Os loucos, os normais e o Estado

Antônio Gomes da Silva soltou a voz ao empolgar-se com a Banda da Polícia Militar. Ao seu lado, o funcionário levou um susto:

– Por que você nunca disse que falava?

E Antônio:

– Uai, mas ninguém nunca perguntou.

Ele tinha passado 21 anos como mudo na instituição batizada de“Colônia”, considerada o maior hospício do Brasil, no pequeno município mineiro de Barbacena. Em 21 anos, nenhum médico ou funcionário tinha lhe perguntado nada. Aos 68 anos, Antônio ainda não sabe por que passou 34 anos da vida num hospício, para onde foi despachado por um delegado de polícia. “Cada um diz uma coisa”, conta. Ao deixar o cárcere para morar numa residência terapêutica, em 2003, Antônio se abismou de que era possível acender e apagar a luz, um poder que não sabia que alguém poderia ter. Fora dos muros do manicômio, ele ainda sonha que está amarrado à cama, submetido a eletrochoques, e acorda suando. A quem escuta a sua voz, ele diz: “Se existe um inferno, a Colônia é esse lugar”.

Antônio ganhou nome, identidade e história em uma série excepcional de reportagens. Publicado na Tribuna de Minas, de Juiz de Fora (MG), o trabalho venceu o prêmio Esso de 2012 e foi ampliado para virar um livro que chega às livrarias nesta semana. Na obra, a jornalista mineira Daniela Arbex ilumina o que chamou de “holocausto brasileiro”: a morte de cerca de 60 mil pessoas entre os muros da Colônia ao longo do século XX. Convidada por Daniela para fazer o prefácio de seu livro, abri uma exceção e aceitei, pela mesma razão que me move a escrever esta coluna: a importância do tema para compreender nossa época.

Em Holocausto Brasileiro (Geração Editorial), Daniela Arbex devolve aos corpos sem história, que eram os corpos dos “loucos”, uma história que fala deles, mas fala mais de nós, os ditos “normais”. Durante décadas, as pessoas eram enfiadas – em geral compulsoriamente – dentro de um vagão de trem que as descarregava na Colônia. Lá suas roupas eram arrancadas, seus cabelos raspados e, seus nomes, apagados. Nus no corpo e na identidade, a humanidade sequestrada, homens, mulheres e até mesmo crianças viravam “Ignorados de Tal”.

(Foto: Luiz Alfredo/FUNDAC)

Qual é a história dos corpos sem história? Esta é a questão que Daniela se propõe a responder pelo caminho da investigação jornalística. Eram Antônio Gomes da Silva, o mudo que falava, Maria de Jesus, encarcerada porque se sentia triste, Antônio da Silva, porque era epilético. A estimativa é de que sete em cada dez pessoas internadas no hospício não tinham diagnóstico de doença mental.

Quem eram eles, para além dos nomes apagados? Epiléticos, alcoolistas, homossexuais, prostitutas, mendigos, militantes políticos, gente que se rebelava, gente que se tornara incômoda para alguém com mais poder. Eram meninas grávidas, violentadas por seus patrões, eram esposas confinadas para que o marido pudesse morar com a amante, eram filhas de fazendeiros que perderam a virgindade antes do casamento. Eram homens e mulheres que haviam extraviado seus documentos. Alguns deles eram apenas tímidos. Cerca de 30 eram crianças.

Qual era o destino de quem o Estado determinava que não podia viver em sociedade, que era preciso encarcerar, ainda que não tivesse cometido nenhum crime? Homens, mulheres e crianças às vezes comiam ratos, bebiam esgoto ou urina, dormiam sobre capim, eram espancados e violados. Nas noites geladas da Serra da Mantiqueira, eram atirados ao relento, nus ou cobertos apenas por trapos. Instintivamente faziam um círculo compacto, alternando os que ficavam no lado de fora e no de dentro, na tentativa de não morrer. Faziam o que fazem os pinguins imperadores para sobreviver ao inverno na Antártica e chocar seus ovos, como se viu num documentário que comoveu milhões anos atrás. Os humanos da Colônia não comoviam ninguém, já que sequer eram reconhecidos – nem como humanos nem como nada. Alguns não alcançavam as manhãs.

Os pacientes da Colônia morriam de frio, de fome, de doença. Morriam também de choque. Em alguns dias os eletrochoques eram tantos e tão fortes que a sobrecarga derrubava a rede do município. Francisca Moreira dos Reis, funcionária da cozinha, conta no livro sobre o dia em que disputou uma vaga para atendente de enfermagem, em 1979. Ela e outras 20 mulheres foram sorteadas para realizar uma sessão de eletrochoques nos pacientes masculinos do Pavilhão Afonso Pena, escolhidos aleatoriamente para o “exercício”. As candidatas à promoção cortavam um pedaço de cobertor e enchiam com ele a boca da cobaia, amarrada à cama. Molhavam a testa, aproximavam os eletrodos das têmporas e ligavam a engenhoca na voltagem de 110. Contavam até três e aumentavam a carga para 120. A primeira vítima teve parada cardíaca e morreu na hora. A segunda, um garoto apavorado aparentando menos de 20 anos, teve o mesmo destino. Francisca, cuja vez de praticar ainda não tinha chegado, saiu correndo.

Nos períodos de maior lotação, 16 pessoas morriam a cada dia. Morriam de tudo – e também de invisibilidade. Ao morrer, davam lucro. Entre 1969 e 1980, mais de 1.800 corpos de pacientes do manicômio foram vendidos para 17 faculdades de medicina do país, sem que ninguém questionasse. Quando houve excesso de cadáveres e o mercado encolheu, os corpos passaram a ser decompostos em ácido, no pátio da Colônia, na frente dos pacientes ainda vivos, para que as ossadas pudessem ser comercializadas. Dos homens e mulheres do hospício, encarcerados pelo Estado e oficialmente sob sua proteção, até os ossos se aproveitava.

Daniela Arbex salvou do esquecimento um capítulo que muitos gostariam que seguisse nas sombras, até o total apagamento, no qual parte dos protagonistas ainda está viva para refletir tanto sobre seus atos quanto sobre suas omissões. Entrevistou mais de 100 pessoas, muitas delas nunca tinham contado a sua história. Além de sobreviventes do holocausto manicomial, Daniela escutou o testemunho de funcionários e de médicos. Um deles, Ronaldo Simões Coelho, ligou para ela meses atrás: “Meu tempo de validade está acabando. Não quero morrer sem ler seu livro”. No final dos anos 70, o psiquiatra havia denunciado a Colônia e reivindicado sua extinção: “O que acontece na Colônia é a desumanidade, a crueldade planejada. No hospício, tira-se o caráter humano de uma pessoa, e ela deixa de ser gente. É permitido andar nu e comer bosta, mas é proibido o protesto, qualquer que seja a sua forma”. Perdeu o emprego.

Em 1979, o psiquiatra italiano Franco Basaglia, pioneiro da luta pelo fim dos manicômios, esteve no Brasil e conheceu a Colônia. Em seguida, chamou uma coletiva de imprensa, na qual afirmou: “Estive hoje num campo de concentração nazista. Em lugar nenhum do mundo, presenciei uma tragédia como essa”. Hoje, restam menos de 200 sobreviventes da Colônia. Parte deles deverá ficar internada até a morte: são aqueles que foram tão torturados por uma vida dentro do hospício que já não conseguem mais viver fora. Parte foi transferida para residências terapêuticas para reaprender a tomar posse de si mesma. Sônia Maria da Costa está entre os que conseguiram dar o passo para além do cárcere. Às vezes ela coloca dois vestidos para compensar a nudez de quase uma vida inteira.

Ao empreender uma investigação jornalística para escrever este livro, Daniela leva adiante pelo menos três trabalhos fundamentais de documentação contemporânea: as 300 fotos feitas pelo fotógrafo Luiz Alfredo, para a revista O Cruzeiro, a primeira a denunciar a Colônia, em 1961(duas fotografias deste acervo são publicadas nesta coluna); a reportagem transformada no livro Nos porões da loucura (Pasquim), do jornalista Hiram Firmino; e o documentário Em nome da razão, de Helvécio Ratton, filmado em 1979, que se tornou o símbolo da luta antimanicomial.

Ao ler Holocausto Brasileiro – vida, genocídio e 60 mil mortes no maior hospício do Brasil, é prioritário resistir à tentação de acreditar que essa história acabou. Não acabou. Ainda existem no Brasil instituições que mantêm situações semelhantes às da Colônia, como algumas reportagens têm denunciado – ainda que não de forma maciça como no passado muito, muito recente, e com nomes mais palatáveis do que “hospício” ou “manicômio”. As conquistas produzidas pela luta antimanicomial, que botou fim às situações mais bárbaras, estão hoje sob ameaça de retrocesso. É nesse momento que entramos nós, a sociedade.

Se não quisermos continuar sendo cúmplices da barbárie descrita por Daniela Arbex neste livro, é preciso refletir sobre o nosso papel. É bastante óbvio perceber que fábricas de loucura como a Colônia só persistiram por um século porque podiam contar com a cumplicidade da sociedade. Mesmo quando o holocausto foi denunciado na revista de maior sucesso da época, O Cruzeiro, no início dos anos 60, passaram-se décadas até que a realidade do hospício começou – muito lentamente – a mudar. E outras gerações foram aniquiladas entre seus muros. Como é possível? É possível porque a sociedade prefere que seus indesejados sejam tirados da frente de seus olhos. Não enxergar, para muitos, ainda é solução. E esta é uma das razões pelas quais a tese do encarceramento sempre encontra ampla ressonância – e tem sido largamente manipulada por políticos ao longo da história do Brasil, e inclusive hoje.

Tivesse a sociedade disposta a enxergar o que estava estampado na revista preferida das famílias brasileiras, em 1961, e muitas tragédias teriam sido impedidas. Como a de Débora Aparecida Soares. Ela foi um dos cerca de 30 bebês roubados de suas mães. As mulheres trancafiadas na Colônia conseguiam proteger sua gravidez passando fezes sobre a barriga, para não serem tocadas. Mas, logo depois do parto, os bebês eram tirados de seus braços e doados. Débora nasceu em 23 de agosto de 1984. Dez dias depois, foi adotada por uma funcionária do hospício. A cada aniversário, sua mãe, Sueli Aparecida Resende, epilética, perguntava a médicos e funcionários pela menina. E repetia: “Uma mãe nunca se esquece da filha”.

Em 2005, aos 21 anos, Débora nada sabia sobre a sua origem, mas não conseguia pertencer de fato à família de adoção. Tentou o suicídio. Como os comprimidos demoravam a fazer efeito, dirigiu-se à estrada de ferro, a mesma onde décadas antes havia passado o trem que levara sua mãe ao inferno. Foi salva por uma amiga, que a carregou para o hospital no qual mais uma coincidência seria descoberta tarde demais. Dois anos depois, Débora iniciou uma jornada em busca da mãe. O que alcançou foi a insanidade da engrenagem que mastigou suas vidas. Sua busca pela mãe é um dos momentos mais trágicos e reveladores do livro, ao unir passado, presente e futuro no corpo em movimento desta filha.

Há uma tendência no senso comum de considerar que categorias como “loucos” são determinadas, imutáveis, indiscutíveis e, principalmente, isentas dos humores do processo histórico. Não são. Cada sociedade cria seus proscritos – uma construção cultural que varia conforme o momento e as necessidades de quem detém o poder a cada época. Há um livro essencial sobre este tema: Os infames da história – pobres, escravos e deficientes no Brasil (Faperj/Lamparina). Na apresentação, a autora, a psicóloga Lilia Ferreira Lobo, que escreve sob a inspiração de Michel Foucault, faz uma descrição primorosa:

“Existências infames: sem notoriedade, obscuras como milhões de outras que desapareceram e desaparecerão no tempo sem deixar rastro – nenhuma nota de fama, nenhum feito de glória, nenhuma marca de nascimento, apenas o infortúnio de vidas cinzentas para a história e que se desvanecem nos registros porque ninguém as considera relevantes para serem trazidas à luz. Nunca tiveram importância nos acontecimentos históricos, nunca nenhuma transformação perpetrou-se por sua colaboração direta. Apenas algumas vidas em meio a uma multidão de outras, igualmente infelizes, sem nenhum valor. Porém, sua desventura, sua vilania, suas paixões, alvos ou não da violência instituída, sua obstinação e sua resistência encontraram em algum momento quem as vigiasse, quem as punisse, quem lhes ouvisse os gritos de horror, as canções de lamento ou as manifestações de alegria.”

Aqueles que foram encarcerados dentro da Colônia e de outros hospícios do Brasil, em algum momento perturbaram alguém ou a ordem instituída com a sua voz – ou apenas com a sua mera existência. Em vez de serem escutados no que tinham a dizer sobre a sociedade da qual faziam parte, foram arrancados dela e trancafiados para morrer – primeiro pelo apagamento simbólico, depois pela falência do corpo torturado. A pergunta que vale a pena fazer neste momento, diante da história documentada pelo Holocausto Brasileiro, de Daniela Arbex, é: quem são os proscritos de nossa época?

Vale a pena repetir que, na Colônia, sete em cada dez não tinham diagnóstico de doença mental. O diagnóstico, além de não representar nenhuma verdade absoluta sobre alguém, perde qualquer possível valor num lugar como o hospício descrito. Sua única utilidade seria como justificativa oficial para retirar pessoas incômodas do espaço público, aquelas cujo sofrimento não poderia existir, violando neste ato seus direitos mais básicos. Mas o fato de 70% dos internos não ter nem sequer um diagnóstico é um dado importante para perceber com que desenvoltura os manicômios serviram – e ainda servem – a um propósito não dito, mas largamente exercido pelo Estado: o de ampliar as categorias das pessoas que não devem ser escutadas, calando todos aqueles que dizem não apenas de si, mas de toda a sociedade.

Vivemos um momento histórico muito delicado, em que está sendo determinado quais são os novos infames da história – e qual deverá ser o seu destino. E também em que medida o Estado tem poder sobre os corpos. Me arrisco a dizer que, se ontem os proscritos eram os epiléticos, as prostitutas, os homossexuais, as meninas pobres e grávidas, as esposas insubmissas, hoje os proscritos que se desenham no horizonte histórico são os drogados – e especificamente os “craqueiros”. E o destino apresentado como solução tem sido, de novo, a internação. Inclusive a compulsória. A tarja de dependência química funciona como um silenciamento, já que não teriam nada a dizer nem sobre a sociedade em que vivem, nem sobre sua própria vida. São apenas um corpo sujeitado ao Estado para ser “curado”. E, para a maioria, nada melhor do que tirá-los da frente – às vezes literalmente.

É bom aprender com a história. Holocausto Brasileiro é um excelente começo para uma reflexão não apenas sobre o passado, mas sobre o presente. Como afirma Daniela Arbex: “O descaso diante da realidade nos transforma em prisioneiros dela. Ao ignorá-la, nos tornamos cúmplices dos crimes que se repetem diariamente diante de nossos olhos. Enquanto o silêncio acobertar a indiferença, a sociedade continuará avançando em direção ao passado de barbárie. É tempo de escrever uma nova história e de mudar o final”.

(Foto: Luiz Alfredo/FUNDAC)

(Foto: Luiz Alfredo/FUNDAC)

(Publicado na Revista Época em 03/06/2013)

 

Petra

Uma mulher em busca do próprio corpo

Houve esse primeiro sonho. Elena veste uma blusa de seda e está em cima de um muro alto, enroscada nos fios elétricos. Logo é Petra quem está enroscada. Petra mexe nos fios. Leva um choque, cai do muro alto e morre. Quem morre? Petra acorda desse sonho com um nó no estômago. Elena não acorda. Elena morreu aos 20 anos, em 1990. Petra tinha 7 anos quando a irmã morreu. Elena acorda, sim. Abre os olhos dentro de Petra. “Sinto você dentro de mim…”, diz Petra. Duas irmãs enroscadas em fios elétricos, uma delas acorda com um nó no estômago. A que vive sente a morta dentro dela. Enroscadas, não se sabe quem morreu.

Esse sonho sonhado por Petra é a primeira cena de um dos documentários mais belos que eu já vi, com estreia nacional nesta sexta-feira. Um filme que fica se encenando dentro da gente por muito, muito tempo. Quando ele começou a ser feito? É difícil saber quando um documentário começa. Mas sempre começa antes, muito antes, quando a vida ainda não sabe que precisará ser encenada para que os vivos possam viver.

A mãe de Elena e Petra “queria ser atriz em Hollywood e beijar o Frank Sinatra”. Sentia também vontade de morrer. Até os 16 anos, quando encontrou aquele que seria o pai das filhas que ainda não se sabiam. O homem vinha dos Estados Unidos “não como Frank Sinatra, mas como Che Guevara”. Quando ambos se preparavam para combater a ditadura militar na Guerrilha do Araguaia, a mãe foi impedida – e talvez salva de ser assassinada pelo regime, como tantos – por estar com seis meses de gravidez. Elena nasceu na ditadura e teve uma infância clandestina. Petra nasceu na abertura política. Elena queria ser atriz e foi para Nova York. Quem será que Elena queria beijar?

Elena morreu em Nova York. “Esse corpo tá doente. A vida o fez totalmente doente. Totalmente. Aquele eu descontrolado voltou… Eu ajo como se atuasse. Percebo tudo como numa tela de cinema…. Eu vou me degradar e escorrer por esse ralo.” No dia da morte, Petra e a mãe já moravam com Elena em Nova York. Petra tinha de levar um objeto para mostrar aos colegas na escola. “Show and tell” (“Mostre e conte”) é o nome da atividade. Elena deu a ela um cachorro azul de pelúcia. E disse: “Ele tem poderes especiais. Quando você quiser muito alguma coisa, fecha os olhos, faz o pedido e chacoalha ele”. Na escola, as crianças perguntavam a Petra: “Mas ele não toca música, não faz mais nada”? Só chacoalha.

À noite, já não adiantava chacoalhar Elena. “Me sinto escura, no escuro… Meu coração tá tão triste que eu me sinto no direito de não perambular mais por aí com esse corpo que ocupa espaço e esmaga mais o que eu tenho de tão… tão frágil.”

O coração de Elena, Petra descobriria depois, pesava 300 gramas.

É este o peso de um coração?

Aos 7 anos, Petra tem pesadelos e quer morrer, diz o relatório psicológico. Evita falar da irmã. Petra ouviria nos anos que se seguiram: “Você pode morar em qualquer lugar do mundo, menos em Nova York. Você pode escolher qualquer profissão, menos ser atriz”. Aos 18 anos, Petra tinha virado atriz. Ao buscar seus diários como material para um workshop do grupo de teatro Vertigem, encontrou um caderno que nunca tinha visto. A letra era muito parecida com a dela, as angústias eram muito semelhantes às dela, as palavras que ela não encontrava tinham sido achadas e se diziam ali. Mas não era o diário dela. Ou era?

Petra já tinha virado atriz e agora embarcava para Nova York. Ela precisava buscar Elena fora dela, porque dentro Elena a consumia. E tinha de fazer isso antes dos 20 anos. Se ficasse ali, como Pedra, sentia que vivia um destino já traçado e, mais que traçado, um destino trilhado. Um destino de outro, outra. Era preciso resgatar a memória de Elena, dar um lugar a Elena fora, para que Petra pudesse se saber – existir. Era preciso dar um corpo a Elena para que Petra descobrisse os contornos do seu.

Quando Petra faz 21 anos, a mãe diz: “Agora, você já está mais velha do que Elena”.

Elena, o filme, é a trajetória de uma mulher em busca de ser não mais duas, mas uma. Trata de um tema crucial para todas as mulheres, a individuação. O arrancar-se do corpo de uma outra – mãe… (irmã…) – para poder existir. Quando esse movimento de matar e morrer simbólico, necessário para o tornar-se mulher, é atravessado por uma morte literal, concreta, tudo ao mesmo tempo se torna mais urgente e mais enroscado. Como matar quem já está morto e que dói em nós como uma saudade brutal? Como ferir de novo a mãe, ainda que desta vez de modo simbólico?

Neste sentido, Elena dialoga com obras literárias bem recentes e confessionais, como a de Paula Corrêa, Tudo o que mãe diz é sagrado, e, ainda que por caminhos mais sutis, com O que os cegos estão sonhando?, de Noemi Jaffe. (E também com o meu próprio romance, Uma Duas). Dialoga com essa morte que Petra Costa chama de “memória inconsolável”, na qual é preciso não só lidar com o morrer de quem amamos, mas é preciso matar de novo. E como matar de novo se o único jeito de manter essa irmã viva é abrigando-a dentro de si (e alimentando-a de si)?

Elena é uma Ofélia, pensa Petra. Ofélia, a noiva de Hamlet que se suicida na peça de Shakespeare. Ela, Petra, também é uma Ofélia. São muitas as Ofélias que andam por aí nas ruas deste mundo, acredita Petra. Meninas que no vir-a-ser mulher afogam-se no rio de desejos e sensações, de excessos do sentir e do querer. Jovens que submergem nesse feminino perturbador sem jamais conseguir voltar à superfície.

Será que para se tornar mulher é preciso se mutilar, e só então ganhar pernas e dançar, como em A Pequena Sereia? A história original, não a da Disney – nunca a da Disney. Será que ao ousar deixar a casa familiar para buscar um outro destino uma menina será punida, como a pequena sereia, que aceita ter a voz arrancada para habitar o mundo do príncipe como mulher? Elena levou Petra para assistir ao filme. Depois contou a história que não foi contada. “Como assim, ela morre?”, pergunta uma Petra inconformada. Morre.

O que é uma irmã mais velha? O que é uma irmã mais velha que morre? Lembro o início de Alice no País das Maravilhas (ou, muito melhor, Alice’s Adventures Under Ground, no original de Lewis Carroll). Na primeira página, a irmã mais velha de Alice está sentada lendo um livro. E Alice irrita-se, sem saber para que serve um livro sem gravuras nem diálogos. Alice está irritada porque não alcança a irmã, mais velha e além. Então Alice sonha toda a história que conhecemos. E a última cena deste sonho é o confronto com a Rainha de Copas, essa figura maternal e assustadora, sempre disposta a cortar a cabeça de quem a ela se opõe. Mais ainda de quem a desafia nos termos de Alice, que diz: “Quem é que liga para você”? Quando as cartas do baralho caem sobre ela e a menina precisa lutar, Alice acorda com a cabeça no colo da irmã mais velha. Salva. As cartas são folhas secas levadas pelo vento que a irmã gentilmente vai espantando do rosto da caçula. Alice desperta e corre para não perder a hora do chá, mas a irmã mais velha fica. Ao ficar, sonha com as aventuras de Alice. E sonha ou imagina que sonha com a irmãzinha virando mulher.

Quando não há uma irmã mais velha para proteger a caçula da Rainha de Copas, o que acontece? Quando não há uma irmã mais velha para sonhar que a caçula um dia será mulher, o que acontece? E se é a irmã mais velha que não suporta virar mulher, como a caçula poderá?

É desse labirinto intrincado entre posições – mãe, filha, irmã… mulheres enlaçadas (e misturadas) – que fala o filme de Petra Costa. Diz também – e muito – desse lugar impossível, que é o da filha que sobrevive diante de uma mãe inconsolável. Há ainda muito pouco escrito e dito sobre os filhos que sobrevivem numa família devastada pela perda de outro. Se é Elena que “salva” a mãe, ao impedir que ela vá para o Araguaia, de onde muitos não voltaram, é Petra quem a “salva” desta vez, ao impedir, apenas por estar viva, que a mãe morra com Elena. Mas, de fato, não há como salvar uma mãe, nenhuma mãe. Não há como salvar mesmo levando essa tentativa à radicalidade, ao manter a morta viva dentro de si.

E como arrancar-se simbolicamente do corpo da mãe para virar mulher, quando essa mãe sangra tanto e tão profusamente pelo arrancar-se literal da outra filha, que se arrancou da vida no momento em que tentava se tornar adulta?

A filha que resta sempre terá de consumar uma morte a mais para crescer, já que se identifica e se confunde também com a filha que morreu, na tentativa de salvar a todas – e principalmente a mãe. A filha sobrada sente que precisa sustentar três. Aos 10 anos, Petra compreende que Elena morreu para sempre e percebe que a mãe pode morrer também, a qualquer momento. Petra precisa evitar essa morte. Então faz promessas, cria mecanismos para salvar a mãe. Não comerá mais sal, subirá os 19 andares até o apartamento de joelhos, nunca mais se olhará no espelho. Para a mãe não morrer, entra no banheiro de olhos fechados.

Elena leva o nome de uma, mas é um filme sobre três mulheres. Há Elena, há Petra e há aquela que nomeou as duas, mas que no documentário só aparece como “mãe”. Aqui, Mãe é nome próprio.

Deixada sozinha para sonhar, Petra Costa poderia ter feito um filme de terror. Em vez disso, escolheu a delicadeza (ainda que possa existir delicadeza no horror e horror na delicadeza).

Fez uma obra brilhante – no cinema, mas também na vida. A Mãe desejou ser atriz de Hollywood, Elena tentou ser atriz em Nova York, Petra tornou-se diretora de atrizes – em Nova York (e aqui). Ao tornar-se diretora, Elena, a Mãe e ela mesma se tornam estrelas de cinema em um filme que nunca esperaram viver, quanto mais encenar. Ao tornar-se diretora, Petra crava as unhas na única oportunidade de ter algum controle sobre a vida, que é a criação de sentido para aquilo que não tem nenhum. A vida encenada como vida.
Agora, Elena pode morrer de novo para viver em outro lugar. Não só dentro e fora de Petra e da Mãe, mas em lugares inalcançáveis mesmo para Petra e para a Mãe. Em cada um de nós, os espectadores, os viventes deste mundo nascido entre a tela do cinema e os nossos corações.

De certo modo, todas as três mulheres morrem e nascem de novo no líquido uterino do cinema. Não uma duas três, mas três umas. Não se afogam mais. Podem mergulhar e voltar à superfície. Flutuam.

Agora que Elena é memória viva, Petra não é pedra – mas água.

Petra seguiu sonhando com Elena enquanto buscava Elena e o filme. “No primeiro, foi a imagem da sua morte. No segundo, Elena se cortava e eu começava a entender sua dor. No terceiro, eu cozinhava sua dor numa panela até ela evaporar. No quarto, eu sobrevoava uma floresta e, num cantinho de mata, via a alegria de Elena, que era laranja, da cor das árvores no outono.”

O último sonho foi em outubro de 2010. Petra, então com 7 anos, girava na cintura de Elena, que dançava. Juntas, dançavam, giravam. Um giro, uma dança.

Petra não sonhou mais com Elena desde então.

(Publicado na Revista Época em 06/05/2013)

 

É urgente recuperar o sentido de urgência

Nós, que podemos ser acessados por celular ou internet 24 horas, sete dias por semana, estamos vivendo no tempo de quem?

Dias atrás, Gabriel Prehn Britto, do blog Gabriel quer viajar, tuitou a seguinte frase: “Precisamos redefinir, com urgência, o significado de URGENTE”. (Caixa alta, na internet, é grito.) “Parece que as pessoas perderam a noção do sentido da palavra”, comentou, quando perguntei por que tinha postado esse protesto/desabafo no Twitter. “Urgente não é mais urgente. Não tem mais significado nenhum.” Ele se referia tanto ao urgente usado para anunciar notícias nada urgentes nos sites e nas redes sociais, quanto ao urgente que invade nosso cotidiano, na forma de demanda tanto da vida pessoal quanto da profissional. Depois disso, Gabriel passou a postar uns “tuítes” provocativos, do tipo: “Urgente! Acordei” ou “Urgente: hoje é sexta-feira”.

A provocação é muito precisa. Se há algo que se perdeu nessa época em que a tecnologia tornou possível a todos alcançarem todos, a qualquer tempo, é o conceito de urgência. Vivemos ao mesmo tempo o privilégio e a maldição de experimentarmos uma transformação radical e muito, muito rápida em nosso ser/estar no mundo, com grande impacto na nossa relação com todos os outros. Como tudo o que é novo, é previsível que nos atrapalhemos. E nos lambuzemos um pouco, ou até bastante. Nessa nova configuração, parece necessário resgatarmos alguns conceitos, para que o nosso tempo não seja devorado por banalidades como se fosse matéria ordinária. E talvez o mais urgente desses conceitos seja mesmo o da urgência.

Estamos vivendo como se tudo fosse urgente. Urgente o suficiente para acessar alguém. E para exigir desse alguém uma resposta imediata. Como se o tempo do “outro” fosse, por direito, também o “meu” tempo. E até como se o corpo do outro fosse o meu corpo, já que posso invadi-lo, simbolicamente, a qualquer momento. Como se os limites entre os corpos tivessem ficado tão fluidos e indefinidos quanto a comunicação ampliada e potencializada pela tecnologia. Esse se apossar do tempo/corpo do outro pode ser compreendido como uma violência. Mas até certo ponto consensual, na medida em que este que é alcançado se abre/oferece para ser invadido. Torna-se, ao se colocar no modo “online”, um corpo/tempo à disposição. Mas exige o mesmo do outro – e retribui a possessão. Olho por olho, dente por dente. Tempo por tempo.

Como muitos, tenho tentado descobrir qual é a minha medida e quais são os meus limites nessa nova configuração. E passo a contar aqui um pouco desse percurso no cotidiano, assim como do trilhado por outras pessoas, para que o questionamento fique mais claro. Descobri logo que, para mim, o celular é insuportável. Não é possível ser alcançada por qualquer um, a qualquer hora, em qualquer lugar. Estou lendo um livro e, de repente, o mundo me invade, em geral com irrelevâncias, quando não com telemarketing. Estou escrevendo e alguém liga para me perguntar algo que poderia ter descoberto sozinho no Google, mas achou mais fácil me ligar, já que bastava apertar uma tecla do próprio celular. Trabalhei como uma camela e, no meu momento de folga, alguém resolve me acessar para falar de trabalho, obedecendo às suas próprias necessidades, sem dar a mínima para as minhas. Não, mas não mesmo. Não há chance de eu estar acessível – e disponível – 24 horas por sete dias, semana após semana.

Me bani do mundo dos celulares, fechei essa janela no meu corpo. Mantenho meu aparelho, mas ele fica desligado, com uma gravação de “não uso celular, por favor, mande um e-mail”. Carrego-o comigo quando saio e quase sempre que viajo. Se precisar chamar um táxi em algum momento ou tiver uma urgência real, ligo o celular e faço uma chamada. Foi o jeito que encontrei de usar a tecnologia sem ser usada por ela.

Minha decisão não foi bem recebida pelas pessoas do mundo do trabalho, em geral, nem mesmo pela maior parte dos amigos e da família. Descobri que, ao não me colocar 24 horas disponível, as pessoas se sentiam pessoalmente rejeitadas. Mas não apenas isso: elas sentiam-se lesadas no seu suposto direito a tomar o meu tempo na hora que bem entendessem, com ou sem necessidade, como se não devesse existir nenhum limite ao seu desejo. Algumas declararam-se ofendidas. Como assim eu não posso falar com você na hora que eu quiser? Como assim o seu tempo não é um pouco meu? E se eu precisar falar com você com urgência? Se for urgência real – e quase nunca é – há outras formas de me alcançar.

Percebi também que, em geral, as pessoas sentem não só uma obrigação de estar disponíveis, mas também um gozo. Talvez mais gozo do que obrigação. É o que explica a cena corriqueira de ver as pessoas atendendo o celular nos lugares mais absurdos (inclusive no banheiro…). Nem vou falar de cinema, que aí deveria ser caso de polícia. Mas em aulas de todos os tipos, em restaurantes e bares, em encontros íntimos ou mesmo profissionais. É o gozo de se considerar imprescindível. Como se o mundo e todos os outros não conseguissem viver sem sua onipresença. Se não atenderem o celular, se não forem encontradas de imediato, se não derem uma resposta imediata, catástrofes poderão acontecer.

O celular ligado funciona como uma autoafirmação de importância. Tipo: o mundo (a empresa/a família/ o namorado/ o filho/ a esposa/ a empregada/ o patrão/os funcionários etc) não sobrevive sem mim. A pessoa se estressa, reclama do assédio, mas não desliga o celular por nada. Desligar o celular e descobrir que o planeta continua girando pode ser um risco maior. Nesse sentido, e sem nenhuma ironia, é comovente.

Por outro lado, é um tanto egoísta, já que a pessoa não se coloca por inteiro onde está, numa aula ou no trabalho ou mesmo em casa – nem se dedica por inteiro àquele com quem escolheu estar, num encontro íntimo ou profissional. Está lá – mas apenas parcialmente. Não há como não ter efeito sobre o momento – e sobre o resultado. A pessoa está parcialmente com alguém ou naquela atividade específica, mas também está parcialmente consigo mesma. Ao manter o celular ligado, você pertence ao mundo, a todo mundo e a qualquer um – mas talvez não a si mesmo.

Me parece descortês alguém estar comigo num restaurante, por exemplo, e interromper a conversa e a comida para atender o celular. Assim como me parece abusivo ser obrigada a aturar os celulares das pessoas ao redor tocando em todas as modalidades e volumes, invadindo o espaço de todos os outros sem nenhuma consideração. Ou ainda estar em um lugar público e ter de ouvir a narração de uma vida privada, uma que não conheço nem quero conhecer. Será que isso é realmente necessário? Será que uma pessoa não pode se ausentar, ficar incomunicável, por algumas horas? Será que temos o direito de invadir o corpo/tempo dos outros direta ou indiretamente? Será que há tantas urgências assim? Como é que trabalhávamos e amávamos antes, então?

Bem, eu não sou imprescindível a todo mundo e tenho certeza de que os dias nascem e morrem sem mim. As emergências reais são poucas, ainda bem, e para estas há forma de me encontrar. Logo, posso ficar sem celular. Mas tive de me esforçar para que as pessoas entendessem que não é uma rejeição ou uma modalidade de misantropia, apenas uma escolha. Para mim, é uma maneira de definir as fronteiras simbólicas do meu corpo, de territorializar o que sou eu e o que é o outro, e de estabelecer limites – o que me parece fundamental em qualquer vida.

Tentei manter um telefone fixo, com o número restrito às pessoas fundamentais no campo dos afetos e também no profissional. Mas o telemarketing não permitiu. É impressionante como as empresas de todo o tipo – e agora até os candidatos numa eleição – acham que têm o direito de nos invadir a qualquer hora. Considero uma violência receber uma ligação ou gravação dessas dentro de casa, à minha revelia. E parece que sempre encontram um jeito de burlar nossas tentativas de barrar esse tipo de assédio. Assim, também botei uma gravação no telefone fixo – e ele virou um telefone só para recados, porque foi o único jeito que encontrei de impedir o abuso do mercado.

Minha principal forma de comunicação é hoje o e-mail, porque sou eu que escolho a hora de acessá-lo. E, ao procurar alguém, seja por motivo profissional ou pessoal, tenho certeza de não estar invadindo seu cotidiano em hora imprópria. É assim que combino encontros e entrevistas ao vivo, que são os que eu prefiro. Ou marco horário para conversas por Skype com quem está em outra cidade ou país. E quando viajo ou preciso desaparecer do mundo, para ficar só comigo mesma, ou me dedicar a um outro por completo, ou à escrita de um livro, basta deixar uma mensagem automática. Tento me disciplinar para acessar o Twitter, que para mim é hoje uma ferramenta fundamental para dar, receber e principalmente compartilhar informações, em horários específicos. E desligo o computador antes de dormir, como gesto simbólico que diz: fechei a porta.

Uma amiga foi assaltada por uma insônia persistente. Ao despertar, na madrugada, tinha a sensação de que o mundo se movia em ritmo veloz enquanto ela dormia. Parecia que estava perdendo algo importante, que ficaria para trás. E parecia até que estava morta para o mundo, “offline”. Às vezes não resistia e saía da cama para caminhar até o escritório, onde ficava o computador, e entrar no Facebook e no Twitter, dar uma circulada nos sites de notícias, manter-se desperta, presente e alinhada ao mundo que não parava, correndo atrás dele. Depois, passou a deixar o notebook ao lado da cama e já acessava a internet dali mesmo, apesar dos protestos do marido.

Quando a insônia já estava comprometendo seriamente os seus dias, ela procurou um psiquiatra em busca de remédio. O médico perguntou bastante sobre seus hábitos, e ela descobriu que o pesadelo que a deixava insone era aquele computador ligado, com o mundo acontecendo dentro dele num ritmo que ela não podia acompanhar nem mesmo se mantendo acordada por 24 horas. Bastou desligar o computador a cada noite para que passasse a despertar menos vezes e menos sobressaltada nas madrugadas. Aos poucos, voltou a dormir bem. O mundo estava onde devia estar – e ela também, na cama. Estava offline, mas viva.

Conheço pessoas que botam fita adesiva sobre a câmera do computador. Foi o meio encontrado para se protegerem da sensação de que estavam sendo espiadas/monitoradas 24 horas por dia por algum tipo de Big Brother – no sentido do 1984, do George Orwell (não no do reality show da TV Globo). A câmera tinha se tornado uma espécie de olho do mundo, que podia abrir as pálpebras mesmo à revelia, como nas histórias fantásticas e nos filmes de terror.

Conto minhas (des)venturas, assim como as de outros, apenas porque acho que não somos os únicos a ter esse tipo de inquietação. É um momento histórico bem estratégico de redefinição de limites, de territórios e também de conceitos. Que tipo de efeito terá sobre as novas gerações a ideia de que não há limites para alcançar, ocupar e consumir o tempo/corpo dos pais e amigos e mesmo de desconhecidos? Assim como não há limites para ter o próprio tempo/corpo alcançado, ocupado e consumido?

Ainda acho que o gozo de ser imprescindível a quase todos os outros – no sentido de não poder se ausentar ou se calar – e também de ser onipotente – no sentido de alcançar, a qualquer hora, o corpo de todos os outros – é maior do que o incômodo. Mas talvez só aparentemente, na medida em que é possível que não estejamos conseguindo avaliar o estrago que esses corpos/tempos violáveis e violados possam estar causando na nossa subjetividade – e mesmo na nossa capacidade criativa e criadora.

A grande perda é que, ao se considerar tudo urgente, nada mais é urgente. Perde-se o sentido do que é prioritário em todas as dimensões do cotidiano. E viver é, de certo modo, um constante interrogar-se sobre o que é importante para cada um. Ou, dito de outro modo, uma constante interrogação sobre para quem e para o quê damos nosso tempo, já que tempo não é dinheiro, mas algo tremendamente mais valioso. Como disse o professor Antonio Candido, “tempo é o tecido das nossas vidas”.

Essa oferta 24 X 7 do nosso corpo simbólico para todos os outros – e às vezes para qualquer um – pode ter um efeito bem devastador sobre a nossa existência. Um que sequer é escutado, dado o tanto de barulho que há. Falamos e ouvimos muito, mas de fato não sabemos se dizemos algo e se escutamos algo. Ou se é apenas ruído para preencher um vazio que não pode ser preenchido dessa maneira.

Será que não é este o nosso mal-estar?

Viver no tempo do outro – de todos e de qualquer um – é uma tragédia contemporânea.

(Publicado na Revista Época em 29/04/2013)

 

Dentro da mãe, um pedaço arrancado de mim

A bela (e dolorosa) regeneração de uma filha pela palavra escrita

Está tudo bem, mamãe está bem. Era só o que Paula Corrêa queria ouvir naquelas horas nebulosas em que despertava na UTI do hospital clamando por água. Ela sentia tanta sede, e as gotas que pingavam em sua boca eram oceanos sobre o deserto que era ela. Paula doía inteira, pedia analgésicos. Estava tudo bem. Havia menos dela agora. Bem mais que a metade do seu fígado fora arrancada para implantar na mãe numa cirurgia de dez horas, numa cirurgia em que Paula tinha um por cento de chance de morrer, um por cento que ficou se repetindo dentro dela nos dias anteriores. E agora o que Paula queria saber é se a parte viva dela estava pulsando dentro da mãe, curando a mãe, reparando a mãe, vivendo a mãe. Estava. Mas não o suficiente. Dias depois, com um dreno cheio de sangue enfiado nas vísceras, Paula caminhou até o corpo da mãe que já não estava.

“E foi no trânsito no meio do caos da cidade que ela se foi. Numa tarde de céu azul qual temperatura não lembro, talvez tivesse um arco-íris no céu que não reparei. Havia um silêncio ensurdecedor naquelas rosas brancas que enrolavam seu corpo, uma névoa deve ter passado sobre a minha cabeça e a única frase que consegui dizer foi: preciso sentar.”

Paula decidiria depois: “Vou chamar de Domingos todas as orações não atendidas por Deus”.

O que você faz depois de ser enterrada viva? Como compreender que um pedaço arrancado de você em vez de salvar, morre com a sua mãe? Como estar fora e dentro de um túmulo, ao mesmo tempo? Como estar viva e morta simultaneamente? Como se carregar pelas ruas, tão menos?

Para Paula, só havia uma regeneração possível. Pela palavra. Escrita.

Tudo o que mãe diz é sagrado (LeYa), lançado na noite de sexta-feira, é um livro. Mas é também um luto – e um renascimento. É o que acontece dentro de Paula Corrêa. No dia seguinte à cirurgia, a enfermeira passava e passava o aparelho do ultrassom, mas não encontrava o que buscava. Havia sobrado tão pouco do fígado de Paula, que ela não achava. Precisou chamar a médica. O livro é a narrativa do que se passa dentro de Paula enquanto seu fígado se regenera. Mas é o que se passa em camadas tão profundas que nenhum ultrassom alcançaria.

Para algo tão literal, tão visceral por definição, só há um jeito de não sucumbir à insanidade. Simbolizando. Ferozmente simbolizando. Só a palavra salva. A palavra humana. Dia após dia, noite após noite, alguns deles sem saber se era dia ou noite, Paula testa a vida. “Eu quase, quase não fiz uma curva hoje.” Ela não está só. São as patas de Astor, seu cachorro, que a acordam avisando que o sol nasceu. É pela fome de Astor, com seu focinho molhado, que ela levanta da cama. É porque ele precisa se exercitar que ela caminha até a praça da cidade gigante. São as lambidas de Astor que a despertam quando ela cai. “Então é ele quem está me educando, ou melhor, adestrando meu ímpeto de nunca ser.”

Alguém vivo ainda precisa dela. Astor e Paula, quem adivinharia o tamanho da tragédia ao ver aquela mulher de olhos extraordinários com seu cachorro grande demais no meio da praça? Que um dia tentou salvar uma borboleta alquebrada na calçada, no meio da fuligem dos ônibus que passavam velozes demais?

“É simples entender que cheguei até aqui sem mim. Nenhuma alma me acompanha desde então. Não diria que esqueci de viver. Apenas não encontrei um conjunto confortável que caiba no meu corpo. É um moribundo que me habita. Um outro, que não está mais aqui.”

Uma vez nos encontramos na padaria do bairro, sob o olhar vigilante, quase hostil de Astor, e Paula contou que estava aprendendo a costurar para terminar a colcha que a mãe deixou pelo meio. “Minha mãe deixou algumas coisas inacabadas. Eu sou uma delas.”

Astor é grande demais, a gente logo vê. Paula não cabe no corpo, a gente não sabe. “Eu não me reconheço quase o tempo todo em que me encontro, é o meu corpo que muda, eu tenho uma corporalidade que nunca me cabe, estou sempre extrapolada pelos meus poros, ou completamente pendurada como se fosse um cabide, ou apenas minguada em exaustão.” Como inventar uma nova corporalidade depois de perder tanta carne? “Acredito que seja consumado o fato de eu não ter cabimento.”

Quem seria ela, ela que falta? Como é que uma ausência tão imensa não aparece no avesso do espelho?

“Eu teria uma senha, um segredo abismal que me separa do mundo. Eu tenho. Eu tenho um segredo. Eu fui enterrada viva, e isso basta para me alavancar soturnamente para outra dimensão. Posso ouvir quantas músicas forem, e elas serão sempre tristes. As bandas que ouço são sempre desafinadas, não acompanham o ritmo do mundo. Eu tenho uma dificuldade extrema em acompanhar o mundo, entender o que as pessoas falam no exato segundo em que elas proferem as palavras. Eu vou entender muito tempo depois, com sorte. No mais, sou inexata e indecisa. Cambaleio sobre verdades, flutuo ao lavar a louça, tomar um banho é sempre um ato poético.”

Toda morte de quem amamos é uma amputação. Todo luto uma regeneração. Para Paula Corrêa, o que é simbólico é também literal. Ela sabe quando acorda que é preciso converter carne em linguagem. O horror sem nome em algo que possa ser nomeado. Só é possível viver com aquilo que podemos dizer. É isso que nos faz humanos. É este o livro de Paula, que antes tinha um corte de 30 centímetros atravessando a barriga, e agora tem uma cicatriz em curva, “montanhosa”.

É um pouco mais. Por um momento, ela havia sido a mãe, a mãe tinha se tornado filha. Ao doar seu próprio fígado para salvar a vida da mãe, não é um renascimento que se busca? Não é um dar à luz? É isso e talvez ainda um pouco mais. Um parto às avessas, mas também uma fecundação. Neste ato de extrema potência, neste ato quase fálico, de repente ela descobre-se radicalmente impotente. Impotente e presa. A filha fecunda com seu fígado são o corpo doente da mãe, mas não consegue sair desse corpo. E permanecer aprisionada no corpo da mãe é o pesadelo de todas as filhas. Que, no caso de Paula, aconteceu.

Tudo o que mãe diz é sagrado é, de fato, uma dessacralização. É só dessacralizando que uma mulher pode existir, para além de uma existência de filha. É só rompendo o território literal e simbólico do corpo da mãe que é possível para uma mulher criar relações com outros corpos. E então saber que existe. E então viver.

Paula Corrêa faz essa retomada do corpo de uma forma magistral. Sem poder salvar a mãe do jeito concreto, ela devolve a vida da mãe pela narrativa. A mãe agora existirá para sempre nas palavras. Para sempre, além dos corpos. E Paula dá a si mesma, pelo parto das palavras, um corpo na vida concreta. Um corpo seu. Um corpo que se sabe faltante não porque perdeu um pedaço do fígado, mas porque é da condição humana ser faltante.

Pela palavra, salva a ambas. E converte o que era horror indizível em obra de arte.

(Publicado na Revista Época em 25/03/2013)

 

Página 22 de 34« Primeira...10...2021222324...30...Última »