Eternidade de mercado

A quem pertencem os mortos? Quando Audrey Hepburn ressuscita para vender chocolate

Por um momento, me tornei cúmplice de Victor Frankenstein. Essa foi a sensação quando assisti ao comercial de chocolate estrelado por Audrey Hepburn 20 anos depois de morta. Primeiro, um encantamento. A Audrey viva, a Audrey jovem, se movendo, baixando os cílios, será que ela vai dizer “thank you”? Não há nenhum “thank you” como o da Audrey em A Princesa e o Plebeu. Em seguida, veio um mal-estar, a sensação de que algo ali estava muito errado, mas não do jeito habitual. Era como testemunhar uma profanação. Não era a Audrey, a Audrey morreu. Alguém estava usando a imagem da Audrey para vender chocolate. E eu ali, diante da tela, era quem completava a violação do corpo da mulher que me fez tão feliz no cinema. Não haveria profanação se eu não a estivesse consumando com o meu olhar.

Quem não viu, pode assistir aqui. Audrey Hepburn voltou à vida pelo milagre da computação gráfica. Um ano de trabalho dos realizadores para que uma das atrizes mais míticas da história do cinema pudesse fazer um comercial de chocolate. Audrey está num ônibus, na costa amalfitana, na Itália, quando o trânsito é interrompido por causa de um acidente com uma carroça. Pela janela do ônibus, ela espia o homem charmoso que dirige um conversível. É apenas um baixar de cílios, um flerte como só Audrey é capaz. Ele oferece carona, e ela desembarca linda, num daqueles vestidos acinturados que dançam ao redor de sua silhueta esguia, num caimento impecável. Audrey dá outro desfecho para a história. Seus lábios vermelhos, perfeitos, só querem chocolate.

Não é a primeira vez que um morto é ressuscitado para vender alguma coisa. Fred Astaire já dançou com vassouras e aspiradores de pó quando estava a sete palmos. Mussum, dos Trapalhões, está de volta num comercial de carro: “Cacildis! É o Fusquis!”. A voz do pai morto de Tiger Woods já foi usada numa propaganda. Em 2007, o apresentador e comediante da TV britânica Bob Monkhouse apareceu ao lado do que seria seu próprio túmulo (de fato ele havia sido cremado), numa campanha de prevenção ao câncer de próstata, doença que o matara anos antes. O Bob ressuscitado ao lado do túmulo do Bob ainda morto diz: “O que me matou mata um homem por hora na Inglaterra. Mais do que a comida da minha mulher”.

Mas é Audrey Hepburn, nessa ressurreição por computação gráfica, que talvez explicite melhor o conflito ético não pela sua morte, mas pela sua vida. Ela que seduziu homens e mulheres, mas quase como uma fada. A maioria dos homens que conheço – e algumas mulheres – foi apaixonado por Audrey, teria se casado com Audrey, e emite suspiros de encantamento diante da tela que reprisa seus clássicos. Mas (quase) nenhum deles pensa em sexo com Audrey. Ela é um tanto impenetrável, mesmo quando faz uma prostituta em Bonequinha de Luxo. A gente quer amá-la, cultuá-la, não necessariamente tocá-la. Talvez a criatura mais parecida com Audrey na ficção seja o Bambi.

Essa é uma das explicações possíveis para a sensação de profanação que, como eu, alguns sentiram ao vê-la num comercial. Como alguém ousa não apenas violar, mas recriar o corpo tabu de Audrey Hepburn? Será que se a propaganda fosse com Marilyn Monroe requebrando seus quadris bíblicos em nossa direção, sentiríamos tanto estranhamento? Marilyn cantando “Happy Birthday, Mister President” para Obama, hoje, na Casa Branca? A questão ética é a mesmíssima, mas será que a estranheza se daria? Ou com Marylin tudo é permitido e nada castigado? Ela, que nos provocava a sensação oposta, a de desejar o seu corpo e acreditar que ela desejava que a tocássemos. Talvez logo um desses comerciais de ressuscitação nos obrigue a descobrir.

Vivemos esse dilema ético na literatura e depois no cinema a partir da modernidade, quando a ciência se tornou um protagonista novo e decisivo no nosso cotidiano, alterando o mundo e a nossa relação com o mundo, com os outros e com nós mesmos. Enlouquecidos de dor, muitos foram os personagens da ficção que pagaram um preço alto por tentar devolver a vida a quem amavam, esposas ou filhos. O que retornava nunca era a pessoa amada e perdida, mas um outro monstruoso, na ideia de que o corpo poderia voltar à vida depois depois de algum procedimento proibido, mas jamais a alma ou o espírito. Não me recordo de nenhum filme ou livro em que a ousadia tenha tido um final feliz. Ousar tomar de um suposto deus a prerrogativa da criação ou o retorno do mundo dos mortos sempre foi punido com o pior dos castigos – e em geral com a morte irrevogável do transgressor.

Stephen King foi um dos escritores do século 20 que exploraram a força dessa transgressão. Mas a criatura de Victor Frankenstein, o cientista do século 19 que recriou a vida no clássico livro de Mary Shelley, é quem persiste no imaginário. Diferentemente do monstro, nascido dos pedaços de vários mortos, a Audrey da computação gráfica é quase tão perfeita e bela quanto a nossa lembrança dela. E a amamos pelo que foi, não pelo que será. Mas como no olhar de Frankenstein para a sua criatura, talvez também nesse caso exista um horror para além do encantamento de vê-la mais uma vez.

Pode ser apenas nosso temor atávico, que a literatura e depois o cinema tão bem expressaram, o risco extremo de “mexer com os mortos”, que tenha me feito sentir, como tantos, que estava profanando o corpo/túmulo de Audrey Hepburn. Um temor do qual estamos impregnados também porque a ficção o tornou real e terrorífico de várias maneiras nos últimos séculos. Mas mais do que um dilema da moral religiosa, que me interessa bem menos, a questão ética é legítima e das mais interessantes. Temos esse direito? A quem pertencem os mortos?

Todos nós desejamos a eternidade – ou quase todos. Sonhamos com um reconhecimento que vá além da nossa vida, sempre muito mais curta e limitada do que gostaríamos. Invejamos aqueles que permaneceram com sua obra depois de mortos – pelo menos os que permaneceram pela admiração, não pelo mal que perpetraram. Aliás, como seria ressuscitar Adolf Hitler? Será que alguma agência de publicidade se interessaria? O que Hitler poderia vender? Redenção, talvez? Vingança? Será que seria libertador se vingar de Hitler como fez Tarantino em Bastardos Inglórios, dando um outro desfecho à História, mas não com um ator, mas com o corpo revivido pela tecnologia? Será que seria legítimo julgar e punir pelos seus crimes um Hitler renascido?

Questões que serão cada vez mais presentes na nossa vida – e para as quais não há respostas fáceis. É diferente o ator que interpreta um outro que viveu e a tentativa de recriar a própria pessoa que morreu e botá-la atuando como se viva estivesse. Há um limiar transposto neste ato. Ou não? É ético ultrapassá-lo? Como seria Marlon Brando, para mim o melhor de todos em qualquer tempo, renascido de um computador? Este outro seria capaz de gritar por Stella em Um bonde chamado desejo e nos prostrar para sempre? O que é ser um ator, afinal? Ou, um pouco mais complicado, o que é ser? Hollywood tem projetos para reviver grandes atores mortos e colocá-los atuando em filmes atuais. Assim como recriar atores vivos, mas muitas décadas mais jovens. Neste caso, talvez a diferença fique mais clara: um ator vivo pode escolher se quer aparecer ou não como uma versão de computador, o morto não.

Desejamos a eternidade. Mas talvez tenhamos de começar a temê-la. Mais do que todos, aqueles que por alguma razão se tornaram célebres. Conhecemos o mal que parte dos herdeiros, em geral ávidos por dinheiro, faz à obra de seus pais, tios e avós famosos. A exploração da imagem pode atingir agora proporções inusitadas. Para os filhos de Audrey Hepburn, a mãe ficaria “orgulhosa” por esse novo papel. “Ela costumava falar sobre seu amor por chocolate e como ele elevava seu espírito”, disseram à imprensa, justificando a autorização para o comercial. Quando Fred Astaire dançou com os equipamentos de limpeza “Dirt Devil”, sua viúva autorizou, mas a filha não perdoou. Ela declarou na época, final dos anos 90, fazendo um trocadilho com o nome da marca (devil é diabo em inglês): “É muito triste que, depois de sua maravilhosa carreira, ele tenha sido vendido para o diabo”.

Será que Audrey pensaria em fazer um comercial de chocolate? Desejaria? Pode ser que sim, pode ser que não, o ponto é que nunca saberemos. E, se não podemos saber, temos o direito de escolher por ela? E o que mais Audrey e todas as grandes celebridades, de todas as áreas, vão ainda vender, mesmo depois de enterradas ou cremadas? Junk food, agrotóxicos, armas? Será que vão virar cabos eleitorais de candidatos em eleições? Ou defender causas que jamais defenderiam, ou fazer lobby para uma indústria que desprezavam? A possibilidade de uma vida de zumbi, fora de qualquer controle, à mercê das necessidades financeiras dos parentes, pode ser assustadora. Na morte se tornou possível trair toda uma vida.

É “só” um comercial, alguns podem dizer. Uma brincadeira, uma homenagem, um encantamento. Não é Audrey, mas a sua imagem. Mas não foi uma imagem de Audrey – e não a própria Audrey, se é que existe essa essência, que amamos? Não é a sua imagem que se eternizou como memória? Tudo o que tivemos não foi sempre uma imagem? Ela se foi. Mas nunca a tivemos de fato. De certo modo, o que tivemos é o que temos agora no comercial. Tivemos o que Audrey, viva, quis e pôde nos dar. Agora, porém, ela come chocolate “Galaxy” à sua revelia.

Não deixa de ser muito significativo que, assim que inventamos uma versão da vida eterna, ela seja colocada a serviço do mercado. Não mais o dilema de contrariar uma suposta prerrogativa divina, mas a suprema vulgaridade de ressuscitar mortos para vender chocolate ou vassoura. Não mais o medo do castigo por ousar criar vida, seja pelo amor à própria vida, seja pelo ideal de superar o limite máximo do humano, seja pela dor insuportável da perda de quem amamos. Não, os herdeiros do hoje querem apenas garantir que o morto continue sendo uma excelente e ilimitada fonte de renda para os vivos. Não mais uma transgressão, mas apenas um exemplo de livre iniciativa e visão de oportunidade.

Há ainda uma ironia possível. No dilema moderno, a aspiração dos vivos era punida porque o morto ressuscitado vinha acompanhado de uma alma, em geral monstruosa, que não era a da pessoa amada e perdida. Ou tinha, como na criatura de Frankenstein, uma alma que não podia ser controlada pelo criador. Hoje, a alma dos mortos renascidos não está em questão. Sua vontade, assim como seus corpos, aos vivos pertence. Eles, que tinham uma alma, a perdem para melhor servir. Para o mercado, o simulacro é mais do que suficiente. E um grande negócio: segundo a revista Forbes, o uso da imagem de celebridades mortas, numa lista liderada por Elizabeth Taylor, rendeu quase R$ 1 bilhão no último ano.

O tema é fascinante. E como tudo que é novo, as dúvidas são bem mais numerosas que as certezas. Ainda assim, persiste em mim não mais um encantamento, nem um mal-estar, ou uma repulsa. Não sou mais a cúmplice de Frankenstein, seu tempo acabou. Em mim resta uma melancolia diante da Audrey tentando me vender uma barra de chocolate “Galaxy”. A eternidade pós-moderna chegou. E que pobre de desejos ela é. Talvez um dia sejamos julgados, não por um deus vingativo, mas pelas gerações futuras, pela vulgaridade de nossas aspirações.

(Publicado na Revista Época em 11/03/2013)

Açúcar, Sal e Gordura: as engrenagens da ‘junk food’

O que colocamos em movimento ao abrir um saquinho de batatas fritas ou um refrigerante? Um livro e um documentário nos ajudam a compreender os métodos da indústria de alimentação e suas consequências nada inocentes

Tenho um amigo que tenta me ensinar como é o modo “perfeito” de comer uma determinada batata frita industrializada. “Você coloca sobre a língua, mas virada para cima, e deixa que as papilas gustativas entrem em contato com a batata. Aí pressiona delicadamente, com os dentes, num crac. Ela vai se desmanchar em puro prazer.” É assim mesmo que ele fala e, ao falar, sua voz ganha solenidade. Ele fecha os olhos para demonstrar a intensidade da sua fruição. Em seguida, me pergunta: “Você sentiu o crac, seguido pela explosão de sabores”?

Meu amigo trata a batata como se fosse uma hóstia, e sempre achei graça da sua devoção por algo que vem dentro de um tubo, nos sabores mais bizarros, mas que, sim, desmancha na boca e dá prazer. A junk food (comida e bebida tranqueira, porcaria e que faz muito mais mal do que bem) não é a minha igreja. Embora já tenha lido artigos e livros e assistido a alguns documentários sobre os métodos da indústria da alimentação, que muito se parece com a do tabaco, eu não tinha uma ideia tão precisa de que, ao expressar seu deleite, meu amigo transformava-se não apenas num consumidor, mas num produto. E num produto muito bem acabado de milhares de cientistas, psicólogos e marqueteiros a serviço das corporações de alimentos. Meu amigo, tão inteligente, tornava-se o consumidor perfeito – ou o idiota perfeito.

Os métodos da indústria de junk food foram dissecados pelo jornalista americano Michael Moss num livro-reportagem que acabou de ser lançado: Salt Sugar Fat: How the Food Giants Hooked Us. Em tradução livre: “Sal, Açúcar, Gordura: Como os Gigantes da Comida nos Escravizam”. Moss é um repórter investigativo que ganhou o Pulitzer de 2010, o prêmio mais prestigioso dos Estados Unidos, pelo seu trabalho sobre a indústria da carne. Em 20 de fevereiro, ele escreveu uma reportagem no The New York Times, abordando alguns dos principais tópicos do livro, que pode ser lida aqui. Para escrever sobre a indústria de junk food, o jornalista afirma ter entrevistado mais de 300 pessoas, entre cientistas, marqueteiros e CEOs das grandes corporações. Segundo ele, alguns estavam ansiosos para extravasar o que estava preso na garganta. Outros só falaram, com muita relutância, depois de serem confrontados com algumas das milhares de páginas de relatórios secretos obtidos de dentro da indústria. Entre os relatos escabrosos, aparece inclusive o Brasil: um alto executivo de uma companhia de refrigerantes (demitido quando quis mudar os métodos) conta como peregrinou pelas favelas brasileiras, para expandir o mercado a partir da estratégia de convencer pobres a consumir o que não precisam.

Ao final da investigação, o jornalista compôs um retrato sombrio sobre os métodos da indústria para manter os consumidores cativos, apesar da epidemia de obesidade que atinge não só os Estados Unidos, mas parte do mundo. Michael Moss chega a uma conclusão que, não fosse a qualidade da apuração jornalística, soaria como teoria conspiratória: a intensidade, tanto da fórmula química quanto das campanhas de venda, torna as pessoas extremamente vulneráveis, sendo quase impossível resistir. Para Michael Moss, a junk food parece ser uma espécie de droga sintetizada a partir de três ingredientes: sal, açúcar e gordura. Em seu trabalho, ele prova que CEOs, marqueteiros e cientistas sabem que estão produzindo não apenas salgadinhos, doces e refrigerantes, mas adultos e crianças com problemas cardíacos, hipertensos, diabéticos e com uma série de doenças relacionadas, que terão a vida encurtada no final e limitada no meio. Mas o que vale são os lucros – e eles são cada vez mais superlativos.

Entre as muitas declarações colhidas pelo jornalista, há algumas que se destacam pelo cinismo. “Eu otimizo sopas. Eu otimizo pizzas. Eu otimizo molhos para saladas. Nesta área, eu sou aquele que vira o jogo”, diz Howard Moskowitz, uma lenda da indústria, que há décadas vem “otimizando” produtos em baixa e transformando-os em armadilhas letais para homens, mulheres e crianças, usando para isso muito dinheiro, equipes de primeira linha e pesquisa de ponta. O cientista assim afirma sua total falta de conflito por produzir morte: “Não existe questão moral para mim. Eu fiz a melhor ciência que pude. Precisava sobreviver e não podia me dar ao luxo de ser uma criatura moral. Como pesquisador, sempre estive à frente do meu tempo”. Moskowitz estudou matemática e tem Ph.D em psicologia experimental em Harvard.

A reportagem mostra como vários produtos, de diferentes corporações, foram “otimizados” para dar ao público algo do qual ele não conseguiria escapar: o “bliss point” – que pode ser traduzido como o “ponto da felicidade”. Para atingi-lo, é necessário não apenas encontrar o sabor, a textura e a quantidade precisa dos ingredientes, a maioria deles nocivo à saúde, mas também investigar em profundidade os pontos de fragilidade de homens, mulheres e crianças. Identificar as barreiras – e quebrá-las uma a uma. As mães prefeririam dar comida saudável para seus filhos? Ok, mas sua principal queixa é a de que não têm tempo. Logo, é o tempo o flanco descoberto a ser atacado. Como alcançar as crianças diante da TV? Ora, com truques psicológicos como um slogan como este, de um produto que embala desejos de autonomia frente aos pais: “Todo dia você faz o que eles dizem. Mas na hora do lanche é você quem manda”.

Até hoje a indústria trabalha com a lista de “sete medos e resistências” à batata frita de saquinho, identificada ainda em 1957 pelo psicólogo Ernest Dichter: 1) você não consegue parar de comê-las; 2) elas engordam; 3) elas não fazem bem para você; 4) elas são gordurosas e fazem sujeira; 5) elas são muito caras; 6) suas sobras são difíceis de guardar; 7) fazem mal para as crianças. A partir desta descoberta, o psicólogo sugeriu à indústria mudanças como: em vez de usar a palavra “frito”, usariam “assado” ou “tostado”; para não dar a ideia de excesso, os salgadinhos passariam a ser vendidos em embalagens menores. Em outras palavras: o caminho era – e continua sendo – ajudar o consumidor a não ter culpa de comer o que faz mal para ele.

Como quando nos deparamos nos supermercados e lanchonetes com aquelas embalagens dizendo, em letras grandes: “Não tem gordura trans”. Em alguns casos, o produto nunca teve gordura trans, mas, ao dizer o óbvio, ajuda-nos a eliminar a culpa, ao alimentar de fato a nossa auto-ilusão de que podemos comer uma porcaria sem causar danos à saúde. É claro que o restante dos excessos, como a quantidade alarmante de sódio e/ou de açúcar etc, figura em letras bem menores. Como disse um dos entrevistados na reportagem: “O que precisamos fazer é remover as barreiras, dando aos consumidores permissão para beliscar”. Dito de outra maneira: “ótimo sabor, máximo prazer e mínima culpa com relação à saúde”.

Um dos casos esmiuçados na reportagem mostra como uma empresa diminuiu a quantidade de sódio de um determinado produto, marcando três gols ao mesmo tempo: fez bonito para o público, ao aparecer como uma companhia preocupada com a saúde; economizou milhões de dólares em sal, um insumo importante; e vendeu muito mais, porque os consumidores se autorizaram a comprar o produto por conta da redução de sódio e da mudança de imagem da empresa. Na prática, em grande escala era uma economia considerável para o fabricante, mas a redução, para o consumidor individual, era tão pequena que em nada diminuía o impacto nefasto sobre a saúde. É este o truque para nos fazer engolir, contentes e confortavelmente iludidos, aquelas embalagens que anunciam: “Agora com menos sódio”. A máxima das indústria de junk food é conhecida: sal, açúcar e gordura – tira um, aumenta os outros dois e estampa no rótulo aquele que diminuiu. Baseado em depoimentos e documentos internos, Michael Moss pôde afirmar: “A intenção das companhias é usar a ciência não para responder às questões de saúde, mas sim para evitá-las”.

Descobri que meu amigo tem poucas chances de resistir ao “crac” da batatinha lendo a seguinte descrição sobre o fabuloso complexo de pesquisa de um dos fabricantes: “Perto de 500 químicos, psicólogos e técnicos realizaram pesquisas que chegaram a custar até 30 milhões de dólares ao ano. A equipe de cientistas concentrou a maior parte dos recursos em questões como a crocância, a sensação tátil na boca e o sabor de cada um dos itens. Suas ferramentas incluíam um equipamento de 40 mil dólares que simulava uma boca mastigando, apenas para testar e aperfeiçoar o produto”. Com todo esse arsenal humano, científico e tecnológico, alcançaram a Lua: o ponto perfeito de quebra do salgadinho diante da pressão média de uma mordida humana.

Enquanto tudo isso acontece, lá na ponta há alguém – na realidade centenas de milhões de alguéns – como o meu amigo, extasiado com a hóstia de uma indústria que, diante do relato de Michael Moss, poderia encarnar uma versão contemporânea do Mefistófeles. De fato, o poder desse personagem em nosso tempo seria bem vulgar, prosaico como tem sido nossos desejos. Steven Whiterly, um cientista da área de alimentos que escreveu um guia citado por Moss e intitulado Why Humans Like Junk Food (“Por que Humanos Gostam de Junk Food”), assim explica a epifania da batatinha frita de saquinho: “É a chamada ‘densidade calórica evanescente’. Se algo dissolve rapidamente (na boca), nosso cérebro entende que não há calorias ali… E que podemos continuar comendo aquilo para sempre”.

No Brasil, o relato mais impressionante sobre a indústria de junk food e a epidemia de obesidade em crianças está no documentário “Muito além do peso”, de Estela Renner. O filme foi lançado em novembro e está disponível na internet. Se você ainda não assistiu, reúna a família ou os amigos e clique aqui. É quase obrigatório. Ao peregrinar pelo Brasil, a diretora busca responder à pergunta: por que 33,5% das crianças brasileiras estão acima do peso. Ou algo ainda mais alarmante: por que, pela primeira vez na história, há um número crescente de crianças com problemas de adultos – de coração, de respiração e diabetes do tipo 2 –, relacionados à obesidade. “Eu abro a felicidade”, diz uma criança, ao falar sobre o que sentia ao abrir um de seus produtos preferidos, demonstrando a relação íntima entre consumo e propaganda.

Em “Muito Além do Peso”, testemunhamos meninos e meninas que adoram batatas em saquinhos, mas não reconhecem uma batata ao natural – ou que confundem um abacate com um pimentão. Em um dos depoimentos, uma médica conta como uma das crianças que frequentam seu consultório precisa se esconder no banheiro da escola para comer uma fruta no recreio, com medo de ser hostilizada pelos colegas. Não é engraçado, é só triste. Entre os muitos achados de um filme feito para informar, provocar reflexão e promover mudança está a possibilidade de visualizar a quantidade de açúcar contida em alimentos presentes no cotidiano de quase todos. É um susto quando enxergamos o açúcar correspondente a uma lata de refrigerante, por exemplo, ou a gordura que há num saco de salgadinhos. Crianças com dor nas pernas para caminhar e que já não podem jogar futebol ou brincar, meninos e meninas ofegantes, com problemas cardíacos, contam e se contam na tela como vítimas de uma epidemia que já lhes rouba a vida. Como a garota que já teve trombose, ou o guri pequeno e já obeso que esperneia diante de pais impotentes até ganhar salgadinho.

Não é fácil ser pai e mãe diante de um assédio tão poderoso e tão insidioso como o da indústria de junk food. Mas é preciso ser pai e mãe. Segundo pesquisas apresentadas em “Muito Além do Peso”, crianças com sobrepeso aumentam o consumo de alimentos com alto teor de gordura, sal e açúcar em 134% quando expostas à publicidade. A média diária de permanência diante da televisão é de cinco horas. Como disse um dos entrevistados no documentário, referindo-se à publicidade na TV: “Você deixaria um vendedor formado em Harvard sozinho com o seu filho, dentro da sua casa, por tanto tempo”?

Documentários como o de Estela Renner e livros como o de Michael Moss são oportunidades para pensar e entender o que está acontecendo, enquanto somos tonteados por apelos de consumo dentro e fora de casa. São também estímulos para romper a passividade e tomar posição. No Brasil, as lutas vêm sendo travadas em vários palcos: dentro de casa e das escolas, na Justiça e no Legislativo. E as derrotas se acumulam. No final de janeiro, o governador de São Paulo, Geraldo Alckmin (PSDB), vetou a lei que restringia a publicidade de produtos alimentícios para crianças. Pelo texto, aprovado pela Assembleia Legislativa em dezembro, se tornaria proibido veicular anúncios de alimentos e bebidas pobres em nutrientes e com alto teor de açúcar, gorduras saturadas ou sódio, entre as 6h e as 21h, no rádio e na TV. Também seria vetado o uso de celebridades ou personagens infantis na venda de alimentos, assim como o uso de brindes promocionais, como os vendidos com sanduíches em redes de fast food (leia aqui). Em 22 de fevereiro, outra derrota. Desembargadores do Tribunal Regional Federal (TRF) da 1ª. Região confirmaram a suspensão da Resolução 24 (RDC 24), da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Na resolução, a Anvisa (leia aqui) obrigava os fabricantes a colocar nos produtos o alerta de que o consumo em excesso poderia causar problemas de saúde como diabetes, hipertensão e obesidade. Desde que a resolução foi aprovada, em 2010, a Associação Brasileira das Indústrias de Alimentação (ABIA) luta para derrubá-la – e tem conseguido, alegando que a propaganda é “uma forma de liberdade de expressão”, que só pode ser alterada por lei do Congresso Nacional. No Congresso, o projeto de lei que trata da regulação da publicidade dirigida a crianças se arrasta há 11 anos (leia aqui). Em 2013, como tem alertado o Instituto Alana (veja aqui), um dos mais combativos nesta luta, ao completar 12 anos terminará a infância do projeto – uma infância passada engatinhando de comissão em comissão. E mais uma geração de brasileiros terá deixado de ser protegida.

As sucessivas derrotas e procrastinações dão uma ideia do tamanho do lobby da indústria de junk food, assim como do marketing e da publicidade. Mas não acho que somos apenas vítimas do poder das grandes corporações. Esta posição, a de vítima – e agora falo de adultos, não de crianças – tem uma boa quantidade de verdade, mas não é toda a verdade. Se isso tudo dá tão certo é também porque até mesmo o lugar de vítima pode ser confortável, afinal ele nos coloca na posição de quem sofre a ação, mas não pode fazer nada para impedi-la. Mas neste caso podemos, sim, como mostra muita gente que tem lutado no espaço público para isso – e muitos que têm mudado sua relação com o consumo, com a publicidade e com a comida, botando limites dentro de casa e indo para as escolas debater. Em um texto sobre o documentário (leia aqui), chamado “Muito além do peso (na consciência)”, Viviane Zandonadi, jornalista especializada em gastronomia, diz: “Afinal, se somos o que comemos e não sabemos o que comemos, o que é que somos”?

O que nos falta, talvez, seja nos reapropriarmos do nosso próprio poder – inclusive o do voto. E compreender que escolher é um ato humano profundo, que determina não só o que pegamos na prateleira, mas quem somos na vida. Vale a pena perceber que, se tivéssemos qualquer limite para o nosso prazer imediato, a junk food jamais se tornaria o problema que é. Se tanto valorizamos o indivíduo e a individualidade, é preciso não empurrar para o outro quando nossas más escolhas se revelam um desastre. As responsabilidades são múltiplas e com diferentes proporções – e a indústria tem que responder pelo que fez e faz, especialmente no que se refere à manipulação ou à omissão da informação. Mas, neste embate, também desempenhamos um papel ativo – e ele é mais profundo do que engolir mais ou menos porcaria. Se a junk food pode ser considerada uma droga de comida, o que nos leva até ela é muito mais complexo – e por isso, mais difícil de mudar.

Em sua análise, Michael Moss afirma: “Se os americanos beliscassem (junk food) apenas ocasionalmente e em poucas quantidades, não teríamos hoje o enorme problemas que temos. Mas por causa do tanto de dinheiro e de esforços investidos por décadas aperfeiçoando esses produtos, e então os vendendo incansavelmente, os efeitos já são praticamente impossíveis de reverter”. Concordo que lá ou aqui a mudança é difícil, bem difícil até, mas ainda assim temos escolha. Se é importante desnudar a racionalidade perversa da indústria de junk food e seus métodos inescrupulosos, também é importante desvelar nossos próprios mecanismos, do contrário nos livramos de uma armadilha para cair em outra. No fundo dessa história sórdida, desse emaranhado de lobbies e de bilhões de dólares, o que também é um participante ativo desse jogo é a nossa relação com a vida. É de uma relação de consumo e do imperativo do gozo – tão imediato quanto fugaz – que se trata.

Para mim, a melhor cena de “Muito Além do Peso”, a mais reveladora e profunda, é a de uma menina de olhos muito tristes contando que sua família sempre reza para agradecer pela comida, pedindo que não falte nada em sua mesa. Perguntam a ela, então: “Falta alguma coisa na sua vida”? E a menina de olhos muito tristes responde, alcançando muito além do peso, dos métodos e das estatísticas:

– Falta sentido.

(Publicado na Revista Época em 04/03/2013)

O Doping das Crianças

O que o aumento do consumo da “droga da obediência”, usada para o tratamento do chamado Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade, revela sobre a medicalização da educação?

Um estudo divulgado na semana passada pela Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) deveria ter disparado um alarme dentro das casas e das escolas – e aberto um grande debate no país. A pesquisa mostra que, entre 2009 e 2011, o consumo do metilfenidato, medicamento comercializado no Brasil com os nomes Ritalina e Concerta, aumentou 75% entre crianças e adolescentes na faixa dos 6 aos 16 anos. A droga é usada para combater uma patologia controversa chamada de TDAH – Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade. A pesquisa detectou ainda uma variação perturbadora no consumo do remédio: aumenta no segundo semestre do ano e diminui no período das férias escolares. Isso significa que há uma relação direta entre a escola e o uso de uma droga tarja preta, com atuação sobre o sistema nervoso central e criação de dependência física e psíquica. Uma observação: o metilfenidato é conhecido como “a droga da obediência”.

O boletim da Anvisa é uma indicação de que o uso abusivo do metilfenidato pode se tornar um problema de saúde pública no Brasil. A pesquisa é o ponto de partida para vários caminhos de investigação, inclusive jornalística. Por que Porto Alegre é a capital brasileira com maior consumo da droga? Por que o Distrito Federal é, entre as unidades da federação, a que registrou maior uso de metilfenidato? Por que Rondônia, entre os estados do norte, tem um consumo 13 vezes maior que o estado com menor consumo registrado? O que diferencia os médicos brasileiros, concentrados nas regiões Centro-Oeste, Sudeste e Sul, que mais prescrevem o medicamento no Brasil? E por que os três maiores prescritores, dois deles profissionais do Distrito Federal, são os mesmos nos três anos pesquisados? Em 2011, as famílias brasileiras gastaram R$ 28,5 milhões na compra da droga da obediência – R$ 778,75 por cada mil crianças e adolescentes com idade entre 6 e 16 anos. É preciso seguir as pistas e compreender o que está acontecendo.

A TDAH seria um transtorno neurológico do comportamento que atingiria de 8 a 12% das crianças no mundo. No Brasil, os índices são bastante discordantes, alcançando até 26,8% . Os sintomas considerados para o diagnóstico em crianças são: apresentar dificuldade para prestar atenção e passar muito tempo sonhando acordada; parecer não ouvir quando se fala diretamente com ela; distrair-se facilmente ao fazer tarefas ou ao brincar; esquecer as coisas; mover-se constantemente ou ser incapaz de permanecer sentada; falar excessivamente; demonstrar incapacidade de brincar calada; atuar e falar sem pensar; ter dificuldade para esperar sua vez; interromper a conversa de terceiros; demonstrar inquietação.

Um parêntese. A droga tem sido usada por jovens e adultos de todas as idades, na crença de que ela potencializaria a atenção e o rendimento. É difícil quem não conheça alguém que já usou o medicamento para fazer provas na escola ou na universidade, assim como em vestibulares e concursos. O uso é disseminado no ambiente profissional, utilizado por quem quer melhorar seu desempenho ou precisa terminar um trabalho em prazo curto. Também é popular entre aqueles que querem ficar “bombados” para uma balada. Alguns recorrem ao mercado ilegal, outros simulam os sintomas de TDAH nos consultórios médicos para conseguir a receita. Sobre esse tipo de consumo há unanimidade: é totalmente contraindicado.

Entre as considerações finais, os autores da pesquisa da Anvisa, Márcia Gonçalves de Oliveira e Daniel Marques Mota, afirmam:

– Os dados demonstram uma tendência de uso crescente no Brasil. No entanto, a pergunta que precisa ser respondida é se esse uso está sendo feito de forma segura, isto é, somente para as indicações aprovadas no registro do medicamento e para os pacientes corretos, na dosagem e períodos adequados. O uso do medicamento metilfenidato tem sido muito difundido nos últimos anos de forma, inclusive, equivocada, sendo utilizado como “droga da obediência” e como instrumento de melhoria do desempenho seja de crianças, adolescentes ou adultos. Em muitos países, como os Estados Unidos, o metilfenidato tem sido largamente utilizado entre adolescentes para melhorar o desempenho escolar e para moldar as crianças, afinal, é mais fácil modificá-las que ao ambiente. Na verdade, o medicamento deve funcionar como um adjuvante no estabelecimento do equilíbrio comportamental do indivíduo, aliado a outras medidas, como educacionais, sociais e psicológicas. Nesse sentido, recomenda-se proporcionar educação pública para diferentes segmentos da sociedade, sem discursos morais e sem atitudes punitivas, cuja principal finalidade seja a de contribuir com o desenvolvimento e a demonstração de alternativas práticas ao uso de medicamentos.

O documento pode ser lido na íntegra aqui.

Além do questionamento proposto pelos autores, outras perguntas podem e devem ser colocadas: existe um doping legalizado das crianças? A escola, em vez de olhar cada aluno a partir da sua história e de sua singularidade, está sendo agente de um processo de homogeneização e silenciamento de crianças e adolescentes considerados “diferentes”? Estaria a droga da obediência sendo usada como uma espécie de “método pedagógico” perverso? O que isso significa? E por que não há uma discussão mais ampla em toda a sociedade brasileira?

A controvérsia sobre a droga da obediência e o chamado Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH) é grande. Por uma série de razões, porém, pouco chega à população. É comum ouvir nas ruas, nas escolas e nas festas infantis que alguma criança é “hiperativa”, já que o diagnóstico e a crença de que a suposta doença possa ser resolvida com uma droga se difundiu na sociedade. Para uma parcela significativa das pessoas, soa como uma daquelas verdades “científicas” inquestionáveis.

Na realidade, os questionamentos são muitos. Há quem denuncie que os diagnósticos são mal feitos, levando à prescrição equivocada do medicamento. Há quem defenda que a doença sequer existe – seria uma invenção promovida pelo marketing da indústria farmacêutica. Para colaborar com o acesso ao que poderia ser chamado de “o outro lado do TDAH”, elenquei algumas das principais críticas e ponderações sobre a patologia e o uso da droga, feitas por pesquisadores das áreas da medicina, psicologia, psicanálise e educação. Todos os artigos citados – exceto um, ainda inédito – têm livre acesso e podem ser lidos na íntegra na internet. O foco principal é a relação entre a droga/diagnóstico e a escola, explicitada de forma inequívoca pelo boletim da Anvisa.

1) A medicina e a definição da “normalidade”

A história da medicina é uma história também de como ela deixa de ser o estudo das doenças para passar a definir o que é a normalidade. “A medicina se atribui todo o universo de relações do homem com a natureza e com outro homem, isto é, a vida. Legislando sobre hábitos de alimentação, vestuário, habitação, higiene, aplica a esses campos a mesma abordagem empregada frente às doenças. Adotando (assim) um discurso genérico, aplicável a todas as pessoas, porque neutro”, afirma Maria Aparecida Affonso Moysés, professora titular de Pediatria da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp, em um artigo muito interessante, intitulado “A Medicalização na Educação Infantil e no Ensino Fundamental e as Políticas de Formação Docente” (leia aqui). “Com o consentimento da sociedade, que delega à medicina a tarefa de normatizar, legislar e vigiar a vida, estão colocadas as condições históricas para a medicalização da sociedade, aí incluídos comportamento e aprendizagem. (…) É preciso abolir as particularidades, o subjetivo, a imprecisão, para que o pensamento racional e objetivo se imponha. Não se esqueça que o discurso médico, nesse momento – aliás, o discurso científico, em qualquer momento – está afinado com as demandas dos grupos hegemônicos.”

A medicalização, segundo a pediatra, é resultado do processo de conversão de questões sociais e humanas em biológicas – transformando os problemas da vida em doenças ou distúrbios. É neste contexto que teria surgido uma doença que impediria a criança de aprender, com outros nomes antes de ser registrada como TDAH. É assim que se medicaliza a educação, transformando problemas pedagógicos e políticos em questões biológicas e médicas. “O discurso médico irá apregoar a existência de crianças incapazes de aprender, a menos que submetidas a uma intervenção especial – uma intervenção médica”, afirma. E conclui: “A atuação medicalizante da medicina consolida-se ao ser capaz de se infiltrar no pensamento cotidiano, ou, mais precisamente, no conjunto de juízos provisórios e preconceitos que regem a vida cotidiana. E a extensão (e a intensidade) em que esse processo ocorre pode ser apreendida pela incorporação do discurso médico, não importa se científico ou preconceituoso, pela população. A medicina constrói, assim, artificialmente, as ‘doenças do não-aprender-na-escola’ e a consequente demanda por serviços de saúde especializados, ao se afirmar como instituição competente e responsável por sua resolução. A partir deste momento, a medicina se apropriará cada vez mais do objeto aprendizagem. Sem mudanças significativas, apenas estendendo seu campo normativo”.

Em “Os Equívocos da Infância Medicalizada” (leia aqui), Margareth Diniz, professora da Universidade Federal de Ouro Preto, com doutorado em educação, explicita a diferença entre “medicar” e “medicalizar”: “Medicar pode ser necessário, desde que caso a caso. Já a medicalização é o processo pelo qual o modo de vida dos homens é apropriado pela medicina e que interfere na construção de conceitos, regras de higiene, normas de moral e costumes prescritos – sexuais, alimentares, de habitação – e de comportamentos sociais. Este processo está intimamente articulado à idéia de que não se pode separar o saber – produzido cientificamente em uma estrututa social – de suas propostas de intervenção na sociedade, de suas proposições políticas implícitas. A medicalização tem, como objetivo, a intervenção política no corpo social”.

2) A escola e o ciclo da medicalização da infância

O caminho que leva ao diagnóstico de TDAH e à prescrição da droga da obediência, entre os mais pobres e usuários da rede pública de ensino, inicia na escola, a partir das dificuldades de aprendizagem e/ou insubordinação de determinada criança ou adolescente. Como a família em geral não conseguiria dar uma resposta ao problema, a escola ou encaminha ao médico, ou aciona o conselho tutelar. Entre as crianças mais ricas, clientes do sistema privado de ensino, o ciclo é semelhante, com exceção de que estas não estão vulneráveis à tutela e à vigilância do Estado. Neste caso, a escola encaminha ao psicólogo e este ao neuropediatra – ou diretamente ao neuropediatra, que prescreve o medicamento.

Esta é a análise da psicanalista Michele Kamers, professora do curso de psicologia do Ibes-Sociesc, coordenadora dos cursos de especialização em psicologia hospitalar e da saúde e psicopatologia da infância e da adolescência do Hospital Santa Catarina, de Blumenau, e mestre em educação pela Universidade de São Paulo. No artigo intitulado “A Fabricação da Loucura na Infância: Psiquiatrização do Discurso e Medicalização da Infância”, ainda inédito, ela afirma que a escola se converteu em um mecanismo de inclusão da criança no campo do saber médico-psiquiátrico. “As escolas, as unidades de saúde e as clínicas privadas agenciam e legitimam a intervenção médica e farmacológica sobre a criança, fazendo com que a medicalização venha se convertendo na principal forma de tratamento utilizada para responder às demandas sociais realizadas pelas instituições de assistência à infância”, diz. “A medicina, juntamente com a assistência psicológica, social e pedagógica, forma uma rede de tutela e encaminhamentos múltiplos. A partir do momento em que a criança e sua família são capturadas, não conseguem mais sair.”

É corriqueiro, segundo Margareth Diniz, receber pais em busca de tratamento para seus filhos por exigência da escola. “Todos nós que nos ocupamos da clínica também estamos habituados com solicitações de tratamento de crianças a partir de uma exigência da escola em relação à sua inadaptação, ou inadequação às regras mais elementares de seu aprendizado e de sua socialização. Normalmente são os pais, mais especificamente as mães, que nos formulam esse pedido. O que torna esses pedidos curiosos é que, invariavelmente, trazem consigo um enunciado pedagógico nos seguintes termos: ‘A escola chegou à conclusão que esta criança necessita de um acompanhamento’”.

A psicóloga Renata Guarido, que defendeu uma tese de mestrado na Universidade de São Paulo intitulada “O Que Não Tem Remédio, Remediado Está: a Medicalização da Vida e Algumas Implicações do Saber Médico na Educação”, mostra como a criança passou de objeto da pedagogia a objeto da medicina. Renata afirma que a medicina passou a determinar quem era “educável ou ineducável” (leia aqui): “Vemos as crianças e suas famílias submetidas ao poder exercido pela constituição de um domínio do saber médico-psicológico, sem que o contexto de seus sofrimentos, bem como sua possibilidade de tratamento, sejam orientados para outras formas de consideração da subjetividade, que não a normalizante e de ‘treinamento’”.

Em sua análise, Renata reforça como são corriqueiras hoje nas escolas as cenas em que professores e coordenadores dão o diagnóstico de TDAH diante de determinados comportamentos das crianças e adolescentes, encaminhando-os para avaliação psiquiátrica, neurológica e psicológica. Também já faz parte da rotina professores e outros agentes escolares perguntarem aos pais de um aluno em tratamento se ele foi corretamente medicado naquele dia. “Tais procedimentos nos permitem entrever que estão crentes de que a variação no uso do remédio é responsável pela variação dos comportamentos e estados psíquicos das crianças, e que esta não teria nenhuma relação com variações, mudanças ou experiências no interior do cotidiano escolar. (…) Ao assumir e validar o discurso médico-psicológico, a pedagogia não deixa de fazer a manutenção dessa mesma prática, desresponsabilizando a escola e culpabilizando as crianças e suas famílias por seus fracassos”.

3) A criança como objeto, não mais como sujeito

Entre as principais críticas feitas por aqueles que alertam para o processo de medicalização da infância – e especificamente sobre o TDAH e a droga da obediência – está a constatação de que as crianças deixam de ser escutadas na sua singularidade, como um protagonista que tem uma história e está inserido num contexto familiar e social, para se tornar um objeto com uma falha no corpo, sujeito à intervenção e à correção por medicamentos. Assim, as crianças e adolescentes têm sido calados naquilo que estão tentando dizer a pais e professores, em nome de um ideal de “normalidade” determinado pelo olhar médico e legitimado e reproduzido pela escola – e também pelos dispositivos de vigilância do Estado. O que se cala são os conflitos – que deveriam ser os propulsores do ato de educar.

Em O Livro Negro da Psicopatologia Contemporânea (Via Lettera, 2011), o psicanalista Alfredo Jerusalinsky escreve um capítulo intitulado “Gotinhas e comprimidos para crianças sem história – uma psicopatologia pós-moderna para a infância”. Ele afirma: “Não se questiona o que quer dizer este ponto, esta palavra ou este gesto fora do lugar. (…) Na trajetória que estamos descrevendo, foi se apagando esse esforço por ver e escutar um sujeito, com todas as dificuldades que ele tivesse, no que tivesse para dizer, e foi-se substituindo o dado ordenado segundo uma nosografia (descrição das doenças) que apaga o sujeito. (…) É assim que os problemas deixam de ser problemas para serem transtorno. É uma transformação epistemológica importante, e não uma mera transformação terminológica. Um problema é algo para ser decifrado, interpretado, resolvido; um transtorno é algo a ser eliminado, suprimido porque molesta. Os nomes das categorias não são inocentes”. Escrevi sobre este livro na coluna “Os Robôs Não Nos Invejam Mais”, que pode ser lida aqui.

Em artigo já citado, Renata Guarido mostra que não é calada apenas a voz dessas crianças e adolescentes classificados como fora do padrão de uma pretensa normalidade. Mas até mesmo o seu nome é apagado. “Não é incomum observar, nas unidades de saúde ou mesmo nas escolas, que o nome do paciente ou do aluno seja substituído por sua classificação diagnóstica – estranha nomeação dos indivíduos que põe em relevo o lugar que ocupam na escala normal”, diz Renata. “A medicalização em larga escala das crianças nos tempos atuais pode ser lida também como apelo ao silêncio dos conflitos, negando-os como inerentes à subjetividade e ao encontro humano. Que o discurso pedagógico contribua para a manutenção desse tipo de recurso deve ser objeto constante de crítica em direção à possibilidade de que o lugar do ato educativo seja redefinido.”

Em “Hiperatividade: o ‘Não Decidido’ da Estrutura ou o ‘Infantil’ ainda no Tempo da Infância”, as psicanalistas Viviane Neves Legnani, professora da Universidade de Brasília (UnB), e Sandra Francesca Conte de Almeida, professora da Universidade Católica de Brasília, refletem sobre a TDAH a partir da descrição de um caso concreto (leia aqui). Elas afirmam: “Nossa experiência com escolas permitiu observar que muitos professores se servem dos indicadores descritivos que acompanham o diagnóstico de TDAH para sustentar uma prática pedagógica ‘didaticamente planejada’ para lidar ‘com os difíceis alunos portadores de hiperatividade’. O preço deste planejamento, no entanto, nem sempre é considerado: a impossibilidade de a criança encontrar o seu lugar na escola, a partir de sua singularidade. Como consequência da padronização pedagógica, ‘cientificamente’ estruturada, tem-se que o educador não escuta e não legitima a palavra dita pela criança, já que esta é vista como ‘doente’ e, portanto, incapaz”.

4) Ninguém se responsabiliza – ou por que a medicalização prospera

Não é apenas a escola que se desresponsabiliza, quando aquilo que pertence ao humano é tratado como patologia, mas também a criança e o adolescente, na tarefa de criar uma vida. Ao serem classificados como doentes ou portadores de um transtorno, e ao introjetarem este ser/estar no mundo como doentes ou portadores de um transtorno, é o diagnóstico que lhes determina o destino. Na hipótese de realizar qualquer conquista, ela é computada na conta da droga. Em “O Sujeito Refém do Orgânico” (leia aqui), Renata Guarido afirma: “Crianças e adultos, sendo desresponsabilizados de sua implicação com aquilo que lhes acontece, tornam-se também impotentes para atuarem sobre seus sofrimentos e aprendizados. E a impotência é então mais um efeito deste discurso biológico. Só é visto como potente o especialista que saberia o que fazer diante do diagnóstico que profere. Sendo o aprendizado descrito como efeito do funcionamento cerebral, da estimulação correta deste órgão que nos governa, temos sua descrição reduzida a uma dimensão privada, que ocorre no interior do indivíduo e não a partir do laço entre dois ou mais sujeitos. Ou seja, o aprendizado perde o caráter de ser fruto da ação humana, dimensão do encontro na pluralidade própria do mundo público, onde produzimos história”.

Margareth Diniz analisa por que a aceitação desse discurso ecoa na sociedade e é por ela reproduzido: “A criança e o adolescente esperam do outro que lhe responda algo acerca do enigma de sua existência, e os outros esperam das crianças que se conduzam na vida de modo a responder aos seus ideais. A fim de salvar os pais de tamanha angústia diante do não saber, surgem as tentativas de tornar científicas as respostas a estas questões, na busca de aplacar o mal-estar. A ciência começa a forjar um saber que não pertence nem ao pai, nem a mãe. Estes são levados a interferirem cada vez menos na educação dos filhos. Entra em cena a figura dos especialistas, autorizados principalmente pelo discurso da mãe, que demonstra um verdadeiro fascínio pela promessa de um saber total, sem furos”.

Não são apenas os professores, mas também os pais que passaram a exigir diagnóstico e medicamento para calar os conflitos na escola e dentro de casa. Afinal, é muito mais fácil lidar com uma “doença”, quase uma fatalidade, que diz respeito apenas ao funcionamento de um corpo e para a qual existiria uma pílula milagrosa, do que escutar o que uma criança ou um adolescente está dizendo com seu comportamento. “Os pais acusam as escolas de rotular suas crianças de hiperativas indiscriminadamente, antes mesmo de obter um diagnóstico médico, mas há relatos de que também alguns pais impacientes andam utilizando o diagnóstico de hiperatividade como desculpa para entupir seus filhos de remédio e mantê-los ‘sossegados’, daí que o medicamento tenha sido batizado por ‘droga da obediência’”, afirma Margareth. “Isso os desculpabiliza por não estarem dando conta de impor limites aos filhos, por exemplo, em relação à hora de dormir ou de desligar seus computadores e jogos eletrônicos.”

5) O marketing da indústria farmacêutica

O transtorno de hiperatividade pode ser um daqueles casos em que a droga ajuda a moldar o diagnóstico. Críticos da medicalização afirmam que não é comprovada a existência de uma doença que só altere o comportamento e a aprendizagem. Neste sentido, a disseminação do diagnóstico de TDAH inverteria a lógica da medicina, na qual seria preciso primeiro comprovar a doença e depois tratá-la. O fenômeno obedeceria mais à lógica do mercado do que a da saúde – com a relação próxima e, em alguns casos, promíscua, entre laboratórios e médicos. “A ligeireza (e imprecisão) com que as pessoas são transformadas em anormais é diretamente proporcional à velocidade com que a psicofarmacologia e a psiquiatria contemporânea expandiram seu mercado. Não deixa de ser surpreendente que o que foi apresentado como avanço na capacidade de curar tenha levado a ampliar em uma progressão geométrica a quantidade de doentes mentais”, alertam Alfredo Jerusalinski e Silvia Fendrik em O Livro Negro da Psicopatologia Moderna.

“A produção de saber sobre o sofrimento psíquico encontra-se associada à produção da indústria farmacêutica de remédios que prometem aliviar os sofrimentos existenciais. O consumo em larga escala dos medicamentos e o crescimento exponencial da indústria farmacêutica tornam-se elementos indissociáveis do exercício do poder médico apoiado em um saber consolidado ao longo do século XX”, analisa Renata Guarido. “Se a psiquiatria clássica, de forma geral, esteve às voltas com fenômenos psíquicos não codificáveis em termos do funcionamento orgânico, guardando espaço à dimensão enigmática da subjetividade, a psiquiatria contemporânea promove uma naturalização do fenômeno humano e uma subordinação do sujeito à bioquímica cerebral, somente regulável por uso de remédios. Há aí uma inversão não pouco assustadora, pois na lógica atual de construção diagnóstica, o remédio participa da nomeação do transtorno. Visto que não há mais uma etiologia (estudo das causas da doença) e uma historicidade a serem consideradas, pois a verdade do sintoma/transtorno está no funcionamento bioquímico, e os efeitos da medicação dão validade a um ou outro diagnóstico.”

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Estes cinco pontos são apenas algumas pistas para compreender o crescimento do Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade entre as crianças e adolescentes e a disseminação da droga da obediência. Dito de outro jeito, questionar o aumento dos “anormais” nas escolas brasileiras. Ou dos “desobedientes”. A falta de espanto de pais e professores diante do fenômeno mostra como a medicalização está naturalizada na sociedade brasileira. Afinal, parte destes pais e professores também fazem, no seu próprio cotidiano, o uso de drogas legais para silenciar suas dores humanas. Por que acreditariam que com seus filhos e alunos seria diferente? Drogar-se, legalmente, é uma marca da nossa época.

Ninguém sabe quais serão os efeitos a longo prazo do uso contínuo do metilfenidato sobre o cérebro em formação das crianças. O que acontecerá no futuro com essa geração legalmente drogada ainda é uma incógnita. Pelo menos, valeria a pena pensarmos no presente: por que estamos dopando crianças e adolescentes em vez de tentar escutá-los e entendê-los em sua singularidade? E o que isso diz sobre nós, os adultos?

(Publicado na Revista Época em 25/02/2013)

 

O coração grande de Cristina

A luta de uma camponesa para não morrer como estatística

Cristina foi sepultada no mesmo dia em que o Papa renunciou. Enquanto no Vaticano Bento XVI acontecia, ali, em Aiquile, Cristina desacontecia. Não havia uma relação de causa e efeito no fato de que o mundo vivia um de seus espasmos, e na cidadezinha boliviana um cortejo comprido levantava poeira ao passar pelas ruas carregando Cristina. Era uma coincidência, só, que para aquele séquito, a decisão de Bento XVI não era notícia. Talvez, dias depois, alguém tenha comentado: “Parece que aquele Papa que renunciou usa marca-passo. Como a Cristina”. Era só o que os dois personagens, um de um drama acontecido, outra de um desacontecido, tinham em comum. E é aqui que as histórias se separam, porque o Papa jamais esteve na de Cristina, além desse encontro fortuito. Desse azar do Papa, que teve a dramaticidade do seu ato empanada pela grandeza do adeus de Cristina.

Ela, ao contrário dele, jamais renunciou. Até o fim, quando o ar já lhe faltava, Cristina se agarrou às batidas descompassadas do seu coração. Se tivesse maneira, ela o teria sacudido com suas mãos bordadas de calos, obrigando-o a continuar. Por isso era difícil acreditar, naquela manhã de segunda-feira, que ela tinha morrido. Não posso morrer, ela dizia. Não quero morrer. Eu preciso ver meus filhos crescer. E quando ficava assim, Cristina cantava. Cantou também quando lhe abriram o peito para botar primeiro um marca-passo, depois um desfibrilador. E mesmo naquela segunda-feira cinzenta, em que a melancolia da cidadezinha metia os dedos por dentro das gentes, Cristina passava colorida em sua melhor saia rodada, sua blusa de renda mais bonita. Altiva, Cristina era altiva até mesmo em seu último passeio.

Todos sabiam o que havia matado Cristina, aos 49 anos. Coração grande demais, coração de gigante. Dizer que alguém tem um coração grande, naquela região da Bolívia, é um péssimo augúrio. Quanto mais o coração dela aumentava, mais a vida encolhia. Ela sabia que não podia ganhar a luta que lhe custou cada dia. Sabia que no fim, sempre muito mais cedo do que tarde, a Vinchuca venceria. A Vinchuca, esse personagem que entrou na sua vida talvez até antes da vida, quando ainda era um desejo no útero da sua mãe. E nunca mais saiu. Vinchuca é o nome em quéchua para o inseto que chamamos de “barbeiro”. Mas esta é uma história que ela mesma vai contar daqui a pouco, porque a voz de Cristina ainda vive. Ela garantiu que sua voz vivesse ao decidir que, se tivesse que morrer, não seria como silêncio.

Há sempre várias maneiras de descrever a causa da morte de alguém. A mais corriqueira seria dizer que Cristina morreu da doença identificada pelo brasileiro Carlos Chagas no início do século XX. É uma verdade que ela tenha morrido de doença de Chagas. Mas é uma verdade pequena. É preciso ampliar um pouco mais essa verdade. Cristina morreu porque a indústria farmacêutica não tem interesse em pesquisar tratamento, vacina e cura para as doenças dos pobres, as doenças de quem não pode pagar por medicamento. Cristina morreu porque, apesar de fazer um século que a doença foi descrita, a principal droga usada para o seu tratamento foi desenvolvida para outra patologia em 1960 e é produzida hoje apenas no Brasil, por um laboratório público, e na Argentina. Cristina morreu porque esse medicamento só alcançou a região onde ela vivia neste século, levado pela organização humanitária Médicos Sem Fronteiras, e para ela já era tarde demais. Cristina morreu porque os camponeses moram em casas de pau a pique, cobertas de palha, onde até hoje em algumas delas centenas de barbeiros se escondem – centenas, até milhares em cada casa. E, se os camponeses mal tem o que comer, não há nenhuma chance de melhorarem o seu teto. Cristina morreu porque os barbeiros não são exterminados como poderiam e deveriam ser – e pessoas como ela são entregues a insetos que transmitem um parasita que pode matá-las. Cristina morreu, como os outros 14 mil que morrem da doença a cada ano, nas porções pobres do mundo e também na Amazônia brasileira, por causa da nossa omissão. Cristina morreu de silêncio.

“Cristina morreu de negligência”, diz Lucia Brum, dos Médicos Sem Fronteiras, uma referência em doenças infecciosas emergentes. Conversamos por telefone, e ela desenha com palavras a paisagem obscura das chamadas doenças negligenciadas, as doenças dos pobres do mundo, aquelas que não deveriam estar matando mais ninguém, mas matam porque quem poderia combatê-las não se importa. “Cerca de 90% das pessoas infectadas não sabem que têm doença de Chagas, porque nunca tiveram acesso nem à informação, nem ao diagnóstico, muito menos ao tratamento”, diz. Pergunto de Cristina, e a voz de Lucia lacrimeja. Ela trava. Combinamos que ela me escreverá. E penso nessa médica que convive com a morte e a impotência em todos os cantos do planeta, mas mantém a capacidade de chorar por uma pessoa – por cada pessoa. Mantém a capacidade de chorar por Cristina.

Lucia escreve:

“Não consigo pensar na Cristina sem pensar que ela foi vítima de um ciclo de negligências que também se reflete nas pessoas que sofrem com as doenças típicas da pobreza no mundo todo. Houve negligência quando se permitiu que ela e a família vivessem anos em uma casa infestada de barbeiros. Houve negligência quando não lhe deram a oportunidade de um diagnóstico precoce e o acesso a um tratamento efetivo, que curasse ou evitasse as complicações causadas pela doença de Chagas. Houve negligência quando não se investiu em pesquisas que contribuíssem para melhorar a atenção médica de todos os afetados pelas doenças esquecidas, porque foram esquecidos. Cristina nunca se calou diante de todas essas negligências. Aproveitou todas as oportunidades que teve para contar a sua própria história e através dela falar por milhares de outras pessoas que sofrem do mesmo mal, mas que não saíram do anonimato e continuam morrendo em silêncio. Existe uma forte identidade sociocultural entre a doença de Chagas e a América Latina, e escutar Cristina era sentir o clamor do continente latino-americano exigindo um maior esforço e compromisso para minimizar o sofrimento que afeta 10 milhões de pessoas em todo o mundo. É triste saber que é possível fazer muito por essas pessoas, mas falta compromisso e sobra negligência. Quando Cristina falava, todos se calavam. Essa lembrança vai me emocionar e comover sempre, pois nossos esforços não foram suficientes”.

Quando alguém morre como Cristina, não é a doença que mata. A doença é como a arma. Atrás da pistola ou da metralhadora, há uma pessoa. Atrás da pessoa, há um processo histórico e um presente no qual é preciso determinar as responsabilidades, caso se deseje barrar o massacre. Cristina e todos os que morrem como ela, morrem de assassinato. É o genocídio silencioso e invisível que mata os que não têm voz. Cristina se deu voz. Sua voz é seu legado.

Quando abriu a boca para contar sua história, em março de 2011, Cristina se revelou uma narradora poética. E algo curioso se passou. Ela só falava em quéchua, a língua de parte da população boliviana, um idioma que resiste desde antes dos incas. Eu não compreendia uma única palavra, mas elas me alcançaram mesmo assim, e meus olhos sofreram um naufrágio. Lucia conta que o mesmo aconteceu quando Cristina, que pela primeira vez deixava seu país, contou sua história em Olinda, na assembleia da Federação de Pessoas Afetadas pela Doença de Chagas, em 2010. Era a primeira vez que Cristina deixava a Bolívia, ninguém entendia seu idioma, mas ainda assim suas palavras chegaram. Nilce Mendoza Claure, a tradutora que me acompanhava na escuta de Cristina, explicou que a língua tem uma doçura muito particular e que tudo fica mais triste quando é dito em quéchua. Compreendi, ao meu modo, que o quéchua é como uma chuva fina que vai nos penetrando lentamente e, quando nos damos conta, estamos encharcados até os ossos.

Cristina assim explicou o que era a Vinchuca. E a partir deste parágrafo, não falaremos mais em barbeiro, mas em Vinchuca, porque é esta a palavra que expressa algo maior, mais completo e profundo do que um inseto. Perguntei qual era o som da Vinchuca. Cristina disse:

– Soa como as folhas secas do milho ao vento. Escutamos e então sabemos que elas estão lá. No escuro. Sobre nossas cabeças. Esperando para cair sobre nossos corpos.
Perguntei qual era o cheiro da Vinchuca. Ela disse:

– Cheira como sangue velho.

Ao escutar a narrativa de Cristina e de outras pessoas da região de Aiquile, compreendi que a Vinchuca não era apenas um inseto, mas algo que sempre esteve lá. Para aqueles homens e mulheres nunca havia existido uma vida sem Vinchuca, ela marca o tempo e as estações, ela é onipresente. Por isso escolhi colocar a palavra em maiúscula, porque ela expressa um nome próprio, quase uma entidade maléfica, o mais próximo de um vampiro real que eu já conheci. Não apenas porque suga o sangue, bem mais pela teia de significados que lhe foi atribuída na existência concreta e simbólica dos camponeses bolivianos.

Estes vampiros da vida real assinalam as gerações através dos séculos. E garantem ainda hoje a perpetuação da pobreza. Como as pessoas são infectadas ao nascer, às vezes ainda no útero da mãe, a evolução da doença começa quase junto com a vida. Depois das primeiras décadas, homens e mulheres morrem no momento mais produtivo, quando poderiam ter forças para pelo menos lutar para mudar o destino, por melhores condições de habitação e saúde, por uma alimentação mais rica, por educação. Em vez disso, exauridos pela doença, condenam com essa morte precoce seus filhos e netos à mesma sina de miséria e labirinto.

Era assim que Cristina contava essa história:

– Desde que o mundo é mundo a Vinchuca existe. Aprendi a reconhecer o som de suas asas quando se enfileiravam no teto e nas paredes para esperar nosso sono. Um som que podia ser doce, mas que nos apavorava. Nesse tempo não sabíamos que elas nos matavam, mas sofríamos porque chupavam nosso sangue e às vezes nossos rostos e olhos amanheciam inchados. Quando acordávamos com a dor da picada e acendíamos a lamparina, descobríamos que não existiam mais parede nem teto. Havia tantas vinchucas, uma ao lado da outra, que não podíamos mais enxergar o que estava por trás. Então as esmagávamos com nossas mãos e com nossos pés, e as paredes eram pintadas com nosso sangue. Quando as queimávamos, era esse o cheiro. De sangue velho. E pensávamos que não existia em nenhuma parte uma vida sem vinchucas e noites sem que nosso sangue fosse sugado por elas. Então brincávamos de matá-las, sem saber que elas já tinham nos matado.

Só há pouco os camponeses descobriram a relação entre a Vinchuca e o que era chamado de morte súbita. Parte deles apenas alguns anos atrás, quando os Médicos Sem Fronteiras criaram um projeto na região e passaram a fazer diagnóstico e tratamento. Até então, acostumaram-se ao fato de que as pessoas estavam caminhando pelo campo, pastoreando ovelhas ou plantando, e, de repente, caíam mortas. Era o jeito “natural” que pessoas como eles morriam, era a morte dos avós e dos bisavós, e seria a morte deles e a de seus filhos e netos. Foi já como adulta que Cristina descobriu que ela e seus irmãos tinham Chagas, assim como seu marido e sua filha mais velha.

Bem antes disso, a Vinchuca já tinha matado. De novo, a voz de Cristina:

– Os dois primeiros que morreram por causa da Vinchuca na minha família foram meus irmãos. Eles nem mesmo chegaram a ficar doentes, ainda eram crianças. Meus irmãos dormiam de boca aberta, e as vinchucas se enfiaram na sua boca até a garganta. Não na mesma noite. Primeiro um, depois o outro. Você sabe como elas são, têm as patas ásperas. Meus irmãos se engasgaram. E morreram com as vinchucas entaladas, sem ar.
Cheios de dor pela perda dos pequenos, Cristina e seu irmão mais velho clamaram por vingança. Decidiram acabar com as vinchucas, varrê-las de seu pequeno mundo. É ela que conta:

– Catamos todas elas e abrimos um buraco, e as queimamos, e as enterramos. Meu irmão mais velho disse: “Pronto, sepultamos as vinchucas”. Nas primeiras noites, havia menos. Mas elas foram voltando. As vinchucas renasceram.

Muito mais tarde, quando descobriu que as pontadas que sentia eram a doença de Chagas, Cristina buscou ajuda. Essa busca por salvação, em todos os relatos que escutei, é sempre um caminho de humilhações. Não há na Bolívia um sistema público de saúde universal, como existe no Brasil. E apesar de serem a maioria da população, os indígenas, e especialmente os do campo, são discriminados nas cidades. Ao falar quéchua, não são sequer compreendidos. É como se nem os vissem.

Ao contar uma de suas consultas com um médico de Aiquile, Cristina nos ajuda a compreender porque uma doença é sempre muito mais do que uma doença, é um universo de relações e de fissuras, um retrato multidimensional da sociedade. Ela diz:

– Só descobri que ia morrer aos 35 anos, quando já tinha me mudado para Aiquile com meu marido e meus filhos. No hospital me disseram que meu coração tinha se tornado grande demais e me deram um mês de vida. Não contei a ninguém, mas comecei a me preparar para a morte. Depois, procurei outro médico. Sabe o que ele fez? Ele me golpeou. Me deu uma bofetada no rosto e depois me deu outra. “Você quer morrer porque é frouxa”, ele dizia. “Não há um remédio para você, não há nem mesmo uma aspirina para você. É você que precisa reagir”.

Cristina conseguiria viver quase 15 anos mais, graças à chegada de organizações humanitárias à região. O preconceito tem raízes tão fincadas que alcança também os agentes dos Médicos Sem Fronteiras, chamados por alguns moradores e profissionais da cidade de “come-vinchucas”. Conheci Cristina quando fui à Bolívia para escrever sobre a doença de Chagas para o livro Dignidade! (Leya, 2012). A obra, na qual nove escritores de diferentes nacionalidades contam diferentes projetos da organização, marca os 40 anos de atuação de MSF nas epidemias e guerras do mundo. No meu capítulo, conto duas histórias reais: uma delas é a viagem empreendida por Cristina em busca de um marca-passo em Cochabamba.

Nesta jornada, ela conheceu Maria, outra camponesa. E Maria preferia morrer a ter de enfrentar a cidade grande. Foi Cristina quem a convenceu a continuar no ônibus e salvar sua vida. Foi isso o que Maria ouviu de um dos médicos da cidade:

– Você vai precisar de um marca-passo, mas vocês, camponeses, não têm dinheiro nem pra botar uma roupa boa no corpo, imagina pra um marca-passo. Custa US$ 5 mil. Você conhece dólar? Claro que não. Então vai embora, anda, vai atrás dos come-vinchucas pra ver se te ajudam.

Juntas, Cristina e Maria fizeram uma travessia que era muito maior do que as cinco horas entre a cidade pequena e a grande – era uma travessia entre mundos e era uma travessia de confidências entre duas mulheres forjadas num universo moldado por homens. Duas mulheres que, unidas por um coração descompassado, encontraram o caminho uma para o coração da outra. E, pela primeira vez numa vida bruta, tiveram tempo para si – e para a delicadeza.

Maria voltou com um marca-passo no peito, mas não contou a ninguém, porque ter marca-passo ainda é um estigma nas aldeias camponesas. Uma marca de fraqueza e de invalidez, que assinala as pessoas como quase mortas. É também este preconceito que a voz de Cristina se levantava para combater, ao falar publicamente sobre o relógio que acertava o ritmo do seu coração. Parte desta história pode ser lida aqui. A foto abaixo, da jornalista Vânia Alves, de MSF, mostra Maria e Cristina no quintal do cortiço onde Cristina vivia com a família, em apenas um quarto, dividindo o banheiro e a cozinha com os vizinhos. Cristina tem sua mão sobre o coração de Maria.

cristina morteHá gente que vive morta. E há gente que morre viva. Cristina Salazar López morreu viva.

(Publicado na Revista Época em 18/02/2013)

 

Rosângela e o livro enterrado

A história de uma moradora de rua e sua luta para não perder as palavras que lhe dão existência

Rosângela Ramos desenterrou um romance. Não como uma metáfora, mas como literalidade. Caminhou, cavou e tirou das margens do Guaíba, em Porto Alegre, um manuscrito escrito a lápis 6B com 107 páginas.

Conheci Rosângela em 2 de dezembro de 2011, um dia depois de ela ter enterrado este livro, que chamou de “O escárnio das fogueiras de papel”. Ela tinha viajado para São Paulo a convite do Itaú Cultural para um evento sobre reportagem. A cada encontro, discutia-se a importância de um repórter “ir para a rua” para contar a história contemporânea – o que significa sair das redações, da internet e do telefone para buscar a vida, espantar-se com ela e documentá-la. Rosângela ampliava essa perspectiva: ela é uma repórter “de” rua. Seu jornal, o Boca de Rua, é um dos poucos no mundo – talvez o único – feito por moradores de rua: da pauta, textos, fotos e ilustrações até a venda. E foi por ser moradora de rua que, na véspera da viagem, Rosângela se descobriu num impasse. Onde guardar o que lhe é precioso quando você não tem casa, não tem gavetas, não tem armário, não tem um lado de dentro? Como proteger o que lhe é mais caro quando o seu dentro fica no lado de fora?

Rosângela enterrou seu romance às margens do rio. Mas, no dia seguinte, dentro do avião, ao ver a terra lá embaixo, ela descobriu que não tinha contado para ninguém sobre o paradeiro do livro. Seu tesouro não tinha mapa fora dela. Se morresse no ar ou em São Paulo, o livro estaria para sempre perdido. Ou, como ela diz: “Talvez alguém descobrisse ao escavar para fazer uma das obras da Copa do Mundo”. Atormentada pelo medo de que suas palavras virassem silêncio na margem do rio, Rosângela não pôde dormir nesta primeira noite. E se suas palavras, como ela, seguissem – à margem?

A entrevista com Rosângela sobre sua experiência como repórter do Boca de Rua aconteceu numa sexta-feira, no auditório do Itaú Cultural. Foi gravada para o programa “Jogo de Ideias”, apresentado pelo jornalista Claudiney Ferreira. Em TV, existe a crença de que é preciso manter um determinado ritmo, dentro do qual supostamente as perguntas e as respostas fluem, de forma que o telespectador e também a plateia não se cansem e não troquem de canal. Rosângela ignorou por completo essa “necessidade” – trouxe com ela um outro tempo. O silêncio, que tanto assusta quem faz TV e rádio, era parte das respostas de Rosângela. Ela não podia ser compreendida sem que se escutasse também seu silêncio. Não como se tivesse ficado sem palavras por um momento – mas porque seu silêncio era também um dizer.

Rosângela, a mulher das ruas de concreto, se expressava mais por subjetividades. Não deu à plateia relatos brutais, que talvez fosse o que alguns esperassem dela. Os repórteres do Boca de Rua costumam morrer antes de envelhecer, muitas vezes antes da vida adulta. Mas quando perguntaram a ela do que morriam, Rosângela não descreveu nem as balas, nem as facas, nem os atropelamentos. Ela disse: “Morrem de morte moral”.

Quando acabou a entrevista, ela vendeu todo o seu estoque de jornais. Enquanto parte da plateia foi pra casa, outra parte jantar em algum bar ou restaurante, Rosângela anunciou que precisava caminhar pela Avenida Paulista. Depois de tanto tempo no lado de fora, Rosângela precisava ir para dentro. Partiu então num passo rápido noite adentro, como se soubesse exatamente aonde ia dar – e não sabia. Ou talvez soubesse que ninguém sabe aonde vai dar quando dá o primeiro passo.

Bem cedo no dia seguinte nos encontramos no seu hotel. Rosângela tem apenas 50% da visão em um olho, por causa de uma toxoplasmose que provocou lesões em sua retina. E no outro enxerga “sujo”, por causa de outra doença. No Boca de Rua, ela assim se apresenta: “Sou desenhista com curso em Valência, na Espanha”. O relato de sua vida é como sua visão – fragmentos, imagens às vezes borradas.

Rosângela pegaria o avião de volta perto do meio-dia. Levei o gravador. E ela gravou as coordenadas do local onde estava o seu romance: enterrado nas margens do Guaíba, em Porto Alegre, entre o fogo e o rio, com uma pedra por cima. Mais não direi. Se algo acontecesse com ela, eu deveria enviar essa gravação para Rosina Duarte, jornalista da ONG Alice, responsável pela supervisão do Boca de Rua. “Você tem certeza de que as informações são suficientes para encontrar o livro?”, perguntei, aflita. Vivi quase 17 anos em Porto Alegre e mesmo assim tinha certeza de que teria de escavar o Guaíba inteiro se quisesse encontrá-lo. Mas Rosângela garantiu que as coordenadas estavam claríssimas e que Rosina entenderia.

Conversamos então sobre a palavra escrita, o dentro e o fora. Agora, que ela desenterrou o livro, mandei perguntar se podia publicar nossa conversa. Rosângela disse “sim” – e aqui estamos.

– Por que você enterrou seu livro na beira do Guaíba?
Rosângela – Ali é o meu pátio. Porto Alegre, a Usina do Gasômetro, a orla do rio…

– Que necessidade te fez enterrá-lo?
Rosângela – A necessidade de não perder. Eu já tinha perdido duas outras vezes. Uma vez deixei num banheiro público, outra num banco da Redenção (parque de Porto Alegre). Consegui recuperar, mas aí já tinha vivido o sofrimento de perder, a perda já tinha se tornado real para mim, e isso me deixou transtornada. Por isso, quando tive de viajar, eu não tinha outra alternativa. Não tinha mesmo outra alternativa: precisava enterrá-lo. Este medo de perder… na rua é muito real.

– E o que significa aquilo que está enterrado?
Rosângela – É uma esquizofrenia. Ele (o livro) é como a rua: em cada esquina a gente encontra uma coisa nova, um dia diferente, uma situação, uma circunstância momentânea. Ele é assim. De capítulo em capítulo, de frase em frase, de palavra em palavra. Na maioria das vezes cai numa ironia, numa poesia, num vazio, num delírio, no caos. A metade deste trabalho eu fiz em casa, e a outra metade eu fiz na rua. Então ele toma rumos diferentes. Ele começa com um romance normal que acontece, de amor, e depois ele vai tomando esta forma de arte, e depois política. Então, quando eu venho pra rua, a rua entra ali, mas ela entra sutilmente, ela entra como reflexão. E no final ele se transforma numa alucinação, nesse caos que é a sociedade, tudo.

– De que as pessoas morrem na rua?
Rosângela – Morrem de morte. Morrem de morte… moral. De frio, de chuva, de fome, de negligência. Morrem de assassinato, mesmo. Morrem de estupidez. Morrem pelo poder do qual outras pessoas se apropriam. Um exemplo: não abrir o acesso ao albergue onde tem a proteção de chuva, em dias de chuva. As pessoas se molham e só vão ser atendidas daí a duas horas, três horas, e são pessoas que estão doentes. E aquilo ali, a garoa, mata. Mata. Mata porque eu peguei documentos de hospitais de pessoas que depois de uma chuva foram internadas. Depois de ficarem molhadas, com a roupa molhada, ficaram doentes. Agrava. E de agravo em agravo morrem de negligência.

– É difícil sair do hotel e voltar pro albergue?
Rosângela – Não, porque eu necessito do isolamento, do meu tempo, mas não necessito de luxo. Estar lá é o que me garante a observação daquilo tudo, daqueles detalhes. Me joguei num mar, sabe? É um lugar pequeno, mas, ao mesmo tempo, tu podes ficar ali anos e anos e vai haver sempre ondas distintas.

– Você já dormiu na rua?
Rosângela – Sim, eu tentei chegar o mais próximo possível da realidade.

– É mais difícil viver na rua sendo mulher?
Rosângela – É difícil, é complicado. Um cara chegou em mim me obrigando a dar dinheiro pra ele, e eu achei aquilo um absurdo e o enfrentei. Nos enfrentamos. Colocamos o nariz no nariz do outro. E ele disse que tinha uma faca. E me mostrou. Era uma faca enorme, de açougue. Um cabo branco. E me ameaçou. E eu disse pra ele que ele fizesse o que quisesse. Só que pensei, por um momento, qual era a arma que eu podia usar contra ele. E só podia ser uma arma mental. Eu podia desarmar ele mentalmente, eu tinha que fazer aquilo, não tinha outra alternativa. Pensei: vou dizer uma coisa bem absurda, que não tenha nada a ver com nada, pra ele raciocinar e dispersar. Eu olhei pra ele e eu disse assim: “Eu não vou te comer! Eu não vou te comer!”.

– E aí?
Rosângela – Ele realmente desarmou completamente. No final, começou a rir. Eu tinha dito que não iria estuprá-lo.

– E qual é a diferença que você percebe entre as ruas de São Paulo e as de Porto Alegre?
Rosângela – Quando eu vi as dimensões das ruas… Uma coisa é tu andares em Porto Alegre 30 km, 40 km por dia, na rota, vendendo jornal. Outra coisa é São Paulo, é fazer a Paulista. Acho que eu esperava que aqui fosse ter mais comida, mais sobras na rua. E não há. É por isso que eu acho que as pessoas estão intimidando. As pessoas da rua, de certa forma, intimidam os demais, pedindo. Porque, por um lado, as pessoas se negam a ajudar, e, por outro, aquelas pessoas estão ali. E são pessoas.

– Você achou as ruas de São Paulo mais duras?
Rosângela – Achei. Mais violentas, mais duras. Porto Alegre, por pior que esteja a situação, as pessoas deixam coisas na rua. Já encontrei um espumante europeu geladíssimo num Ano-Novo. Há como sobreviver. As pessoas colocam comida na rua, que é o que a gente chama de “macaquinhos”. Eu não sei se existe isso aqui. As pessoas deixam comida pendurada pra gente na frente de casa. Então nós temos almoço. E nós temos os albergues. Há um albergue, o Felipe Diehl, que é cinco estrelas. Nos fornece roupa, comida. E comida muito boa. Até churrasco a gente come. Só que eu não estou lá. É o lugar que eu menos vou.

– Por quê?
Rosângela – Porque lá tem tudo. Eu quero ir no albergue onde não tem e onde eu tenha de denunciar. Ali é que eu tenho que trabalhar (como repórter).

– Você pintava, e então perdeu parte da visão. Por isso começou a escrever?
Rosângela – Pela dificuldade da visão e até pelo choque… porque perder a visão, pra quem quer ver as cores, é muito, muito complicado. Eu precisava resgatar essa vida de arte.
Entrar numa tela, sabe? Poder divagar ali, escrever, descrever. Eu pintava desde os 6 anos de idade. E esculpia. E até os 40 anos essa foi a minha inscrição, a minha forma de me comunicar com a vida, com o mundo.

– Naquela vez em que perdeu o livro, o que você perdeu?
Rosângela – Naquele momento eu perdi o meu ego, que era a única coisa que eu tinha, sabe? Eu não consegui me recuperar mais, porque perdi tudo o que tinha feito.

– Sua história?
Rosângela – Não, mas a poesia… A história, não. A história é o que menos me interessa. O que me interessa é a poesia, o além da história. Eu nem decidi ainda se vou publicar, nem sei se é possível o “Escárnio” existir como livro. Mas se eu decidir vai ser pelos outros, mesmo, porque eu já li.

– E é o suficiente você já tê-lo lido?
Rosângela – Pra mim é. Pra mim, realmente é.

– Você embrulhou o livro em que, antes de enterrá-lo?
Rosângela – Em sacolas de supermercado. Muitas.

– Você enterrou seu livro, mas, mesmo assim, não se recuperou de tê-lo perdido antes. E mesmo tendo achado o seu romance, a perda continuou em você. Por quê?
Rosângela – É como agora. Enterrei, mas não avisei ninguém onde estava enterrado. E se acontecer alguma coisa? Talvez um dia escavem lá pra fazer a Copa do Mundo e encontrem.

– Eu acho linda essa história de um livro enterrado…
Rosângela – Eu não vejo como lindo, isso. Eu vejo como desespero…

– Como você escreve?
Rosângela – A lápis. Lápis 6B.

– Por que lápis?
Rosângela – Porque ele é um lápis pra desenhar, um lápis macio. É por isso que eu digo que eu pintei um quadro. Eu tive de sintetizar um pouco, por falta de folhas, se quiser saber. Quando eu cheguei na rua, eu não tinha nem folha de ofício. Porque eu gosto de folhas limpas, sem linhas. E pra comprar uma folha, um maço de folhas de ofício, eu tinha que ter grana. E eu não tinha grana. Sabe? Naquele momento, eu não tinha… Eu não sabia como fazer. Eu pedi folhas de ofícios e pudim. Não ganhei nenhum.

– E como é escrever?
Rosângela – Vou limpando… Como eu faço as esculturas. Limpando, limpando, limpando… Eu comecei ele ao contrário. Porque eu tenho mania de ler ao contrário, de pegar o jornal e começar do fim. E no início eu também não conseguia entender, no início eu não elucidava as coisas, estava tudo nas entrelinhas. Eu fui trazendo isso. Como pintar.

– Qual é a diferença de se expressar com palavras?
Rosângela – Ah, foi incrível poder fazer isso. Arte é tridimensional. Com as palavras eu posso ir além das três dimensões. Eu posso cortar essa imagem como se cortasse com um punhal de dois fios… que não deixa nem cicatriz, sabe? Que corta a imagem e pode ir no âmago, no cerne, dentro, na víscera. Eu não me detenho no objeto, mas no que faz isso acontecer. O pensamento é o que leva ao movimento. O pensamento é o que leva à forma, é o que dá uma forma completa àquilo. Então eu aproveitei a história que eu contei, uma história comum, de vida, que acontece com qualquer pessoa, pra trazer todas essas nuances. E aí fui trazendo frases, palavras que eu já ouvi, que eu já vi, e fui colocando. Eu fui escolhendo palavras com muito cuidado.

– O que é a palavra pra você?
Rosângela – A palavra é o imaterial. Porque ela vai além das coisas. As coisas são… coisas. Mas poder falar o que eu imagino, por exemplo: que dentro daquela parede lá, daquele prédio, daquele tijolo, o barro que tá ali, como foi construído, quem fez. Isto é muito mais do que um tijolo.

– Como é dormir num albergue? Como é nunca estar sozinha, pelo menos fisicamente?
Rosângela – Eu durmo com 20 pessoas, mas na verdade eu não sei quantas têm. Porque são pessoas doentes, há pessoas que falam consigo mesmas. Então, não sei quantas são. Tem muitas. Então aquilo ali também foi pra mim uma experiência incrível. E o “Escárnio” vem assim, ele é assim. Uma situação termina e começa outra. É como a rua, onde a gente nunca sabe o que vai acontecer, o que vai encontrar, o que vai comer. Na casa, não. Na casa a gente sabe.

– Você queria um texto que fosse como a rua?
Rosângela – É. Tivesse essa forma. Eu uso poucas palavras que definem a rua, quase nem falo, mas ela entra ali. E quem ler vai entender como a rua está presente ali. Mas ela aparece nas entrelinhas. Porque, na verdade, eu não escrevo. Na verdade, acho que eu escondo mais do que mostro.

– Como?
Rosângela – O que está escrito, muitas vezes, é uma forma de não dizer nada. Terminar… aquele pensamento numa poesia. Especificamente em poesia, entende? O caos das palavras. Não dizer nada ou subentender aquilo. Isso o Mário Quintana fez espetacularmente bem. Mas… eu nunca escrevi e nunca havia lido um romance na vida.

– Não?
Rosângela – Não.

– Qual foi o primeiro?
Rosângela – O meu.

– O seu?
Rosângela – Sim, o que eu escrevi. Porque eu detestava romance. Quando criança, eu não lia nada. Eu desenhava tudo. Pintava a roupa do Mickey, os cachorrinhos, os animais… Isto era o que eu fazia. Mas, ao escrever, eu queria escrever poesia, eu queria fazer o contrário das coisas reais, pormenorizadas, da linguagem dos documentos. Então fui escolhendo as palavras que fossem distorcendo um pouco, terminando em irreverência. Eu queria fazer poesia no nada. Fazer poesia no absurdo. Fazer o absurdo mesmo. E também o ridículo. E o impossível que é transformar o humano em além do humano.

– Como é pintar com palavras? Qual é a diferença?
Rosângela – Pois eu não vejo essa diferença. É por isso que eu digo que é como um pincel. Eu digo: vou fazer exatamente como eu faço quando pinto. Porque é a diferença entre buscar e encontrar algo. E o “Escárnio” foi isso. Foi o encontrar… Eu não busquei, mas eu joguei, eu fiz uma estrutura de texto, uma história, e as outras eu fui jogando, fui colocando tudo ali e e fui buscando sentido. E fui encontrando frases incríveis. Eu acho que eu fui encontrando ali formas expressivas, que outros encontraram da mesma maneira, porque não há outro caminho senão passar por isso, entende? Elas vão automaticamente se agrupando, como um entendimento.

– Como você se sente depois que escreve?
Rosângela – Completa. Assim… quando consigo completar um pensamento, eu me sinto completa.

– Como foi acordar em São Paulo?
Rosângela – Eu acordei em um dos metros quadrados mais caros do mundo, que é a Avenida Paulista, aqui onde estão os tesouros. Aqui tem muita grana, enquanto eu lido com a miséria, com a fome, com a dor. Com a negligência. Então são duas coisas que fazem refletir. Eu estou aqui na Avenida Paulista, eu não estou debaixo de uma aba. Eu estou num hotel, com conforto. Então, este é o meu dentro. Mas, na verdade, é fora, entende? Hoje eu estou saindo daqui. E a rua é um sumidouro. Ele (o livro) é sobrevivência. Eu desistiria se não me tirasse da morte, porque a rua é um sumidouro.

Despedi-me de Rosângela no portão de embarque. Enquanto o avião não aterrissou em Porto Alegre, as palavras enterradas de Rosângela enterraram-se em mim como chumbo. Eu tinha o mapa do tesouro de outro, mas não entendia o mapa – e tinha dúvidas se alguém entenderia. E se o pior acontecesse e não conseguíssemos desenterrar as palavras que eram a vida de Rosângela, a sua não-morte? Mas Rosângela voou, aterrissou e voltou a trocar as asas pelos pés. E agora ela desenterrou seu livro.

O que, afinal, Rosângela enterrou? E o que desenterrou?

Escrever um livro é sempre desenterrar, acho eu. As palavras estão em algum lugar bem fundo de nós. Não um fundo que conhecemos, mas aquele lugar sem lugar que fica abaixo do fundo falso que existe em nossos interiores. Desenterrá-las significa arrancar um pouco de sangue dos nossos confins. Um livro é sempre meio ensanguentado, um pouco de vísceras, alguns miolos, um resto que não se sabe se é humano ou alienígena. Mas Rosângela desenterrou as palavras simbolicamente, como faz qualquer escritor – para depois enterrá-las literalmente. E botou uma pedra por cima, como fazemos para garantir que os mortos não escapem como outra coisa, como algo vivo demais para nos dar sossego, como algo capaz de nos assombrar. Ao enterrar na beira do rio o que desenterrou do fundo de si, o que Rosângela fez?

Ela nos conta que enterrou as palavras porque não queria perdê-las. E talvez esta seja a diferença. Antes de se escreverem, as palavras estão lá – dentro de nós, mas perdidas para nós. Ao desenterrar as palavras, escrevendo-as, Rosângela encontrou as dela. É isso o que ela diz quando explica que é preciso encontrá-las. E é também por isso que, naquele momento, bastava que ela tivesse lido as palavras. Se fosse publicá-las, seria para os outros. Então precisou enterrá-las para não perdê-las, agora de uma forma literal. Porque se as perdesse, o que aconteceria? Ela teria desenterrado as palavras de si e as perdido, o que significa que não poderia mais encontrá-las, nem dentro nem fora. As palavras seguiriam existindo, mas em lugar nenhum. Esta seria a perda insuportável – um tipo de morte.

E agora, Rosângela tirou a pedra, cavou e desenterrou as palavras. O que isso significa?

Talvez um dia Rosângela nos conte.

(Publicado na Revista Época em 07/01/2013)

 

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