Sobre Zúñiga, Neymar e “macacos”

Os xingamentos ao colombiano que tirou da Copa a estrela da seleção revelam o Brasil em que a abolição da escravatura jamais foi completada

 

O zagueiro Juan Camilo Zúñiga entrou bruto com o joelho nas costas de Neymar. Era um jogo duro e a seleção brasileira também já tinha protagonizado entradas fortes sobre membros adversários. De lado a lado, se acertava mais do que a bola, como não é raro acontecer em partidas decisivas. Se pode criticar a arbitragem, reivindicar que a Fifa dê uma punição ao jogador colombiano, sentir fundo a tragédia de Neymar, que passa a ser a de um país inteiro. O que não deveria poder é o que aconteceu na sequência. Pelas redes sociais, brasileiros chamaram Zúñiga de “preto safado”, pediram sua morte e xingaram sua filha pequena de “puta”. Nos últimos anos, vários jogadores brasileiros foram chamados de “macacos” por torcidas de outras nacionalidades. Na sexta-feira (4), eram brasileiros aqueles que, na internet, colaram num colombiano a expressão racista.

Não deveria acontecer, mas aconteceu. E aconteceu no dia em que os capitães dos times que disputaram uma vaga para a semifinal leram um manifesto da campanha contra o racismo: “Rejeitamos qualquer tipo de discriminação de raça, orientação sexual, origem ou religião. Através do poder do futebol, podemos ajudar e livrar o nosso esporte e a nossa sociedade do racismo. Assumimos o compromisso de perseguir esse objetivo e contamos com você para nos ajudar nesta luta”. Depois do hino, brasileiros e colombianos posaram para fotógrafos e cinegrafistas com uma faixa: “Say no to racism” (“Diga não ao racismo”).

E então a jogada bruta do campo expôs a brutalidade infinitamente maior fora do campo, aquela que trespassa a sociedade brasileira há séculos – e atravessa o futebol que encantou o mundo. O futebol é fascinante também porque, ao mesmo tempo em que suspende as tensões ao criar sua própria linguagem, as revela pela mesma razão. De repente, a “Copa das Copas” expôs o Brasil dos linchamentos, o Brasil que botou a polícia militar para barrar a entrada de jovens das periferias nos shoppings na virada do ano, o Brasil em que um adolescente negro foi preso a um poste pelo pescoço com uma trava de bicicleta.

Não tenho instrumentos para medir o alcance dessa reação racista. Torço para que seja minoritária. Mas é significativo que se destaque nos sistemas de busca. A palavra que se escolhe para agredir alguém não é casual, ela sempre diz muito mais de seu autor do que daquele que ele pretende ofender.

A certa altura, na noite após o jogo, pessoas no Twitter começaram a postar: “Por favor, não coloquem as palavras ‘Zúñiga’ e ‘preto’ no buscador. É pelo bem de vocês”. Ao escrever as duas palavras, aparecia o pior. Em uma foto postada no Instagram do jogador, sua filha pequena escreve na areia: “Papi te amo”. A menina e sua mãe são ofendidas, até de estupro se fala, como costuma acontecer com as mulheres.

Esses torcedores parecem esquecer dos tantos negros da seleção brasileira, assim como do maior de todos eles, Pelé. Ou mesmo de Neymar, já que, se a questão é de “cor”, o herói abatido está longe de ser branco. Parecem esquecer de olhar para si mesmos. Para eles, possivelmente, seja difícil ver. Ver e reconhecer-se.

Quem chama Zúñiga de “macaco” nas redes sociais demonstra uma enorme ignorância, em todos os sentidos do que é ignorância – e também sobre o futebol do Brasil. Em seu belíssimo livro, “Veneno Remédio – o Futebol e o Brasil” (Companhia das Letras), José Miguel Wisnik recorda que, ainda nos anos 30 do século 20, Gilberto Freyre dizia que o modo brasileiro de jogar convertia o “jogo britanicamente apolíneo” em “dança dionisíaca”, incorporando à sua técnica “o pé ágil mas delicado” do capoeira e do dançarino de samba. Freyre disse também que o futebol europeu, reto e anguloso, ganhou, no Brasil, contornos sinuosos e curvilíneos que arredondam e adoçam o jogo. Era a celebração da mestiçagem do país que ganhava – talvez – sua melhor expressão na linguagem dos pés.

O futebol começou no Brasil com os brancos, em clubes de elite. Sobrava aos negros as bolas de meia ou de qualquer material que se arredondasse, nos campinhos e nas ruas, nas margens. E foram nestas sobras que se agigantaram, subverteram o futebol dos ingleses, criaram uma poética. Demoraram a ser primeiro recebidos pelas portas dos fundos, depois tolerados e por fim aceitos e aclamados. Mas a tensão persiste apesar das décadas. Expressa-se como um corte no momento em que, seja na arquibancada ou na arena de vale-tudo das redes sociais, um jogador negro é chamado de “macaco”.

Então, por um rasgo no tempo, lembramos que o racismo ainda é uma marca terrível, escavando abismos na sociedade brasileira. Abismos que também se desvelam na brancura da torcida dentro dos estádios da Copa, contrastando com os negros que recolhem as latinhas na parte externa, restos de uma festa em que sobram nas margens. Ou limitam-se a assistir ao desfile da elite de seu país pelos portões das “arenas”, reafirmando o seu lugar no lado de fora.

É cheia de drama e de vergonhas a entrada dos negros nos clubes de futebol do Brasil. Alguns, como o grande Friedenreich, o mulato com sobrenome alemão, esticava o cabelo, usava gorros. Esbarrou sempre no preconceito da elite, preocupada com a imagem do país no exterior, empreendendo grandes esforços para esconder os negros do futebol brasileiro. Em 1920, quando a seleção visitou Buenos Aires, um jornal local provocou o elenco brasileiro chamando os jogadores de “macaquitos”. É possível, mas não há certeza, que esta tenha sido a primeira vez que a palavra foi usada para expressar a discriminação racial no campo do futebol brasileiro.

Outro que demonstrava a força dessa violência era o mulato Carlos Alberto, ao encher a cara de pó-de-arroz. “Não podia enganar ninguém, chamava até mais atenção”, descreve o cronista Mario Filho. “O cabelo de escadinha ficava mais escadinha, emoldurando o rosto, cinzento de tanto pó-de-arroz. Quando o Fluminense ia jogar com o América, a torcida de Campos Sales caía em cima de Carlos Alberto: ‘Pó de arroz! Pó de arroz!’”.

Depois que os negros passaram a jogar nos clubes, pela razão irremovível de que eram melhores, tinham espaço no campo, mas não na vida construída ao redor do futebol, como os saraus dançantes das casas finas. A certa altura, os negros eram chamados na crônica esportiva de “colored”, porque “preto” era um palavrão. A palavra inglesa buscava escamotear o que ainda envergonhava os brancos chiques: depender de negros para colecionar vitórias.

Toda essa saga de resistência, invenção e talento está lindamente contada no livro seminal de Mario Filho, “O negro no futebol brasileiro” (Mauad X), que todos os brasileiros deveriam ler, assim como qualquer pessoa que se interesse pelo país ou pelo futebol ou por ambos. Quando Leônidas da Silva, o famoso Diamante Negro, e Domingos da Guia se tornaram fenômenos de popularidade, carregavam com eles toda uma história brutal e fascinante que, ainda hoje, está longe de acabar. E que ficaria marcada depois no “Maracanazo”, o suposto trauma que ainda persistiria no Brasil atual, por ter perdido a Copa para o Uruguai, em 1950. Jogadores negros e especialmente Barbosa, o goleiro, foram escolhidos como culpados pela derrota, numa vitória que foi comemorada antes do jogo. Pagaram uma enormidade por algo que avançava muito além deles e do Maracanã. Com a vida para sempre assinalada, Barbosa apontado na feira, na praia, na rua como aquele que “tinha feito o Brasil chorar”.

O futebol festejado nesta Copa do Mundo de 2014 no Brasil é este, em grande parte moldado por negros que “roubaram” a bola e subverteram a narrativa. É também por este futebol que parte do país suspira, ansioso para tê-lo de volta. O futebol da ginga e do encantamento que também nos fez quem somos – mas sem saber hoje se ainda somos. Para Mario Filho, Pelé completou a obra da Princesa Isabel, (que assinou a abolição da escravatura). Mas a cada dia a realidade insiste em reeditar a certeza de que a abolição no Brasil jamais foi completada.

É o que acontece quando Zúñiga é chamado de “macaco” ou de “preto safado” por torcedores brasileiros porque entrou forte em Neymar, numa partida toda ela forte. Aqui, aparece ainda mais ignorância, sobre uma outra narrativa brutal, a do futebol na Colômbia. Essa geração, a de James Rodríguez, Cuadrado e Zúñiga, assinala uma travessia em curso no seu país, ainda com imensas fraturas. O presidente recém reeleito, Juan Manuel Santos, que estava no Castelão para assistir ao jogo, ganhou apertado com a bandeira de continuar negociando com as Farcs (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia). A geração anterior de futebolistas entrava em campo sob os gritos das torcidas, que os chamavam de “narcotraficantes”.

James, Cuadrado e mesmo Zúñiga encarnam uma possibilidade, um novo, na simbologia em construção de uma Colômbia que tenta fazer do futuro um presente. Quando ignorantes pedem a morte de Zúñiga – ou “a ele o mesmo destino de Escobar” – estão incitando um crime. Há 20 anos Andrés Escobar foi assassinado em Medellín dias depois de ter feito um gol contra na Copa do Mundo nos Estados Unidos. Vomitar a ignorância, também de um processo histórico, clamando pela morte de Zúñiga nas redes sociais – esta sim, uma maldade explícita – é uma covardia monumental.

Talvez não saibam o que fazem, mas deveriam saber. Está na hora de a “pátria de chuteiras” entender mais de futebol.

(Publicado no El País em 07/07/2014)

A não vítima

Um golpe na Internet reflete tanto o crime da sociedade contra as mulheres que envelhecem quanto a natureza complexa do amor

 

Primeiro, o golpe.

Um homem se apresenta no Facebook dela, psicanalista e escritora. Ele mora nos Estados Unidos, mas é irlandês com mãe brasileira. É viúvo, tem dois filhos, um adotado, já adulto, de 25 anos, e uma adolescente de 13. Trabalha com geologia e faz negócios com petróleo. Tem 60 anos, sente-se sozinho, faz seis anos que se tornou viúvo e busca um amor para dividir a vida. Por inspiração da mãe, começou a buscar perfis de brasileiras no Facebook. Chegou até ela, explica, pelo sorriso da foto. Eles conversam em inglês. O inglês dele é melhor do que o dela, ele a corrige com carinho, a ensina. O inglês dela melhora a cada dia. Tornam-se presentes um para o outro, apesar da distância. Pelo Facebook e, cada vez mais, pelo viber. Ele acompanha o dia dela, ela acompanha o dele. Ele quer saber o que tem para o jantar, como foi o dia de trabalho, como ela dormiu, qual é a crocância do pão no café da manhã, o que a deixa triste ou feliz, do que ela tem medo. Ela, viúva também, com mais de 60 anos, filhos adultos com suas próprias famílias, descobre que se sentia só antes dele. Que, apesar de gostar do seu trabalho, de conviver com vários bons amigos, de ter uma vida rica de sentidos, faltava algo da ordem do essencial. Antes dele, ela tinha aceitado com demasiada facilidade que o amor e o sexo estavam encerrados para ela. Antes dele, tinha sido obediente demais ao sujeitar-se ao padrão social que impõe o envelhecimento da mulher como o fim do desejo – ou como a impossibilidade de despertar paixão. Percebe que lhe faz falta compartilhar o que chama de “o comum da vida”. E agora, a cada noite, ela diz: “Me acolhe nos seus braços”. E ele a acolhe. Ela dorme entre braços imaginários, mas tão reais. E a cada manhã, ele divide com ela o pão com manteiga, o croissant, a geleia de pêssego. Divide também as dúvidas, os sonhos dele de se aposentar em breve para viver outro tipo de vida, o passeio ao zoológico que ele faz com a filha, as demandas da bela casa em que ele vive e que ela já conhece por fotos. Conversas comezinhas, conversas tão importantes. Em determinado momento, ele faz um comentário picante. Gostaria de vê-la preparando o jantar de calcinha. Ela dá uma resposta seca. Ele recua, nunca mais faz nenhuma alusão. É um homem sensível, às vezes é possessivo, ela gosta. É como se ele a conhecesse por dentro, como se a tivesse conhecido desde sempre, porque a compreende. Mas não é um galã. As fotos que ele envia para ela, muitas, são fotos de gente comum, nem tão bem enquadradas, nem tão bem focadas, sempre posadas, como são as fotos de gente comum. Ele é um homem da sua idade, sem barriga tanquinho, sem músculos jovens, com as marcas do tempo, os cabelos brancos, entradas que anunciam a calvície. Como ela, que é bela, mas carrega todas as suas marcas. Ela surpreende-se consigo mesma. Não imaginava apaixonar-se por alguém tão “real” assim. Alguém que envelhece como um homem comum, sem nenhuma excepcionalidade, exceto a de estar presente, de compreendê-la tão bem, de querer estar com ela. E ele quer. Pergunta se ela estaria disposta a mudar-se para os Estados Unidos para tentar uma vida com ele, se seria capaz de ajudá-lo a terminar de criar a filha adolescente. Como ele poderia adivinhar que ela sempre quisera uma filha, mãe de meninos que era? Ela busca algo físico nele, encontra as mãos. Acha as mãos dele lindas, fortes. Mãos de homem. Quer as mãos dele sobre o corpo dela. Agora é mais sério. Ele virá ao Brasil só para vê-la, para descobrirem se o romance virtual realiza-se no concreto dos dias, se a pele responde ao toque, se é possível sonhar com uma vida juntos sem a mediação da tecnologia. Ela conversa com a filha dele pelo telefone. A menina diz: “Eu amo você porque você ama o meu pai”. Ela vai para Paris visitar um dos próprios filhos, e ele já conversa com a sua nora pelo celular. O filho dela está preocupado, questiona, duvida, aponta as incongruências da história. Ela não quer escutar. Cobre os buracos do roteiro com seu desejo de continuar vivendo um romance. Pesquisa hotéis no Brasil, peregrina com as amigas por lojas de lingerie. Ela sabe que a pele já não tem a elasticidade da juventude, que os músculos são flácidos, mas sente-se linda. Abre o provador mal coberta por rendas, sem pudor – onde foi parar o pudor? Pergunta: “Como eu estou?”. Ela sabe como está. Linda. Emagrece quase 10 quilos, já não sai na rua de qualquer jeito, sente-se desejada quando passa. As pessoas já não acreditam que ela esteja na fila certa quando se posta junto aos idosos no banco. Ela está ansiosa. Muito. Antes de vir ao Brasil, porém, ele fará uma viagem rápida à Nigéria, junto com o filho. Vão tratar de negócios de petróleo. Em seguida, virá vê-la. Ela prepara-se para a chegada dele. Imagina várias vezes por dia o momento em que ele emergirá da sala de desembarque do aeroporto. Se ele vai dar um sorriso quando a enxergar. Se arrancará sua calcinha, acertará o fecho do sutiã. Imagina o sexo. Não lembra quando foi tão feliz, tão inteira. No dia da viagem para a Nigéria, ele manda fotos dele de terno, roupas de viagem, uma pasta elegante de trabalho. Envia fotos de vários momentos, ela o acompanha quase em tempo real.

De repente, ele passa horas em silêncio. Ela preocupa-se, pede notícias. Quando ele finalmente responde, está arrasado. Foram assaltados no país africano. Os ladrões levaram cartões de crédito, dinheiro, documentos, tudo. O filho reagiu e está em coma num hospital. Ao final da mensagem, ele pergunta se ela poderia lhe emprestar dinheiro. Só 775 dólares para pagar o hospital e o transporte até o aeroporto. Ela então desconfia. Por que ele não procura a embaixada americana, por que não conversa com seus parceiros de negócios? Ela começa a achar a história mirabolante demais. Ele já tem o nome e uma conta de alguém que o ajuda, explica como ela pode fazer uma remessa de dinheiro do Brasil. Ela percebe que o tom dele mudou. Titubeia. Ele a pressiona, ela não gosta. Quanto mais ele pressiona, mais ela recua. A filha dele manda uma mensagem pedindo notícias do pai, preocupada com a falta de informações. Ela fica ainda mais desconfiada. Não dará o dinheiro, mesmo que isso signifique perdê-lo. O romance acaba. Ao voltar aos Estados Unidos, ele ainda diz para ela. Sua primeira crueldade explícita: “Você não respondeu para a minha filha. Você não tem condições de ser mãe”. Logo depois, o perfil dele desaparece do Facebook.

Ela faz o que poderia ter feito muito antes. Se quisesse. Se realmente quisesse. Pesquisa as fraudes do gênero na Internet. Descobre os blogs e sites brasileiros e internacionais sobre as quadrilhas que atuam no golpe cada vez mais comum. Vê supostas fotos dos criminosos. Vários homens amontoados num cubículo com seus lap tops no colo conversando com mulheres como ela. Mulheres como ela significando mulheres mais velhas e sozinhas, mulheres carentes e por isso mais frágeis, mais dispostas a acreditar no inacreditável. Mulheres já desacostumadas a serem desejadas. Enviando a elas fotos de outros homens, que possivelmente não saibam que são usados para seduzir. Imagens capturadas nas redes sociais, podem ser de qualquer um. Um golpe bem planejado, a vítima em potencial é contatada só depois de uma pesquisa na Internet. Inclusive de suas condições para manter um romance em inglês, o que no Brasil é um indício de pertencer pelo menos à classe média e, portanto, ter algum dinheiro guardado ou acesso à crédito. Para cada uma delas um perfil de homem, em imagens e história de vida, uma proposta que já sabem esperada por aquela mulher tão meticulosamente analisada. Para cada mulher uma abordagem, uma forma de se comportar, um rosto e uma personalidade correspondentes às fantasias dela, um enredo adequado àquela que expõe – pode ser mais ou menos, mas expõe – um pouco de si a cada dia nas redes sociais.

Ao seu redor, amigos e familiares não acreditam como ela, uma mulher tão inteligente, tão vivida, tão bem sucedida, tão conectada ao mundo, pode ter caído num golpe. Um golpe assim era para outras, não para alguém com seu perfil. Ela lê depoimentos de mulheres como ela que foram muito além dela, mulheres que perderam milhares de dólares que haviam economizado ou mulheres que se endividaram para manter o roteiro amoroso vivo. Lê entrevistas com supostos criminosos que contam como o esquema funciona. Naquela noite vê fotos dos quadrilheiros, que assume como reais – podem não ser, como as do amante não eram, mas ela acredita que sejam. Se antes acreditou no romance, agora acredita na fraude. Fica mal. Bem mal.

É a sua noite de vítima. “Eu os identifiquei com ratos. Parecia que ratos andavam sobre o meu corpo. Eu expus tanto a minha intimidade, e era para aqueles homens das fotos na Internet ou outros como eles. Um ao lado do outro, sentados no chão, falando com mulheres como eu. Me expus não com fotos da minha nudez, porque não faria isso, mas de forma muito mais profunda do que isso. Passei a noite encolhida, com os ratos sobre o meu corpo.”

É o segundo capítulo da vítima. A enorme vergonha de ter caído numa história como essa, que agora para todos aparece claramente como uma fraude desde sempre. E o discurso que corre por baixo, o discurso social. Nem sempre pronunciado, mas presente: “Então você achou que, aos 50, aos 60, um homem iria se apaixonar perdidamente por você?”. Agora é oficial, você não só é uma vítima, mais pobre e mais endividada depois do golpe, mas “uma mulher velha e burra”. E como espernear contra esse encaixotamento imposto às mulheres, depois de ter se entregado a um homem que jamais existiu? Depois de estar se sentindo uma “mulher velha e burra”? De intuir que se sentirá uma “mulher velha e burra” para sempre? É a aniquilação final.

Não necessariamente, porém. Pode ser. Ou não.

Essa é a parte mais interessante. Quando nos encontramos, ela queria denunciar o golpe sem se identificar. O desejo que me anuncia é o de que outras mulheres sejam alertadas para a fraude. É um desejo comum, eu o escutei muitas vezes. Há as vítimas que se calam por vergonha (ou por medo, no caso das que são violadas e espancadas). Essas ficam presas no lugar de vítima, precisam de ajuda para romper com o silêncio de algum modo e sair do lugar que as condena à imobilidade. Ou permanecem para sempre como estátuas aprisionadas num gesto que estanca a vida. Mesmo quando o ato que as vitima cessa, elas continuam vítimas, porque não conseguem dar sentido ao vivido e se inventar de outro jeito. Acreditam que só sabem ser vítimas, que vítima é tudo o que são. Agarram-se a essa identidade como se fosse a própria pele porque, por mais incômoda que seja, estão lidando com o conhecido.

E há aquelas que rompem com o lugar da vítima denunciando, seja à polícia, seja a outras mulheres, à imprensa, ao mundo inteiro. Criam um blog ou uma ONG, algumas passam a perseguidoras de seus algozes, outras ajudam mulheres que passam por experiências semelhantes a sair da paralisia. Essas deslocam sua posição no jogo. De certo modo, continuam identificadas com o vivido, que determina suas escolhas dali em diante, mas pelo avesso e de forma ativa. A pele de vítima já não as veste.

Conversamos por duas horas e meia. Conheço o seu nome e o seu trabalho, mas é nosso primeiro encontro ao vivo. Ao escutá-la, percebo que ela teve o seu momento de vítima, a noite dos ratos. Era necessário que assim se reconhecesse, porque foi efetivamente enganada. Era um fato. E não se nega os fatos. Mas, em seguida, é necessário dar sentido a eles. Sem isso, o lugar de vítima se cristaliza. Em vez de uma mulher complexa, com suas perdas e seus anseios, haverá apenas um arremedo dessa mulher, o da vítima que jamais supera sua condição. Sem criar sentidos que permitam seguir adiante, seria preciso acreditar na versão de quem tentou extorqui-la, a de que é uma “mulher velha e burra” que acredita em qualquer coisa, inclusive que pode ser amada e sexualmente desejada, apesar de não ser jovem nem ter um corpo de passarela.

Aceitar essa versão como a única verdadeira tem roubado algo muito mais importante do que dinheiro das mulheres que caem nessa fraude. Aceitar essa versão é cimentar o olhar social que permite que fraudes como essa aconteçam. É deixar-se enquadrar numa cultura que oprime as mulheres com o mito contemporâneo da eterna juventude. É acatar a ideia de que marcas e beleza não são compatíveis, de que desejo, paixão e sexo são prerrogativas limitadas pela idade.

Ela, não. Ela desfere um contragolpe.

Já não estou diante de uma vítima. Pergunto a ela: “Se você soubesse o que sabe agora, que esse romance é uma fraude, preferia não tê-lo vivido?”. Ela não hesita: “Preferia ter vivido tudo o que vivi. E ter parado exatamente onde parei. Ele me deu muito”.

Não é uma ilusão. Por paradoxal que pareça, ela ganhou muito. Enquanto viveu o romance, ele era real. O homem, que hoje sabemos que não existe, era real. Essa realidade a resgatou, dia a dia, de uma vida menos viva. “Eu precisava do olhar do outro. De um homem que não corresse quando eu dissesse a minha idade, que me lembrasse de que sou desejável, que me lembrasse principalmente de que quero compartilhar não o extraordinário, mas o comum da vida. Quero ter alguém comigo dividindo o café da manhã, compartilhando as experiências do cotidiano e também arrancando a minha calcinha. Estou aberta para isso e antes não estava. Ele me devolveu algo que estava anestesiado em mim. Às vezes era tão forte essa percepção que sentia como se tivesse voltado a ovular. De certo modo voltei, não biologicamente, mas de uma maneira mais profunda. Antes eu me sentia só um corpo mais flácido do que na juventude, um rosto marcado pela idade. O olhar dele foi o espelho onde eu pude me enxergar muito além disso, pude me enxergar como uma mulher, na inteireza do que é ser uma mulher. Ele não existe? Talvez seja um coletivo de pessoas conversando comigo para me extorquir depois? Mais um golpe sórdido? Não importa. Porque esse olhar sobre mim mesma ninguém pode me tirar, esse olhar agora é meu. Seja lá quem for, me despertou, me ajudou a resgatar a minha integridade como mulher, como pessoa, o muito mais que eu sou para além de um corpo que envelhece. Nesse sentido, sou muito grata.”

Para ela, talvez o conselho a outras mulheres seja: “Caia no golpe, acredite, mas não pague”. Mesmo os 700 dólares, que seria só o início da extorsão, seria um preço baixo a pagar pelo que recebeu, caso tudo se resumisse a uma troca de mercado. É uma brincadeira, claro. Para que ela possa manter a realidade do que viveu, mesmo depois de saber que se tratava de uma fraude, era preciso que fosse real em algum momento. O amor que viveu, mesmo depois de comprovado o golpe, é real no que nela produziu de realidade. Sob esse olhar, o maior lesado foi o golpista, que não viveu nem o amor, nem recebeu o dinheiro.

Se o golpe só funciona porque a sociedade ocidental determinou que mulheres deixam de ser desejáveis ao envelhecer, a maior perda seria não financeira, mas acreditar nessa construção social como uma verdade totalizante. Talvez essa seja a fraude maior, aquela que arranca dessas mulheres, dia após dia, algo muito mais caro do que dinheiro. Arranca-lhes uma dimensão da vida. Para esse crime não há polícia, não há quadrilha, não há materialidade. Para esse crime só existe a resistência, a não capitulação de cada uma.

Para esse crime há o que ela fez: o contragolpe. Ela mostra as fotos do homem que para ela agora é um ex-namorado, de uma história de amor que deu certo por algum tempo e acabou por razões bastante heterodoxas. Ela ainda está se despedindo dele, por isso as fotos continuam no celular. “Olha essas mãos, olha esse peito”, comenta. Eu não vejo nada que despertaria meu desejo, aquele homem não diz nada para mim. De certo modo, não é assim o amor? Uma verdade apenas para aquele que o vive, que vê no objeto do amor o que ninguém mais vê? O outro não é, em certa medida, uma construção, uma realidade particular daquele que ama, como mostra Ela, o brilhante filme de Spike Jonze?

Ela me parece bem. E uma mulher tão bonita.

Entre as mudanças que o romance produziu nela, está a de se descobrir capaz de se apaixonar por um homem possível. Não um padrão de beleza, não um cara mais jovem, um homem da sua idade, com sua bagagem particular de derrotas, perdas, desejos e sonhos. Passado, mas também presente. De novo o paradoxo: o homem que era uma fantasia a ensinou a acolher o homem real.

A cada vez que ela sai de casa, agora, arruma-se pensando que pode encontrar esse companheiro possível. Sem esquecer, jamais, que amar é um risco. Não só o da fraude, que ela acabou de viver, mas um risco ainda maior, que é o de não ser uma fraude. O de se arriscar ao outro, a ser alcançada por um outro. Um risco fascinante, que agora ela voltou a achar que vale a pena.

Quando nos despedimos, ela se preparava para pegar um avião para passar o dia com um velho amigo, um com o qual sabe que não viverá uma história cotidiana, mas que poderia abraçá-la naquele momento. Enquanto aquele, que ela ainda não conhece, estava atrasado para o café da manhã, depois de tanta expectativa ela achava que poderia ser bom ter um homem que simplesmente lhe arrancasse a calcinha. Ele havia lhe dito: “Venha, os ipês floresceram”.

Há alguns dias, recebi uma mensagem dela: “Os ipês, exatamente, não vi… Mas voltei florescida”.

 

(Publicado no El País em 09/06/2014)

A maldição do amianto

Vítimas lançam uma ofensiva internacional para cassar os títulos e prêmios do bilionário Stephan Schmidheiny, ex-dono da Eternit suíça. No Brasil, miram na Ordem do Cruzeiro do Sul, dada a ele pelo presidente Fernando Henrique Cardoso

 

Se depender das vítimas do amianto, 2014 poderá ser o pior ano da vida do bilionário suíço Stephan Schmidheiny. Elas preparam-se para abrir mais uma frente na luta pelo banimento da fibra cancerígena. Desta vez, miram em algo talvez mais valioso do que a própria fortuna do empresário cuja família fundou a Eternit suíça. Durante o século 20, o grupo industrial plantou fábricas pelo mundo e semeou com elas doenças fatais como asbestose (conhecida como “pulmão de pedra”) e mesotelioma (o chamado “câncer do amianto”). Agora, o alvo de doentes e familiares é o patrimônio imaterial ao qual o suíço dedicou muito dinheiro, batalhões de marqueteiros e os melhores esforços: sua biografia.

No Brasil, os advogados da Associação Brasileira dos Expostos ao Amianto (ABREA) pretendem cassar a prestigiosa Ordem do Cruzeiro do Sul, concedida ao suíço pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso em 1996. A ofensiva faz parte de uma estratégia internacional das vítimas, liderada pela Itália. Desde o ano passado, a organização italiana AFEVA (Associação de Familiares e Vítimas do Amianto) pressiona a Universidade de Yale, nos Estados Unidos, para revogar o título de doutor “honoris causa” em letras humanas concedido a Schmidheiny também em 1996. Na Venezuela e na Costa Rica, iniciativas semelhantes começam a ser articuladas para pressionar instituições que o premiaram. A meta é apagar um a um os títulos e prêmios exibidos pelo bilionário em sua biografia oficial. Para cada uma das honrarias há um grupo de vítimas se organizando para pressionar pela sua anulação. “Nós não estamos interessados na destruição de um ser humano, mas na busca da verdade. E a verdade é que não há ‘honra’ na conduta do senhor Schmidheiny”, escreveu Bruno Pesce, coordenador da AFEVA, à direção da Universidade de Yale.

Stephan Schmidheiny é um personagem trágico do mundo contemporâneo. Para parte da humanidade um vilão, para outra parte um herói. Durante a década de 90, ele foi extremamente cuidadoso ao construir uma biografia que pudesse apagar – ou pelo menos ofuscar – o seu papel de protagonista naquela que é conhecida como “a maior catástrofe sanitária do século 20”: as dezenas de milhares de mortes no mundo inteiro por contaminação de amianto (asbesto), uma parte significativa delas ocorrida dentro das fábricas da Eternit suíça, de sua família, ou no raio de alguns quilômetros do seu entorno.

Quase conseguiu.

A família Schmidheiny, uma das mais ricas da Suíça, fez fortuna explorando o amianto a partir do início do século 20. Em 1969, aos 22 anos, Stephan chegou a estagiar na fábrica da Eternit em Osasco, na Grande São Paulo, período em que conheceu alguns dos operários que acabariam morrendo pelas doenças causadas pela fibra. Em 1976, aos 29 anos, assumiu a direção dos negócios da Eternit suíça e, segundo sua versão, decidiu encerrar a produção e vender a empresa ao descobrir que o amianto causava doenças graves, algumas delas fatais. Mas a Eternit deixou as mãos da família somente em 1990. Não foi fechada, mas vendida, deixando para os novos donos a lucrativa produção, assim como o passivo humano e ambiental. Em seu site, o momento é descrito nos seguintes termos: “1988 – início da venda de todas as participações do grupo suíço Eternit, que concluiu no final da década de 1980. As participações foram vendidas para os sucessores legais com todos os direitos e deveres”. O grifo é meu.

É preciso compreender o contexto em que o clã Schmidheiny se retira do negócio responsável por grande parte da sua fortuna durante quase um século. Naquele momento, a Europa já enfrentava o “escândalo do amianto”, com milhares de vítimas. Estima-se que só na França morrerão 100 mil pessoas de doenças relacionadas ao asbesto até 2025. Os primeiros países europeus a vetar a matéria-prima foram a Islândia, em 1983, e a Noruega, em 1984. Progressivamente, o amianto foi sendo eliminado em diversos países até a proibição total pela União Europeia, em 2005. Hoje, o amianto está banido de 66 países, uma lista honrosa da qual o Brasil não faz parte.

Documentos provam que a indústria tinha informações sobre a relação entre amianto e doenças letais desde o início do século 20. Nos anos 30, já havia estudos importantes atestando o potencial mortífero do asbesto, ao ser inalado, causando doenças que levavam anos e até décadas para se manifestar. Uma delas, a asbestose, mata a vítima lentamente por asfixia, ao endurecer o pulmão a ponto de impedir a ação de inspiração/expiração. Milhares de trabalhadores no mundo inteiro morreram asfixiados depois de dedicar sua vida à Eternit suíça e outras empresas de amianto. A maioria deles ainda lutando na justiça por indenização e assistência. No Brasil, empresas como a Eternit criaram um procedimento padrão. Quando os operários estavam perto da morte, quase sem conseguir falar, seus representantes apareciam no hospital oferecendo quantias irrisórias e um documento pronto para assinar, no qual eliminavam a possibilidade de qualquer futura reivindicação judicial pelos familiares. Desesperados, com dor, sem ar, muitas vítimas assinaram os papeis da vergonha.

No primeiro momento, a indústria do amianto negou o caráter tóxico da fibra. Depois, quando se tornou impossível abafar o crescente número de doenças e de mortes de operários, muitos deles por mesoteliomas e outros tipos de câncer relacionados à contaminação por asbesto, assim como pesquisas com resultados cada vez mais contundentes, mudou o discurso e passou a disseminar a ideia do “uso controlado do amianto”. Tentava convencer que, com precauções e proteção, era possível continuar produzindo sem arriscar a vida dos trabalhadores. Para isso gastou – e segue gastando – milhões de dólares para pagar marqueteiros, lobistas e cientistas com a missão de fazer essa ideia circular – e preponderar. O Brasil, país em que o amianto é proibido apenas em seis estados (Rio Grande do Sul, São Paulo, Pernambuco, Rio de Janeiro, Mato Grosso e Minas Gerais), é um exemplo de como a estratégia tem funcionado à custa de vidas humanas, de contaminação ambiental e, em breve, de uma sangria considerável nos cofres públicos da saúde e da previdência.

Ao promover sua saída estratégica dos negócios do amianto, Stephan Schmidheiny passou a executar uma espécie de “lavagem de biografia”. O bilionário suíço cunhou o conceito de “ecoeficiência”, tornando-se um dos expoentes da Rio-92, a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, e criou as fundações Fundes e Avina. Esta última, bastante conhecida também no Brasil, financia projetos de redução da pobreza em diversos países. Colecionador e conhecedor de arte, circulou desenvolto na cúpula de museus como o prestigiado Museu de Arte Moderna (MoMA), de Nova York. Como “empreendedor moderno e filantropo” fez conferências em universidades da Ivy League americana, como Yale. Em 2003, criou uma entidade chamada Viva Trust, a qual doou US$ 1 bilhão, para financiar os projetos sociais e ambientais da Avina. Neste ato, anunciou sua retirada do mundo dos negócios, distribuindo um cartão no qual, abaixo do seu nome, estava escrito: “piloto de helicóptero e mergulhador”.

A conversão da biografia, de príncipe do amianto para filantropo socioambiental, parecia ter sido concluída com enorme sucesso. Reportagens laudatórias em revistas internacionais – e também brasileiras – o estampavam na capa ou em páginas nobres. Tudo parecia correr muito bem para Stephan Schmidheiny, como havia ocorrido para muitos antes dele em áreas as mais diversas. Até 13 de fevereiro de 2012. Nesta data, ele foi condenado, pelo Tribunal de Turim, a 16 anos de prisão e ao pagamento de 100 milhões de euros pela morte de milhares de pessoas por doenças relacionadas ao amianto, contaminadas em plantas da Eternit na Itália. O crime foi descrito como “desastre ambiental doloso permanente e omissão dolosa de medidas de segurança para os operários”. Em 3 de junho de 2013, a sentença não só foi confirmada em segunda instância, como foi ampliada de 16 para 18 anos de prisão. Está prevista para 2014 a sentença final, em Roma. O outro réu, o barão belga Jean-Louis Marie Ghislain de Cartier de Marchienne, morreu no ano passado. Durante o julgamento, ao qual Schmidheiny não compareceu, o homem que foi festejado na revista americana Forbes como o “Bill Gates suíço” teve seu nome coroado pela palavra “assassino”.

O comportamento da Eternit foi sendo descrito no tribunal, hora após hora, por homens e mulheres que, ou perderam seus pais, mães, maridos, esposas e filhos por doenças causadas pelo amianto, ou estavam na iminência de perder, eles mesmos, sua própria vida em processos cancerígenos dolorosos antes de o julgamento chegar ao fim. Gente como a italiana Romana Blasotti Pavesi, que perdeu o marido, a irmã, um primo, um sobrinho e, por fim, a filha de mesotelioma causado por amianto. Apenas o marido tinha trabalhado na fábrica. Cidadãos de Casale Monferrato, a cidade dominada por uma planta da Eternit durante quase todo o século 20, relataram o momento em que descobriram que não apenas os operários e seus familiares morriam, mas também pessoas de outras profissões (jornalistas, médicos, professores etc), que nunca haviam manipulado diretamente a fibra, mas tinham sido afetados pela contaminação ambiental.

Na sentença, afirma-se que, em 1976, diante das crescentes notícias sobre a relação entre asbesto e doenças crônicas e fatais, a indústria promoveu uma conferência na Alemanha para discutir estratégias para enfrentar o problema sem deixar de produzir com amianto. Stephan Schmidheiny estava presente neste encontro. Também enfatiza-se que ele participou de ações visando a confundir a opinião pública, ao desqualificar ou lançar dúvidas sobre as pesquisas científicas que comprovavam o efeito nefasto da fibra mineral para a saúde. Por fim, a corte concluiu: “Stephan Schmidheiny estava completamente consciente em 1976 dos estudos epidemiológicos para a relação causal entre aspirar as fibras de amianto e o estabelecimento de doenças”. Após a sentença, a mesma imprensa que por anos louvou o empreendedorismo, a caridade, a visão e o desprendimento do bilionário foi obrigada a recuar.

Ao mirarem a biografia de Stephan Schmidheiny, as vítimas do amianto estão disputando a escrita da história. Mas num momento muito particular. Enquanto a maior parte do mundo desenvolvido já baniu a matéria-prima e lida com o passivo humano e ambiental, parte das potências emergentes, como o próprio Brasil, ainda é bastante permeável ao lobby da indústria, quando não conivente com o adoecimento e a morte de pessoas. O Brasil é hoje o terceiro produtor mundial de amianto, o terceiro exportador e o terceiro usuário de amianto. É interessante perceber que, no Brasil, enquanto o amianto rareia nas regiões mais nobres das grandes cidades, continua amplamente usado em favelas e periferias, aldeias indígenas, comunidades quilombolas e ribeirinhas, e nas casas de pequenos agricultores, inclusive – e talvez especialmente – na Amazônia.

Neste contexto, a disputa narrativa sobre a biografia de Stephan Schmidheiny torna-se estratégica para a luta pelo banimento do amianto. E poderá definir tanto a aceleração de alguns desfechos como a inclusão de novos capítulos numa história em construção. Não há dúvida de que o amianto é um thriller real que poderia dar um filme tão revelador sobre os métodos de sua indústria quanto foi O Informante para o ramo do tabaco. Ou mesmo um filme como Obrigado por fumar, sobre “os lobistas do mal”. Há poucas dúvidas de que passará para a história como um dos maiores escândalos trabalhistas e sanitários do século 20 – e 21. Mas a imagem e o lugar de personagens centrais como Schmidheiny ainda estão em disputa.

Ao empreenderem batalhas articuladas para cassar seus títulos, prêmios e honrarias, as vítimas do amianto desejam impedir que triunfe a narrativa de Schmidheiny, mais bem exposta numa versão antiga de sua biografia, contada em primeira pessoa, mas já substituída em seu site oficial: “A família Schmidheiny sempre vivera discretamente, afastada do olhar público. De repente, me vi nas primeiras páginas dos jornais, ligado aos efeitos nocivos do amianto, os mesmos efeitos contra os quais eu tentava proteger os meus empregados e o grupo. Isso foi muito difícil, não só para mim, como também para minha família e meus amigos. Naquele momento, concluí que era incapaz de calcular por mim mesmo o verdadeiro grau dos riscos envolvidos na fabricação de produtos de cimento-amianto. Nossos assessores achavam que os estudos científicos destinados a provar os efeitos nocivos desse material estavam cheios de contradições. Eu percebia que a falta de um consenso científico e técnico transparente em relação ao amianto e a imprevisibilidade dos seus efeitos impossibilitavam qualquer planejamento ou gestão de risco confiável. Concluí então que essa não era uma perspectiva muito promissora para estar envolvido. Ao mesmo tempo, tomei uma decisão radical. Sem ter a mais mínima ideia de como iríamos implantar a mudança, anunciei publicamente que o grupo interromperia a fabricação de produtos contendo amianto. Posso me lembrar muito bem das palavras de um dos gerentes técnicos depois do meu anúncio: ‘O jovem Schmidheiny está louco! Quer fabricar produtos Eternit sem amianto. É como querer encontrar água seca…’ Tomei a decisão de não utilizar mais amianto baseado nos problemas de saúde e ambientais associados a esse mineral. Mas também tive a impressão de que, em uma época de crescente transparência – bem como de preocupação com os riscos para a saúde – seria impossível desenvolver e manter um negócio bem sucedido baseado no amianto. Tal intuição fez com que eu começasse a considerar seriamente a relação entre os negócios e a sociedade. Foi um período doloroso, mas uma preparação de valor inestimável para minha posterior dedicação a uma posição de liderança em assuntos relacionados aos negócios e sociedade.”

No site atual, este momento é assim resumido na sua biografia, agora contada em terceira pessoa: “O jovem advogado licenciado ingressou na Eternit Suíça quando tinha somente 29 anos de idade, assumiu sua liderança depois de pouco tempo e imediatamente começou a impulsionar a saída do processamento de amianto, que foi considerado um logro pioneiro em nível mundial”.

Esta versão é considerada pelas vítimas e por seus advogados um produto do competente processo de lavagem de sua biografia. “Não vou entrar no mérito de sua vida posterior ou de seu dinamismo como empreendedor. Mas não há sentido purificador nesta venda. Schmidheiny fez uso econômico da Eternit, com frutos econômicos. Não foi uma doação. Ele a vendeu, fazendo com que os produtos de amianto continuassem a ser produzidos pelo novo comprador”, afirma Mauro Menezes, advogado da ABREA. “Não convém ao nosso país manter uma medalha concedida a alguém que posteriormente foi condenado criminalmente por omissão dolosa de proteção à saúde de milhares de pessoas.” Roberto Caldas, também advogado da ABREA – e hoje juiz da Corte Interamericana de Direitos Humanos – afirma: “Uma comenda é um sinal para a sociedade de que aquele indivíduo agraciado realizou um grande serviço ao país. A partir do momento em que se percebe que o indivíduo ‘fugiu’ do que se acreditava, nada mais natural que a honraria seja retirada. Não pode um criminoso continuar ostentando uma honraria como essa e comprometendo a imagem do país”.

No Brasil, a principal protagonista da luta pelo banimento do amianto é a engenheira Fernanda Giannasi. Auditora fiscal do Ministério do Trabalho por 30 anos, ela aposentou-se em agosto para se dedicar em período integral à causa que já lhe rendeu ameaças de morte. “Lutar para retirar a Ordem do Cruzeiro do Sul dada a Schmidheiny é mais uma frente para passar a limpo a história desse crime social ‘quase perfeito’”, afirma. “Essa luta significa a desglamourização de um personagem que foi entronizado pelo movimento ambientalista no início da década de 90 como um guru, mas que faz parte do grande quebra-cabeça que é a extraordinária história desse crime corporativo industrial multinacional, que atravessou todo o século passado quase impune.”

A disputa pela biografia do bilionário suíço não será fácil. A aura de Schmidheiny se mantém em algumas esferas elevadas mesmo após a condenação no Tribunal de Turim. A troca de cartas entre o escritório de advocacia que representa as vítimas italianas e a Universidade de Yale é uma prova. Esta foi a resposta da direção de Yale ao pleito das vítimas: “Yale concedeu a honraria ao senhor Schmidheiny pela sua defesa em prol de um desenvolvimento e crescimento econômico sustentáveis. A decisão de premiá-lo foi tomada por um comitê que levou em conta todo o seu histórico: o de um filantropo que usou sua riqueza para destinar fundos ao crescimento sustentável na América Latina e em todo o resto, um pioneiro defensor internacional na mudança da forma como as empresas encaram a sustentabilidade ambiental e um empresário que herdou e desmantelou um processamento de amianto de décadas. Não há registro de Yale ter revogado alguma vez um título honorífico e nós não estamos considerando este passo no caso do senhor Schmidheiny”.

Christopher Meisenkothen, advogado que representa as vítimas italianas, retrucou: “Uma diminuição real do valor das honrarias de uma instituição ocorre quando o grupo de agraciados é afetado pela inclusão de personagens controversos. Eu gostaria de imaginar que uma instituição como a Universidade de Yale gostaria de manter e proteger a integridade de seus títulos honoríficos, assim como promover os altos padrões éticos com os quais reconhece os contemplados”.

O advogado das vítimas pediu a relação de doações feitas por Schmidheiny à universidade. Numa primeira carta, Yale negou que tenha ocorrido qualquer aporte de recursos. Meisenkothen, então, enviou cópias de materiais de divulgação da própria universidade, nos quais consta uma doação feita pela Fundação Avina à Yale, pouco depois da concessão do título ao bilionário. A direção de Yale desculpou-se, explicando que tinha pesquisado apenas nas “bases digitais” e não nos “arquivos de papel”, razão pela qual acabou por fornecer uma “informação incorreta”. Mas, ainda assim, reiterou sua decisão de não revogar o título. Os familiares das vítimas prometem continuar pressionando a universidade e a opinião pública americana e internacional pela revogação da honraria.

Yale é uma instituição privada. No caso brasileiro é diferente. A Ordem do Cruzeiro do Sul é uma condecoração concedida pelo Estado, um reconhecimento dos serviços prestados por um estrangeiro ao país, envolvendo, portanto, o conjunto da população brasileira. Entre as estratégias planejadas pelas vítimas brasileiras do amianto, além de uma intensa campanha nas redes sociais, está a de que um parlamentar assuma a causa e a medalha seja cassada pelo legislativo. Há pelo menos um precedente tramitando no parlamento: o pedido de retirada da Ordem do Cruzeiro do Sul concedida a Alberto Fujimori, ex-presidente do Peru, hoje condenado por graves violações aos direitos humanos.

A lavagem de biografia não é uma novidade histórica. Poderia apenas ser mais explorada por historiadores. Em geral há um caminho tortuoso e uma fileira de lacunas entre a pessoa de carne, osso, paixões e vilanias e o personagem “limpinho” que vira estátua nas praças de cada cidade. A diferença, do passado para o presente, e em especial do presente com internet, é que essa transição pode não ser completada com o sucesso habitual.

Se antes bastava poder econômico e político para criar uma nova imagem, hoje os obstáculos são muitos. A começar pelo fato de atores, até então sem voz, terem passado a gritar nas redes sociais e a organizar campanhas barulhentas com informações que o dono da biografia até então heroica preferiria apagar. Não gritos vazios, mas ancorados em documentação: as vítimas italianas entregaram à Universidade de Yale uma carta de apoio à sua causa com o nome de mais de 70 renomados cientistas do mundo inteiro, assim como as principais conclusões da Corte de Turim, retiradas de uma sentença com mais de 800 páginas. Conectadas pela tecnologia e articuladas nas redes sociais, as vítimas do amianto prometem enfrentar os marqueteiros e gerenciadores de crise do bilionário suíço e, com pouco dinheiro, mas muitos apoiadores pelo mundo, construir uma narrativa mais complexa para a vida de Stephan Schmidheiny. Disputam a escrita da história não no futuro – mas agora, no presente.

Stephan Schmidheiny não é o único magnata que, depois de uma vida turbulenta no mundo dos negócios, decidiu tornar-se um filantropo. Seja para expiar os pecados anteriores, seja por estratégia de marketing, seja para escapar de futuras condenações, seja por – improvável, mas não impossível – real arrependimento. Seja por tudo isso e mais alguma coisa. O mundo atual é movido por alguns destes homens que investiram ou doaram fortunas obtidas de forma questionável, para dizer o mínimo, em fundações que financiam causas “certas”. Como a própria Fundação Avina, de Schmidheiny, que está longe de ser a única.

Essa realidade traz alguns dilemas éticos a pessoas, até prova em contrário idôneas e bem intencionadas, que se beneficiam deste apoio para colocar em curso ações importantes de redução da pobreza, proteção socioambiental ou mesmo de democratização da informação. Parece uma equação simples, mas está longe de ser. Por um lado, o dinheiro obtido de forma questionável, ou mesmo ilícita ou até criminosa, é usado para projetos de importância comprovada. Por outro, aqueles que são financiados por este dinheiro ajudam a promover e a legitimar a lavagem da biografia do doador, ao colaborar para passar uma borracha sobre a história. Movimentos como o das vítimas do amianto, ao mirar na imagem de filantropo de Stephan Shmidheiny, abrem uma discussão espinhosa que poucos estão interessados em levar adiante. Mas que talvez fosse preciso ter a coragem de enfrentá-la, em nome da transparência, mas também porque ampliar a complexidade dos novos dilemas nos amadurece como sociedade.

Vilão ou herói? Stephan Schmidheiny possivelmente não é nem um nem outro, talvez ambos em momentos e plateias distintas. Entre os seus erros talvez esteja o de acreditar que poderia se absolutizar como um herói, o que, de fato, quase conseguiu. Mas a Eternit fabricou fantasmas demais, numa época conectada como nenhuma outra antes, para que isso se tornasse possível. Estes fantasmas falam agora pela boca de seus familiares ainda vivos. E falam em rede, para milhões.

Como ser humano, nem herói nem vilão, a tragédia de Stephan Schmidheiny é fascinante. Assumir os atos controversos de sua família por quase um século seria o mesmo que promover a destruição da memória familiar, o que não é fácil para nenhuma pessoa, rico ou pobre. Faz sentido acreditar que a única escolha ética possível teria sido revelar e admitir a parte sombria da história da Eternit, responsabilizar-se pelo passivo humano e ambiental, indenizando e apoiando os trabalhadores, assim como promovendo a descontaminação das cidades onde existiam fábricas. E doar o restante do dinheiro para a pesquisa de tratamento e cura para as doenças do amianto. Não por medo de ser preso, embora ele já tenha dito à imprensa que não ficará “preso em uma cadeia italiana”, mas porque é o moralmente correto, ainda que imensamente duro.

Mas esse caminho não é o dos heróis, só o dos homens. Estes precisam conviver com seus erros e covardias, quando não com as mãos manchadas de sangue, muitas vezes em praça pública. O caminho dos homens não rende títulos em Yale nem medalhas do Itamaraty nem lugar de honra em conferências mundiais de meio ambiente nem destaque em museus badalados de arte. Stephan Schmidheiny preferiu vender a empresa, transferir o passivo para outras mãos e se concentrar em investir na construção de uma imagem de benemérito. Ele, que segundo o Tribunal de Turim foi conivente com tanto mal, quis talvez demais: um lugar na história como herói. E então suas vítimas apareceram para lembrá-lo de que é um vilão – e de que os cadáveres permanecerão insepultos enquanto não houver justiça.

Em 19 de dezembro de 2003, João Francisco Grabenweger, operário da Eternit de Osasco, na Grande São Paulo, que, por falar alemão, foi uma espécie de intérprete e cicerone do jovem Schmidheiny em seu estágio na fábrica brasileira, escreveu uma carta ao bilionário. A seguir, um trecho: “Permita-me perguntar-lhe, senhor, você já leu algum artigo sobre as vítimas dos campos de concentração nazistas? Aquelas que sobreviveram recebem compensação financeira substancial com todos os direitos possíveis. Quando nós, ex-empregados da Eternit, fomos mantidos completamente ignorantes do fato de que trabalhávamos em um campo de concentração de amianto. Sendo bons funcionários, trabalhamos com o melhor que tínhamos, com completo orgulho e dedicação, para criar o império de cimento de amianto da família Schmidheiny. Mas o que recebemos da ‘Mãe Eternit’? O que adquirimos foi uma bomba com detonador de ação retardada que havia sido implantada em nossos tórax. (…) Peço-lhe que nos ajude a garantir a justiça com a qual temos sonhado para aqueles que deram suas vidas por você, senhor, e por sua família, e seus negócios.”

João Francisco Grabenweger morreu de asbestose, em dolorosa asfixia, em 16 de janeiro de 2008. Nunca recebeu resposta. A Eternit, em outras mãos, lhe ofereceu US$ 27 mil para abandonar seu processo judicial por indenização.

De algum modo sua carta, anos antes do julgamento no Tribunal de Turim, lembrava a Stephan Schmidheiny que, do destino humano, nem aqueles que se acreditam deuses escapam.

(Publicado no El País em 06/01/2014)

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