda é dar um passo a mais para descobrir que o ponto de chegada desse labirinto somos nós mesmos.

É importante lembrar ainda que não é apenas em Bangladesh ou em outros países asiáticos que isso acontece, mas também no Brasil, como conta Renato Bignami, coordenador do Programa de Erradicação do Trabalho Escravo na Superintendência Regional do Trabalho em São Paulo, numa entrevista ao Blog do Sakamoto. Aqui, são os bolivianos os que mais de uma vez são libertados de situações semelhantes à escravidão. Em 2010, duas crianças bolivianas morreram no incêndio de uma confecção no Brás, em São Paulo. Como disse o cientista político André Singer, em sua coluna na Folha de S. Paulo: “Mais dia menos dia o Brasil terá que escolher o tipo de país que deseja ser. Flexibilizar a CLT, aumentar a terceirização, manter a enorme rotatividade atual no emprego e diminuir os salários pode resolver o problema da balança comercial. Mas, se quiser constituir-se numa sociedade digna, terá que descobrir caminho alternativo para enfrentar as agruras de um capitalismo internacional para lá de selvagem”.

Passado o clamor público, tomadas algumas medidas de aparente impacto pelas grandes corporações, a máquina do mundo volta a se fechar. E nós também preferimos esquecer, porque é mais fácil e mais cômodo comprar sem olhar, sem nos informarmos, sem perturbar ou ser perturbado – mais ainda se for bonito e barato. Aqueles que movem o mundo do alto sempre podem contar com o esquecimento que vem logo depois de uma grande comoção. É como se o espasmo fosse o suficiente para nos apaziguar. Negamos com veemência, mas a verdade é que adoramos nos omitir e tocar nossa vida, por uma razão muito pragmática: porque podemos. Pertencemos à parcela minoritária da humanidade que pode viver sem morrer abraçada nos escombros.

Olhar para ver é uma escolha. Sempre mais difícil, a única digna.

Só a poesia alcança a profundidade da vida impressa na morte. O abraço final em uma fábrica de escravos de Bangladesh me lembrou do sertão severino de João Cabral de Melo Neto. Tão longe, tão perto. As vidas baratas são sempre as mesmas vidas, em qualquer geografia, em qualquer tempo. Aquela fábrica sepultou-os em um útero-túmulo. E lá estão os costureiros de nossas roupas vestidos em seu derradeiro traje de terra, o único que lhes coube.

“Essa cova em que estás, com palmos medida, é a cota menor que tiraste em vida. É de bom tamanho, nem largo nem fundo, é a parte que te cabe deste latifúndio. (…) Será de terra tua derradeira camisa: te veste, como nunca em vida. Será de terra a tua melhor camisa: te veste e ninguém cobiça. (..) Tua roupa melhor será de terra e não de fazenda: não se rasga nem se remenda. Tua roupa melhor e te ficará bem cingida: como roupa feita à medida.”

O abraço final, documentado por Taslima Akhter, nos obriga a enxergar para além dos corpos – e também para além do espetáculo. Não é matéria o que está ali, é o que não está que nos alcança e arrebata antes que possamos escapar. É vida que se imortaliza na morte. Como ela diz, quase podemos escutar as vozes e ouvir os sonhos daqueles dois. Não sabemos (pelo menos não ainda) quem são, mas sabemos que são. Que foram. Não sabemos se eram amantes ou irmãos. Ou apenas colegas de trabalho, companheiros de escravidão. Não sabemos se tentavam salvar um ao outro, ou se compreenderam que não poderiam escapar da morte, e então empreenderam um abraço. Um último gesto humano que os tornou nossos estranhos íntimos.

O próximo gesto humano cabe a nós. Será tardio para eles, em tempo para muitos.

(Publicado na Revista Época em 13/05/2013)

 

Açúcar, Sal e Gordura: as engrenagens da ‘junk food’

O que colocamos em movimento ao abrir um saquinho de batatas fritas ou um refrigerante? Um livro e um documentário nos ajudam a compreender os métodos da indústria de alimentação e suas consequências nada inocentes

Tenho um amigo que tenta me ensinar como é o modo “perfeito” de comer uma determinada batata frita industrializada. “Você coloca sobre a língua, mas virada para cima, e deixa que as papilas gustativas entrem em contato com a batata. Aí pressiona delicadamente, com os dentes, num crac. Ela vai se desmanchar em puro prazer.” É assim mesmo que ele fala e, ao falar, sua voz ganha solenidade. Ele fecha os olhos para demonstrar a intensidade da sua fruição. Em seguida, me pergunta: “Você sentiu o crac, seguido pela explosão de sabores”?

Meu amigo trata a batata como se fosse uma hóstia, e sempre achei graça da sua devoção por algo que vem dentro de um tubo, nos sabores mais bizarros, mas que, sim, desmancha na boca e dá prazer. A junk food (comida e bebida tranqueira, porcaria e que faz muito mais mal do que bem) não é a minha igreja. Embora já tenha lido artigos e livros e assistido a alguns documentários sobre os métodos da indústria da alimentação, que muito se parece com a do tabaco, eu não tinha uma ideia tão precisa de que, ao expressar seu deleite, meu amigo transformava-se não apenas num consumidor, mas num produto. E num produto muito bem acabado de milhares de cientistas, psicólogos e marqueteiros a serviço das corporações de alimentos. Meu amigo, tão inteligente, tornava-se o consumidor perfeito – ou o idiota perfeito.

Os métodos da indústria de junk food foram dissecados pelo jornalista americano Michael Moss num livro-reportagem que acabou de ser lançado: Salt Sugar Fat: How the Food Giants Hooked Us. Em tradução livre: “Sal, Açúcar, Gordura: Como os Gigantes da Comida nos Escravizam”. Moss é um repórter investigativo que ganhou o Pulitzer de 2010, o prêmio mais prestigioso dos Estados Unidos, pelo seu trabalho sobre a indústria da carne. Em 20 de fevereiro, ele escreveu uma reportagem no The New York Times, abordando alguns dos principais tópicos do livro, que pode ser lida aqui. Para escrever sobre a indústria de junk food, o jornalista afirma ter entrevistado mais de 300 pessoas, entre cientistas, marqueteiros e CEOs das grandes corporações. Segundo ele, alguns estavam ansiosos para extravasar o que estava preso na garganta. Outros só falaram, com muita relutância, depois de serem confrontados com algumas das milhares de páginas de relatórios secretos obtidos de dentro da indústria. Entre os relatos escabrosos, aparece inclusive o Brasil: um alto executivo de uma companhia de refrigerantes (demitido quando quis mudar os métodos) conta como peregrinou pelas favelas brasileiras, para expandir o mercado a partir da estratégia de convencer pobres a consumir o que não precisam.

Ao final da investigação, o jornalista compôs um retrato sombrio sobre os métodos da indústria para manter os consumidores cativos, apesar da epidemia de obesidade que atinge não só os Estados Unidos, mas parte do mundo. Michael Moss chega a uma conclusão que, não fosse a qualidade da apuração jornalística, soaria como teoria conspiratória: a intensidade, tanto da fórmula química quanto das campanhas de venda, torna as pessoas extremamente vulneráveis, sendo quase impossível resistir. Para Michael Moss, a junk food parece ser uma espécie de droga sintetizada a partir de três ingredientes: sal, açúcar e gordura. Em seu trabalho, ele prova que CEOs, marqueteiros e cientistas sabem que estão produzindo não apenas salgadinhos, doces e refrigerantes, mas adultos e crianças com problemas cardíacos, hipertensos, diabéticos e com uma série de doenças relacionadas, que terão a vida encurtada no final e limitada no meio. Mas o que vale são os lucros – e eles são cada vez mais superlativos.

Entre as muitas declarações colhidas pelo jornalista, há algumas que se destacam pelo cinismo. “Eu otimizo sopas. Eu otimizo pizzas. Eu otimizo molhos para saladas. Nesta área, eu sou aquele que vira o jogo”, diz Howard Moskowitz, uma lenda da indústria, que há décadas vem “otimizando” produtos em baixa e transformando-os em armadilhas letais para homens, mulheres e crianças, usando para isso muito dinheiro, equipes de primeira linha e pesquisa de ponta. O cientista assim afirma sua total falta de conflito por produzir morte: “Não existe questão moral para mim. Eu fiz a melhor ciência que pude. Precisava sobreviver e não podia me dar ao luxo de ser uma criatura moral. Como pesquisador, sempre estive à frente do meu tempo”. Moskowitz estudou matemática e tem Ph.D em psicologia experimental em Harvard.

A reportagem mostra como vários produtos, de diferentes corporações, foram “otimizados” para dar ao público algo do qual ele não conseguiria escapar: o “bliss point” – que pode ser traduzido como o “ponto da felicidade”. Para atingi-lo, é necessário não apenas encontrar o sabor, a textura e a quantidade precisa dos ingredientes, a maioria deles nocivo à saúde, mas também investigar em profundidade os pontos de fragilidade de homens, mulheres e crianças. Identificar as barreiras – e quebrá-las uma a uma. As mães prefeririam dar comida saudável para seus filhos? Ok, mas sua principal queixa é a de que não têm tempo. Logo, é o tempo o flanco descoberto a ser atacado. Como alcançar as crianças diante da TV? Ora, com truques psicológicos como um slogan como este, de um produto que embala desejos de autonomia frente aos pais: “Todo dia você faz o que eles dizem. Mas na hora do lanche é você quem manda”.

Até hoje a indústria trabalha com a lista de “sete medos e resistências” à batata frita de saquinho, identificada ainda em 1957 pelo psicólogo Ernest Dichter: 1) você não consegue parar de comê-las; 2) elas engordam; 3) elas não fazem bem para você; 4) elas são gordurosas e fazem sujeira; 5) elas são muito caras; 6) suas sobras são difíceis de guardar; 7) fazem mal para as crianças. A partir desta descoberta, o psicólogo sugeriu à indústria mudanças como: em vez de usar a palavra “frito”, usariam “assado” ou “tostado”; para não dar a ideia de excesso, os salgadinhos passariam a ser vendidos em embalagens menores. Em outras palavras: o caminho era – e continua sendo – ajudar o consumidor a não ter culpa de comer o que faz mal para ele.

Como quando nos deparamos nos supermercados e lanchonetes com aquelas embalagens dizendo, em letras grandes: “Não tem gordura trans”. Em alguns casos, o produto nunca teve gordura trans, mas, ao dizer o óbvio, ajuda-nos a eliminar a culpa, ao alimentar de fato a nossa auto-ilusão de que podemos comer uma porcaria sem causar danos à saúde. É claro que o restante dos excessos, como a quantidade alarmante de sódio e/ou de açúcar etc, figura em letras bem menores. Como disse um dos entrevistados na reportagem: “O que precisamos fazer é remover as barreiras, dando aos consumidores permissão para beliscar”. Dito de outra maneira: “ótimo sabor, máximo prazer e mínima culpa com relação à saúde”.

Um dos casos esmiuçados na reportagem mostra como uma empresa diminuiu a quantidade de sódio de um determinado produto, marcando três gols ao mesmo tempo: fez bonito para o público, ao aparecer como uma companhia preocupada com a saúde; economizou milhões de dólares em sal, um insumo importante; e vendeu muito mais, porque os consumidores se autorizaram a comprar o produto por conta da redução de sódio e da mudança de imagem da empresa. Na prática, em grande escala era uma economia considerável para o fabricante, mas a redução, para o consumidor individual, era tão pequena que em nada diminuía o impacto nefasto sobre a saúde. É este o truque para nos fazer engolir, contentes e confortavelmente iludidos, aquelas embalagens que anunciam: “Agora com menos sódio”. A máxima das indústria de junk food é conhecida: sal, açúcar e gordura – tira um, aumenta os outros dois e estampa no rótulo aquele que diminuiu. Baseado em depoimentos e documentos internos, Michael Moss pôde afirmar: “A intenção das companhias é usar a ciência não para responder às questões de saúde, mas sim para evitá-las”.

Descobri que meu amigo tem poucas chances de resistir ao “crac” da batatinha lendo a seguinte descrição sobre o fabuloso complexo de pesquisa de um dos fabricantes: “Perto de 500 químicos, psicólogos e técnicos realizaram pesquisas que chegaram a custar até 30 milhões de dólares ao ano. A equipe de cientistas concentrou a maior parte dos recursos em questões como a crocância, a sensação tátil na boca e o sabor de cada um dos itens. Suas ferramentas incluíam um equipamento de 40 mil dólares que simulava uma boca mastigando, apenas para testar e aperfeiçoar o produto”. Com todo esse arsenal humano, científico e tecnológico, alcançaram a Lua: o ponto perfeito de quebra do salgadinho diante da pressão média de uma mordida humana.

Enquanto tudo isso acontece, lá na ponta há alguém – na realidade centenas de milhões de alguéns – como o meu amigo, extasiado com a hóstia de uma indústria que, diante do relato de Michael Moss, poderia encarnar uma versão contemporânea do Mefistófeles. De fato, o poder desse personagem em nosso tempo seria bem vulgar, prosaico como tem sido nossos desejos. Steven Whiterly, um cientista da área de alimentos que escreveu um guia citado por Moss e intitulado Why Humans Like Junk Food (“Por que Humanos Gostam de Junk Food”), assim explica a epifania da batatinha frita de saquinho: “É a chamada ‘densidade calórica evanescente’. Se algo dissolve rapidamente (na boca), nosso cérebro entende que não há calorias ali… E que podemos continuar comendo aquilo para sempre”.

No Brasil, o relato mais impressionante sobre a indústria de junk food e a epidemia de obesidade em crianças está no documentário “Muito além do peso”, de Estela Renner. O filme foi lançado em novembro e está disponível na internet. Se você ainda não assistiu, reúna a família ou os amigos e clique aqui. É quase obrigatório. Ao peregrinar pelo Brasil, a diretora busca responder à pergunta: por que 33,5% das crianças brasileiras estão acima do peso. Ou algo ainda mais alarmante: por que, pela primeira vez na história, há um número crescente de crianças com problemas de adultos – de coração, de respiração e diabetes do tipo 2 –, relacionados à obesidade. “Eu abro a felicidade”, diz uma criança, ao falar sobre o que sentia ao abrir um de seus produtos preferidos, demonstrando a relação íntima entre consumo e propaganda.

Em “Muito Além do Peso”, testemunhamos meninos e meninas que adoram batatas em saquinhos, mas não reconhecem uma batata ao natural – ou que confundem um abacate com um pimentão. Em um dos depoimentos, uma médica conta como uma das crianças que frequentam seu consultório precisa se esconder no banheiro da escola para comer uma fruta no recreio, com medo de ser hostilizada pelos colegas. Não é engraçado, é só triste. Entre os muitos achados de um filme feito para informar, provocar reflexão e promover mudança está a possibilidade de visualizar a quantidade de açúcar contida em alimentos presentes no cotidiano de quase todos. É um susto quando enxergamos o açúcar correspondente a uma lata de refrigerante, por exemplo, ou a gordura que há num saco de salgadinhos. Crianças com dor nas pernas para caminhar e que já não podem jogar futebol ou brincar, meninos e meninas ofegantes, com problemas cardíacos, contam e se contam na tela como vítimas de uma epidemia que já lhes rouba a vida. Como a garota que já teve trombose, ou o guri pequeno e já obeso que esperneia diante de pais impotentes até ganhar salgadinho.

Não é fácil ser pai e mãe diante de um assédio tão poderoso e tão insidioso como o da indústria de junk food. Mas é preciso ser pai e mãe. Segundo pesquisas apresentadas em “Muito Além do Peso”, crianças com sobrepeso aumentam o consumo de alimentos com alto teor de gordura, sal e açúcar em 134% quando expostas à publicidade. A média diária de permanência diante da televisão é de cinco horas. Como disse um dos entrevistados no documentário, referindo-se à publicidade na TV: “Você deixaria um vendedor formado em Harvard sozinho com o seu filho, dentro da sua casa, por tanto tempo”?

Documentários como o de Estela Renner e livros como o de Michael Moss são oportunidades para pensar e entender o que está acontecendo, enquanto somos tonteados por apelos de consumo dentro e fora de casa. São também estímulos para romper a passividade e tomar posição. No Brasil, as lutas vêm sendo travadas em vários palcos: dentro de casa e das escolas, na Justiça e no Legislativo. E as derrotas se acumulam. No final de janeiro, o governador de São Paulo, Geraldo Alckmin (PSDB), vetou a lei que restringia a publicidade de produtos alimentícios para crianças. Pelo texto, aprovado pela Assembleia Legislativa em dezembro, se tornaria proibido veicular anúncios de alimentos e bebidas pobres em nutrientes e com alto teor de açúcar, gorduras saturadas ou sódio, entre as 6h e as 21h, no rádio e na TV. Também seria vetado o uso de celebridades ou personagens infantis na venda de alimentos, assim como o uso de brindes promocionais, como os vendidos com sanduíches em redes de fast food (leia aqui). Em 22 de fevereiro, outra derrota. Desembargadores do Tribunal Regional Federal (TRF) da 1ª. Região confirmaram a suspensão da Resolução 24 (RDC 24), da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Na resolução, a Anvisa (leia aqui) obrigava os fabricantes a colocar nos produtos o alerta de que o consumo em excesso poderia causar problemas de saúde como diabetes, hipertensão e obesidade. Desde que a resolução foi aprovada, em 2010, a Associação Brasileira das Indústrias de Alimentação (ABIA) luta para derrubá-la – e tem conseguido, alegando que a propaganda é “uma forma de liberdade de expressão”, que só pode ser alterada por lei do Congresso Nacional. No Congresso, o projeto de lei que trata da regulação da publicidade dirigida a crianças se arrasta há 11 anos (leia aqui). Em 2013, como tem alertado o Instituto Alana (veja aqui), um dos mais combativos nesta luta, ao completar 12 anos terminará a infância do projeto – uma infância passada engatinhando de comissão em comissão. E mais uma geração de brasileiros terá deixado de ser protegida.

As sucessivas derrotas e procrastinações dão uma ideia do tamanho do lobby da indústria de junk food, assim como do marketing e da publicidade. Mas não acho que somos apenas vítimas do poder das grandes corporações. Esta posição, a de vítima – e agora falo de adultos, não de crianças – tem uma boa quantidade de verdade, mas não é toda a verdade. Se isso tudo dá tão certo é também porque até mesmo o lugar de vítima pode ser confortável, afinal ele nos coloca na posição de quem sofre a ação, mas não pode fazer nada para impedi-la. Mas neste caso podemos, sim, como mostra muita gente que tem lutado no espaço público para isso – e muitos que têm mudado sua relação com o consumo, com a publicidade e com a comida, botando limites dentro de casa e indo para as escolas debater. Em um texto sobre o documentário (leia aqui), chamado “Muito além do peso (na consciência)”, Viviane Zandonadi, jornalista especializada em gastronomia, diz: “Afinal, se somos o que comemos e não sabemos o que comemos, o que é que somos”?

O que nos falta, talvez, seja nos reapropriarmos do nosso próprio poder – inclusive o do voto. E compreender que escolher é um ato humano profundo, que determina não só o que pegamos na prateleira, mas quem somos na vida. Vale a pena perceber que, se tivéssemos qualquer limite para o nosso prazer imediato, a junk food jamais se tornaria o problema que é. Se tanto valorizamos o indivíduo e a individualidade, é preciso não empurrar para o outro quando nossas más escolhas se revelam um desastre. As responsabilidades são múltiplas e com diferentes proporções – e a indústria tem que responder pelo que fez e faz, especialmente no que se refere à manipulação ou à omissão da informação. Mas, neste embate, também desempenhamos um papel ativo – e ele é mais profundo do que engolir mais ou menos porcaria. Se a junk food pode ser considerada uma droga de comida, o que nos leva até ela é muito mais complexo – e por isso, mais difícil de mudar.

Em sua análise, Michael Moss afirma: “Se os americanos beliscassem (junk food) apenas ocasionalmente e em poucas quantidades, não teríamos hoje o enorme problemas que temos. Mas por causa do tanto de dinheiro e de esforços investidos por décadas aperfeiçoando esses produtos, e então os vendendo incansavelmente, os efeitos já são praticamente impossíveis de reverter”. Concordo que lá ou aqui a mudança é difícil, bem difícil até, mas ainda assim temos escolha. Se é importante desnudar a racionalidade perversa da indústria de junk food e seus métodos inescrupulosos, também é importante desvelar nossos próprios mecanismos, do contrário nos livramos de uma armadilha para cair em outra. No fundo dessa história sórdida, desse emaranhado de lobbies e de bilhões de dólares, o que também é um participante ativo desse jogo é a nossa relação com a vida. É de uma relação de consumo e do imperativo do gozo – tão imediato quanto fugaz – que se trata.

Para mim, a melhor cena de “Muito Além do Peso”, a mais reveladora e profunda, é a de uma menina de olhos muito tristes contando que sua família sempre reza para agradecer pela comida, pedindo que não falte nada em sua mesa. Perguntam a ela, então: “Falta alguma coisa na sua vida”? E a menina de olhos muito tristes responde, alcançando muito além do peso, dos métodos e das estatísticas:

– Falta sentido.

(Publicado na Revista Época em 04/03/2013)

Perdão, Aaron Swartz

A morte de um gênio da internet, aos 26 anos, é um marco trágico do nosso tempo. É hora de pensar sobre nossas ações – ou omissões

– Eu sinto fortemente que não é suficiente simplesmente viver no mundo como ele é e fazer o que os adultos disseram que você deve fazer, ou o que a sociedade diz que você deve fazer. Eu acredito que você deve sempre estar se questionando. Eu levo muito a sério essa atitude científica de que tudo o que você aprende é provisório, tudo é aberto ao questionamento e à refutação. O mesmo se aplica à sociedade. Eu cresci e através de um lento processo percebi que o discurso de que nada pode ser mudado e que as coisas são naturalmente como são é falso. Elas não são naturais. As coisas podem ser mudadas. E mais importante: há coisas que são erradas e devem ser mudadas. Depois que percebi isso, não havia como voltar atrás. Eu não poderia me enganar e dizer: “Ok, agora vou trabalhar para uma empresa”. Depois que percebi que havia problemas fundamentais que eu poderia enfrentar, eu não podia mais esquecer disso.

Aaron Swartz tinha 22 anos quando explicou por que fazia o que fazia, era quem era. Aos 26, ele está morto. Foi encontrado enforcado em seu apartamento de Nova York na sexta-feira, 11 de janeiro. Provável suicídio. Talvez a maioria não o conheça, mas Aaron está presente na nossa vida cotidiana há bastante tempo. Desde os 14 anos, ele trabalha criando ferramentas, programas e organizações na internet. E, de algum modo, em algum momento, quem usa a rede foi beneficiado por algo que ele fez. Isso significa que, aos 26 anos, Aaron já tinha trabalhado praticamente metade da sua vida. E, nesta metade ele participou da criação do RSS (que nos permite receber atualizações do conteúdo de sites e blogs de que gostamos), do Reddit (plataforma aberta em que se pode votar em histórias e discussões importantes), e do Creative Commons (licença que libera conteúdos sem a cobrança de alguns direitos por parte dos autores). Mas não só. A grande luta de Aaron, como fica explícito no depoimento que abre esta coluna, era uma luta política: ele queria mudar o mundo e acreditava que era possível.

E queria mudar o mundo como alguém da sua geração vislumbra mudar o mundo: dando acesso livre ao conhecimento acumulado da humanidade pela internet. E também usando a rede para fiscalizar o poder e conquistar avanços nas políticas públicas. Movido por esse desejo, Aaron ajudou a criar o Watchdog, website que permite a criação de petições públicas; a Open Library, espécie de biblioteca universal, com o objetivo de ter uma página na web para cada livro já publicado no mundo; e o Demand Progress, plataforma para obter conquistas em políticas públicas para pessoas comuns, através de campanhas online, contato com congressistas e advocacia em causas coletivas. Em 2008, lançou um manifesto no qual dizia: “A informação é poder. Mas tal como acontece com todo o poder, há aqueles que querem guardá-lo para si”.

Indignado com a passividade dos acadêmicos diante do controle da informação por grandes corporações, ele conclamava a todos para lutar juntos contra o que chamava de “privatização do conhecimento”. Baixou milhões de arquivos do judiciário americano, cujo acesso era cobrado, apesar de os documentos serem públicos. Chegou a ser investigado pelo FBI, mas sem consequências jurídicas. Em 2011, porém, Aaron foi alcançado.

Em alguns dias, ele baixou 4,8 milhões de artigos acadêmicos de um banco de dados chamado JSTOR, cujo acesso é pago pelas universidades e instituições. Aaron usou a rede do conceituado MIT (Massachusets Institute of Technology) para acessar o banco de dados, fazendo download de muitos documentos ao mesmo tempo, o que era – é importante ressaltar – permitido pelo sistema. Não se sabe o que ele faria com os documentos, possivelmente dar-lhes livre acesso. Mas, se era esta a intenção, Aaron não chegou a concretizá-la. Ao ser flagrado, ele assegurou que não pretendia lucrar com o ato e devolveu os arquivos copiados para o JSTOR, que extinguiu a ação judicial no plano civil.

Havia, porém, um processo penal: Aaron foi enquadrado nos crimes de fraude eletrônica e obtenção ilegal de informações, entre outros delitos. “Roubo é roubo, não interessa se você usa um computador ou um pé-de-cabra, e se você rouba documentos, dados ou dólares”, afirmou a procuradora dos Estados Unidos em Massachusetts, Carmen Ortiz (United States Attorney). Aaron seria julgado em abril. E, se fosse acatado o pedido da acusação, esta seria a sua punição: 35 anos de prisão e uma multa de 1 milhão de dólares.

Aaron Swartz morreu antes, aos 26 anos. E, como disse Kevin Poulsen, na Wired: “O mundo é roubado em meio século de todas as coisas que nós nem podemos imaginar que Aaron realizaria com o resto da sua vida”. Na The Economist, ele assim foi descrito: “Chamar Aaron Swartz de talentoso seria pouco. No que se refere à internet, ele era o talento”. Susan Crawford, que foi conselheira de tecnologia do governo de Barack Obama, afirmou, como conta John Schwartz, no The New York Times: “Aaron construiu coisas novas e surpreendentes, que mudaram o fluxo da informação ao redor do mundo”. E, acrescentou: “Ele era um prodígio complicado”.

Li em vários artigos que Aaron seria depressivo. Em alguns textos, a suposta depressão foi citada como causa de sua decisão, como se a doença pudesse estar isolada – e não associada aos possíveis abusos cometidos contra ele no curso do processo judicial. É evidente que qualquer pessoa, e especialmente se ela for saudável, sofreria com a perspectiva de passar as próximas três décadas na cadeia – mais ainda se isso significasse um tempo superior à toda a sua vida até então. Esta é uma possibilidade capaz de abater até o mais autoconfiante e otimista entre nós, o que não equivale a dizer que todos lidariam com esse pesadelo da mesma forma. Se é perigoso encontrar um culpado para uma escolha tão complexa quanto o suicídio, também é perigoso quando a depressão é vista como algo apartado da vida vivida – e a patologia é colocada a serviço da simplificação. Se as doenças falam do indivíduo, falam também do seu mundo e de seu momento histórico. (leia mais sobre a trajetória de Aaron aqui e aqui.)

Se Aaron Swartz encerrou a própria vida, esta foi a sua decisão. Tornar-se adulto é também bancar as suas escolhas – e, neste sentido, estar só. Digo isso para que a nossa dor não esvazie de protagonismo o último ato de Aaron, o que equivaleria a desrespeitá-lo. Aaron é responsável por sua escolha, por mais que ela possa ser lamentada. E só ele poderia afirmar por que a fez.

Isso não significa, porém, que vários atores do caso judicial que envenenou a vida de Aaron nos últimos dois anos, com aparentes excessos, não precisem também assumir responsabilidades e responder por suas respectivas escolhas.Um dos mentores de Aaron, Larry Lessig (escritor, professor de Direito da Universidade de Harvard, cofundador do Creative Commons) afirmou que ele tinha errado, mas considerou a acusação e a possível punição uma resposta desproporcional ao ato. Logo após a morte de Aaron, escreveu: “(Ele) partiu hoje, levado ao limite pelo que uma sociedade decente só poderia chamar de bullying”.

Colunistas como Glenn Greenwald, do Guardian, acreditam que o processo penal era uma resposta do governo dos Estados Unidos contra o seu ativismo libertário: “Swartz foi destruído por um sistema de ‘justiça’ que dá proteção integral aos criminosos mais ilustres – desde que sejam membros dos grupos mais poderosos do país, ou úteis para estes –, mas que pune sem piedade e com dureza incomparável quem não tem poder e, acima de tudo, aqueles que desafiam o poder”. Em declaração pública, a família afirmou: “A morte de Aaron não é apenas uma tragédia pessoal. É produto de um sistema de justiça criminal repleto de intimidações”. A família também responsabilizou o MIT pelo desfecho.

Em comunicado, o presidente do MIT, L. Rafael Reif, anunciou a abertura de um inquérito interno para apurar a responsabilidade da instituição nos acontecimentos que levaram à morte de Aaron. Reif escreveu: “Eu e todos do MIT estamos extremamente tristes pela morte deste jovem promissor que tocou a vida de tantos. Me dói pensar que o MIT tenha tido algum papel na série de eventos que terminaram em tragédia. (…) Agora é o momento de todos os envolvidos refletirem sobre suas ações, e isso inclui todos nós do MIT”.

É tarde para o MIT, é tarde para nós. Mas, ainda assim, necessário. É importante pensar sobre o significado da tragédia de Aaron Swartz. E, para começar, só o fato de ela poder significar algo para todos, sendo ele um jovem americano encontrado morto num apartamento em Nova York, é bastante revelador desse mundo novo que Aaron ajudava a construir. Esse mundo que nos une em rede, simultaneamente, que faz o longe ficar perto. Nesse contexto, a tragédia de Aaron Schwartz não é apenas um episódio, mas o marco de um momento histórico específico. Nele, diferentes forças econômicas, políticas e culturais se batem para impor ou derrubar barreiras no acesso ao conhecimento na internet. E este é, junto com a questão socioambiental, o maior debate atual. E é ele que está moldando nosso futuro.

Como disse Tatiana de Mello Dias, em seu blog no Estadão, “poucas pessoas traduziram tão bem a época em que nós estamos vivemos quanto Aaron Swartz”. Isso faz com que possamos pensar que sua morte é também, simbolicamente, um fracasso da geração a qual pertenço. Essa geração que testemunhou o nascimento da internet, que está decidindo – na maioria dos casos por omissão – como o conhecimento vai circular dentro dela e que, por ter crescido num mundo sem ela, nem chega a compreender totalmente o que está em jogo. E por isso deixa a geração de Aaron tão só.

Obviamente sou capaz de perceber os poderosos interesses envolvidos nas decisões relacionadas à internet, boa parte deles conduzidos também por gente da geração a qual pertenço. Mas me refiro aqui à passividade de muitos, no exercício da cidadania, diante de um dos debates cruciais do nosso tempo. E aqui vale uma observação: quando se diz que a juventude atual é alienada, que não trava lutas políticas como seus pais e avós, não é também deixar de enxergar o que se passa na internet, a “rua/praça” de uma série de movimentos políticos levados adiante pelos mais jovens? Já não é um tanto estúpido pensar em mundo real/mundo virtual como oposições? Criticar o “ativismo de sofá” dos mais jovens, menosprezando as ações na rede, não seria má fé ou ignorância? Talvez, como pais e adultos desse tempo, parte de nós tenha apenas medo e vergonha daquilo que não compreende. E, em vez de tentar compreender, num comportamento humano tão triste quanto clássico, desqualifica e rechaça. Afinal, literalmente, a internet tirou o chão que acreditávamos existir debaixo dos nossos trêmulos pés. Ou, pelo menos, nos mostrou que não havia nenhum.

Aaron não era apenas um gênio da internet, ainda que essa palavra “gênio” já tenha sido tão abusada. Talvez o maior ato político de Aaron tenha sido o que fez com seu talento. Ele usou-o para lutar pelo acesso livre ao conhecimento, via internet. Isso, em si, já o tornaria perigoso para muitos. Mas há algo que pode ter soado ainda mais imperdoável: Aaron não queria ganhar dinheiro com o seu talento. Ele não era aquilo que as crianças são ensinadas a admirar: um jovem gênio milionário da internet, como Mark Zuckerberg, o criador do Facebook. Aaron Swartz era um jovem gênio que não queria ser milionário. E, convenhamos, nada pode ser mais subversivo do que isso.

Ao ler sobre a morte de Aaron Swartz, lembrei de dois versos. Ao fim ou diante dele, apesar de todos os argumentos, é só a poesia que dá conta da tragédia. Um é do eternamente jovem Rimbaud (1854-1891): “Por delicadeza, perdi minha vida”. E o outro foi escrito por um Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) já velho: “Alguns, achando bárbaro o espetáculo, prefeririam (os delicados) morrer”.

Quando lemos o que Aaron Swartz escreveu, ouvimos o que disse, ele que acreditava tanto em mudar o mundo, é difícil não pensar: por que ele desistiu de nós, ele que acreditava tanto? Que mundo é esse que criamos, onde alguém como Aaron Swartz acredita não caber?

Então, é isso. Ele nos deixou sozinhos no mundo que legamos à sua geração. Entre os tantos feitos admiráveis deixados por Aaron em sua curta trajetória, ao morrer ele deixou também um outro legado: a denúncia do nosso fracasso.

Perdão, Aaron Swartz.

(Publicado na Revista Época em 21/01/2013)

 

Não atirem no Coringa

A ficção não é culpada pelos crimes da vida real, como o do matador do cinema do Colorado. Pelo contrário: desde a infância, ela nos ajuda a lidar com as sombras que habitam o mundo de fora – assim como o mundo de dentro. O mal permanente e cotidiano não é praticado pelos loucos que confundem fantasia com realidade, mas por homens e mulheres bem racionais, que sabem o que fazem

Quando eu tinha 8 anos, minha mãe fez uma oferta inédita. Ela tinha ganhado um dinheiro extra em algum trabalho como professora, talvez corrigindo redações de vestibular, e me levou a uma loja dizendo: “Escolha o que você quiser”. Fiquei extasiada. Na minha infância, ao contrário de hoje, se você pertencia a uma classe média remediada, só ganhava presentes no Natal e no aniversário – e eram limitados. Assim, a oferta da minha mãe equivalia à abertura da caverna de Ali Babá de repente, sem aviso e num dia de semana. Olhei para um lado, olhei para o outro, e fui atraída por um objeto reluzente, a réplica exata de um revólver calibre 38, tão fiel que muitas vezes depois seria confundido com um de verdade. “Quero o revólver”, eu disse, para espanto geral da minha mãe, da vendedora da loja e, depois, do restante da família. Você não quer uma boneca? “Não, eu quero o revólver.”

Eu não era estranha às armas de mentira. Passara os últimos anos matando ou sendo morta pelo meu irmão do meio, assim como pelos amigos. Morria ora como cowboy, ora como índio. Por influência ideológica, lá em casa os índios tinham seus dias de glória ao vencer a cavalaria americana. Mas também fui assassinada pelo martelo do Thor, asfixiada pela teia do Homem Aranha e trespassada pela espada do Zorro. Morri dezenas, talvez centenas de vezes, antes de completar 10 anos. E comandei massacres quando ainda era menor de idade. Alguns dos melhores momentos da minha infância foram vividos quando matava ou morria alegremente nas brincadeiras, ressuscitando a tempo de comer o bolinho de chuva da minha mãe.

Mas nunca matei um único passarinho real na minha infância, em uma época na qual isso era comum. Aprendi a pegar os insetos que apareciam em casa pelas asas ou pelas patas e devolvê-los ao lado de fora sem lhe causar danos, exceto baratas e pernilongos. No dia em que matei um filhote de barata, porém, fiquei tão culpada que tentei imortalizá-lo em uma pobre novela escrita em um caderno decorado. Jamais tive ou teria uma arma de verdade, inclusive porque jamais conseguiria usá-la. Votei pela proibição do comércio de armas de fogo e munição no plebiscito de 2005. E, como jornalista, dediquei uma parte significativa da minha vida a denunciar a violência contra os mais fracos e os invisíveis. O que não me impede de ainda hoje explodir cabeças no videogame sempre que possível.

Se fosse eu – e não o americano James Holmes – a entrar no cinema da cidade de Aurora, no Colorado, em 20 de julho, com um arsenal de armas de verdade, e assassinar 12 pessoas e ferir 58, algum jornalista apressado possivelmente investigaria a minha infância e encontraria mais indícios de um futuro violento do que foram encontrados na vida do matador. O massacre na estreia de Batman, o Cavaleiro das Trevas Ressurge, protagonizado por uma pessoa que teria se apresentado como o “Coringa”, um dos vilões mais perturbadores da ficção, poderia se esclarecer, por exemplo, a partir da compra do revólver de brinquedo aos 8 anos de idade. Dá até para imaginar a chamada: “Em vez de uma boneca, a assassina pediu um revólver”. Ou: “O hobby da matadora era explodir cabeças de zumbi no videogame”. Ou: “Desde pequena, ela vivia me assassinando”, diz o irmão. “Quando brincávamos de polícia e ladrão, ela sempre queria ser o ladrão”, revela uma colega de primário.

Logo, descobririam minha fixação no Alien, um dos monstros mais violentos da história do cinema, tão profunda que tenho um boneco na escrivaninha onde escrevo essa coluna. Sem contar meus estudos sobre vampirismo e um interesse já superado por psicopatas. Para piorar, não tive cabelo laranja – mas roxo, verde, azul e rosa. O que quero dizer é que, sabendo o que procurar, numa interpretação ligeira dos fatos, é possível encontrar prenúncios de um futuro serial killer ou matador de cinema na vida pregressa de cada um de nós.

Digo isso porque, sempre que alguém entra em um cinema matando gente, aparece muitos alguéns para culpar a ficção. Desta vez, não foi diferente. Em vez de Batman ressurgir das trevas, como o título do filme promete, o que ressurgiu foi a entrevada tese de que o “excesso” de violência no cinema (e na TV, games etc etc ) é o culpado pela tragédia. Essa tese recorrente, que faz ninho inclusive na cabeça de pessoas bem inteligentes, serve para muitas coisas, especialmente explicar o (quase) inexplicável (e assim dormir tranquilo) – e reivindicar interferência e controle sobre o conteúdo das obras de ficção. Quando não, sua proibição.

O efeito imediato desse tipo de tese é a redução de cada um de nós a alguns estágios anteriores da evolução. Seríamos adultos tão estúpidos e incapazes que, se alguém – um “tio” ou o Estado – não cuidar do que estamos assistindo, lendo ou jogando, não saberemos distinguir a realidade da fantasia. Impressionado com alguns textos que lera sobre a relação entre a violência da ficção no cinema e a violência do matador do cinema da vida real, um amigo que assistia comigo a um seriado policial na TV, comentou: “Olha só, o cara matou cinco pessoas só ao arrombar a porta, e a gente não sentiu nada”.

O que isso prova? Nada, me parece. Respondi ao meu amigo: “Sim, mas isso faz com que você saia da minha casa e assassine cinco dos meus vizinhos com uma faca de pão ou pegue teu carro e atropele todos que estiverem na faixa de segurança? Se você visse alguém matando cinco pessoas na vida real, bem aqui na rua, agora, você não sentiria nada? Ou isso marcaria a tua vida para sempre?”. Poderia ter dito também que, se o diretor do filme tivesse contado a história de cada um dos mortos, ele estaria soluçando diante da TV.

A maioria dos adultos e também das crianças sabe distinguir muito bem o que é realidade, o que é fantasia. E, os que não sabem, não se tornarão mais violentos por conta da violência a que assistiram no cinema, que praticaram nos videogames e nas fantasias de infância, ou que leram nos livros e nas HQs. Quem não sabe, não sabe. Nestes casos, a questão é de outra ordem.

O perigo maior é partir do princípio de que as pessoas, crianças ou adultos, são incapazes de diferenciar a fantasia da realidade. E, em nome disso, interferir na ficção, “purificando-a”. Como sabemos, dos contos de fadas a Harry Potter, a ficção cumpre a função importantíssima de nos ajudar a lidar tanto com aquilo que nos aterroriza quanto com as pulsões de morte que nos habitam. É no ambiente controlado das histórias, no qual podemos ter certeza do enredo, que vamos aprendendo a conviver com a realidade interna e externa, com nossas contradições e sentimentos mais obscuros. É pelo ódio à madrasta da Branca de Neve que uma criança pode lidar com a raiva que muitas vezes sente pela mãe na vida real. É também matando e morrendo em embates de brincadeira que escapamos de aniquilar e sermos aniquilados no mundo concreto. E isso até a vida adulta, de várias maneiras.

O problema começa quando não há espaço para lidar com aquilo que é do humano. Tenho grandes dúvidas se é realmente educativo, numa sociedade armada como a nossa na vida real, reprimir armas de brinquedo, por exemplo, eliminando a possibilidade de lidar, pela fabulação, com um elemento presente no cotidiano. Já cansei de ouvir pedagogas em matérias na imprensa afirmando coisas como esta aqui: “Mesmo uma aparentemente inofensiva pistola de bolhas de sabão incentiva a violência e poderá alterar a personalidade na vida adulta”. Hoje, o pai ou mãe que aparecer em casa com uma metralhadora de brinquedo para presentear o filho será condenado sem julgamento pela opinião pública. Mas, sempre que o bom senso é esquecido, novas brechas são encontradas porque é preciso lidar com a vida como ela é: ou o que é a varinha mágica do Harry Potter, a do livro e as vendidas nas lojas, além de uma arma com potencial letal? (Assim como sabres luminosos e armas estrambóticas de super-heróis…?)

E se J. K. Rowling tivesse botado uma metralhadora na mão de Harry, em vez de uma varinha, para que pudesse lidar com as infindáveis ameaças mortais que rondam seu destino, graças à ambição dos adultos? A escritora jamais teria saído daquele café onde escreveu o primeiro livro, aproveitando a calefação que não tinha em casa. Mas a varinha de Harry Potter e de seus amigos paralisa, deforma, queima e pulveriza seus inimigos, mais potente do que qualquer metralhadora real. E Harry Potter só se tornou o sucesso que é porque o personagem é tratado com respeito pela autora: Harry é um menino sensível e bondoso, mas também inteligente, autônomo e capaz de defender-se das ameaças vindas do mundo dos adultos. E não um tolinho choraminguento agarrado à barra da saia da mãe, exigindo um videogame de última geração.

Há duas crenças perigosas em jogo quando se culpa a ficção pelas atrocidades da vida cotidiana. A primeira é a de que a fantasia poderia invadir a realidade de uma forma literal. É claro que a fantasia invade a realidade (e vice-versa) – sempre –, mas pelo simbólico. E é por sermos capazes de simbolizar que não cometemos atrocidades na vida real. A segunda crença é a de que aniquilar os “maus” sentimentos e impulsos na ficção seria suficiente para eliminá-los na realidade. Como se negar o “mal” fosse o suficiente para fazê-lo desaparecer. Isto sim é confundir fantasia com realidade.

Arrisco-me a acreditar que tem mais chance de se tornar um adulto decente aquela criança que matou e morreu muitas vezes nas brincadeiras de infância do que aquela que foi obrigada a reprimir todos os seus “maus” instintos na fabulação cotidiana. Como não é possível eliminar nossos sentimentos e pulsões mais sombrios por decreto, de algum modo esse caldeirão vai transbordar, mais cedo do que tarde.

De fato, as crianças acabam dando um jeito de sobreviver – também subjetivamente – às sandices dos adultos. Dias atrás, uma conversa no pátio do prédio de classe média de uma amiga nos chamou a atenção. “Agora, você é o traficante”, disse uma menina de mais ou menos 10 anos para o companheiro da mesma idade. Ela, como explicou, seria a viciada em crack. Ficamos ali, na janela, ouvindo e imaginando o que aconteceria se os respectivos pais estivessem no nosso lugar.

O que as crianças faziam era tentar lidar, pela brincadeira e pela fantasia, com as notícias que vinham do mundo real pelo noticiário e pelas conversas, já que o crack é a droga mais falada do momento no mundo que elas também habitam. Ao tentar fabular sobre o que as impactava, estavam fazendo algo bastante saudável. Mas seria muito provável que parte dos pais e professores interpretasse a brincadeira como o prenúncio de um futuro de delinquência ou drogadição. Ao reprimir o que era natural como se fosse um problema, confundindo, agora sim, fantasia com realidade, poderiam causar um problema de verdade.

Para terminar, o que me parece arriscado não é quando a ficção espetaculariza a realidade. Esta é, com mais ou menos talento, uma das funções da ficção. O problema é quando a realidade é tratada não como a realidade que é, mas como espetáculo. Isto, sim, banaliza a vida humana. E temos convivido o tempo todo com a espetacularização da realidade em programas sensacionalistas travestidos de jornalísticos, em coberturas de ocupação de favelas em que repórteres e comentaristas comemoram a morte de supostos traficantes, como se suspeitos fossem culpados e culpados não fossem pessoas.

A espetacularização da realidade acontece sempre que a imprensa, responsável por documentar a vida cotidiana de homens e mulheres reais, anula a história que faz cada um ser o que é – e transforma gente encarnada em números sem carne. Mas a crescente espetacularização da realidade só vinga porque rende muita audiência – ou seja, porque recebe o aplauso de boa parte dos ditos “cidadãos de bem”, de muitos de nós.

Nestas últimas semanas, em minha opinião, a notícia mais chocante não foi a do matador do cinema do Colorado. Eu sei que há poucos James Holmes por aí. E que a maioria de nós, aqui ou nos Estados Unidos, vai continuar entrando e saindo vivo do cinema. Para mim, é muito mais chocante constatar, mais uma vez, que homens, mulheres e crianças estão sendo assassinados em conflitos nos lugares mais pobres, sofridos e violentos do mundo, neste momento e dia após dia, com armas fabricadas e vendidas pelo Brasil, como mostrou o jornalista Rubens Valente, na Folha de S. Paulo de 22 de julho.

Em 2001, o Brasil vendeu US$ 5,8 milhões em bombas de fragmentação e incendiárias para o ditador do Zimbábue, Roberto Mugabe. Cada uma delas pode espalhar, ao ser detonada, até 120 mil esferas de aço por uma área equivalente a sete campos de futebol, matando indiscriminadamente combatentes e civis. Na lista de compradores das empresas brasileiras de armamento já estiveram Muammar Khadafi e Saddam Hussein. Em 2011, cartuchos de bombas de gás lacrimogêneo fabricados no Brasil foram usados pela polícia turca em campos de refugiados sírios.

O aumento das exportações de material bélico é um dos objetivos do governo brasileiro, que criou para as empresas um programa de incentivos fiscais e condições especiais de financiamento. Na semana passada, fracassaram as negociações para um tratado internacional da ONU que obrigaria os países exportadores de armas a manter um registro das transações e avaliar se o material bélico vendido poderia ser usado para violar direitos humanos, cometer atentados ou alimentar o crime organizado. O Brasil foi um dos países que se manifestaram contra a “transparência absoluta”.

No início de julho, eu contei nesta coluna a história brutal da congolesa Marie Nzoli (leia aqui), com grande mobilização de leitores perguntando o que é possível fazer para “ajudar as mulheres do Congo”, vítimas de uma guerra complexa, prolongada e com múltiplas causas que já matou 5 milhões de pessoas. Para começar, é possível ligar os pontos. Já sabemos que os assassinatos, as torturas e os estupros que massacram o povo congolês foram – e talvez ainda sejam – praticados também com armas fabricadas e vendidas pelo Brasil. Afinal, ao comprar as bombas de fragmentação brasileiras, em 2001, o ditador Mugabe tinha como passatempo manter tropas do Zimbábue atuando na República Democrática do Congo. Esta é uma das realidades que podemos mudar – e que merece toda a nossa atenção.

É importante pensar em assassinos como James Holmes. Não porque a ficção supostamente teria influenciado suas ações e portanto seria preciso controlar a ficção – mas porque ele diz da realidade de nosso mundo. O caminho mais fácil é acreditar que o maluco não tem nada a dizer – e, assim, podemos fingir que basta removê-lo para que o mundo fique bom de novo. Mas o louco é aquele que diz explicitamente do mundo em que vive. E, ao dizê-lo, sacrifica várias vidas, mas também a sua. A tragédia do louco é que, ao denunciar a insanidade do mundo, colabora para manter tudo como está.

O mal cotidiano, permanente e insidioso, porém, é praticado por homens e mulheres que não cometem loucuras. Talvez os donos e executivos e funcionários das fábricas de armamentos do Brasil, que produzem as bombas que explodem crianças nos rincões esquecidos do planeta, proíbam seus próprios filhos de brincar com armas de brinquedo e assistir a filmes violentos na TV ou no cinema. É com a realidade – e não com a ficção – que temos de nos preocupar.

(Publicado na Revista Época em 30/07/2012)

 

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