Chester prefere pagar pelo sexo

Premiado autor de histórias em quadrinhos só transa com prostitutas há mais de uma década. Em um livro inteligente e engraçado, ele critica o amor romântico e defende a normalidade da prostituição

Em junho de 1996, o canadense Chester Brown desenhava histórias em quadrinhos no apartamento que dividia com a namorada, em Toronto, quando ela anunciou: “Te amo como sempre amei e sei que sempre vou te amar, mas…. acho que me apaixonei por outra pessoa”. Chester percebeu que não estava abalado – nem se abalou quando o novo namorado passou a dormir com a recentíssima ex no quarto ao lado. Uma passagem tão tranquila que os dois decidiram continuar dividindo o mesmo apartamento, o que fizeram por muito tempo. Um ano depois, aos 37 anos, Chester chegou a uma conclusão que mudaria a sua vida: “Tenho dois desejos contraditórios: o de transar e o de não ter namorada”.

Chester acabou descobrindo que, pelo menos para ele, não havia contradição alguma. Depois de uma fase de celibato, ele deu início a uma vida sexual com prostitutas que, em geral, era bastante prazerosa. Quando as descrições dos anúncios não correspondiam aos fatos, ele podia inventar uma desculpa e cair fora – ou acabar constatando que, apesar de a mulher não ser tão gostosa quanto dizia que era, tinha outros talentos ou simplesmente era divertida.

Descobriu que, para ele, o “amor romântico” não fazia sentido algum. “Nossa cultura impõe a ideia de que o amor romântico é mais importante que as outras formas de amor”, diz ele um dia à ex-namorada. “Já não acredito nisso. O amor dos amigos e o da família podem ser tão satisfatórios quanto o amor romântico. A longo prazo, provavelmente são mais satisfatórios.”

Mais tarde, explica sua tese a uma prostituta, durante uma conversa na cama. “O amor é doação, partilha e carinho. O amor romântico é possessividade, mesquinhez e ciúme”, diz à moça. “A mãe que tem vários filhos ama todos eles. Quem tem vários amigos pode amar todos eles. Mas não se acha correto que se sinta amor romântico por mais de uma pessoa por vez. Acho que é a natureza excludente do amor romântico que o torna diferente de outros tipos de amor.”

As aventuras de Chester Brown e sua escolha pelo sexo pago são contadas por ele em uma deliciosa graphic novel (novela em quadrinhos), que acabou de chegar às livrarias do Brasil. Pagando por sexo (WMF Martins Fontes) é o relato confessional do quadrinista, escrito com rigor jornalístico. Inclusive trocando o nome das prostitutas, para não identificá-las, assim como jamais desenhando seu rosto ou suas marcas pessoais, para que não sejam reconhecidas – mas buscando ser fiel à forma de seus corpos.

Ao longo das 284 páginas, Chester vai narrando seus dilemas, seus encontros com prostitutas e suas discussões com amigos. Especialmente com os quadrinistas Joe Matt e Seth, com quem formava “os três mosqueteiros” no mundo das HQs. Estas conversas, geralmente em um bar ou café, são as partes mais interessantes do livro, já que os amigos têm dificuldade de aceitar a escolha de Chester – tanto pelo enorme preconceito existente ainda hoje com relação à prostituição, quanto pelo que essa alternativa pouco convencional produz de incômodo com relação à vida amorosa-sexual de cada um deles.

Ao final do livro, temos vontade (eu, pelo menos) de ser amiga do Chester que vai se mostrando com abissal honestidade a cada página. Sem esquecer, é claro, que, como qualquer relato autobiográfico, as verdades sobre quem escreve sobre si mesmo são filtradas por um olhar amoroso e, às vezes, complacente. Mas Chester consegue rir de si mesmo – e duvidar de si mesmo – vezes o suficiente para a história nos envolver e convencer. A certa altura, por exemplo, uma das prostitutas explica a ele por que prefere trabalhar à tarde em vez de à noite. Ela diz: “Quando a gente trabalha à noite, muitos caras chegam bêbados. Os piores clientes são os bêbados e os que têm pênis grande”. E acrescenta: “Quem dera todos os meus clientes fossem como você”.

As aventuras de Chester, porém, não são apenas deliciosas. Seu maior mérito é nos confrontar com uma visão sobre o amor, o sexo e a prostituição que contraria o senso comum. Mesmo para pessoas consideradas de “mente aberta”, a prostituição ainda é um tabu. Ainda hoje, as prostitutas são reduzidas ou a “vagabundas” ou a “vítimas da sociedade, do machismo e do patriarcado” – visões pobres e autoritárias sobre uma identidade complexa. De certa forma, sobre a prostituição há quase uma unanimidade negativa unindo setores da sociedade que discordam em quase todo o resto.

Chester incomoda também por não caber no estereótipo do que se imagina como um cliente do sexo pago. Ele não é o sinhozinho do passado, que mantinha em casa a mulher “honesta” e “mãe dos filhos”, mas divertia-se mesmo era no puteiro da cidade. Tampouco é o explorador de mulheres violento, tarado e com “vícios” inconfessáveis das histórias que viram notícia. Muito menos é o loser infeliz, desajustado e solitário que busca o prazer nos becos escuros, esgueirando-se pelo submundo.

Chester usa seu nome verdadeiro, não esconde de ninguém que transa com prostitutas e trata sua escolha com tanta naturalidade como se estivesse falando de um casamento convencional. Ao colocar um tema historicamente relegado à sombra – e ao assombro – debaixo do sol, ele torna-se algo novo. Especialmente porque tem a inteligência de não escorregar para o lado oposto – o do glamour –, o que seria desastroso.

Para Chester, transar com prostitutas é tão comezinho quanto namorar, morar junto ou casar. Como um homem da era digital, ele escolhe as mulheres pelos anúncios e avalia as “resenhas” deixadas por outros clientes em sites na internet. Paga o preço combinado e respeita os limites estipulados, porque é uma pessoa decente, e dá gorjetas até quando não gosta muito, porque talvez seja bom moço demais.

Por conta da reação persistente e quase ofendida que sua escolha causou, Chester acabou por tornar-se um defensor público da legalidade da prostituição – ainda proibida em vários países, mesmo ocidentais. Embora defenda a legalização da prostituição, porém, é contra a regulamentação da profissão, por considerar que o Estado deve ficar fora da cama dos cidadãos – qualquer que seja a relação estabelecida entre as partes. É contra também porque acredita que a partir dela se criaria uma nova distinção entre as prostitutas, que deixaria as não regulamentadas desprotegidas.

Mas Chester é, principalmente, um defensor da “normalidade” do sexo pago. Em nome dessa militância, ele faz um longo apêndice ao final do livro, dividido em 23 itens – o mesmo número de prostitutas com quem teve relações sexuais – para rebater os argumentos contrários à prostituição, que chama de “namoro pago”. Em geral, rebate os argumentos usados por uma parcela do movimento feminista, que coloca a prostituição como uma exploração da mulher – e a prostituta como uma vítima.

A seguir, alguns dos itens elencados por Chester Brown:

1) Você é dono do seu corpo. Dizer “Quero transar com você porque você vai me dar dinheiro” é tão moral quanto dizer “Quero transar com você porque eu o amo”. E isso tanto para homens quanto para mulheres.

2) Os clientes não compram as prostitutas. Quando alguém compra um livro, leva-o para casa e faz o que quiser com ele, por quanto tempo quiser. Com uma prostituta, você paga para transar durante um tempo determinado, limitado por aquilo que é combinado, e depois se separa dela. Nenhum cliente faz o que quiser com uma prostituta – nem é dono dela.

3) A violência, minoritária, é tão presente no sexo pago como no sexo não pago. Existem clientes cretinos na mesma proporção que existem maridos e namorados cretinos, que ignoram os pedidos e os limites estabelecidos pelas mulheres. Assim como há aqueles que extrapolam e as espancam. Para reprimir esse comportamento, há leis. Mas, se concluirmos que devemos criminalizar ou condenar o sexo pago porque alguns homens são cretinos e outros são violentos, então é preciso criminalizar ou condenar também o casamento e o sexo não pago. Da mesma forma, com relação ao tipo de trabalho, qualquer um acharia descabido terminar com a profissão de taxista porque alguns são assaltados, feridos e até mortos por assaltantes travestidos de clientes.

4) Não são apenas as prostitutas que muitas vezes transam sem desejo. Muitas pessoas, em relacionamentos amorosos, também transam sem vontade. A frase “Não quero transar com esse cara, mas vou transar porque preciso de dinheiro” é tão moral quanto “Não quero transar agora, mas vou transar porque ele é meu namorado e eu o amo” ou “Não sinto mais desejo pelo meu marido, mas vou transar pelo bem do nosso casamento”.

5) A prostituição não destrói a dignidade das prostitutas. A vergonha que algumas prostitutas sentem por conta da profissão é provocada pela interiorização do preconceito enfrentado na sociedade – e não pela venda do sexo em si. Assim como no passado (e ainda hoje, em alguns casos) os homossexuais sentiam vergonha, depressão, culpa e repulsa por sua orientação sexual. Isso não significava que ser gay era errado – e sim que muitos homossexuais interiorizavam os valores da cultura em que viviam, assumindo o preconceito da sociedade como vergonha e como culpa.

6) A diferença com que a sociedade trata a prostituição masculina mostra que o preconceito, como sempre, é com relação à autonomia das mulheres. Em geral, os adversários da prostituição feminina ignoram a masculina. A razão é que os argumentos usados para condenar a prostituição feminina soariam ridículos se aplicados à masculina. Nossa cultura acredita que os homens controlam a própria sexualidade. E, se um homem se coloca em uma situação potencialmente arriscada, a sociedade compreende como um comportamento inerente à natureza masculina. Já, com relação às mulheres, não. Elas são sempre vítimas, e há sempre alguém – mesmo que outras mulheres – apto a determinar o que é melhor para elas.

7) A prostituição é uma escolha. Setores contrários à prostituição afirmam que não há escolha real se a mulher tem de eleger entre ganhar um salário baixo em um emprego pouco valorizado ou se prostituir, assim como não haveria escolha se a mulher se prostitui supostamente porque foi abusada na infância, caso de parte das prostitutas (como de parte das mulheres). Mas uma escolha é uma escolha, ainda que seja uma escolha difícil. Dizer que adultos não teriam o direito de escolha porque tiveram uma infância difícil é um terreno perigoso. Estas mulheres que não poderiam escolher pelo sexo pago não estariam, então, aptas a fazer qualquer escolha sexual, mesmo amorosa, por causa do seu passado. Da mesma forma que a realidade impõe escolhas difíceis para ganhar a vida o tempo todo, tanto para homens como para mulheres. E do mesmo modo como há quem gosta do que faz e há quem não gosta em qualquer profissão. Todas as pessoas – e não só as prostitutas – são fruto de suas circunstâncias e do sentido que conseguiram dar ao vivido. Alguém tem o direito de determinar quais adultos estão aptos e quais não estão aptos a fazer escolhas sobre a sua própria vida, ainda que sejam escolhas que não agradem aos outros?

Estes são alguns dos argumentos que Chester Brown propõe ao leitor, construídos a partir de pesquisa e leituras, mas principalmente a partir da sua própria experiência no mundo do sexo pago. Na novela da vida real que ele conta em quadrinhos, cada prostituta entende sua escolha de forma diversa. Quando não contam para a família e para os amigos sobre sua profissão, em geral é por temer o preconceito – e não por desprezar o que fazem.

Por características de sua personalidade, um pouco obsessiva, Chester esmiúça o sexo pago e suas implicações com algo próximo do método científico. Meticuloso, ele escuta e duvida tanto dos outros quanto de si mesmo, o que o torna digno de ser escutado naquilo que diz. Ao terminar o livro, Chester parece ter achado o melhor para ele, pelo menos naquele momento: estava há seis anos transando com uma única prostituta, que, por sua vez, só transava com ele, numa curiosa relação monogâmica sem compromisso. Chester acredita que ela não transaria com ele se não pagasse – e acha ótimo que seja assim.

No último apêndice do livro, seu amigo Seth comenta com ironia amorosa: “A verdade é que, se no passado o envolvimento de Chet com prostitutas me incomodava, hoje eu superei isso. A prostituição pode não funcionar para todos, mas funciona para ele. O gozado em Chester é que, de todos os homens que conheço, ele talvez seja o que daria o melhor marido ou namorado para qualquer mulher… e, no entanto, foi ele que escolheu a prostituição. O mundo é muito engraçado”.

Mas Chester escorrega em pelo menos um ponto, o que é uma pena. Ao escolher transar apenas com prostitutas, por achar que o amor romântico não serve para ele, Chester é atacado por muitos – e também pelos amigos mais queridos. Afinal, manter uma relação amorosa romântica com alguém parece ser a busca maior e a redenção de boa parte das pessoas em nossa época. Para Chester, o amor romântico é apenas um mito no qual as insatisfações mútuas são mascaradas para não comprometer a sua idealização, tão cara à nossa cultura.

O problema é que Chester trata o amor romântico – e o casamento – com preconceito semelhante ao reservado à prostituição pelos seus opositores. Quando o melhor, me parece, seria não substituir um dogma pelo outro. Assim como pagar para transar pode ser a melhor solução para Chester e para muitos, o sexo não pago pode ser a melhor solução para outros. Há um zilhão de pactos diferentes que um homem e uma mulher – ou um homem e um homem, uma mulher e uma mulher – podem fazer entre si e que só diz respeito a eles. Seria melhor ter ficado por aí, mas Chester Brown, como muitos que defendem uma bandeira na contramão, acaba tornando-se dogmático pelo avesso.

Esse escorregão, porém, não tira o brilho de sua obra e da sua reflexão. É importante quando alguém nos arranca do senso comum e nos lança diante de novas perguntas – não para concordar com ele, mas para pensar com ele. E mais ainda em uma época na qual o politicamente correto tem reprimido a liberdade das ideias. Chester não provoca polêmica pela polêmica, como muitos em busca de audiência e leitores. Estuda, pesquisa, experimenta e conta. E é sua honestidade moral e intelectual que torna Pagando por sexo tão instigante.

O livro me lembrou de um evento, ocorrido há quatro anos em Porto Alegre, chamado “Um puta sarau”. Na ocasião, um folhetim escrito por um grupo de prostitutas e intitulado “Uma puta história” foi lido para o público. A certa altura, uma feminista não se conteve e disse: “Espero que um dia as mulheres não precisem mais vender o seu corpo para sobreviver”. Janete, a prostituta que estava no palco, retrucou na hora:

– Mas eu não vendo o meu corpo, eu alugo. E só um pedacinho dele. A senhora não aluga o seu cérebro para o seu patrão?

Como se vê, há muito para refletir.

(Publicado na Revista Época em 23/07/2012)

 

Todo dia é dia de estupro

Ela deixou o coração das trevas para contar sua história. A travessia de Marie Nzoli – do Congo a um hotel de luxo de São Paulo

“Por que a água é azul?”, pergunta Marie Nzoli, apontando para a piscina. Em um mundo com infernos demais, ela acabara de chegar do pior deles. Pela primeira vez em 48 anos de vida, deixara a República Democrática do Congo e, depois de uma saga de três dias, desembarcara no Gran Hyatt, um luxuoso hotel de São Paulo, com vista para a Ponte Estaiada. Na mala, trazia lençóis.Como nunca havia pegado um avião, ela pensava que seria necessário forrar a poltrona com eles. Ao olhar para a piscina e constatar que “a água é azul”, talvez estivesse tão ou mais encantada que o astronauta Iuri Gagarin ao ver pela primeira vez a Terra do espaço. Marie Nzoli atravessara vários mundos –fora e dentro de si – para contar sua história ao Brasil.

De onde Marie vem, o estupro é um instrumento de guerra. E as mulheres contaminadas pelo HIV são armas biológicas. O Congo é devastado por conflitos armados antes e depois da independência da Bélgica, em 1960. No final do século 19, quando a África já tinha sido canibalizada pelos europeus, a terra de Marie inspirou Joseph Conrad a escrever o perturbador “O coração das trevas” – livro que no século 20 inspiraria Francis Ford Coppola ao filmar“Apocalipse Now”, transportando o horror para o Vietnã. Hoje, o Congo continua habitado pela insanidade. Além das guerras, é arrasado também pela fome, pela falta de água potável e por doenças como Aids, sarampo e malária. Tem o pior IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) do planeta.

Para compreender o espanto de Marie é preciso apalpar as dimensões de sua travessia.Marie deixara uma casa de madeira, tijolo e barro, com uma plantação de batata e feijão e uma criação de cabras, porcos e coelhos, na pequena cidade de Butembo, no Kivu do Norte, uma das regiões mais perigosas do Congo.E, quando algo é muito perigoso no Congo, pense no inimaginável. Encravado no leste do país, a província de Kivu do Norte faz fronteira com Uganda e Ruanda. E, para além de todos os tormentos, vive uma disputa étnica entre tutsis e hutus. O genocídio que matou cerca de 1 milhão de tutsis na vizinha Ruanda, em 1994, se estendeu para dentro da fronteira leste do Congo, para onde hutus fugiram em massa depois da recomposição do país. (Se você não conhece essa história, pegue na locadora um filme chamado “Hotel Ruanda”.)

Militares e guerrilheiros igualam-se na capacidade de cometer atrocidades em massa, deixando a população desamparada, sem ter para quem pedir proteção. Quase 2 milhões de pessoas, segundo a ONU, vivem hoje longe de suas aldeias – em fuga, mas sem conseguir escapar.“O povo do meu país está sempre fugindo”, diz Marie. “Foge de tudo, porque sabe que está sendo exterminado.” Foge em círculos.

Mulheres como Marie vivem a demência de ter seus filhos recrutados à força pelas milícias, quando ainda são crianças, e suas filhas, assim como mães e irmãs, estupradas muitas vezes, por muitos homens alternando-se sobre os seus corpos. É prática comum, além de violentar, arrancar os mamilos e o clitóris à faca, e furar os pés para que não possam fugir e sangrem até a morte. É uma guerra sem fim, alimentada pelo mercado internacional de diamantes, e talvez o Congo seja, há mais tempo, o pior lugar do planeta para uma mulher nascer.

A única saída para Marie é inventar vida no território da morte. Com outras 17 mulheres, ela criou, em 1983, uma organização chamada Coperma para reagir à violência contra seus filhos. Hoje, somam quase oito mil pessoas. Marie trabalha com vítimas de estupro. Mulheres de todas as idades que, além de serem estupradas, muitas vezes ficam com fístulas porque a violência transformou o canal do ânus e da vagina, ou da bexiga e da vagina, em uma coisa só. O rasgo é produzido pela quantidade de homens que se alternam sobre cada mulher, mas também é feito à faca ou com revólver ou fuzil. E, por terem sido estupradas, elas são discriminadas na comunidade.

No Congo, Marie é uma mulher de classe média. Perguntei o que isso significa. Ela explicou: “Eu como todo dia”. Marie nunca ouvira falar do Brasil. Nem mesmo do clássico futebol, favela e carnaval. Ela chegou aqui ao aceitar o convite da jornalista Ana Paula Padrão para participar de um fórum de debates chamado “Mulheres reais que inspiram”, promovido pelo site “Tempo de Mulher”, em 2 de julho. Quando recebeu o convite, foi correndo procurar o Brasil no mapa. Marie estava feliz, porque há muito sonhava em vencer as fronteiras do Congo para pedir socorro ao mundo.

Nos quatro dias em que permaneceu na capital paulista, Marie repetia: “Como o Brasil é rico, como as casas são bonitas, como a população vive bem aqui!”. Sua tradutora, Ilka Camarotti, retrucava: “Não é todo o Brasil que é assim”. Quando perguntei a Marie do que sentiria saudades, quando voltasse ao Congo, ela disse algo impensável para qualquer brasileiro: “Da limpeza do aeroporto”.

Além do aeroporto, o hotel foi todo o Brasil que Marie conheceu. Nele, ela teve várias primeiras vezes: o banho de chuveiro, vinho branco argentino (ela nunca tinha provado nenhuma bebida alcoólica), algumas frutas, como coco, a escada rolante, o cartão para abrir o quarto, a TV (ela nunca tinha visto) e o controle remoto. Um arrepio de prazer ao receber nas axilas o jato de desodorante do patrocinador do evento.

Mas nada impressionou Marie mais do que o elevador. No último dia, ela já apertava os botões sozinha, com um dedo trêmulo, como se estivesse prestes a acessar algum tipo de magia. E nunca sabia qual era a hora de dar o passo para fora, o momento em que o chão, sem sair do seus pés, chegava ao chão de fato.

Várias vezes, ao longo desta entrevista, Marie divagou. Enquanto a tradutora passava as respostas do francês para o português, ela espiava um prédio em construção, onde um elevador subia e descia. Alto, mas para si mesma, Marie espantava-se com o mundo: “La technologie…” E ria sozinha, em abissal perplexidade. Depois, voltava a contar sobre os estupros.

Perguntei a Marie o que gostaria de dizer aos brasileiros. Ela disse: “Agora que eu vim e dividi a minha história, esse combate não pode ser apenas meu. Essa luta tem de ser também do Brasil. Vocês precisam ajudar as mulheres do Congo.”Marie acredita que o que faltava para que os brasileiros se importassem era que alguém conseguisse chegar até aqui para contar o que está acontecendo lá. Para ela, é difícil compreender que alguém saiba – e nada faça.

Esta é a história de Marie Nzoli – cujo último nome significa “sonho”.

O pai expulsou a mãe porque ela só paria meninas

“Meu pai era professor na escola da prefeitura. E minha mãe, agricultora e dona de casa. Minha mãe teve quatro meninas. E porque minha mãe só tinha meninas, meu pai a escorraçou de casa junto com as filhas. Minha mãe fugiu para a casa do sogro. Eu tinha 8 anos.

Meu avô fez a reaproximação: por um lado, tentou convencer meu pai a aceitar minha mãe de volta, por outro, precisou convencer minha mãe a voltar para casa. Ela voltou. E então fez oito meninos, e meu pai ficou feliz. Mas, nós, meninas, continuamos sem existir.

Era meu pai quem dava dinheiro para a minha mãe. Mas o dinheiro era só para a escola dos meninos. Meu pai achava que menina não precisava estudar. Então, minha mãe roubou dinheiro dele. Eu não tenho o direito de dizer ‘roubar’, mas, na realidade, foi isso o que aconteceu. Minha mãe roubava dinheiro do meu pai para pagar o estudo das filhas.”

Marie “só” foi estuprada pelo marido

“Eu fui estuprada pelo meu marido. Muitas vezes. Eu estava fazendo comida e não queria. Mas, ele dizia: ‘Vem cá’. Eu não queria, mas ele dizia: ‘Eu tenho o direito. É o direito do homem’. Ele me pegava mesmo diante dos meus três filhos. E, se eu me recusasse, ele me batia na frente das crianças. Até hoje eu não suporto escutar meus filhos chamando ele de ‘papai’.”(A tradutora diz: “é um monstro”. E Marie repete: “É um monstro”.)

“Em 1997, depois de seis anos de casamento, meu marido deixou um bilhete, dizendo que partiria para libertar o Congo.”(Neste ano,o guerrilheiro Laurent-Désiré Kabila depôs o ditador Mobutu, no poder desde 1965). “Nunca mais vi meu marido. Eu tenho medo de que ele volte. Se ele voltar, vou dizer para ele que, como ficou muito tempo fora, só posso aceitá-lo se ele fizer um exame de HIV. Como nenhum homem quer fazer o exame de HIV, ele vai recusar. Porque os homens dizem: ‘Eu não vou fazer o teste, você tem de me aceitar como eu sou’.

Como ele vai se recusar a fazer o teste, eu posso dizer que então não posso aceitá-lo. Vou dizer a mesma coisa à família dele. Mas, talvez, eles exijam que eu devolva o dote de 10 cabras. Agora, não sou apenas eu que tenho de devolver, mas também os meus filhos. Sinceramente, eu não sei se eles vão querer.”

(Pergunto a Marie se ela já teve prazer sexual alguma vez.)

“Vários homens quiseram fazer sexo comigo depois que meu marido foi embora, mas eu não quis. Eu não quero mais pensar nisso. Eu não quero isso pra mim.”

Imaculada é o nome da irmã violada

“Minha irmã mais nova, de 14 anos, estava saindo da escola. E encontrou uma milícia. Eles viraram a cabeça da minha irmã para trás. Giraram tanto a cabeça que ela passou dois anos sem se mexer. Ficou também com os olhos doentes. Minha irmã ficava de olhos fechados, sem conseguir caminhar ou comer. Ela não se movia. Eu dava banho nela e também lhe dava comida. Naquele dia, minha irmã se debateu, mas dois deles a estupraram. Minha irmã se chama Immaculé.”

Mulheres contaminadas: a nova arma biológica

“Há estupros todo dia. Meninas e também mulheres mais velhas estão plantando. Os militares passam e as estupram na frente de todo mundo. Vi meninas de 10, as mais velhas com 15 anos, serem estupradas. Os mais pobres precisam andar até 30 quilômetros para encontrar água para beber. As meninas vão buscar água e, quando voltam, os militares as violentam. Depois, elas geram bebês.

Pouco importa se é milícia ou exército.Guerrilheiros e militares são todos selvagens. Se as mulheres resistem, eles cortam os seios e o clitóris. Uma vez jogaram vários militares que já estavam doentes de Aids na nossa cidade e contaminaram muitas mulheres. Existe lá um hospital só para cuidar das mulheres infectadas.

Os ruandeses e também os ugandenses, mas mais os ruandeses, querem exterminar a população do Kivu do Norte, onde eu vivo, para ocupar o nosso território. Antes, a guerra era com faca, com fuzil. Mas, hoje, além da faca e do fuzil, existe a doença. Eles estupram as mulheres, transmitem a Aids e assim vão nos matando. É um genocídio. E é um genocídio há muito tempo.”

Marie fez o parto nua, com dinheiro escondido no ânus e na mira de fuzis: se fosse menino, seria poupada; se fosse menina, fuzilada

“Na primeira vez em que fui de Butembo à cidade de Goma (capital da província de Kivu do Norte, na fronteira com Ruanda) para vender batatas, nosso ônibus foi parado por militares de Ruanda. Esses militares têm autorização para trabalhar e para matar. Nesta estrada, a cada dia dez pessoas são estupradas e mortas. Eles pegam a mala dos passageiros, tomam o dinheiro, tiram as roupas, estupram as mulheres e matam todos. Eu precisava vender batatas e levei dinheiro comigo para a viagem.”(Marie não lembra se eram 10, 15 ou 20 dólares.)

“Quando esses militares de Ruanda pararam nosso ônibus, mandaram todo mundo tirar a roupa, inclusive o motorista. Havia pastores evangélicos no nosso ônibus, e eles também tiveram de tirar a roupa. Eu enrolei o dinheiro, bem enroladinho, e enfiei no ânus para que não me roubassem.

Eu sentia medo e raiva. Quando nos mandam tirar a roupa, a gente precisa dizer ‘obrigada’. Eles ordenam: ‘Agora, digam obrigada porque a gente ainda não matou vocês’. Mas, desta vez, não nos mataram. Como eu fazia acompanhamento psicológico na Coperma, um pastor disse aos militares que eu era enfermeira. A mulher de um deles estava grávida, e eles precisavam que alguém ajudasse no parto. Me deram um pano para cobrir o sexo, e eu fui ajudar a mulher. O militar disse que, se nascesse um menino, seríamos poupados. Mas, se fosse uma menina, estaríamos mortos.

Eu tremia muito. Pensei que estava no final da minha vida. Mas, quando nasceu o menino, os militares ficaram numa felicidade enorme. Saíram para comprar cerveja e comemorar. E, quando voltaram, celebraram fuzilando todos os passageiros de um ônibus que estava atrás do nosso. E depois botaram fogo no ônibus e nas pessoas. Dezoito mortos.

Então, nos mandaram sumir. E voltamos para o nosso ônibus nus. Eu tirei o dinheiro do ânus e, com ele, comprei lençóis e cortinas na feira, para todo mundo se cobrir.”

(É comum as mulheres congolesas esconderem dinheiro no ânus e também na vagina, na tentativa de salvar o pouco que têm, caso sobrevivam à violência. Quando são estupradas, o dinheiro é de tal forma introjetado no corpo que é preciso uma cirurgia para retirá-lo.)

Só a mãe faz Marie chorar

(Pergunto a Marie se este foi o pior momento da vida dela. Ela me diz que não. Parece surpresa por eu cogitar que seja.)

“O pior momento da minha vida foi a morte da minha mãe, um ano atrás. Muitas emoções explodiram dentro de mim. Minha mãe morreu nos meus braços. Dizem que foi por causa de uma intoxicação, que destruiu o fígado. Era como se ela dormisse. Minha mãe, que me fez estudar. Que se esqueceu dela mesma. Eu sou velha, mas sinto muita falta do amor da minha mãe. Fiz tudo para curá-la, mas não foi possível. Com a morte, não há cooperação.”

(Então Marie, que narrou todas as violências com os olhos secos, como se contasse o seu cotidiano – e é o seu cotidiano – começa a chorar. E chora por um longo tempo. A mulher violentada de várias maneiras, que já testemunhou todas as formas de violência, chora apenas de saudades da mãe.)

(Publicado na Revista Época em 09/07/2012)

 

A rainha má e o terror de envelhecer

Neste conto de fadas para mulheres adultas, uma ruga vale uma alma

Branca de Neve e o Caçador (Rupert Sanders, 2012), em cartaz nos cinemas, deveria se chamar “Ravenna, a rainha má”. Interpretada pela maravilhosa Charlize Theron, a mãe-madrasta-bruxa da princesa é o mais interessante do filme, assim como as questões tão atuais que ela nos traz. E a bela Charlize faz uma rainha inesquecível. Para não envelhecer, essa vilã dos contos de fadas ultrapassa todos os limites e quebra todos os interditos. Uma mulher da era a.CP (antes da cirurgia plástica), Ravenna suga a alma, a juventude e a beleza das adolescentes e devora corações puros, que arranca com suas unhas, enquanto chafurda na amargura.

O filme, para quem não sabe e não viu, busca resgatar o conteúdo terrorífico das origens dos contos de fadas. Tudo o que hoje se conhece com esse nome foi um dia histórias para adultos, nas quais canibalismo e incesto eram ingredientes garantidos. Mantidas vivas pela tradição oral dos camponeses medievais, as histórias eram contadas para entreter, mas não só. Os contos nasceram e permaneceram como uma forma de lidar com os riscos da vida real, num tempo em que os lobos uivavam no lado de fora e também no lado de dentro, menos contidos pela cultura do que hoje.

Depois, a partir do final do século 17, com Charles Perrault, culminando no século 19, com os Irmãos Grimm, os contos foram compilados, escritos e depurados como histórias para crianças. Nós, que nascemos no século XX, fomos alimentados por versões muito mais suaves e palatáveis a uma época sensível, em que os pequenos são vistos como o receptáculo tanto da inocência quanto do futuro. E, portanto, precisam ser protegidos dos males do mundo e de seus semelhantes, assim como convencidos de que sua “natureza” é boa e pura. Ainda que conheçamos, por experiência própria, que o pior também nos habita desde muito, muito cedo. E seria melhor para todos – e também para a vida em sociedade – poder olhar para ele de frente.

Branca de Neve registra algumas variações ao longo dos séculos, até chegar ao clássico da Disney, de 1937, que se tornou referência para a maioria de nós. Mas nada tão radical quanto uma versão de sua colega Bela Adormecida, por exemplo, na qual a princesa é abusada pelo príncipe e abandonada grávida. Muito menos como Chapeuzinho Vermelho, que talvez seja o conto que revela com maior clareza a mudança de sensibilidade através dos tempos.

Em uma das versões mais antigas, o lobo oferece à menina a carne da avó fatiada numa bandeja como iguaria e o sangue da avó como vinho. Depois de banquetear-se, Chapeuzinho é convidada a tirar a roupa. A cada peça que a menina arranca em seu strip-tease, o Lobo grita, todo animado: “Atire-a no fogo!”. Em seguida, a Chapeuzinho sem chapéu nem calcinha deita-se nua na cama com o Lobo peludo. E é “devorada”. Nem Lars Von Trier faria melhor. Os camponeses medievais terminavam a história ali. O final feliz veio muito, muito depois.

No caso de Branca de Neve e o Caçador, os realizadores do filme usaram os mais avançados recursos da tecnologia para construir imagens belíssimas na tentativa de recuperar algo da atmosfera sombria. Mas não se arriscaram a chegar sequer perto da violência de sentidos dos tataravôs dos contos modernos, talvez porque o projeto tenha sido pensado como uma franquia. O filme não perdeu, porém, a oportunidade de atualizar as questões que fizeram a história sobreviver por tantos séculos e alimentar o imaginário de tantos filhos de épocas diversas. E essa é a sua força.

Que questões são essas? A relação entre mãe e filha, com a violência simbólica transposta em atos concretos, já que a mãe-madrasta passa toda a história tentando matar a filha-enteada que vai suplantá-la em juventude e beleza. O olhar de desejo do pai-caçador, que a faz descobrir-se mulher na floresta “negra”, para onde foge da mãe. Os vários desafios que enfrenta qualquer menina, seja a Branca de Neve ou uma adolescente de hoje, para se tornar mulher. E que passam, necessariamente, por se diferenciar da mãe. Quem quiser pensar mais sobre isso – e vale muito a pena pensar mais sobre isso – pode procurar o excelente Fadas no divã (Artmed, 2006), dos psicanalistas Diana e Mario Corso – um livro fundamental para todos, um pouco mais para mães e pais.

Em Branca de Neve e o Caçador, os desafios enfrentados pela princesa para virar mulher (e continuar viva) ganham soluções um pouco diferentes das versões anteriores – e bem provocativas. Mas, só dessa vez, vou deixar Branca de Neve do outro lado do espelho e me concentrar no reflexo da rainha má. Charlize Theron é uma mãe-bruxa obcecada pela juventude e pela beleza. Para ela, nenhum ato é horrendo demais se, ao final, ela ganhar uns anos a mais com pele de pêssego. Assinalada por várias vidas de horror – já que a bruxaria e o coração das mais jovens garantiu-lhe uma existência prolongada –, ela não admite ter nenhuma marca do vivido. Toda a violência sofrida e praticada, as mágoas, as decepções e as traições estão dentro dela. Mas no corpo, naquilo que se oferece ao olhar do outro, ela é uma mulher sem marcas.

No filme, a rainha má assim é por ter sofrido no passado o abuso de homens que, nas suas palavras, sugaram tudo dela e, quando ela começou a envelhecer e a perder a beleza, a trocaram por uma mais jovem. Roteiro prosaico de nossos dias, mas tanto na vida real como na ficção soa inconsistente. Uma desculpa meio esfarrapada para justificar tanta destruição – e autodestruição. Nestes momentos, em que evoca a suposta sina das mulheres e a suposta voracidade dos homens, a rainha nos constrange com sua superficialidade de almanaque. Mas não deixa de ser interessante observar que supostamente também seria para o desejo dos homens que as mulheres do nosso tempo se submetem ao inimaginável na tentativa de permanecerem jovens e belas. Será?

Um dos momentos mais interessantes do filme se dá no encontro de Branca de Neve com uma comunidade de mulheres que, para se manterem a salvo da sanha da rainha, fazem marcas no próprio rosto. Até as crianças têm a face assinalada por cicatrizes sem história. Numa concepção de beleza em que as marcas da vida estragam o rosto, essas mulheres só podiam sobreviver se arruinassem a beleza – e, com ela, o interesse da rainha. É, portanto, no olhar da rainha que está o desprezo pelo corpo assinalado pela passagem do tempo – e não (apenas) no olhar dos homens. É só ao incorporar a recusa em envelhecer que a rainha se torna de fato um objeto.

Alguma semelhança com nossa época? Me parece que toda. O terror só é terror se houver estranhamento. Estranha-se aquilo que, no fundo, é familiar. O terror é o conhecido que fingimos desconhecido, é nosso estranho íntimo. Se fosse totalmente estranho, não captaria nossa atenção. É preciso ser um estranho que ecoa no que estranhamos em nós. Ou um estranho que reconhecemos em nós, mesmo sem jamais admitirmos conscientemente. Para isso serviram desde sempre os contos de fadas, ao nos dar a possibilidade de lidar com nossos fantasmas e medos através dos personagens, nossos outros arquetípicos. Nesse sentido, a rainha má é um conto de fadas para mulheres adultas.

É fácil escandalizar-se com a louca obcecada pela juventude que persegue as mais jovens, prontas a desbancá-la em beleza, como uma serial killer gótica. Mas é menos fácil escandalizar-se com o número cada vez maior de mulheres sem nenhum problema de saúde ou deformação que se submetem a uma cirurgia na tentativa, ao final sempre ilusória, de eliminar as marcas da passagem do tempo.

Para nós tornou-se corriqueiro, mas para alguém de outra cultura ou de outro tempo, soaria como um filme de terror ser apagada por uma anestesia e ser cortada por um bisturi. Sangue, gordura, fluidos. Tira um naco de um lugar para botar em outro, implanta um corpo estranho em formato de bola no peito, estica a pele do rosto com fio de ouro. Arrisca-se a morrer, apenas para submeter-se ao padrão estético do momento ou apagar rugas que voltarão mais cedo do que tarde. Conforme o lugar de onde se olha para essas cenas, hoje banalizadas, é um filme dos mais aterrorizantes.

A diferença, com a rainha má, é que ela deu um jeito de que as outras paguem o preço de sua incapacidade de suportar o envelhecer. Mas só até certo ponto. Porque nem mesmo a sua mágica é suficiente para eliminar as marcas dentro dela, não há feitiço capaz de apagar o vivido. E, povoada por memórias que sangram sem a chance de virar cicatrizes, ela naufraga em desgosto, a tal ponto que se torna difícil compreender por que, afinal, ela quer tanto ser jovem e ser bela, se continua tão desgraçadamente infeliz com sua existência.

Como o belo corpo e o belo rosto da rainha má, parece-me que os corpos e os rostos flagelados de hoje são mais para serem olhados do que tocados. Cortados, manipulados e emendados pelo bisturi do cirurgião, em geral um homem, este corpo não é feito para se fundir com nenhum outro. É mais um objeto que se oferece como imagem, apenas. Porque o toque sempre deixará uma marca. O toque é sempre um risco. E, como para a rainha má, para muitas mulheres é melhor não se arriscar a ser alcançada por um outro que verá além do que é dado para ver, verá também as marcas que não podem ser apagadas. E fará outras marcas, que também não poderão ser eliminadas. Viver, afinal, é ser marcado e marcar.

O corpo e o rosto da rainha má não são para ninguém – nem para si mesma, como ela parece se iludir. O espelho mágico, aquele que olha e olha para além do que está na sua frente, é um dos grandes achados dessa versão. Ao ser invocado, ele desprega-se da parede e materializa-se como uma entidade masculina. Em vez de refletir a imagem externa da rainha, porém, ou lhe mostrar o mundo além do castelo, o espelho dá voz à sua imagem interior, ao avesso da rainha, ao lado de dentro. Vocaliza seus medos mais profundos e, de certo modo, a autoriza a praticar seus crimes, mas é apenas um eco.

É um diálogo consigo mesma – e não com um outro o que acontece nesse momento. A rainha má, desesperada por beleza e juventude, movida por um desejo que ela diz ser do mundo masculino e não dela, não é refletida nem mesmo pelo espelho. E, sem o olhar de um outro que nos reconheça, não há como se saber. É assim que ela se perde, porque não há quem a encontre.

É no medo de se perder no outro que a rainha se perde de fato. E, ao tentar matar Branca de Neve, na cena clássica da maçã envenenada, a mãe-madrasta vai desferindo conselhos à filha-enteada. “Você sempre se perde quando se deixa levar pelo amor”. E então, totalmente perdida, grita como uma louca que não se escuta: “Você tem sorte de morrer antes de envelhecer”.

E fracassa. É claro que fracassa. Nós todos conhecemos o final.

(Publicado na Revista Época em 11/06/2012)

 

Quanto tempo permanecerão os hieróglifos de Steve Jobs?

Reflexões entre múmias e estátuas de um museu egípcio

No sábado, eu caminhava embasbacada pelo Museu Egípcio de Turim, entre sarcófagos, múmias e estátuas milenares. Estava na cidade para um debate sobre a edição italiana do “Dignidade”, obra que marca os 40 anos da organização humanitária Médicos Sem Fronteiras, e escapei do Salão Internacional do Livro para dar uma espiada no museu. O prédio abriga uma das maiores coleções de arte egípcia do mundo e é difícil não se emocionar diante de algumas peças que nos contêm antes mesmo de existirmos. Mas, diante dos hieróglifos, alguns gravados mais de 3 mil anos antes de Cristo, fiquei pensando se algo de nós sobreviverá tanto quanto aquelas pedras onde a história foi inscrita para permanecer.

Em nenhum ponto da aventura humana nos contamos tanto quanto hoje. Cada um de nós pode escrever sobre si mesmo dezenas de tuites em um só dia ou postar no Facebook cada um de seus desejos ou percalços. Somos milhões registrando, dia após dia, nossa trajetória individual. E, ao contrário dos egípcios da Antiguidade, desta vez não é apenas a história dos faraós que é contada, mas a do homem e da mulher comum, a minha e a sua.

A tragédia, porém, é a mesma. Quando olho para a arte, de qualquer período, me emociona o gênio humano que transcendeu a miséria cotidiana para criar algo além. Por outro lado, enxergo nela a solidão abissal diante da finitude da vida, seja em uma estátua de Osíris ou em uma pintura de Picasso, em um romance de Tolstói ou em uma sinfonia de Beethoven. De certo modo, toda arte é um monumento ao nosso desespero diante da morte. Como se tudo o que foi criado até hoje documentasse, no fundo, sempre o mesmo desejo impossível de permanência. E como se todo museu ou biblioteca fosse, na verdade, uma prova pungente e grandiosa de nosso fracasso.

Quando nos contamos nas redes sociais, nos detalhes mais mínimos, somos movidos por esse mesmo anseio. Primeiro, que nos reconheçam. Segundo, que nos amem, o que supostamente seria dado pelo número de seguidores no Twitter ou de amigos no Facebook. Ou que ao menos nos achem importantes o suficiente para nos odiarem. Há quem fique irritado com aqueles que anunciam ao mundo que vão lavar o cabelo ou que estão com sono ou que sentem fome. Eu, às vezes, me enterneço. Parece tão espantosamente banal, mas naquele tuite prosaico berra o medo da morte. Ela avisa que precisa lavar o cabelo, mas, de fato, está pedindo um olhar que lhe garanta a existência. E se alguém responde ou comenta, ainda que seja para xingar, está salva por um momento.

A internet nos deu essa chance, a de nos contarmos todos. Como se os escravos que ergueram as pirâmides e os escribas que registraram a vida dos faraós, assim como as transações comerciais e as leis do Egito Antigo, tivessem sido autorizados a documentar também suas tristezas e suas epifanias, assim como seus nadas. Mas, é irônico. Porque nós, os humanos pós-internet, não nos narramos em pedras, nem em papiros, nem em papel. Contamo-nos em lugar nenhum.

Tudo é memória – e, ao mesmo tempo, nada é ou está. O registro de nossa passagem pelo mundo é guardado na nuvem, essa figura enigmática que ninguém consegue apalpar com as mãos. E, embora nada possa ser esquecido, ao mesmo tempo podemos queimar mais rápido do que a Biblioteca de Alexandria. E, se tudo pode ser contado, a maioria de nós escolhe o que deixará documentado, como editores – e censores rigorosos – da própria história. Se fôssemos todos tão felizes como nas fotos do Facebook, os fabricantes de antidepressivos, ansiolíticos e hipnóticos teriam mudado de ramo. Se fôssemos tão belos e tivéssemos o rosto tão liso, a indústria de cosméticos e os cirurgiões plásticos já teriam falido.

Alcanço uma das peças mais acachapantes deste museu egípcio de Turim: a estátua do faraó Tuthmosis III (1479-1425 a.C). E percebo que, na base da estátua, o francês que a “descobriu” gravou seu nome, no ano de 1818, na esperança de garantir também para ele um naco de eternidade. E eu, que em maio de 2012 a admiro, nada sou além de um olhar anônimo entre centenas por dia.

Mas, ali, entre turmas de crianças de escola e turistas de nacionalidades variadas, me sinto semelhante ao faraó e ao francês. Porque aquilo que ficou do faraó, por monumental que seja, assim como a tentativa do francês de imortalizar-se, por patética que seja, não é nem um, nem é outro. O faraó e o francês são como eu, um mistério efêmero. Eles, com tudo o que foram, estão mortos. Como eu, entre hoje e algumas décadas, também estarei.
O que sou eu? Talvez o olhar terno para as duas escovas de dentes que repousam num copo de plástico na pia do hotel. Ou a revolta com a espinha que irrompeu no lábio superior bem no dia de minha apresentação pública. Ou o que escapa de mim nas histórias dos outros que conto. Sou muito mais o que não está contado de mim, o que escoa com as horas sem deixar rastro, do que aquilo que se sabe de mim.

E talvez essa seja a grandeza do momento histórico que vivemos, em que todos se narram por segundo. Se os hieróglifos do mundo antigo revelavam o mesmo desejo de permanência que a polifonia sem hierarquia das redes sociais de hoje, penso que agora estamos mais perto de nossa verdade mais profunda. Essa memória na nuvem, ainda mais imaterial do que nosso corpo condenado a desaparecer, esse nada que resta de nossa passagem fugaz pelo mundo, é apenas isso: a nossa tragédia sem museu. Finalmente, sem museu.

(Publicado na Revista Época em 14/05/2012)

Cadê a pessoa?

Minha amiga B, os russos, a vida pública e um pato de borracha

“Eu não acho, não acho”. A voz aflita de B no celular me alarma. Há meses eu só uso o aparelho para pegar recados ou ligar para amigos com a mesma operadora. Mas, por esquecimento, ele estava ligado, e o nome dela apareceu na tela, junto com o toque de urgência que me faz detestar celulares. Atendi. E, desta vez, era uma urgência. Passei muito tempo sem ver B, anos, e um dia, neste último fevereiro, nos encontramos em um curso de literatura russa. Isaac Bábel, mais especificamente, nos uniu de novo. “O que você não acha?”, perguntei, com certa precaução na voz. B é talvez mais intensa do que eu e está sempre às voltas com dilemas que não estão nos jornais. “A pessoa”, ela disse. “Eu não acho a pessoa.”

Fui na hora tomada por uma golfada de felicidade. Ela não estava aflita porque perdera o informe do imposto de renda enviado pelo banco, ou seus brincos de pérola, ou um vinil dos Secos & Molhados. Não. B perdera a pessoa.

“Hum”, fiz eu, em boa performance psicanalítica. B explicou-me então que não sabia quando perdera a pessoa, mas podia localizar o momento exato em que descobrira que a tinha perdido. Ela tomava um chocolate quente e tentava ler as notícias do jornal. O Cachoeira, o Demóstenes, a mulher amantíssima do Cachoeira, a votação das cotas raciais no Supremo, a popularidade da Dilma, o Código Florestal…

Neste ponto da leitura, B havia corrido ao Twitter para entrar na campanha “Veta Dilma. Veta Tudo”. Engatou alguns diálogos de 140 caracteres com desconhecidos conhecidos, deu alguns cliques e, quando voltou a tomar um gole de chocolate, percebeu que o leite esfriara. Foi nesse instante, me garantiu ela, que descobriu que tinha perdido a pessoa.

B tinha acabado de ler um conto e um romance russos. O famoso “A dama do cachorrinho”, de Tchekhov, e o “Oblómov”, de Ivan Gontcharov. A combinação dos dois fez com que uma lâmpada se acendesse dentro de B – e, de súbito, ela descobriu o que não estava mais lá. A pessoa.

Em “A Dama do Cachorrinho”, Tchekhov nos mostra, através de uma história de amor, que temos duas vidas: uma visível, assumida, às claras; e outra secreta. Uma “evidente”, “cheia de verdades convencionais e de mentiras convencionais”, exatamente igual a de todos; e outra que transcorre nos vãos.

No caso do personagem de Tchekhov, tudo o que era para ele indispensável, relevante e sincero, tudo o que não era engano, se passava no escuro de si. E tudo o que era “sua mentira, sua casca, na qual ele se escondia para encobrir a verdade”, como seu trabalho no banco, as discussões no clube, os compromissos sociais com a esposa, tudo isso era visto e compreendido como se fosse ele – mas era apenas aquilo que o ocultava.

Neste ponto, B começou a chorar. “Não vale a pena ter uma vida em que o mais importante de mim precise respirar nas sombras”, dizia. “Meus eus devem coincidir.” Havia uma nota tão rascante em seu choro, como uma porta enferrujada por anos que começa a se abrir à força.“Você é tudo isso”, eu disse, numa tentativa de consolo. “Inclusive essa máscara social que você usa para que o mundo não te mastigue.”

B apenas chorou mais. “Você não está entendendo. Eu não estou recusando o contraditório de mim. Eu estou recusando essa máscara que me torna alguém plano e palatável. Vale a pena viver escondendo as verdades que mais me importam?” B agora tinha raiva, e apontava essa raiva para mim. Ela continuou: “Se o mundo quiser me mastigar, que mastigue. Mastigará carne, e não um cupcake.” Desta vez, eu apenas disse: “Estou indo praí”.

Encontrei B estatelada no sofá, olhando para o teto. O rosto inchado de choro, mas já com o peito subindo e descendocom regularidade. Eu não havia lido o “Oblómov”, porque nunca encontrei uma tradução para o português que me animasse. Mas sabia que era uma sátira sobre a imobilidade da aristocracia russa em meados do século XIX, diante dos acontecimentos que precederam e anunciaram a revolução de 1917.

Não para B.

Durante mais ou menos 150 páginas de romance, Oblómov não sai do seu sofá. Incapaz de agir e de escolher, o personagem se imobiliza. Como B, no momento em que me conta sobre ele. Oblómov recebe visitas de pessoas que representam diferentes papéis no espectro da sociedade da época. E, quando essas pessoas lhe contam do mundo, lhe contam do mundo por suas ações e pelas ações de outros, Oblómov só faz pensar: “Cadê a pessoa?”.

Pensei que B estava adivinhando sentidos no romance que só faziam sentido em seu estado delirante. Mas, dois dias depois do enigmático telefonema de B, eu me distraía com um livro bastante delicioso chamado “Os possessos – aventuras com os livros russos e seus leitores” (Leya), quando descobri que a autora, Elif Batuman, tinha lido “Oblómov” com um olhar muito semelhante ao de B.

Em seu livro, Batuman, uma americana de origem turca que hoje vive em Istambul, entrelaça os escritores russos e seus protagonistas com os personagens contemporâneos do mundo acadêmico que inventam sentidos para suas vidas a partir da interpretação de suas obras. E o faz com humor, sensibilidade e sarcasmo. Sorri ao pensar que B e eu também cometíamos um pequeno enredo desatinado, às voltas com os russos que nos uniram por acaso depois de tanto tempo.

Batuman afirma, em um dos ensaios do livro: “Vejo agora que o problema da pessoa era a chave da preguiça de Oblómov. Ele é tão avesso a se reduzir a soma das ações que decide sistematicamente não agir – e desse modo revelar mais inteiramente sua verdadeira pessoa, e deleitar-se nela, não adulterado”. Publicado em 1859, “Oblómov” quase coincide, no tempo, com a obra-maravilha do americano Herman Melville: “Bartleby, o escriturário”, livro que faz parte dos meus amores mais profundos. Como Oblómov, mas diferente dele, Bartleby a tudo apenas dizia: “Prefiro não fazer”.

Assim é descrita uma das visitas recebidas por Oblómov em seu já mítico sofá. “Um antigo colega do serviço público conta a Oblómov da sua recente promoção a chefe de seção, seus novos privilégios e responsabilidades. ‘Com o tempo ele será um figurão e conseguirá um alto posto’, Oblómov pondera. ‘Isso é o que a gente chama de uma carreira! Mas como requer pouco da pessoa: sua mente, seu desejo, suas emoções não são necessárias.’ Esticando os membros, Oblómov sente-se orgulhoso por não ter relatórios a preencher e pelo fato de ali no sofá ‘haver amplo espaço tanto para as suas emoções como para a sua imaginação’. ”

Um século e meio mais tarde, B, no sofá da sala de seu apartamento de classe média paulistana, encarna Oblómov à sua própria maneira: “Cadê a pessoa?”. Ou: “Perdi a pessoa!”. B conta-me que se sente exposta, toda virada pra fora, uma mulher em seu avesso. Nos últimos anos ela se tornara uma personagem das redes sociais. E , desde que nos reencontramos, tenta me convencer a entrar no Facebook. B gosta de viver em rede e está longe de ser uma solitária que achou um jeito de existir na internet. Apenas que ela pensara ter se feito presente ali mais do que em qualquer outra geografia. Mas, de repente, B não mais se reconhece no personagem que criou. “Virei uma prisioneira”, ela diz. “Do quê?”, pergunto eu, a essa altura já bastante perturbada. “Dessa persona pública que me tornei. Todo mundo me conhece, e eu me desconheço.”

B descobrira que era uma pessoa – sem pessoa. “Estou reduzida a ações, a verbos. Virei um noticiário, eu, que nunca acreditei em fatos. Mesmo quando analiso, quando infiro, quando relaciono… são ações. É um eco, só um eco. Não sei mais onde está a voz que o gerou.” Diante dela, eu tentava descobrir a pessoa em mim que poderia resgatar a pessoa de B. Aquilo que me levara a deixar a minha casa no meio de uma manhã de trabalho para ajudá-la a procurar não o passaporte ou o título de eleitor, mas a pessoa que havia se desgarrado dela. Encolhi-me na poltrona, antes de arriscar. “Ninguém te conhece. E você não conhece ninguém”, disse. E minha voz saiu mais aguda do que eu planejara. “São poucos os que podem nos conhecer, o resto é o bando que se alimenta e se protege mutuamente, ferindo quem for preciso para não ter sua posição ameaçada. Você quer ofertar seu corpo verdadeiro para que o canibalizem?”

Eu também estava confusa. “Há uma escuridão, e eu sou essa escuridão”,repetia B. “E lá, em algum ponto desse buraco negro, há uma pessoa que grita, mas ela está presa na nuvem. A conexão se perdeu, eu me perdi.” Percebi que B, minha amiga mais presente, no presente, a mais pública, a mais conectada sentia-se incorpórea. Sentia-se uma pessoa sem pessoa – e também sem corpo.

Quando juntas estudávamos a obra de Isaac Bábel, eu e B havíamos chorado ao tomarmos conhecimento da lista dos pertences encontrados no apartamento do escritor, em Moscou. Bábel fora preso pela polícia de Stálin. Seus manuscritos foram confiscados, seu nome apagado de enciclopédias, dicionários literários e roteiros de cinema, seus óculos quebrados, seu corpo torturado e, até ser executado por um pelotão de fuzilamento, tudo o que ele pedia era: “Deixem-me concluir minha obra”. Os manuscritos de Bábel desapareceram, e ele será sempre um homem inconcluso – como todos nós e, de certo modo, mais que todos. Mas o que fez eu e B nos comovermos para além da brutalidade do regime de Stálin, que executara também as letras de Bábel, foi descobrir no espólio do escritor “um pato de banho”.

Se a pessoa de Bábel estava em algum lugar, pensei, era naquele pato de borracha. Sem saber o que fazer, lançada na claridade pela lucidez excessiva de B, agarrei forte a sua mão. Agarrei para machucar, para que B sentisse as minhas unhas. Eu sabia que, se a “pessoa” de nós estava em algum lugar, era naquele toque que nos impedia de submergir no que o personagem de Tchekhov chamou de “verdades convencionais e mentiras convencionais”.

Não me parece que B seja a única a vagar por aí gritando: “Cadê a pessoa?”. Por isso pedi a ela autorização para contar da sua perda a vocês. B a deu na hora. Mas quando lhe perguntei se poderia colocar seu nome, ela negou com veemência: “Se você revelar meu nome, eu perderei a pessoa para sempre. A pessoa está fora do nome”.

(Publicado na Revista Época em 30/04/2012)

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