Parto com prazer

Nove meses, nove mulheres, nove histórias de amor

“Acho que exagerei na lasanha de berinjela”, comentou Luciana Benatti com o marido, Marcelo Min. Passava das dez da noite e Luciana, com 37 semanas e 4 dias de gestação, tinha sentido uma dorzinha. Não era a lasanha. Era Pedro, mas naquele momento ninguém sabia que ele se chamaria Pedro, porque os pais achavam que ainda teriam alguns dias de gestação para decidir o nome e preferiam descobrir o sexo apenas quando o bebê se apresentasse. Na madrugada, primeiro chegou a doula. Depois a pediatra. E em seguida a obstetra. Daria qualquer coisa para saber o que o porteiro do edifício no bairro de Pinheiros, em São Paulo, imaginou ao ver três mulheres chegando de malinha no meio da noite. Tudo – de homicídio a orgia – menos que alguém daria à luz no sétimo andar. De repente, já havia uma piscina inflável, decorada com uma alegre fauna marinha, no meio da sala. E uma mangueira de 50 metros levava água quente do velho Lorenzetti até banheira improvisada. Foi lá que Luciana começou a dar aqueles berros primais e libertadores, porque dói mesmo, para algumas mulheres mais do que para outras. E de novo fico pensando no que o pobre porteiro deve ter imaginado quando os vizinhos começaram a interfonar. Arthur, pelo menos, resolveu espiar o que estava acontecendo. Aos quatro anos, ele desembarcou da cama esfregando os olhos amendoados e encontrou uma festa na sala. Como Luciana sabia que nada melhor do que um bom berro quando a contração chegava mais forte, percebeu que precisaria explicar ao menino o que estava acontecendo antes que ele se desesperasse. “Filho, para o irmãozinho sair da barriga, a mamãe vai ter que dar uns gritos de leão”. Arthur é louco por qualquer bicho – mas rei é rei, e rainha melhor ainda. Adorou. E a partir daí, sempre que sua mamãe leoa berrava, ele ria e batia palmas na maior empolgação. Foi assim que Pedro escorregou para o mundo. Marcelo e Arthur, pai e filho, cortaram o cordão umbilical. E depois de um soninho gostoso, Luciana acordou pela manhã com os dois filhos ao seu lado e um café na cama preparado pelo Marcelo. O melhor pão com requeijão da sua vida.

Esta história é contada pelos protagonistas, a jornalista Luciana Benatti e o fotógrafo Marcelo Min, num livro – muito – importante lançado nesta quarta-feira, 4/5 (a partir das 18h30, na Livraria Cultura do Conjunto Nacional, em São Paulo).Parto com amor (Panda Books) é a narrativa de uma trajetória que começou em 2007, com a gestação de Arthur, o orgulhoso animador de partos do parágrafo anterior. E só terminou no ano passado, com o nascimento de Pedro.

Ao ficar grávida pela primeira vez, quatro anos atrás, Luciana pensava em ter parto normal, mas nunca tinha ouvido falar de parto humanizado. Como boa parte dos médicos, o dela disse: “Parto normal é o melhor para a mãe e para o bebê”. Mas não respondia – e até se irritava – com as perguntas de Luciana. “O que mais a senhora quer saber?”. Um dia Luciana, já com um barrigão de 35 semanas, encontrou uma amiga jornalista. “Mas você tem certeza? Muitos médicos dizem que fazem (o parto normal), mas na hora inventam uma desculpa para a cesárea”.

Luciana ficou bem irritada com a amiga que duvidava do seu médico naquela altura da gestação. Mas o comentário permaneceu fincado como um alfinete em sua cabeça e, na consulta seguinte, diante de seus questionamentos, o médico soltou esta pérola: “Por que você está tão preocupada com o parto? Cuide das roupinhas e da decoração do quarto e deixe que do parto cuido eu”.

Não era esta a ideia que Luciana e Marcelo compartilhavam sobre o parto do seu filho. Eles tinham certeza de que quem tinha de cuidar do nascimento do bebê eram eles – e especialmente Luciana, com o apoio de Marcelo. Nunca mais voltaram ao consultório do médico, que também jamais os procurou para perguntar o porquê.

Um mês depois Arthur nasceu num parto natural na banheira da maternidade de um hospital, sem anestesia, sem episiotomia (o corte que obstetras costumam fazer no períneo da gestante com a justificativa de que ajuda no nascimento e evita lesões maiores) e sem soro com ocitocina (medicamento usado para aumentar a frequência e a força das contrações). Arthur desembarcou do útero no seu tempo, forte e saudável. E Luciana deu à luz inspirada nas suas avós: Aurora teve sete filhos de parto normal e Antônia, sete. “Foi um daqueles momentos que fazem a vida valer a pena”, diz Luciana. “Fui a protagonista da minha história.”

E foi assim que outra história começou – a do livro. Marcelo, um dos melhores (e mais sensíveis) fotógrafos do Brasil, registrou em imagens o parto de Arthur. Ao refletirem sobre sua experiência, Marcelo e Luciana perceberam que valia a pena documentar o parto natural, comum nos países desenvolvidos da Europa, mas uma exceção no Brasil, um país com índices de cesariana superior a 80% nas mais conceituadas maternidades privadas – quando a Organização Mundial de Saúde (OMS) recomenda no máximo 15%.

Nos últimos quatro anos, Marcelo e Luciana acordavam na madrugada com telefonemas do tipo: “Vai nascer!” ou “Começou!”. E lá se ia Marcelo com seu equipamento, enquanto Luciana ficava com Arthur. Depois, a jornalista fazia uma longa entrevista com cada uma das mulheres em suas casas, para que contasse sua trajetória a partir do seu próprio olhar – todos os textos do livro são na primeira pessoa e cada um deles traz o jeito particular da autora daquele parto. A cada final de capítulo, há uma seção de perguntas e respostas feitas com muita responsabilidade, precisão e conhecimento, que esclarecem questões trazidas na narrativa.

Como os meses de uma gestação, são nove histórias de mulheres – e homens – que decidiram se tornar protagonistas do nascimento de seus filhos. Cada uma delas com seu próprio caminho, suas possibilidades, seus conflitos e também seus limites. Cada capítulo nos dá uma história contada em duas linguagens – o texto e a fotografia. E ao final de cada um deles sofremos e nos alegramos junto com aqueles homens e mulheres – e bebês lindos e amarrotados – que passamos a sentir como se fossem da família.

Marcelo ganhou das gestantes o apelido de “fotógrafo invisível”, pelo seu dom – já testemunhado por mim em reportagens muito delicadas que fizemos juntos – de registrar a realidade com uma câmera enorme sem que ninguém se sinta invadido ou mesmo perceba a sua presença. As duas fotos abaixo são do primeiro capítulo, justamente o parto de Arthur. A mulher, berrando na banheira, é Luciana. Sim, parto dói, mas há uma diferença fundamental, que a maioria das pessoas parece ter esquecido, entre dor e sofrimento. A do parto é uma dor que não vem da doença e da morte, mas da saúde e da vida. É uma passagem. Você está junto com seu filho, ajudando-o no primeiro momento mais importante da vida que se inicia fora do útero materno. E poder berrar, sem que nenhum obstetra ou enfermeiro torça o nariz, é libertador.

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Parto com amor é um livro que registra um dos movimentos femininos mais interessantes deste início de milênio (e que, para muitas parcelas da sociedade, permanece invisível): a decisão das mulheres de recuperarem a posse do corpo em um momento crucial da vida – o parto do filho. Elas passaram a perceber que dar à luz não é um procedimento técnico apenas, mas algo que vai definir uma questão determinante para tudo o que vem depois: o nascimento de uma mãe.

As decisões tomadas no parto e a forma como cada mulher lida com a gestação é parte da construção da maternidade que também ali se inicia. E para cada filho – e não apenas o primeiro – há uma mãe diferente que nasce. Assim como a forma que cada homem lida e participa – e a sua presença ou ausência nesse momento – também é determinante para a paternidade que se inicia, para o pai que também nasce.

Assumir a responsabilidade de parir é uma etapa essencial do processo de fundação e autoconhecimento da família recém nascida. Assim como delegar todas as decisões do parto para a autoridade médica também é, pelo avesso. Tanto uma escolha quanto a outra têm significados e consequências.

Em boa parte dos países desenvolvidos, a cesariana não é uma escolha, como é no Brasil. Da mesma forma que qualquer pessoa de bom senso acharia um absurdo se submeter a uma cirurgia nos rins ou na próstata sem necessidade. Nesta visão responsável da saúde, a cesariana é um procedimento de grande seriedade, como qualquer cirurgia, realizado apenas quando é necessário. E só é necessário quando há um risco comprovado para a mulher e para o bebê, quando é a realmente a melhor alternativa para a mulher e para o bebê.

Se esta fosse a verdade do atendimento às gestantes no Brasil, por que só as brasileiras teriam indicação de cesariana em mais de 80% dos nascimentos nas maternidades privadas – e não os 15% previstos pela OMS? Será que as brasileiras são mulheres diferentes das demais mulheres do mundo? Teriam um corpo diferente, que as impossibilita de parir seu filho de forma natural?

Assim, que bom que vivemos um momento da medicina em que, quando há risco para a mãe ou para o bebê, é possível fazer uma cirurgia. Mas que pena que um número significativo de cesarianas é realizado todos os dias não por necessidade real, mas por comodidade do médico e da mulher. E, mais triste ainda, que um número considerável seja feito à revelia da mulher.

Diante dessa realidade e da sensação de que algo estava errado na experiência vivida nos consultórios e nos hospitais, em diferentes partes do país mulheres começaram a reagir. Sem encontrar respostas nos lugares óbvios, em geral contaminados pela cultura da cesariana e pela ideia da autoridade inquestionável do médico, elas passaram a criar grupos de discussão e de pesquisa na internet. Ao voltarem arrasadas da consulta, mães de primeira viagem encontravam pelo Google mães mais experientes que respondiam a suas perguntas e lhes davam orientação.

Duas destas mulheres, cada uma com uma história diferente, podem ser vistas nestas fotos extraordinárias. Na primeira, Denise, Lauro e a pequena Alice, no momento do nascimento. Na segunda, Andréia aconchega Maura, que acabou de nascer no ofurô. Matheus já deu as boas-vindas à irmã e muitos beijos na mãe. Em seguida, foi fazer xixi. “Muita gente se surpreende com esta foto”, comenta Andréia no livro. Como se o xixi fosse sujo, nascer fosse limpo e o fato de os dois estarem tão próximos pudesse fazer algum mal para o bebê.” A resposta padrão de Andréia é a seguinte: “Você sabe por onde ela saiu? Então, qual é o problema?”.

parto3parto4Pela internet, tornou-se possível recuperar uma tradição perdida: a das mulheres mais velhas ou experientes que compartilham seu conhecimento com as mais novas. A velha sabedoria das mães e das avós, só que a rede virtual e as mudanças culturais do nosso tempo tornaram esta uma família expandida. Hoje, há centenas de sites, blogs e listas de discussão de mulheres sobre gestação e parto. É possível, inclusive, assistir a partos pela tela do computador, em tempo real. Em algumas cidades brasileiras, profissionais da saúde adeptos do parto natural e humanizado formaram grupos onde as mulheres fazem cursos e trocam experiências. Trocam também indicações de doulas, parteiras, obstetras e pediatras que garantidamente vão respeitar suas escolhas, manter seu bebê junto delas e só realizar uma cesariana se for realmente necessário.

Da mesma forma que a internet deslocou o poder em muitas esferas – com o acesso à informação, a ampliação das vozes e a possibilidade de divulgação –, também teve profundo efeito no protagonismo do parto no Brasil. E, como toda mudança, esta causa um bocado de polêmica e resistência – especialmente entre a parcela dos profissionais de saúde que sente seu poder, antes inquestionável, ameaçado. Não acredito que esse movimento seja revertido. Pelo contrário, me parece que a tendência é crescer e se multiplicar com a ajuda das redes sociais.

Parto com amor é um dos primeiros livros brasileiros a documentar esse fenômeno cultural tão interessante. E recebeu o apoio entusiasmado de uma das brasileiras mais famosas do mundo, a supermodelo Gisele Bündchen. A maioria das celebridades marca dia e hora para botar seus filhos no mundo, a data é escolhida com a ajuda de um numerologista e o mapa astral está na lista do enxoval. Gisele, a celebridade entre as celebridades, não. Ela faz parte desse movimento novo. Teve seu filho Benjamin em casa, na banheira, com parteira, da forma mais natural possível. E sofreu críticas por causa disso.

Em entrevista ao Fantástico, programa da TV Globo, ela disse: “Meu parto não foi dolorido em nenhum momento. Não foi assim, ai que dor, mas a cada contração eu pensava que meu bebê estava mais perto de mim. Eu transformei aquela sensação intensa, que acontece para todo mundo, em uma esperança de ele estar chegando mais perto. E no segundo dia (depois do parto) eu já estava caminhando, lavando louça, fazendo panqueca, sabe assim, vida que segue”.

Gisele leu Parto com amor e comenta na contracapa do livro: “O parto pode ser, sim, um momento poderoso de transformação, alegria e prazer. Espero que este livro inspire muitas mulheres”. Depois, encomendou exemplares para dar de presente às irmãs.

Espero que os votos de Gisele Bündchen se realizem.

(Publicado na Revista Época em 02/05/2011)

Crime sem sangue

O desabafo de um professor sobre a violência cotidiana da escola pública – onde parte dos adolescentes não sabe ler nem escrever

Rodrigo Ciríaco é professor da rede pública de São Paulo. Não custa lembrar, o estado mais rico do país. Os pais de Rodrigo, que completa 30 anos em maio, tinham uma lanchonete na Vila Rui Barbosa, na Zona Leste de São Paulo. Ciríaco cursou a escola pública, parte dela no período da noite para trabalhar durante o dia. Dos 14 anos em diante foi office-boy, mensageiro, auxiliar de escritório, operador de telemarketing, agitador de festas com videokê, vendedor de livros, estagiário em bibliotecas e educador social de rua. Contrariou as estatísticas ao conseguir entrar em uma das melhores universidades públicas do país: é formado em História pela Universidade de São Paulo (USP). Contrariou também as estatísticas familiares, ao se tornar o primeiro a cursar o ensino superior. Decidiu ser professor da escola pública por acreditar que deveria retribuir o investimento do Estado na sua educação. E também, mas principalmente, por desejar ser um instrumento de transformação de vidas. Tem pagado um custo alto por manter esta convicção.

Parte de sua experiência como professor de escola pública foi transformada em literatura no livro de contos Te pego lá fora (Edições Toró). É lá que está a incrível história da aluna que virou placa – tão incrível quanto invisível, como são as placas humanas da cidade, sobre as quais ele nos contará mais adiante. Educador, escritor, ativista cultural, Ciríaco passou as últimas férias em Berlim, a convite da pesquisadora Ingrid Hapke, da Universidade de Hamburgo, para fazer o lançamento do seu livro em “A Livraria”, casa especializada em literatura luso-afro-brasileira.

Seu livro foi assim apresentado aos alemães: “Escritos de vingança, dor e justiça de um professor que não aceita perder alunos para o tráfico e para a miséria, ver o preconceito camuflado para baixo de carteiras e nem abaixa a cabeça para diretores incompetentes e sistemas educacionais falidos. Contra tudo isto, usa a sua principal arma: a caneta”. Neste ano, Ciríaco integrou o grupo de autores da antologia de contos brasileiros, publicada na França e lançada em Paris no último 14 de março pela editora Paula Anacaona, com o sugestivo nome de Je suis Favela (Eu sou favela).

Ao voltar ao Brasil e às atividades na Escola Estadual Jornalista Francisco Mesquita, no Jardim Verônia, na região de Ermelino Matarazzo, na Zona Leste da capital paulista, Ciríaco voltou a lutar contra uma combinação sempre muito difícil de lidar: indignação e impotência. Com base no IDESP (Índice de Desenvolvimento da Educação de São Paulo), sua escola foi considerada uma das piores no nono ano do ensino fundamental: é a segunda pior entre as unidades de ensino da capital e a oitava pior entre os 3.695 colégios da rede estadual. Ciríaco, que realiza várias atividades educacionais extraclasse por sua conta e risco, tampouco foi contemplado no programa de bônus do governo.

Para dar 21 horas-aula semanais, ele ganha em torno de R$ 1.400 brutos. No dia em que soube que seus esforços não tiveram nenhum reconhecimento, faltou. Prejudicou apenas os alunos, sempre a parte mais fraca. Ciríaco admite a falha, mas afirma ter se sentido incapaz de enfrentar a sala de aula. Estava tomado pela solidão de quem escolhe o caminho mais difícil.

Na semana passada ele escreveu um texto intitulado “Desabafo” em seu blog (www.efeito-colateral.blogspot.com). Ao ler o relato, decidi procurá-lo para propor uma entrevista. Eu já o conhecia de encontros esporádicos em saraus de poesias e outros eventos da periferia de São Paulo. Também já conhecia seu livro. Ciríaco aceitou, mesmo correndo o risco de sofrer represálias. Professores podem ter problemas ao falar sobre sua vivência nas escolas paulistas – falar nem sempre é permitido.

Esta é uma conversa sobre educação e escola pública, em minha opinião o assunto mais relevante deste momento histórico vivido pelo Brasil. É também uma conversa sobre ideais e sobre perdas, sobre fraqueza e força, sobre cair e levantar para tentar mais uma vez. E sobre as contradições vividas por um professor às voltas com sua própria humanidade. É, principalmente, um debate sobre desigualdade e sobre a violência que mata sem sangue.

Esta entrevista já estava em curso quando Wellington Menezes de Oliveira matou 12 crianças numa escola em Realengo, no Rio. Optamos por não abordar o tema em nossa conversa. Sem informações suficientes, correríamos o risco de fazer inferências apressadas num momento em que o respeito à complexidade dos fatos é fundamental. Preferimos manter nosso foco na violência cotidiana e invisível, que, como professor, Rodrigo Ciríaco conhece bem. A única relação que eu me atreveria a fazer, diante de um caso tão terrível quanto singular como foi o do Realengo, é de que foi na escola que Wellington decidiu cometer seu massacre – assim como é a escola o palco de muitas das infelizmente tradicionais chacinas americanas. Já li muitas análises sobre o porquê da escolha da escola como lugar de assassinatos em massa. Mas acho que por aí há mais para pensarmos.

Se você não tem filhos na escola pública, não dê um suspiro aliviado e passe adiante. O tema desta entrevista tem tudo a ver com você, comigo. Se você não tem filhos, também tem tudo a ver com você, comigo. Pensar a escola pública, para além dos muros que para alguns são instransponíveis – e para outros um conforto – é uma tarefa de todos nós. Pelo menos de todos que têm vergonha. E que conseguem alcançar, ainda que de longe, a humilhação que um adolescente sente por estar no final do ensino fundamental sem saber ler nem escrever. É desde tipo de crime, comum e jamais punido, que falamos aqui.

Por que você escolheu ser professor da escola pública?
Rodrigo Ciríaco – A minha opção em ser professor de escola pública veio desde o momento em que escolhi ser professor. Por ter estudado toda a minha vida em uma escola estadual, por ter feito uma universidade pública, acreditava que tinha uma certa “obrigação” de devolver à sociedade tudo o que eu havia recebido, o investimento que havia sido feito em mim. Este foi um dos motivos. O outro é por acreditar que a escola pública gratuita é um verdadeiro espaço de transformação possível da sociedade em que vivemos. Um dos espaços. Não acontecem mudanças apenas pela escola, como sabemos. É preciso políticas públicas e eficazes de emprego, saúde, segurança, moradia e distribuição de renda. Deixar toda essa responsabilidade para a escola seria demais. E o abandono, as políticas públicas ineficazes, sempre me incomodaram, e muito. Me tornei professor porque tinha vontade de contribuir para que esse quadro fosse alterado.

Como são a sua escola e seus alunos?
Ciríaco – Desde que fui efetivado estou trabalhando na mesma escola. Hoje, ainda é difícil trabalhar por lá, mas já foi ainda mais. No começo, nos anos de 2006 e 2007, além dos problemas pedagógicos e administrativos, tínhamos sérios problemas de infra-estrutura. Das 18 salas de aula, nove delas alagavam, enchiam de água todo início do ano. Muitas outras tinham infiltrações, buracos na parede e no teto. Lousas aos pedaços. Além disso, o sistema de eletricidade era obsoleto – e ainda é. Vivia sobrecarregado, queimando computadores e lâmpadas. Houve alguns momentos em que tivemos problemas de curto-circuito. Não possuíamos uma diversidade de recursos pedagógicos, como sala de informática ou multimídia e laboratório. E a diretora era extremamente ausente, não cumprindo com suas obrigações profissionais.

Acredito que estudar e dar aulas em uma escola fisicamente aos pedaços é um tipo de violência contra professores, funcionários e alunos. Como isso é percebido dentro da escola e de que maneira afeta a comunidade?
Ciríaco – Eu acho que o estigma de a “escola pública ser ruim” já colou de uma maneira tão impregnada na sociedade e, principalmente, nas pessoas que vivem nas comunidades periféricas, que ficou banalizado. As pessoas muitas vezes não se dão conta de que aquilo é uma violência. Ou mesmo se sujeitam muitas vezes, sem acreditar na força da mobilização política e popular para transformar esse quadro. Isso tem um efeito muito negativo para os alunos, ainda que inconscientemente. Gosto muito de uma frase do Paulo Freire que dizia que o “ético tem muito a ver com o estético”. Quando se estuda numa escola caindo aos pedaços, é difícil ter ânimo, acreditar até que aquilo ali pode lhe propiciar algo de bom. Isso pensando nos alunos.

No caso dos professores, esse sentimento de indignação fica muito claro. Mas eu acho que não somos uma classe muito unida, principalmente em tornos dos problemas centrais da educação – e não apenas da corporação. Há uma indignação, crescente, visível, principalmente nas salas dos professores, nas reuniões pedagógicas, mas é uma revolta que não encontra uma válvula de escape política, que não se transforma em mobilização e em uma luta forte por mudanças.

E claro que isso não é desculpa, não justifica, mas influencia sim diretamente na qualidade de ensino. Na motivação. Até porque, muitas vezes, o professor não consegue se ocupar apenas das questões pedagógicas que lhe são pertinentes. Tem de dar conta de resolver problemas de falta de materiais, de estruturas precárias, de ausência de apoio e suporte pedagógico. O educador, na rede pública, não consegue ser apenas professor. Tem que ser uma espécie de faz-tudo, disponibilizar até recursos próprios para suprir deficiências que o Estado deveria resolver.

Nunca houve uma proposta de mutirão, por parte da comunidade, para melhorar a escola?
Ciríaco – Algumas vezes foram propostos, mas nunca deu muito certo, não vingou. Eu já cheguei a ir à escola, aos finais de semana, com alguns professores e pais, para fazer a instalação de ventiladores e outros pequenos consertos para melhorar o nosso dia a dia, mas foram coisas pontuais. A apropriação da comunidade, pela escola, na minha região e na minha unidade escolar especificamente é um projeto que está ainda distante. Tem ainda de ser construído. E tem de ser um projeto bancado pela escola como um todo: profissionais, diretores, funcionários. Daí, entra um outro problema: em geral, há muita rotatividade destes profissionais. Nos anos em que estou na escola, já tivemos três diretores diferentes e mais de oito vice-diretores distintos. O corpo de professores e funcionários efetivos é pequeno, acaba sendo muito rotativo. Fica difícil estabelecer grandes vínculos e perpetuá-los.

“Na escola privada, como cliente/consumidor, o aluno tem mais direitos do que na pública, em que é ‘apenas’ cidadão”

A escola pública foi abandonada pela classe média. E isso não deixa de ser uma violência. Por que você acha que isso aconteceu? E como esta violência é sentida, na medida em que os alunos sabem que sua escola é pior do que aquela frequentada por quem tem mais dinheiro?
Ciríaco – Acredito que o abandono da escola pública pelas elites e pela classe média tenha acontecido por conta de uma visão individualista que as pessoas têm sobre a vida em sociedade. Nesta visão o que se ignora é justamente a responsabilidade de viver em sociedade. O que vale é o “salve-se quem puder”. Aos poucos, deixa-se de considerar o outro em suas decisões. Então, se a qualidade de ensino da escola do meu filho está caindo e parece muito complicado reunir os outros pais para discutir sobre essas questões, acionar os órgãos democráticos de reflexão como o Conselho de Escola, a APM (Associação de Pais e Mestres), entre outras medidas, e eu tenho condições financeiras, o que eu faço? Eu retiro o meu filho da escola pública e coloco-o em uma instituição particular de ensino. Ao estabelecer uma relação de cliente/consumidor eu tenho mais “direitos” e respostas do que naquela em que eu era “apenas” cidadão.

Não é curioso que as pessoas tenham mais condições de reivindicar como consumidores, no que se refere à educação, do que como cidadãos que trabalham e pagam seus impostos? Como você vê esta distorção?
Ciríaco – É uma distorção cruel e violenta típica da sociedade capitalista em que vivemos e, como dizem os Racionais, “você vale o que tem”. E é bem isso. Há tempos que o Ter é mais importante, mais valorizado do que o Ser, apesar do discurso, da Constituição dizer o contrário. Em tese, somos todos “iguais perante a lei”, mas sabemos que na prática dinheiro é sinônimo de poder. E quem tem, pode mais. Não é algo que eu acredito, mas é como eu vejo. E no caso do “aluno/consumidor/cliente”, é mais fácil para ele reivindicar coisas, pois entra numa simples questão: ele têm escolha. O dinheiro lhe abre essa possibilidade. Se a escola particular não está atendendo às necessidades do educando, às reclamações dos pais, eles simplesmente vão lá, tiram o filho daquele colégio e matriculam em outro. No caso do cidadão que depende do Estado para ter minimamente os seus direitos sociais garantidos, essa lógica não entra. Não existe. É a lógica do “pegar ou pegar”. Não se pode nem pensar em largar, afinal é difícil muitas vezes conseguir vagas em escolas públicas. E quando existem reclamações por parte dos pais, nas Diretorias de Ensino, na Secretaria de Educação, entram no bolo das reclamações que existem contra instituições do Estado. Parece que acabam caindo em um limbo, num buraco negro do esquecimento. Principalmente se não houver uma mobilização, se for uma reclamação individual. É como se aqueles que dependem do Estado não tivessem o direito de reclamar. É aceitar o que está lá e pronto. Os direitos sociais no Brasil não são vistos como direitos, e sim como favores. E se eu faço um favor, você tem de aceitar. De bom grado e pronto.

Se existe um projeto político de educação no Brasil, e ele existe, apenas não é admitido, é o de fazer a escola pública não funcionar”

Como você vê a violência velada da escola privada, que me parece permear a relação entre alunos, pais e professores? Acho que se discute muito pouco sobre a violência da escola privada. No máximo, se fala sobre os sofrimentos infligidos aos alunos mais frágeis, o tal do bullying.
Ciríaco – A violência da escola particular não é muito debatida ou sentida, acredito, entre os alunos. Não é algo que está em pauta, em discussão, cotidianamente. Essa violência aparece, muitas vezes, quando é trazida por professores que trabalham em ambos os lugares, e que, em casos de indisciplina ou outros problemas, fazem comparações entre a instituição particular e a escola pública, colocando a privada – e seus respectivos alunos – como melhores, mais preparados do que os da escola pública. Esta comparação, feita muitas vezes por um profissional de educação, costuma ser recorrente, e de extrema agressividade moral.

O que me incomoda muito é ver políticos, empresários, banqueiros construindo ONGs e dizendo que são “todos pela educação”. E, quando você vai ver, seus filhos estudam em colégios particulares caríssimos. E a mensalidade de um deles é, muitas vezes, um valor maior que o salário de um professor de escola pública. Acho de um cinismo, de uma hipocrisia e de uma crueldade muito grande. Eu, particularmente, vou acreditar que somos, realmente, “todos pela educação”, quando eu ver os filhos destes que têm uma condição financeira extremamente favorável se sentarem no mesmo banco, junto à mesma carteira, que o dos filhos de trabalhadores e trabalhadoras das comunidades e periferias do país. Quando juntos enfrentarem as mesmas questões, as mesmas dificuldades de falta de professores e de material didático adequado. “Ser solidário é correr o mesmo risco”. A frase é de Che Guevara e eu gosto muito. Porque é fácil ser solidário dizendo: “Vá lá fazer, eu te apoio”. Se apoia mesmo, entra junto na luta. De cabeça, de verdade, não apenas com palavras, com projetos que fazem intervenções pontuais, que não questionam a raiz, a base do problema, que são as políticas públicas de educação. Porque se existe um projeto político de educação no Brasil, e ele existe, apenas não é admitido, é aquele de fazer a escola pública não funcionar. Deixá-la abandonada, aos prantos, como uma criança assustada, sem amparo, atenção e carinho.

A diversidade de experiências deveria ser um dos instrumentos mais importantes da educação. No Brasil, a desigualdade reproduzida e multiplicada pelo sistema de ensino, que oferece uma escola ruim para os mais pobres e uma escola um pouco melhor para a classe média e os mais ricos, eliminou este instrumento pedagógico. E acho que até hoje não há nenhuma avaliação das consequências deste apartheid educacional em todas as outras relações sociais. Você, que testemunha o apartheid de dentro da escola pública, como vê este fenômeno?
Ciríaco – Acho que para os alunos das classes populares, isso gera muitas vezes uma falta de perspectivas, de olhar e enxergar outras possibilidades, novos horizontes. Tempos atrás, eu estava falando sobre Iluminismo, Montesquieu, “O espírito das leis”, e perguntei para os alunos quem ali pretendia fazer Direito. Em três salas, apenas um aluno levantou a mão. Perguntei ainda quem queria fazer as profissões mais “reconhecidas”, socialmente falando, como Medicina, Engenharia… Mais um ou outro levantou a mão. E não é por não conhecerem essas profissões, é por não acreditar que é possível. Por não terem referências próximas, em seu bairro ou escola mesmo, de alunos ou pais de alunos que chegaram lá, estudaram, fizeram esses cursos. A desigualdade nas relações mina a diversidade. Até de sonhos, de possibilidades.

Sempre se enxerga a escola pública como um espaço violento. Como você classificaria os diversos tipos de violência? E como você os enxerga?
Ciríaco – Sim, a escola pública é um local violento. Principalmente quando se fala de uma violência institucional, que atinge todos os profissionais envolvidos na educação – e não apenas os estudantes. Os profissionais pelos baixíssimos salários, a falta de reajustes, planos de carreira, valorização profissional, o não reconhecimento de algumas doenças adquiridas por conta do trabalho, o acúmulo de funções. Fatores que, aos poucos, vão desmotivando e minando os sonhos, vontades, desejos de transformação através da educação dos mais esperançosos educadores. Pois é muito difícil permanecer no front se você não tem reconhecimento, apoio, incentivo e, principalmente, se você não consegue observar avanços, resultados positivos de seu trabalho. É muita energia gasta, aparentemente, para nada.

Mas você parece resistir… Como você faz para resistir e continuar tentando ser um bom professor contra todas as adversidades e um sistema que praticamente lhe empurra para o mau desempenho?
Ciríaco – De verdade, eu não sei o que faço para resistir. No fundo, acredito que sou um sobrevivente e que não entrego os pontos, não desisto das coisas facilmente. Mas, o que eu procuro fazer é tentar, no meio de isso tudo, descobrir o que me promove alegria, o que me traz sorrisos, o que me faz ter um friozinho no estômago, esse brilho nos olhos, ainda que seja de vez em quando. E isso eu descobri com “Os Mesquiteiros” (grupo de teatro que criou na escola, com os alunos, aos sábados). Lá, eu consegui chegar a um estágio, uma proximidade, uma cumplicidade com aqueles jovens e adolescentes que eu não encontro na sala de aula. Fazemos, criamos, estudamos, vamos juntos a outros lugares além da escola, como saraus, teatros, centros culturais. Protegemos e acolhemos uns aos outros. Brigamos e sofremos juntos. Ali foi o primeiro espaço que encontrei, dentro da escola, em que eu pude perceber que não estava sozinho, que eu podia contar com alguém para compartilhar dores, sonhos, esperanças. Encontrei pessoas dispostas a brigar comigo, e não me senti mais tão sozinho. Ainda que, todos os dias, quando estou dentro da sala de aula, eu esteja sozinho. E, muitas vezes, tenha de lidar sozinho com várias questões. Mas, quando estou com eles, trabalhando com eles, eu não me sinto sozinho. É por isso talvez que eu resista. Por eles. Por eles terem acreditado em mim e, quando eu fraquejo, me dou quase por vencido, penso que não posso decepcioná-los. Que tenho de ser grato e retribuir aquele favor, que é um gesto de amor, mesmo. É por este grupo, por estes alunos, principalmente, que eu ainda resisto. Se eu não tivesse esse apoio, esse aconchego, já teria feito as minhas malas e partido.

“Violência é ter alunos nas séries avançadas do ensino fundamental e mesmo no médio que são analfabetos funcionais. Isto é um crime”

Você fala de uma relação que é amorosa, mesmo. E é de respeito. De respeito próprio – e pelo outro. O oposto do que estávamos falando antes, sobre a imagem de violência colada na escola pública – e também na sua escola. Como a violência é sentida e decodificada pelos seus alunos?
Ciríaco – Quando os estudantes me falam sobre violência sempre me vem a imagem de alguns alunos, que estão em séries avançadas do ensino fundamental, algumas vezes até do ensino médio, e não aprenderam a ler e a escrever corretamente. Isto é um crime. Muitos já passaram – e continuam passando – pelas minhas mãos e é uma sensação desesperadora. Primeiro, porque não tive em minha formação o papel de “alfabetizador”, então sinto imensas dificuldades para trabalhar com isso. E, segundo, porque quando você se dispõe a enfrentar esse problema, precisa deixar de lado um pouco os outros trinta e poucos alunos que estão ali na sala, contando com você. Então, a existência de estudantes analfabetos – funcionais ou não – em séries avançadas do ensino, é uma das violências mais gritantes e cruéis que existe dentro da escola pública. E, infelizmente, há muitos.

Como esses alunos analfabetos, mas em séries avançadas, se sentem? Deve ser terrível…
Ciríaco – Normalmente os alunos ou “explodem” ou “implodem”. No caso de “implodirem”, muitas vezes ficam quietos, fechados, numa postura difícil de estabelecer vínculo, contato. Tentam camuflar aquela situação, sentem-se humilhados: imagine, trabalhar questões que envolvem alfabetização em quintas ou sextas-séries, ao lado de alunos que já têm autonomia, que conseguem fazer sozinhos muitas atividades. É uma situação constrangedora até mesmo para os colegas. Quando eu sento ao lado de um destes alunos, tentando ajudá-lo, sempre vem algum outro que quer perguntar alguma coisa, tirar uma dúvida, e fica ali, perplexo diante do colega, tentando entender ou questionar: “Como assim, então é verdade? Você não sabe ler e escrever mesmo!”. É um constrangimento muito grande.

E existem os que “explodem”. São aqueles alunos que acabam tendo vários problemas de indisciplina. Ou por não verem sentido nenhum naquele trabalho, naquela atividade na qual ele não se reconhece, da qual não faz parte, ou por ter que se “garantir”, brilhar, ser destaque, ter atenção de alguma maneira. Ainda que seja de uma maneira provocativa, tumultuando a sala, prejudicando a si e aos demais colegas.

Lembro da história de um destes alunos que explodiram. Está até retratada em um poema que escrevi. O aluno era extremamente indisciplinado, não ficava sentado em sua cadeira, circulava em demasia pela sala, era de certa forma agressivo com os colegas. Tinha uma dificuldade de concentração, de ficar parado para desenvolver atividades. Depois de muito conversar e ter paciência e esperar, consegui quebrar um pouco esse “espírito de rebeldia”.

Mas, no dia de uma prova, em que ele não conseguia desenvolver algumas questões mais básicas, ele chorou. Amassou a prova. Desamassou. Entregou, pediu de volta. Por fim, rasgou e saiu, derrubando os materiais, empurrando as carteiras dos colegas. Pouco tempo depois, teve um problema de indisciplina, no qual xingou a responsável pela cantina, “passou” as mãos em uma menina. Foi feito um Conselho de Escola e, devido ao histórico, o aluno foi convidado a se retirar daquela escola. E aquele Conselho em especial foi terrível, malharam feio a mãe e o menino. Eu mesmo tive de me posicionar, no sentido de relatar o que houve, em algumas das minhas aulas, o que o prejudicou ainda mais.

Para mim, foi muito angustiante porque quando coloquei em pauta o fato de ele não saber ler nem escrever, isso não foi seriamente considerado. Levado em conta como um dos motivos para tamanha revolta. E o menino foi transferido. Ou melhor, o “problema” foi empurrado para outro lugar. Porque, infelizmente, na maior parte das vezes o que se faz é isso: não se encara o problema, se joga para outro. Nem que seja para debaixo do tapete do outro.

E o pior é que ninguém responde por este crime. Quantas vezes a gente escuta em tom pejorativo sobre um adolescente: “Ele sempre foi indisciplinado, tanto que foi expulso da escola. Esse aí não tem jeito”. Mas, em algum momento, este aluno e sua mãe, cuja história você relatou, apostaram na escola, apostaram no Estado. Fizeram o melhor que puderam e foram traídos. E como a maioria dos alunos, mesmo os que conseguem acompanhar as aulas, percebe a violência?
Ciríaco – A escola possui problemas que vão de uma conduta excessivamente agressiva por parte de alguns alunos – e de alguns professores também, é importante frisar – a questões como a inserção de drogas lícitas e ilícitas. Mas, sinceramente, não vejo a questão das drogas como um grande problema. Pode se tornar um grande problema na medida em que a unidade escolar não possui uma organização e administração eficientes, num contexto em que há falta de funcionários, que abre espaço para uma sensação de permissividade excessiva que transforma a escola quase que em “terra de ninguém”. Acredito que ainda exista sim uma tolerância para muitas coisas que acontecem dentro do espaço escolar. Ou existia, até este fato que aconteceu no Realengo, no Rio.

Mas, tendo em vista a violência explosiva e muitas vezes descontrolada da sociedade em que vivemos, as escolas ainda são lugares relativamente seguros. O que é importante é que haja regras claras de funcionamento deste espaço, organização e fiscalização. Por exemplo: ter um controle de quem entra e sai da escola. Os alunos não podem ficar circulando em grupos pelos corredores, sem acompanhamento, na hora que quiserem, por quanto tempo quiserem, como muitas vezes acontece. Não podem ocupar espaços ociosos da escola sozinhos, sem o acompanhamento de um educador. Não podem eles ditar as regras de como funciona, do que se faz na escola. Se eles percebem que têm essa liberdade, que para mim é excessiva, abusos vão ocorrer. Alguns vão passar dos limites. E daí a responsabilidade é apenas deles?

“Muitas vezes o professor é criminalizado por questionar o que está errado. Esta foi talvez a maior violência que sofri na escola”

Quais foram as situações mais difíceis que você, como professor, enfrentou em sala de aula? Qual foi a maior violência que sofreu?
Ciríaco – Um dos problemas mais difíceis, como eu já disse, é a questão da existência de alunos não alfabetizados ou com uma alfabetização precária, deficiente, limitados à escrita do nome e de pequenas palavras, os chamados “analfabetos-funcionais”. Ter alunos com essas limitações em sala é quase que desesperador. Primeiro por ter dificuldades em ajudá-los. Segundo, que pela maneira como estão organizadas as salas, em média com 35 alunos ou mais, dificulta e praticamente impossibilita um trabalho individualizado. Daí, entramos em outra situação que nos traz muitos problemas: o grande número de alunos em sala. A grande dificuldade é como fazer para dar atenção, colaborar com esses alunos, quando metade deles – ou até mais – não possui autonomia para realizar muitas das atividades propostas, por uma formação deficitária. Simplesmente não dão conta de fazerem sozinhos. Eles necessitam de uma atenção particular, muitas vezes individualizada. O problema é que, quando se está com um, todos os outros ficam à deriva.

Agora, a violência maior que eu já sofri não foi em sala de aula, mas decorrente dela. Tem a ver com a falta de apoio, de amparo mesmo ao professor em suas questões pedagógicas e profissionais. O fato de muitas vezes você não ter para quem expor, falar sobre os problemas, ou quando tem e você fala, questiona, problematiza, não encontra respaldo, resposta para as questões apontadas. Ou pior: você é de certa forma criminalizado pelas questões apontadas.

Como assim, “criminalizado”?
Ciríaco – Uso o termo “criminalizado” porque quando o Educador, o Funcionário Público procura relatar, expor a situação em que se encontra, muitas vezes pode ser acusado de estar violando o Estatuto do Funcionalismo Público. E, assim, pode sofrer uma sanção, um processo administrativo. Para mim, isso é uma forma de criminalizar um direito legítimo, garantido em Constituição: a liberdade de expressão. Mas parece que, em alguns casos, o Estatuto, que é uma Lei redigida em 1968, no auge do período militar, tem mais valor do que a própria Constituição.

Então, essa indiferença para com os problemas da escola – que muitas vezes não é apenas do Estado, mas da sociedade ou ainda da repressão que te impele a não falar, não questionar – está entre as maiores violências que sofri como professor.

Você poderia dar um exemplo?
Ciríaco – Muitas vezes vivi situações insuportáveis, como certa vez em que a escola estava com várias salas deterioradas, infiltrações, paredes esburacadas, lousas emboloradas, risco de o teto cair, risco de pane no sistema elétrico. Enfim, uma ausência de direção, abandono total e, quando buscamos a Diretoria de Ensino, o que escutamos foi: “Providências foram tomadas, tem de esperar”. Quando buscamos a imprensa, o que ouvimos foi: “Mas isso é normal, muitas escolas são assim”. Quer dizer, o extraordinário torna-se ordinário, comum, e você não tem para quem falar, pois quem poderia fazer algo não te escuta, nada faz. É como dar murro em ponta de faca: uma hora cansa.

“Quando há uma situação de descontrole, respondo com meu silêncio. Fico ali parado, meio pateta, apenas observando os alunos”

Você poderia contar uma história que o transformou?
Ciríaco – São muitas. Boas e ruins. Uma delas aconteceu há quatro anos, com uma quinta-série que era muito difícil de trabalhar, tinha problemas muito grandes de indisciplina, principalmente porque havia muitos alunos não alfabetizados e outro grande número de analfabetos-funcionais. Eles não conseguiam acompanhar a maneira pela qual eu preparava minhas aulas e, por outro lado, eu não conseguia elaborar atividades que atendesse a toda aquela diversidade de alunos que havia em sala, em níveis diferentes de aprendizagem.

Outro problema era que os alunos tinham uma conduta muito agressiva entre si, muitas vezes se batiam, se socavam por pequenas discussões, quase não havia o diálogo. E num momento de descontrole, de indisciplina generalizada, quando eu já havia pedido várias vezes para alunos diferentes ficarem em silêncio, eu gritei enfaticamente com um deles para “calar a boca”. E o menino não arredou pé. Respondeu à altura. Gritou comigo também, dizendo que ele não tinha pai para gritar com ele e nem mandá-lo calar a boca e “quem eu estava pensando que era” para fazer isso.

Foi uma situação inusitada, pois em seguida a sala ficou em silêncio. Na hora eu fiquei com muita raiva, mas depois percebi que não foi legal o que eu fiz. Até porque naquele momento eu perdi esse aluno, e só consegui resgatar uma relação de diálogo com ele três anos depois. Mas o que percebi realmente é que não se combate uma “agressão” com mais agressividade. Não se pode querer apagar o fogo com gasolina.

Isso ficou marcado em mim. Hoje em dia, quando há uma situação de descontrole, indisciplina em sala, eu procuro responder com o meu silêncio. Fico ali, meio pateta, parado, em frente à sala, apenas observando os alunos. Algumas vezes demora dois, três, cinco minutos, mas eu consigo o meu silêncio. Problematizo sobre aquela situação. E além de eu não me desgastar tanto, acho que eu tenho mais respeito dos alunos por isso. É muito difícil, algumas vezes a indisciplina pode chegar a um nível agressivo, desrespeitoso com o educador. Ele se sente tentado a responder na mesma moeda, mas eu procuro evitar esse tipo de reação. A experiência me mostrou que não é o melhor caminho.

Você denunciou em seu blog que foi perseguido em sua escola no ano passado e que chegou a sofrer assédio moral. Como foi isso?
Ciríaco – Bom, tudo começou quando, em 27 de agosto de 2010, escrevi em meu blog um texto intitulado “Mente em Ebulição”, na qual fiz a exposição de algumas questões que estavam acontecendo em minha escola. Questões que não sentia espaço para dialogar, discutir dentro do ambiente escolar. Questões que julguei pertinente que as pessoas conhecessem, tivessem acesso. Então, coloquei no blog. Isso foi numa sexta-feira. Na semana seguinte, quando fui trabalhar, percebi os olhares atravessados de alguns professores, pessoas que demonstraram estar magoadas com o que eu disse. Quando entrei em uma sala, fui interpelado por uma aluna que me questionou porque eu havia chamado os alunos da escola de “nóias, vagabundos, drogados”. Respondi que nunca havia falado isso. Ela disse que era o comentário que estava rolando “boca-solta” em toda a escola. Lembrei do meu blog. Expus o que havia escrito: que estava cansado da imagem que tínhamos, pela qual éramos conhecidos até então, cansado de sermos vistos daquela maneira. Cansado de não termos uma escola reconhecidamente com qualidade. De estarmos no IDESP (Índice de Desenvolvimento da Educação do Estado de São Paulo) entre as 10 piores da Diretoria de Ensino. E de vários outros pontos. Pois bem. Tive que me justificar em várias salas. Explicar a minha versão dos fatos. Inclusive para a mãe de uma aluna que apareceu na escola, aos gritos, me questionando por que eu havia dito tudo isso. Que era uma falta de respeito com sua filha, com os alunos, com os professores daquela escola.

Depois eu fiquei sabendo que um professor da escola havia lido o texto no meu blog, imprimido e, não sei se por maldade ou por outros motivos, espalhou a notícia pelos quatro cantos da escola. Mas dizendo que eu havia xingado, falado mal dos alunos. Ou seja, além de mentir, ele estava desviando o foco dos principais assuntos abordados em meu texto.

O texto chegou até a Diretoria de Ensino. E a supervisora, responsável pela minha escola, foi até lá conversar comigo. Chamou-me na sala da direção, junto com o vice-diretor. Estava com o texto impresso. Não perguntou os motivos pelos quais eu havia escrito. Já foi direto perguntando: “Por que eu havia chamado os alunos de nóias, vagabundos e…”. Aproveitei que ela estava com o texto em mãos e afirmei, novamente, que nunca havia escrito aquilo. Mostrei para ela, textualmente o que havia dito. Que aquela afirmação que ela havia feito estava errada.

Ela não se mostrou satisfeita com a minha explicação, apesar de ter o texto em mãos. Questionou por que eu havia colocado no blog a informação de que a direção anterior da escola havia deixado um rombo de R$ 16.000, assunto discutido em reunião do Conselho da Escola na semana anterior. Perguntei se era mentira, ela confirmou que não. Então eu disse que não via nenhum problema em divulgar essa informação. O problema não era divulgar, mas sim o desvio de recursos públicos ter acontecido. Falar sobre o acontecido é muito menos grave do que o acontecido propriamente dito.

Ela me informou sobre o Estatuto do Funcionalismo Público, de 1968, período da ditadura militar, que inibe funcionários de expor, falar sobre alguns assuntos. Informei que conhecia o Estatuto, mas que não concordava com ele, que as pessoas tinham o direito de ter acesso a esta informação. Enfim, o objetivo dela não era dialogar sobre todos os problemas que eu havia levantado no texto do blog, não era tentar entender o que acontecia, mas sim questionar o porquê da minha exposição dos fatos. Em resumo, ela foi ali para colocar panos quentes na situação, afirmar que eu não poderia ter tido aquela conduta, principalmente com algumas palavras que usei no blog – e nisso eu concordo, usei palavras duras, escritas no calor da hora. Em nenhum momento houve qualquer espécie de diálogo sobre os problemas citados.

Nos dias que se seguiram, havia um mal-estar muito grande entre mim e os professores, assim como com alguns alunos. A minha reputação estava manchada. Eu havia sido o professor que tinha “xingado os alunos da escola”. Essa difamação colou, e foram poucos os que me defenderam. De todas as coisas citadas – denúncia de desvio de dinheiro, problemas no projeto pedagógico da escola, questões administrativas – nada disso foi discutido. A questão era apenas a suposta “agressão” verbal feita via blog contra os alunos.

Depois deste episódio, fui retirado da sala de aula em outros três momentos para comparecer à direção para conversar sobre o assunto. Estava se tornando uma situação constrangedora: eu lá dando aula, vinha a inspetora me informar que a diretora estava me aguardando para conversar comigo. Eu tinha de sair de sala para dar explicações. Novamente, expliquei o que estava claramente escrito. A direção expôs a sua opinião, questionando a minha conduta no blog e na escola. Falou-se novamente sobre o Estatuto do Funcionalismo Público, e até mesmo sobre o ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente), já que eu publicara no blog fotos de alunos em atividades como o Sarau (de poesias, realizado uma vez por mês e aberto à comunidade) – que em nenhum momento expõe depreciativamente as crianças e adolescentes. Mesmo assim, foi dito que eu poderia ser inclusive penalizado pelo ECA. Explicou também que havia a possibilidade de abertura de um processo administrativo, o que acabou não acontecendo. Foi sugerido também, por integrantes da Diretoria de Ensino, que eu tirasse uma licença “extra-ofício”, tendo em vista que os motivos para tal manifestação e descontentamento com a situação da escola se deviam ao fato de eu estar estressado – ou com problemas emocionais e psicológicos.

Não tirei a referida licença, continuei trabalhando, mas foram dias muito difíceis. Sentia-me isolado, rejeitado por colegas, desprezado por alguns alunos, humilhado. Como se não houvesse espaço ali para mim. Como se eu fosse o único a estar descontente com uma escola que tinha um perfeito controle e funcionamento. E que não havia razões para questionamento. Bem, o resultado do IDESP demonstrou que eu, com toda a minha indignação e descontentamento, não estava tão errado. E eles, não tão certos.

“Como professor eu me sinto um lixo ao ver minha escola entre as piores”

O IDESP de 2010, divulgado há pouco, mostrou que sua escola está entre as piores da rede pública estadual de São Paulo. O que você sente como professor? E como isso repercute entre os alunos?
Ciríaco – Como professor eu me sinto um lixo. Principalmente por estar há cinco anos na mesma unidade escolar e não ter conseguido colaborar efetivamente para a alteração desse quadro, que não é de hoje. Esse é um sentimento muito claro. O que me consola é saber que procuro fazer o melhor, coloco à prova minha capacidade intelectual, física e mental, chegando em alguns momentos ao esgotamento. E que não compartilho dessa responsabilidade sozinho. Ela se relaciona a diversos outros fatores.
Conversei com os alunos de algumas salas sobre esses números. Houve surpresa, risada, espanto e indignação. Tentei tirar uma postura positiva do episódio, dizendo que eu não os vejo entre os piores alunos da cidade. Do estado. E que tínhamos plena capacidade e condições de superar aqueles números. E isso foi acordado entre todos. Fizemos um novo contrato pedagógico entre nós no sentido de haver um esforço e atenção maior para que esse quadro seja revertido, esse número superado, o que não é algo muito difícil.

A minha revolta com a divulgação desses dados é que são apenas números, sem uma análise profunda de todo o contexto que os envolvem. Alunos e professores são responsabilizados, de uma maneira muito agressiva, cruel, como se fôssemos incompetentes, incapazes. Mas ninguém discute, por exemplo, que no mesmo ano avaliado, nessa minha escola, ficamos sem o suporte pedagógico de um Coordenador por oito meses. Que durante quase o mesmo período não tivemos reuniões de HTPC (Horário de Trabalho Pedagógico Coletivo) por conta da ausência deste Coordenador. Que a Direção não realizou – ou não pôde fazer – este trabalho, pois estava colocando em ordem as contas não pagas da escola para voltar a receber recursos do Estado. O que foi um problema, pois se cobriu um buraco destapando outro. Que os professores não tinham suporte, espaço, apoio para discutir seus problemas. E isso tudo por oito meses. Qual escola consegue um bom desempenho se não há um acompanhamento, um respaldo pedagógico ao seu grupo de professores? Mas os números não contabilizam isso. São apenas números. Ignora-se a história, o contexto escolar. O conteúdo por trás dos números não interessa.

Os pais de seus alunos se envolvem de alguma forma na educação dos filhos? Eles conseguem participar e fazer reivindicações? Como você os percebe?
Ciríaco – Infelizmente, vejo que apenas uma pequena parte se envolve na educação formal dos filhos. O que é um problema, já que os pais, a comunidade, são parceiros importantes para o bom funcionamento da escola, para sua imagem e desenvolvimento educacional. Eu acho que isso acontece por um lado pela dificuldade em entender como funciona a escola, os meios de participação. Outro problema é a questão “tempo”. Muitos possuem trabalhos que dificultam ou impossibilitam essa presença mais marcante na escola. Por outro lado, penso que precisamos ter mecanismos mais eficazes de expor não apenas a importância da participação dos pais, da família na escola, mas também estratégias para trazê-los até a escola, com informações mais claras, criando uma forma de divulgação mais eficiente que realmente os alcance.

O fato de as famílias serem pobres, com pais que muito possivelmente estudaram pouco, sendo analfabetos ou pelo menos analfabetos funcionais, colabora para esta falta de participação? Ainda existe aquela história de que diretor e professores são autoridades inquestionáveis para estas famílias, como se acreditava no passado? Pergunto isso para tentar compreender se existe uma percepção consciente ou inconsciente, como pais, de que não teriam o direito de questionar a qualidade da escola, já que sempre viveram à margem da educação… E o quanto isso pesa…
Ciríaco – Sim, existe isso. É verdade que há muitos pais esclarecidos, que quando não têm suas reivindicações atendidas tentam procurar outras instâncias, como a Diretoria de Ensino. Mas estes são minoria. A maior parte acaba aceitando a autoridade da Escola/Estado como indiscutível. E mesmo aqueles que furam esse bloqueio, esse sistema, muitas vezes agem individualmente. Isso facilita para que o Estado ignore, passe por cima dessas questões.

Por que a escola pública é tão ruim? Não só a sua, mas a educação pública no geral. E, no seu caso, estamos falando da cidade e do estado mais rico do país…
Ciríaco – A escola pública não é ruim, ela está ruim. Pensando somente no Estado de São Paulo é uma questão que merece uma atenção muito profunda, tendo em vista que temos no governo, há 17 anos, o mesmo partido político. Ou seja, houve tempo suficiente para ter sido realizada uma grande transformação na educação pública estadual. Mas o problema já parte daí: nunca houve, e isso afirmo com total convicção, uma política de Estado, uma política pública deste atual partido para a educação. O que houve, sempre, foram políticas de “mandato”, pensadas de quatro em quatro anos. Muitas vezes mal planejadas e que historicamente não contaram com a participação de profissionais da educação que convivem com a realidade do dia a dia das escolas. Esse é um dos principais problemas.

Apesar de ser o mesmo partido, a cada mandato, a cada governo, muda-se o Secretário de Educação e juntamente com ele todas as diretrizes, a linha adotada. Quer dizer, cada um procura fazer à sua maneira. Não existe um projeto a médio e longo prazo que reflita sobre a educação. Além disso, não se pode falar em educação sem falar em valorização dos profissionais envolvidos, investimento e, principalmente, planejamento, organização e fiscalização desses investimentos. Aliás, este último é tão ou mais importante do que os outros. Muitas vezes eu me questiono se não há dinheiro suficiente para a educação ou se o dinheiro não chega: vai para o ralo ou para o bolso de algumas pessoas.

“Eu aprendi que todo estudante é possível. Que talvez não seja possível mudar o mundo, mas é possível mudar a minha escola”

Apesar de todas as dificuldades, você realiza projetos literários e artísticos, dentro e fora de sua escola, que só existem por sua própria iniciativa. Conte um pouco sobre eles…
Ciríaco – Neste ano estou trabalhando com alunos das sétimas e oitavas séries (oitavo e nono ano) do ensino fundamental II. Tenho uma carga de 21 horas/aula por semana, que me paga em torno de R$ 1.400 bruto por mês. Trabalho de terça a sexta, no período da manhã. Às quartas e sextas, das 13h às 16h, desenvolvo uma oficina de literatura e fotografia, junto com uma amiga, Mônica Cardim, no SESC Santo André. Deixei a segunda-feira em aberto para dedicar-me apenas à preparação das aulas, correção de provas, trabalhos, enfim, atividades não remuneradas pelo Estado, mas necessárias ao ofício da educação. Trabalho entre seis e oito horas na segunda-feira, desenvolvendo essas atividades.

O projeto “Literatura (é) Possível” existe há cinco anos. Veio de um desejo de compartilhar a paixão pelos livros, pela literatura, com os meus alunos. A idéia é muito simples: aproximar jovens e adolescentes da literatura de uma maneira lúdica, prazerosa, divertida e crítica. A maneira que encontrei de fazer isso foi realizando saraus mensais, dentro da sala de aula, em que convidava escritores para irem até a escola desenvolverem uma atividade, um bate-papo com os alunos. Afinal de contas, a minha paixão pela literatura veio principalmente desse contato mais próximo com os poetas e escritores, principalmente os da Literatura Periférica. Em cinco anos de projeto, fiz mais de 12 encontros literários, levando até a minha unidade escolar nomes como Sérgio Vaz, Sacolinha, Alessandro Buzo, Marcelino Freire, Akins Kinte, Elizandra Souza, Allan da Rosa, Carlos Galdino, entre outros.

O projeto sempre foi desenvolvido com recursos próprios. Nos saraus muitas vezes levava meus livros. Nos Encontros Literários sempre fiz questão de dar uma colaboração mínima – quase simbólica – aos meus convidados, tirando dinheiro do meu bolso. Em 2009, para ampliar o alcance do projeto, comecei a desenvolver uma oficina de teatro, junto com a de literatura. E deu muito certo. Consegui formar um grupo, um coletivo, chamado de “Os Mesquiteiros”, que está há dois anos comigo. Trabalhamos aos sábados, na escola, das 10h às 14h30. Já realizamos a apresentação de dois espetáculos lítero-teatrais – adaptação de contos e poemas para os palcos – em 2009 e 2010.

Em 2010, por conta da dificuldade de continuar bancando o projeto sem apoio ou financiamento, o inscrevi no Programa VAI da prefeitura e fomos contemplados. Com os recursos, conseguimos remunerar o meu trabalho e o de três alunas – R$ 420 para mim, por 40 horas mensais, e R$ 200 para casa uma delas, por 20 horas mensais. Além disso, compramos equipamentos, materiais cênicos e pedagógicos, produzimos um fanzine, a oficina de literatura e teatro e saraus mensais, agora abertos à comunidade do Jardim Verônia, no Ermelino Matarazzo, realizados dentro da escola todo último sábado de cada mês. O único, dos vários saraus realizados em São Paulo, que é feito regularmente dentro de uma escola. Neste mês de maio vamos completar um ano de sarau e fomos novamente contemplados pelo Programa VAI. Com exceção de mim, todos os integrantes que organizam o Sarau são jovens e adolescentes da escola e da comunidade. Eu sou praticamente o único adulto entre a rapa toda.

O que você aprendeu sendo professor de escola pública?
Ciríaco – Eu aprendi que todos aqueles estudantes que ali estão são capazes. São possíveis. Eu aprendi que talvez eu não consiga mudar o mundo. Mas que é possível mudar a minha escola. E que em primeiro lugar, eu preciso sempre mudar a mim mesmo. Procurar melhorar. Eu aprendi também que apenas a escola não é capaz de promover a transformação da sociedade, principalmente se não houver ações políticas que encarem de frente problemas como a desigualdade social, a má distribuição de renda de nosso país. Considerar que apenas a educação é a salvação de todos os problemas é simplificar uma questão que é muito mais complexa. E colocar uma pressão, uma responsabilidade sobre a escola pública que ela não pode atender, não pode cumprir.

Eu aprendi que são poucas as pessoas que realmente valorizam o papel do professor. Há uma admiração romântica sobre o “professor de escola pública”: “Nossa, parabéns, sei que é muito difícil o trabalho. Parabéns, você é guerreiro”. Mas há um trabalho muito pouco eficaz, tanto por parte da sociedade quanto por parte do governo que demonstre, na prática, o reconhecimento e o valor que este professor tem.

Por que você continua sendo professor?
Ciríaco – Porque eu gosto do que faço. Eu faço por mim, principalmente. Porque eu gosto de estar com essa molecada. Compartilhar seus sonhos, angústias, medos. Dividir os meus também. Acreditar neles. Porque quando eu acredito neles, eles acreditam em mim também. E simplesmente porque deixar de ser professor significaria abandoná-los. E, para mim, é muito difícil pensar nisso. Porque eu sei o que é esse abandono. Eu sei o que é você gritar e não ter quem o escute, ou pior: ter pessoas ouvindo e ignorando o que você diz. Eu conheço a dor da indiferença, do esquecimento. E eu sei que é algo muito doloroso, difícil de conviver, de superar.

Qual é a sua experiência com o abandono, com a falta de escuta e o desamparo? Esta que o leva a não abandonar seus alunos.
Ciríaco – Já passei muitas dificuldades por conta da escola. Muitas vezes, quando tinha alguns problemas relacionados principalmente à dificuldade de aprendizagem dos alunos, não conseguia ir para casa e simplesmente desligar. Apertar o botãozinho do “off” e esquecer. Eu lido com pessoas, eu lido diariamente com vidas, não funciona assim. Então, ficava digerindo aquele assunto no meu estômago e na minha cabeça por horas e horas, apesar de estar esgotado. Chegava a ficar pregado, de madrugada, com os olhos abertos, sem conseguir dormir. Até duas, três da manhã, tendo de acordar logo em seguida e voltar à escola.

Já tive vários problemas físicos por questões emocionais relacionadas à escola, aqueles que são chamados de psicossomáticos: dores de estômago, dores nos ombros, dores na nuca e de cabeça. Em muitas situações, tive abalos emocionais diante de situações em que eu não conseguia visualizar soluções, não via nenhuma luz no túnel. O que acontecia eram crises de angústia, de desespero, principalmente em tardes de domingo, quando pensava que na segunda-feira tinha de trabalhar. E eu queria ir trabalhar, eu precisava ir trabalhar, mas simplesmente não conseguia, por não saber o que fazer. Como agir. Por não ter para onde e para quem correr.

Nestes momentos, eu ficava trancado, dentro do quarto, angustiado. Não conseguia simplesmente me levantar e ir. Já aconteceu várias vezes de eu fazer um esforço, às vezes sobre-humano e sair de casa, ir em direção à escola e, quando estava quase chegando à porta, passar batido. Ir embora. Não entrar. Outras vezes coloquei em dúvida a minha capacidade intelectual, profissional e pedagógica. Faltei, não fui à escola por considerar que não era um bom profissional, que talvez fosse melhor outro assumir minhas aulas, ele faria melhor do que eu.

E ainda em outros momentos a indignação, a revolta era tamanha que eu simplesmente não ia por pensar em abandoná-la. Por entrar em crise sobre se era aquilo mesmo que eu queria continuar a fazer. Tive uma destas crises recentemente. No dia 29 de março, o Estado divulgou os “premiados” com o Bônus. E eu fui um dos milhares de professores que não recebeu nada, nenhum incentivo. Nem mesmo um obrigado. Pelo contrário. Fui, de certa maneira, “punido” pelo fato de que a minha escola estava em uma situação tão gritante na Avaliação.

Acontece que a política de “Bônus” é uma falácia, ela quer premiar os “avanços” conseguidos na educação, mas não valoriza individualmente o trabalho, o empenho do professor. Ela estimula um sentimento quase de competição entre a rede, estilo “vamos ver quem é melhor”, e tira do foco as questões urgentes e gritantes envolvidas no tema Educação. Sem contar que há muitos casos de fraudes nas provas, manipulação, divulgados na mídia. E foi muito revoltante ver profissionais que trabalham na mesma escola que eu, que dão aulas para turmas semelhantes, ganhar valores que vão a duas, quase três vezes o seu salário. E eu nada. Tendo o mesmo empenho – ou ainda maior – que o de muitos colegas. É como você trabalhar numa empresa, realizar a mesma função que todos, mas, no final do ano, a chefia “parabeniza” apenas alguns pelos resultados. Não questiono o mérito desses profissionais que ganharam o Bônus. Mas me sinto no mesmo direito de ter uma remuneração justa e digna pelo trabalho que faço.

Diante disso, não consegui trabalhar no dia seguinte, 30 de março, nem em 1º de abril. Simplesmente fiquei em casa, estudando, organizando projetos pessoais, indignado e humilhado. Refletindo sobre como deveria me posicionar diante disso. Faltei, prejudiquei meus alunos e terei estes dias descontados na folha de pagamento. Mas ok, eu precisava fazer isso, este “ato de protesto”. Ainda que quase mudo, pateta e ridículo.

Hoje em dia faço acompanhamento terapêutico, para tentar lidar um pouco melhor com essas questões. É complicado, primeiro porque é caro: o valor da hora terapêutica é mais de dez vezes o valor que ganho por hora-aula. E segundo, porque não há terapia que resolva a sua cabeça se você quer transformar a situação escolar em que você vive, mas não encontra caminhos, soluções viáveis para isso.

Uma coisa que me ajudou muito a lidar com essas questões no início da carreira foi a produção do meu livro, Te pego lá fora (Edições Toró). É um livro muito duro, expõe a escola através de uma visão crua, nua. Não há muito espaço para romantismo no livro, na visão sobre a escola. Mas ele é resultado de um processo violento que vivo lá dentro. A idéia do livro era um pouco a de chocar as pessoas. Até porque eu sou colocado diariamente em choque com essa violência: de não ver as coisas caminharem, de não ver os caminhos brilharem. De não encontrar alternativas. Faz tempo que a escola deixou de ser o lugar dos sonhos, da esperança, do futuro. Hoje ela é o lugar muitas vezes do abandono. Um verdadeiro depósito de gente. Uma terra de ninguém.

“Como a menina-placa, muitos adolescentes das periferias abandonam a escola por não verem perspectiva atrativa no futuro”

Lembro de um texto que você publicou no seu livro sobre uma “menina-placa”. Me impressionou muito. Você poderia contar esta história? O que ela diz sobre o nosso tema?
Ciríaco – A história da menina-placa foi inspirada em uma aluna que deixou a escola para trabalhar – como placa. Ela tinha por volta de 13 anos, estava na sexta-série, tinha muitas dificuldades de aprendizagem, era indisciplinada, mas eu conseguia dialogar, estabelecer uma boa relação com ela. Até que um dia ela sumiu da escola. Ninguém mais sabia dela.

Cerca de um mês depois, quando eu estava na escola, a vi andando pelas redondezas durante o período da noite. Parei, fui até ela para conversar. A menina disse que havia conseguido o emprego, estava trabalhando como “placa” – estas garotas que divulgam condomínios de luxo segurando placas por horas e horas na rua – e que não dava mais para estudar. Tentei problematizar a questão, falar sobre os problemas de abandonar a escola, mas ela disse que a escolha já estava feita. Era aquilo.

Acho que esta história tem a ver com o nosso tema para refletirmos que a escola, apesar de ser extremamente importante para as transformações, as mudanças que a nossa sociedade precisa, não será a única a fazer isso se agir sozinha. É preciso atacar o problema em várias frentes, principalmente no que se refere à questão da distribuição da renda, de garantir possibilidades mínimas e dignas para as pessoas viverem, poderem estudar e por aí vai. Porque ainda é muito recorrente, nas periferias, meninos e meninas adolescentes que abandonam a escola ou fazem apenas uma parte dela porque têm de trabalhar para ajudar em casa, cuidar dos irmãos. E a situação é ainda pior quando muitos alunos deixam a escola para entrar na vida do crime, são cooptados pelo tráfico de drogas. E isso acontece por não verem nenhuma perspectiva atrativa distante, no futuro, e por verem a possibilidade de ganho real imediato.

Infelizmente, depois de cinco anos em que estou na escola, conheço muitos casos de alunos que abandonaram os estudos e foram para o mundão: estão aí, nas ruas, nas esquinas, portas das escolas e biqueiras, fazendo o comércio ilegal, ganhando mais do que seus pais e responsáveis, mas colocando em risco algo muito precioso: o seu futuro. A história da menina-placa foi uma das histórias deste tipo. Há muitas outras. Em sua maioria sem finais felizes.

(Publicado na Revista Época em 11/04/2011)

Érica, que desaconteceu

O mundo se divide entre o que acontece e todos veem – e o que quase ninguém vê

Desaconteceu numa segunda-feira em que muito aconteceu.

Érica, uma pequena campesina de seis anos, não sabia. De nada.

O ditador da Líbia, elogiado até há pouco por tantos democratas, seguia matando seu próprio povo. O Japão confrontava-se com seus pesadelos mais sombrios. O cãozinho Pinpoo retornara para sua dona e transformara-se em popstar. A visita de Mister Obama ao Brasil deixara um rastro de bege.

Nesta mesma segunda-feira, 21/3, Érica também tinha um drama. O povoado boliviano onde ela vive, a 2.250 metros de altitude, é mais perto de nós do que o Japão ou a Líbia, mas muito, muito mais longe, porque há um tipo de distância que não é medida em quilômetros.

Enquanto o mundo vivia aos espasmos, Érica saltava na chuva que ameaçava deixar seu pueblo de casas de adobe exilado pelo rio que subia. Ela vestia uma camiseta de mangas curtas e uma calça de malha fina que mal lhe alcançava as canelas. Fazia um frio molhado e meus dois casacos se encolheram diante de Érica quase desnuda. Ela nos interceptou com um abraço forte, dado em mim e em Vânia Alves, assessora de imprensa da organização Médicos Sem Fronteiras. E nos levou até a sua casa tão nua quanto ela.

Ali dentro encontramos sua família acuada pela chuva. Dias antes eu testemunhara pai e filho, doentes, ararem a terra com um par de bois para plantar cebola num pedaço de chão tão pequeno que os olhos jamais perderiam de vista. Mas a água carregou o trabalho de dias, talvez semanas. E a água é como o tempo, o que carrega, carrega. Era preciso esperar a chuva passar e recomeçar. E se diluviasse quando a cebola estivesse lá, estaria tudo perdido, desfecho de mais de uma vez. E então haveria de se esperar e temer por mais um ano.

No interior escuro da casa era possível tocar o desespero contido transmitido de pai para filho. Mas também o amor pungente que unia aquela família, as duas meninas mais velhas acariciando a mãe doente numa cama, ajudando-a a vestir um casaco de lã fina para que sentisse menos frio do que elas, ajeitando as longas tranças negras raiadas de cinza e cercando-a para protegê-la de um mundo sempre tão hostil.

Mas havia mais ali. A língua deles é o quechua, um idioma e uma forma de ver o mundo que persiste deste o tempo dos incas, apesar da brutalidade da dominação espanhola e de um preconceito tão incrustado que nem mesmo Evo Morales conseguiu arrancá-lo. Nós precisávamos compreender ao entrar naquela casa com o respeito devido que aquela família agarrada a quase nada era amalgamada pela resistência. E me arrisco a dizer que ali a resistência se dá hoje mais pelo amor dolorido que sentem uns pelos outros e que os impele a se manter vivos. Sem este olhar amoroso que reconhecem nos olhos uns dos outros, haveria apenas invisibilidade, a morte antes da morte.

Perguntei ao avô de Érica, porque pai Érica não tem, o que havia para comer. Batatas. Só batatas. Há dias eu os via comer batatas cozidas na água. E nada mais. E reconhecia nos olhos febris de cada um aquela fome que não termina, que é a de todos os dias e dia após dia. Aquela fome que é assim. Você respira e sente fome. Você acorda e sente fome. Você dorme e sonha com fome. Você come a batata que lhe cabe e continua sentindo fome. Você não morre, porque as batatas não deixam. Você vive menos, bem menos, do que aqueles que têm além de batatas, mas vive. Com fome.

Este, porém, não era o drama envergonhado de Érica. Naquele dia ela estava mais séria do que nos anteriores porque sentia a gravidade que mantinha a família com os pés na terra. E sentia também a terra que teimava em escapar de debaixo dos pés. Érica tinha naquela segunda-feira algo de seu que precisava dizer.

A pequena nos rodeou, se torceu, acabou por esconder-se atrás da tia de 11 anos, talvez a mulher mais forte daquela casa. O que Érica poderia querer se precisava de tudo? Será que Érica desejava o que as crianças costumam desejar? Uma bala? Um chocolate? Uma boneca? Será que Érica queria comida? Ou dinheiro para ajudar sua família? Dólares para tapar a janela sem vidro por onde entravam seus medos mais reais.

Adivinhamos que ela nos pediria dinheiro porque viemos de uma cultura onde crianças desvalidas nos estendem a mão nos sinais de trânsito. Mas Érica só conseguia espichar sua voz balbuciante, que em seguida recolhia arrependida. Foram minutos, mas poderiam ter sido horas. Érica sofria com o que precisava fazer, mas não podia. E não pôde. Não foi ensinada a pedir, perdeu a coragem.

Nos preparávamos para partir quando Érica cochichou ao ouvido da tia que pedisse por ela. E então o drama clareou e nos jogou em outra espécie de escuridão.

Vermífugo. Érica queria vermífugo.

Enquanto Khadafi matava, o Japão tremia entre a realidade e a memória, Pinpoo voltava-se agora para os holofotes e Obama pronunciava outra meia dúzia de nadas na América Latina, Érica sofria de vermes. Talvez, como acredita Vânia, que é uma boa apalpadora de almas de criança, Érica desejasse aquele docinho do remédio para encantar sua fome.

Dois dias depois de deixarmos Érica e o seu drama envergonhado, Elizabeth Taylor, aquela que jamais morreria, morreu. Foi uma semana em que as tragédias sacudiram a rotina do mundo. Mas Érica só conhecia a dela, que não se alterava. E a dela era desconhecida de todos.

Alcancei o povoado de Érica com uma equipe dos Médicos Sem Fronteiras para contar uma outra história que vai virar um livro internacional. E fui capturada pelo pedido de Érica. Enquanto no mundo tudo acontecia, ali se desenrolava um tudo que é decodificado como nada. Bem ao nosso lado, a Bolívia é um país muito, mas muito difícil de entender. Diante de sua realidade complexa, aqui mesmo no Brasil, sobra gente intelectualizada e bem alimentada disposta a soltar risinhos a bordo de suas certezas de gabinete. Porque “ah, a Bolívia é tão atrasada”. E parecem acreditar que isso é um tipo de análise.

Em meio a tantos acontecimentos, Érica é só mais um desacontecimento. E é também assim que o mundo se divide. Entre o que acontece e todos veem, assistem, comentam, tremem e choram. E entre o que ninguém vê. O equívoco é acreditar que porque ninguém vê não existe.

Desacontecida, Érica existe. Desacontecida, Érica resiste junto com sua língua. Se este é um mundo tão pródigo em imagens, e estas são tantas vezes confundidas com verdade, Érica agora tem a sua. Documentada. Uma foto feita por Vânia Alves, de MSF. Esta é Érica, que neste exato momento, desacontece.

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(Publicado na Revista Época em 28/03/2011)

Confissões de um pai temporão

Homem fica grávido de outro jeito – e também não é fácil

Deve ser culpa da faixa etária. Minha impressão é a de que estou cercada de barrigas por todos os lados. Depois de lidar com amigas grávidas das modalidades mais diversas – das militantes do parto natural às obstinadas pela cesárea, passei a ter uma solidária curiosidade pelos homens grávidos. Como deve ser tornar-se pai quando a sociedade e também as leis trabalhistas conspiram para fazer de você um coadjuvante? Aquele bebê só está lá naquela barriga por causa daquele pobre homem – e ninguém nem lembra. Reduzem-no a uma espécie de espermatozoide faz-tudo. Esperam dele que resolva todas as coisas práticas, da troca da lâmpada à pintura do quarto do bebê, porque elas, afinal, estão gerando. E por isso estão (mais) sensíveis e choronas e nessa fase todas as ofensas devem ser perdoadas como se fosse uma TPM de nove meses. E do pai da criança esperam ainda atenção, afeto, ouvidos, massagens nos pés e eventualmente trufas brancas do Piemonte na madrugada.

No meio dessa confusão, ele, no seu silêncio, precisa tornar-se pai sem poder confessar a ninguém que não tem a menor ideia de como fazer isso. Todos os cursos – pelo menos a maioria deles – são focados na mãe (eventualmente lhe explicam como ajudar na hora do parto ou pelo menos como não estorvar). Mesmo assim, este homem grávido comprou uma pilha de livros e tentará fazer o melhor possível. Mas, se parecer muito participativo, a mulher, a sogra e também as amigas vão reclamar que o fulano está achando que ele é quem está grávido. “Homens! Sempre tão fracos!” Se, ao contrário, ele tentar se manter invisível, pode ser acusado de omissão histórica. “Não adianta, filho é da mãe”. E assim caminha a humanidade, mesmo em tempos moderninhos.

Comecei a prestar atenção nestes espécimes esquecidos num canto do fascinante mundo da reprodução. E fiquei com vontade de conversar com um deles. Entre os homens grávidos que observo de perto neste momento, cinco se preparam para ter filhos entre os 45 e os 60 anos: dois jornalistas, dois cientistas (um biólogo e um físico) e um professor universitário. Convenci um deles a nos contar sobre dores e medos – e também sobre expectativas, alegrias e desejos. Ele demonstrou estar lidando bastante bem com as adversidades sociais – e também com as mudanças hormonais da parceira. Se a idade pode ser uma preocupação – e é, como veremos –, parece ajudá-lo bastante na hora de lidar com uma vida que chegará para mudar a sua para sempre.
Esta foi a nossa conversa.

– Você passou a maior parte da vida dizendo que não queria ser pai. Por que mudou de ideia? Ou, se não mudou, por que sentia necessidade de dizer isso?

– O que eu dizia é que ter filhos não estava na agenda e não era uma prioridade ou necessidade na minha vida. Acho que dava esta ênfase por duas razões. A primeira delas é que, como as mulheres “sempre” querem ter filhos, era melhor já ir preparando-as desde o início que comigo a coisa seria mais complicada. A outra é que somos educados para ter família e filhos. Nos libertarmos deste “trilho” exige, às vezes, exagerarmos no oposto. O fato é que eu mesmo não sabia se queria ou não ter filhos. A ideia de nunca ter filhos sempre me deixou muito inquieto. Mas não imaginava tê-los se não fosse com alguém com quem acreditasse que um filho pudesse ser um projeto comum. E esta talvez fosse a parte mais difícil.

Mais difícil do que imaginar ter filhos era – e sempre é – imaginar uma relação duradoura, estável, que “levasse” ao desejo de ter filhos. Outro aspecto é o tempo da coisa. Acho que estou tendo filhos na época certa. Corrijo: poderia ter tido com cinco ou dez anos menos, mas não antes. A razão é simples: o que eu queria fazer na vida – construir o meu espaço na minha área profissional, viver em diferentes países, viajar e me aventurar pelo mundo – não dava para fazer “em família”. E isso para mim era muito claro.

Por outro lado, acho que sempre me preparei para ter filhos. Sempre quis viver em torno de livros e, nos últimos dez anos, quando tive um pouco mais de dinheiro, comprei bastante. Muitos deles comprei sabendo que não leria. Eles comporiam uma espécie de biblioteca que eu gostaria de ter para quando tivesse de ajudar alguém – meu filho – a crescer. Poderia acontecer, ou não.

– Seu filho ainda não tem nome. Por que é tão difícil nomear um filho? O que é um nome, afinal?

– Pois é, eu nunca tinha pensado no assunto. Posso levantar várias razões. Uma, por exemplo, é o meu próprio nome. Um dos mais inúteis que conheço. Tenho um daqueles nomes que não é nome. Vira imediatamente apelido. Eu também nunca gostei de ser chamado pelo sobrenome. O cara do sobrenome é o meu pai, não eu. Os brasileiros têm o péssimo hábito de utilizar o sobrenome como forma de deferência. Eu sempre queria ser chamado pelo nome. Triste sina… Só consegui isso nos anos em que vivi no Exterior. Como meu nome era muito diferente nos países onde vivi, as pessoas acabavam me chamando por ele. Ao voltar para o Brasil, segui sendo chamado ou pelo apelido ou pelo sobrenome. Por isso, a escolha do nome é bem importante e difícil para mim.

Conversando com minha mulher – que me cobra o nome! – sobre o assunto, demonstrei a inutilidade do meu nome: perguntei quantas pessoas ela conhecia que eram chamadas por ele, apesar de ser o nome de muita gente. Resposta: nenhuma. No entanto, é um dos nomes mais comuns do Brasil. É tão comum que as pessoas preferem utilizar o segundo nome ou o sobrenome ou o apelido. A outra é que os meus apelidos, até os 18 anos, foram sempre pejorativos, relacionados a supostos defeitos físicos. Tenho procurado um nome que seja fácil e gostoso de usar, para diminuir a chance do apelido. Talvez se fosse menina seria mais fácil.

A outra razão da dificuldade de escolher um nome é a de que procuro um que eu identifique com meu filho. E como para mim – nós – a criança é realmente um projeto comum, gostaria que eu e minha mulher encontrássemos um nome que ambos identificássemos com o menino. Hoje, com a supertecnologia do ultrassom 3D já conhecemos até a carinha… Mas isso, a identificação, é provavelmente impossível.

Primeiro, identificação é algo muito pessoal, quase impossível de acontecer simultaneamente com o mesmo nome para os dois – e certamente não pelas mesmas razões. Além disso, eu e minha mulher somos muito diferentes. Recentemente, ela leu algo em um dos vários livros que estamos lendo. Que é melhor dar logo o nome porque ele sempre será estranho – e a identificação virá com o tempo e o uso. Acho que é por aí mesmo… Mas confesso que não entendo a urgência de dar o nome.

Como mulher, sempre me pareceu apavorante ser homem, no sentido sexual e reprodutivo. No sexual, porque nunca se pode fingir. No reprodutivo, porque eu acharia difícil acreditar que a mulher com quem eu estivesse tendo um caso ou mesmo uma relação estável estivesse fazendo tudo certo para não engravidar. Ela poderia “esquecer” de tomar a pílula, por exemplo, até inconscientemente. Esta possibilidade de botar outro ser no mundo por uma vontade alheia à minha sempre me pareceu assustadora. Enfim, a falta de controle dos homens sobre a reprodução. Como é isso para você?

– Ah, essa é fácil. Na questão sexual, eu considero o orgasmo superestimado. Para mim, o melhor método anticoncepcional sempre foi a criatividade. Acho que pude compartilhar isso com as mulheres que conheci. Costumava dizer que, se na primeira vez que alguém transa com uma mulher o sexo durou menos de cinco horas, então foi uma porcaria. Como é possível ter uma relação sexual com uma pessoa que não conhece na intimidade em menos de cinco horas? Não há a menor chance de conhecê-la! Sexo nada mais é do que parte do diálogo a dois. Então, essa questão de fingir ou não nunca me preocupou. E sempre procurei deixar isso claro para a parceira. O importante era nos divertirmos e nos conhecermos. E, muito importante, nunca terminar no orgasmo! Talvez por isso eu tivesse mais sucesso com as mulheres no depois do que no antes… (risos). Mas, muito mais interessante, é ficar brincando com o prazer.

Bom, quanto à questão da reprodução, não tive esse problema. Sempre li muito e sabia que reduzia as probabilidades de uma gravidez indesejada enormemente se usasse dois métodos anticoncepcionais ao mesmo tempo. E, em geral, sempre foi o que fiz, ambos sob o meu controle. Mas, para isso, a criatividade tem de estar mesmo funcionando. Então, o medo da gravidez nunca me preocupou. Nunca abandonei a premissa de ter o controle. Como disse, algumas vezes a parceira reclamava um pouco – “se entrega, etc…”. Mas sempre achei que tudo se resolve com criatividade.

De novo, como mulher, sempre me pareceu muito difícil ser homem e “estar grávido”, exatamente por estas aspas. Você é pai, aquele feto só está naquele útero por causa de você também, mas é como se a sua participação fosse menor. E, de novo, você fica nas mãos de outra pessoa, que, quando você tem sorte, é a mulher que você ama. Mas, ainda assim, você está à mercê de uma outra pessoa que pode ou não cuidar bem do filho que também é seu, mas que está dentro de um outro. E de alguém que às vezes fica meio pirada na gravidez. Como é isso para você?

– Não tenho nenhum dilema com isso. Em parte porque sempre procurei me dissociar da ideia de “o filho pertencer aos pais”. E também porque a adoção sempre esteve na agenda, caso a decisão de ter filhos fosse tomada. A gravidez, claro, é parte do processo, caso esta for a via de ter filhos. E eu procuro participar ativamente. Mas não tenho nenhum problema quanto à minha participação e tal, talvez porque procure pensar na criança como um ser próprio e dissociar essa “ligação genética”. Nunca gostei da ideia de “me parecer com fulano” ou coisa assim. Como no nosso caso o projeto é realmente comum, a participação e cuidados com a gestação têm sido de ambos e acho que está funcionando. Claro, às vezes a gente tem vontade de dar uns cascudos pela teimosia, especialmente com relação à alimentação, mas em geral tem corrido bem. E não, não sinto falta de estar grávido de fato.

– E então tudo que é também você e veio de você se desenvolve num mundo que é dentro dela. E você pode no máximo falar com a barriga, mas você não sente seu filho se movendo dentro de você, se alimentando de você. Pode ser um alívio, mas me parece que para muitos homens não é. Você inveja essa relação que, neste momento específico, só pode acompanhar como coadjuvante?

– Novamente, não. Tenho procurado falar com o bebê, participar e tal. Hoje sabemos que o bebê acostuma-se com a voz. Ele terá necessariamente uma ligação mais forte com a mãe, a quem conhece e cuja voz ouve o tempo todo. Mas procuro fazer com que ele conheça também a minha. Claro, ele não tem memória nem rede neural propriamente formada para saber o que está acontecendo, mas tem o suficiente para estabelecer a identificação depois do parto. E isso é importante para ele, para se sentir seguro depois de nascer. Procuramos fazer isso juntos. E, claro, a mãe sempre será mais próxima nesse estágio. Mas isso para mim é tranquilo.

– Você gostaria de parir?

– Não. Mas, se fosse possível, acho que me ofereceria neste caso. Explico: faremos de tudo para termos um parto natural, o que hoje é uma verdadeira façanha no Brasil, embora seja corriqueiro na Europa, onde vivi boa parte da minha vida adulta. Acredito que eu seja mais resistente à dor do que ela – ou pelo menos acho que sou, já que sofri muitos acidentes e cirurgias e longas recuperações. Minha mulher não. Por isso, acho que teria condições de passar pelo processo com mais segurança. Então, se fosse possível, eu faria essa parte. Mas só por isso. Mas vamos entender bem: não abro mão de estar participando tão ativamente quanto possível do parto. O parto é nosso – mas sem ilusões quanto à extensão do meu papel.

– E depois, aquele bebê nasce, mas ainda é a mulher que o alimenta. Ainda é “dela”. Você é um coadjuvante – e às vezes mal falado – que não é reconhecido nem pelas leis trabalhistas, que dão apenas cinco dias para o pai e quatro ou seis meses para a mãe. Como é ser tratado pela natureza e pela sociedade como coadjuvante naquilo que talvez seja a realização mais importante da sua vida?

– Ah, isso sim. É necessária uma lei de licença paternidade decente. Sou fascinado pela Suécia. Ou pela minha imagem da Suécia. Nem sei se é isso mesmo, mas ouvi falar que lá a licença é de um ano, podendo ser dividida entre o casal, como quiserem. Mas meu tipo de trabalho e a minha situação profissional me permitem dedicar um tempo decente à paternidade. E tenho a firme intenção de realizá-la. Espero participar tanto quanto possível. Não posso amamentar, mas certamente o resto todo eu posso. Agora, a lei brasileira é ridícula, como muitas leis neste país são. Como tive um cargo de direção, vivi a experiência de discutir com sindicatos. Nunca vi eles solicitarem licença paternidade – já a extensão da licença maternidade, sim. Sempre pediam creche e tal – e também esqueciam de dizer que devia valer para aos pais também. No meu caso, era a direção que insistia para incluir os pais. Então, não é um problema da lei brasileira, mas da sociedade brasileira. Do machismo que permeia fortemente ainda a nossa sociedade, mesmo entre os que se acham “esclarecidos” ou “na vanguarda”…

Novamente, meu status profissional me permite contornar parcialmente isso. Sempre quis que fosse assim. Por isso, ter filhos era algo a ser muito pensado e cuidadosamente esperado. Não podia ser feito na época em que meu trabalho era mais intenso. Ou na época em que tive de viver uma outra vida. Cada coisa no seu tempo. Estar agora com minha parte profissional bem resolvida é muito importante. Claro que poderia ter acontecido também em outra época. Seria mais caótico, mas a vida é o que ela é e o que a gente vive, não o que a gente planeja – ainda bem! Então, de uma forma ou de outra, acho que seria assim mesmo, com grande participação. Ou, com certeza, exceto onde a natureza impede, com igual participação. E sempre procurando compensar os limites impostos ao homem pela natureza.

Veja, eu sou excessivamente preocupado com a inteligência, com a consciência, com o cérebro. Hoje sabemos que o código genético não é capaz de determinar a rede neural. Isso significa que, mesmo que dois gênios tenham um filho, o que não é o nosso caso, ele não será um gênio por causa disso. Essa parte é amplamente influenciada e determinada pelos estímulos externos, em todas e em cada fase da vida. Minha maior preocupação é justamente estar amplamente presente em todas essas fases. E isso eu acho que posso. E será algo a dois, três… muitos participantes.

– É muito difícil aguentar uma mulher grávida? Quais são as suas estratégias?

– Acho que cada caso é um caso. Não tivemos muitos problemas. O maior, acho, foi a dificuldade de a minha mulher aceitar a redução de sua capacidade de trabalho e aceitar que não poderia fazer todas as coisas como antes. Não havia nenhum problema em ampliar minha participação nas tarefas caseiras, que normalmente já são meio a meio, para deixá-la mais concentrada em “carregar o bebê”. Mas, fora isso, não foi complicado. Ah, sim, há sempre uma preocupação de querer saber se o bebê está bem… ambos temos essa preocupação. E, com as nossas idades, isso pesou. Mas, estratégia mesmo, acho que nenhuma. Não lido como se fosse uma situação ímpar. Assumo as outras tarefas com mais empenho, para compensar o fato do que não posso fazer: estar grávido. Mas não acho que tenho de tratar como se fosse uma situação excepcional, no sentido das carências. Tenho ou procuro dar atenção a isso, mas sem exageros.

– Como é o sexo na gravidez? Dizem que as grávidas ficam mais interessadas, é verdade ou é lenda urbana?

– Bem, só acredito em estatísticas… e não acredito que poderei ter uma amostragem pessoal suficiente nessa área (risos). No nosso caso, não fez muita diferença. Exceto, é claro, a limitação física e os cuidados para não machucar o bebê. Confesso que tenho uma grande preocupação em não machucá-lo, embora toda leitura garanta que não há motivos para essa preocupação. Acho que estou lendo demais sobre bebês…

– O que você pensa quando olha para a sua mulher, toda enroladinha no sofá, conversando com seu filho dentro da barriga como se você não existisse?

– Normal. Mesmo porque muitas vezes nós dois conversamos com o bebê. Como já disse, acostumá-lo com a minha voz também é algo que julgamos importante. Então, eu falo também com o bebê, sempre que posso. Bem, às vezes ela se esquece do resto do mundo – por exemplo, no meio do almoço em um restaurante… Aí fica meio exótico… Mas, nos dias de hoje, com celular com fone de ouvido, ver alguém andando e falando sozinho na rua, no shopping, virou uma cena corriqueira… Então…

– Como você acha que sua mulher enxerga você? E por que ela escolheu você para ser pai do filho que desejava ter?

– No nosso caso, ela não tinha muita escolha por causa da idade. Ou era eu ou não era. (risos) Acho que ela gosta porque sou um homem participativo. Talvez até demais, não sei ao certo. A escolha dela – e não só dela, porque essa questão permeou todas ou quase todas as minhas outras relações – de me ter como pai do seu filho vem da estabilidade emocional, financeira, intelectual, etc. Acho que as mulheres – a atual e as ex – veem em mim uma certa segurança para a maternidade que consideram importante. E também percebem a minha tranquilidade. Não falo alto nem perco a calma facilmente. Isso deve contar. É o que imagino – e tenho ouvido.

Mas acho realmente que a escolha foi muito mais dela querer ser mãe. Sinceramente, acho que, nesta hora, o pai não é tão importante para a mãe. É, claro que é, mas vem depois da escolha de ser mãe. Muito diferente de mim, que primeiro achava que tinha de ter a parceira e encontrar uma identidade suficiente para só então considerar a possibilidade de ser pai. Acho que aí está a principal diferença entre quem realiza a gestação e quem assiste a gestação – assistir no sentido de dar assistência.

– Saber que vai ser pai mudou o que na sua vida? Você sente que é outro?

– Totalmente. Foi uma escolha de curso de vida. No estágio em que eu estava, concluindo uma etapa da minha vida profissional, existiam várias opções. Fazer um sabático em outro país, buscar novos caminhos, etc. A escolha foi ser pai. E isso determinou muitas coisas. Não elimina outras atividades, é claro. Mas determina a prioridade. E, considerando meu tipo de trabalho, que requer muito de mim, isso impõe restrições a outras atividades. Pelo menos vejo assim e acho que no início estou pronto para que seja assim. Ou seja, investir em um grande projeto profissional ou algo equivalente só depois de a paternidade se consolidar, isto é, só depois de saber quanto tempo terei para me dedicar à pesquisa. Veja bem, não estou abdicando. Apenas estabelecendo a prioridade. Um privilégio da idade, claro.

– Você tem medo de ser pai? Imagino que qualquer homem saudável tenha…

– Não gosto da palavra “medo”, mas vamos utilizá-la. Sim, sempre se tem. Cada filho é um “experimento” único. Não dá pra refazer. Mas tenho bastante confiança no que posso oferecer. Então, confesso que não tenho tanto medo assim.

– O que mais dá medo ao pensar em botar um filho no mundo?

– Minha maior preocupação sem dúvida é se serei capaz de oferecer a ele os instrumentos necessários para que possa ter a sua vida, vivê-la em sua plenitude. Explico. Estamos num mundo globalizado. E minha profissão é totalmente internacional. O que me leva a ver as coisas de forma mundial. Nós estamos em um país com sérias deficiências sociais em todas as áreas. Por exemplo, a escola pública, aquela que permite realmente uma formação ampla, em termos intelectuais, sociais e psicológicos… é um desastre no Brasil. A escola privada não melhora tanto assim a parte intelectual quando pensamos em termos internacionais e falha completamente no social. Espero poder compensar isso, mas não tenho ilusões. Sei as enormes diferenças entre o que posso oferecer aqui e o que poderia em um país desenvolvido. E essa diferença é uma das coisas que mais me preocupa.

A outra, sem dúvida, é saber até onde vão os limites da educação sem desrespeitar a individualidade dele. Ele terá sua vida e a viverá. Sei disso. Mas temos a forte tendência de viver a vida da pessoa que amamos. E de senti-la também. Mas sentimos como sentimos nós e não como ele sente, e aí começa o problema. Vou sentir certas dores que não são dores para ele, mas opções. O quanto saberei respeitar isso ou, mais difícil ainda, o quanto poderei distinguir o que é respeitar e o que talvez seja leniência – ou, ao contrário, na situação oposta, autoridade excessiva. Isso é o que mais me preocupa. Sei que não há resposta para isso, ela será construída no cotidiano. Sei que meu filho não será eu – e isso nunca imaginei que fosse nem quero. Mas ele poderá ter não só opiniões diferentes, mas até mesmo uma outra ética. Aceitar isso… não deve ser fácil para ninguém.

– Eu gostaria de insistir um pouco mais em saber qual é seu maior temor ao ter um filho…

– Tentarei então resumir. Acho que o maior temor é deixar meu filho passar por/fazer algo que depois ele se arrependa, mas que deixe marcas irreversíveis – e eu não consegui impedir que acontecesse. Ainda sabemos que o que se inculca numa criança fica provavelmente para sempre – e ela terá enormes dificuldades para contornar/superar mesmo que deseje ou tenha instrumentos para fazê-lo. A responsabilidade é enorme. Não gostaria de “marcá-lo” com nada que não sejam valores universais. Mas nem sabemos o que é isso direito. E será isso suficiente? Então, é difícil achar o equilíbrio entre aquilo que deve ser transmitido e aquilo que apenas devemos nos esforçar para prepará-lo para buscar suas próprias respostas. Não é fácil.

Outra coisa seria a morte. Uma das maiores sacanagens nas histórias pessoais é um pai e uma mãe terem de enterrar os filhos. Mas conto com minha idade para que isso não aconteça (risos).

Ter um filho é escolher uma relação que, mesmo que um dia você queira, jamais será rompida. Pode existir pai canalha, filho psicopata, mas não existe nem ex-pai nem ex-filho. Pai é para sempre. Filho é para sempre. Isso é assustador?

– Sem dúvida. E no meu caso mais ainda. Com a idade que eu tenho, uma das coisas que mais pesava na decisão de ter filhos é que ele realmente seria pra sempre! O que também significa que ele terá um pai velho muito cedo, e isso me preocupa por ele. Não será bom para ele. Farei o possível para retardar essa decadência física e mental me exercitando e me alimentando bem, mas acontecerá. E cedo, para ele. Mas, no meu caso, vivi minha vida em grande plenitude – pelo menos eu acho isso – e agora posso me dedicar a ter um filho – mesmo para sempre… Atenção, não estou abdicando do resto. Apenas sei que não exercerei as outras opções da vida com a intensidade que fiz até agora.

– Acho que a gente sempre tem medo de falhar, em tudo na vida, até nas mínimas coisas ronda este fantasma de não conseguir. Você teme falhar como pai?

– Não sei se isso seria falhar como pai, mas acho que sim. Meu temor é não poder dar a ele as condições que ele precisa para enfrentar a vida. Em todos os sentidos: afetivo, segurança, formação, etc. E, ao mesmo tempo, tentar evitar ao máximo a necessidade que todo o filho tem de “matar o pai”. Bem, acho que é impossível evitar isso simbolicamente, né? Ser pai sem ser excessivamente pai ou ser pouco pai, impossível acertar, mesmo porque não existe um acertar. Sim, acho inevitável ter essa preocupação… que nos ronda o tempo todo.

Por outro lado, aprendi a viver com meus erros. Ao dirigir uma grande empresa de pesquisa de ponta, com mais de 100 funcionários, eu sabia que erraria, e tinha de lidar com isso sem deixar de continuar a fazer o meu trabalho. E às vezes nem mesmo sabemos quando erramos porque simplesmente precisamos fazer escolhas. E em cada decisão há sempre o risco de que, embora a escolha que fazemos pareça a melhor, a prática mostre que não seja. Com certeza, sendo pai, isso também acontecerá. O tempo inteiro. E isso não é fácil, mas terá de ser vivido.

– Qual é o seu desejo para este filho? Mesmo que você se prepare para respeitar os desejos futuros deste filho, nenhum filho existe sem que antes exista o desejo dos pais. Qual é o seu desejo de pai para este filho?

– Que ele adquira os instrumentos necessários para viver plenamente a vida. E isso significa também que ele possa se libertar da família e da figura paterna quando julgar necessário. E tenha os instrumentos para enfrentar um mundo cada vez mais dinâmico e incerto. Que viva sua vida. E gostaria que, quando adulto, possamos ser amigos – se eu já não estiver senil, claro.

– Foi importante saber que era um homem? Seria diferente se fosse uma mulher?

– Sim, seria. Mas não no sentido de gerar um filho como eu. Realmente, essa percepção eu não tenho. Não sei como será se ele se parecer comigo, mas realmente não procuro nem imagino essa identificação. Quando imagino meu filho, realmente imagino muitas coisas, mas certamente não o imagino sendo como eu. Além do mais, as situações que ele viverá serão tão diferentes das que vivi quando criança que não vejo como poderia haver esse tipo de identificação – espero que a genética não me surpreenda! Conto com o “nurture” para se contrapor ao “nature” – ou melhor, que a criação/educação se contraponha à natureza.

– Nós, que estamos entre os 40 e poucos e os 50 e poucos fomos gerados com uma grande expectativa para o futuro. Agora, geramos filhos para um futuro que vislumbramos com aquecimento global, mudanças climáticas catastróficas, acidentes nucleares e até o suposto fim da espécie em algum ponto lá na frente. Não parece ser um futuro muito interessante para oferecer a um filho. Isso te preocupa?

– Esta, sem dúvida, é uma preocupação. Mas não tanto. Mais que isso, é a dinâmica da sociedade, em muito devido ao forte componente da tecnologia de comunicações. Isso exige uma adaptação do indivíduo quase permanente, algo que nunca foi testado – ou melhor, não evoluímos dessa forma. Muitas das nossas adaptações revelaram-se úteis para outras coisas que surgiram ao longo dos tempos. Talvez tenhamos a necessária maquinaria para enfrentarmos isso também. Mas não sabemos ainda. Do ponto de vista antropológico, é muito interessante. Do ponto de vista de um pai pode ser preocupante. Mas não mais que isso. As questões climáticas e outras virão lentamente. A vida continua e nos adaptaremos. Não acho que isso seja um problema. Do contrário estaríamos optando por terminar com a espécie, algo que não acho interessante. Ainda produzimos coisas bem instigantes… Por outro lado, talvez tenhamos hoje muito mais consciência de que é necessário espaço para todas as espécies, se quisermos que elas sobrevivam à nossa presença, e talvez possamos construir algo melhor. De qualquer forma, é impossível prever algo, ainda mais nos dias de hoje.

Olhando friamente, acho o passado mais preocupante – se tivesse que vivê-lo – do que o futuro… Veja, há um século a expectativa de vida no Brasil estava em torno dos 45 anos, hoje é de uns 73… No mundo todo, em geral, vive-se melhor. É fato que temos problemas sérios e novos pela frente, mas acho que a bonança só ocorreu mesmo entre os anos 60 e 80. E isso talvez tenha marcado a geração de nossos pais e a nossa. Mas, se olharmos para trás, as coisas nunca foram fáceis.

A vida continua. Outros desafios, novos conhecimentos. Adoraria estar aqui daqui a 100, 200 anos nem que fosse apenas para aprender o que saberemos… não espero que a civilização ande para trás, globalmente falando. Pelo menos não nesse curto tempo da vida do meu filho.

– Há muitas críticas com relação à educação atual, especialmente a de que estamos criando pequenos déspotas que mandam em pais infantilizados. Como você vê isso? E como pretende educar seu filho?

– Sim, acho que cometemos sérios erros. Mas não para se voltar ao que era antes – e o que era? Sinceramente, tenho a esperança – ilusão? – de ser amigo de meu filho. E é como pretendo criá-lo. Mas não sei exatamente o que isso significa. Essencialmente, ele tem de sentir que tem uma proteção/segurança em mim. E que, por um tempo, pelo menos, eu tenho algum conhecimento que ele pode aprender, usufruir. Mas… naquilo que for irreversível – drogas, legais ou ilegais, crack, por exemplo, etc –, acho que imporei uma autoridade definitiva baseada na seguinte premissa: o que for irreversível – dano cerebral irreversível –, enquanto puder eu impedirei. Depois que ele for adulto, quando ganhar a vida com seu dinheiro, aí eu estarei ao lado para ajudar se necessário. Mas deixarei essa autoridade de lado. Complicado. Espero que isso possa ser resolvido com diálogo, compreensão, entendimento… mas sei que tudo pode acontecer. E sei que saberei da vida dele… alguma coisa, não mais.

– O que é ter um filho para você?

– Não sei se sei responder. Certamente, é o início de uma grande aventura, de longo prazo – para sempre, né?! –, que exigirá muito de mim, em todos os aspectos. Mas não saberia dizer mais do que isso. Sinceramente, não vejo em um filho a minha continuidade… acho que trabalhei muito essa questão e realmente sinto que, para mim, a continuidade, se isso quer dizer algo, estará em tudo em que estive, trabalhei, etc. Não tenho a preocupação de ter essa expectativa para meu filho. E acho isso positivo. Principalmente se ele perceber que não espero dele outra coisa que não seja que ele viva sua vida. Meu filho será alguém a quem poderei tentar dar tudo o que sei. Mas ele aproveitará só o que quiser.

– O que é ser pai para você?

– Acho que será algo fascinante. Único. E fará a vida extremamente interessante e rica. Um aspecto ainda não vivido. Espero ser bem sucedido em enriquecê-lo com minha experiência, ajudando a abrir caminhos para ele. Mas ser pai também é ser companheiro. É um projeto a dois, e certamente para mim, ser pai sempre foi também ganhar uma outra dimensão na relação com minha mulher. Um fascínio a mais. E acho que isso já estamos conhecendo.

– Como você se prepara para ser pai?

– Como disse antes, eu acho que sempre me preparei. Sempre imaginei transmitir tudo o que sei e tenho para alguém. Mas, mais especificamente, lendo, abrindo espaço temporal na minha vida para ele, procurando desenvolver um ambiente de amor e tranquilidade em casa. Procuro ler muito. Tenho acesso à literatura e, pela profissão, lido bem com o jargão científico. Hoje sabemos muito como funcionamos. Espero que isso ajude.

Posso acrescentar uma síntese do que é ser pai?

– Pode, claro.

– Hoje, sabemos que o DNA não possui informação suficiente para formar a rede neural de uma pessoa. Ela é formada a partir de um primeiro input genético, pelas interações do indivíduo com o meio, começando já na gestação e indo até o início dos nossos 20 anos. Bem, ainda sobra alguma coisa, mas o essencial aconteceu neste período. Por isso somos indivíduos únicos, somos a nossa história. Acho que ser pai é criar e oferecer as melhores oportunidades para que o filho possa viver a sua história – uma história rica, intensa, vivida em toda sua plenitude. Ser pai é ser um guia, um instrutor, que aos poucos vai deixando-o cada vez mais senhor de sua própria história. Até que, lá pelos 20 anos, esse “mestre” possa se transformar em um amigo, talvez até parceiro dessa história – mesmo que distante, como observador, o que for. E sempre um referencial, como todo “mestre”, no qual ele possa se inspirar ou buscar uma “presença”, se necessário.

– E como você vai criar seu filho para ser homem numa época em que não se sabe muito bem o que é ser homem ou que se pode ser homem de várias maneiras?

– Bem, eu acho que sei o que é ser um homem moderno… (risos) Lembro que na época da graduação, por ocasião da leitura de um livro italiano que eu tinha introduzido no nosso meio de estudantes de esquerda que ainda tinham a ilusão de propor uma nova sociedade, com novos papéis para o homem e a mulher, as feministas do grupo procuraram definir quem, entre nós, era aquele que mais se aproximava do que elas consideravam o “novo homem”. E apontaram um colega que ainda não tinha se assumido plenamente como gay, mas que era e assim que lhe foi possível assumiu e hoje está casado com outro homem. Bem, isso foi no início dos anos 80, em uma certa vanguarda. Acho que ainda não se sabe o que é o novo homem, mas não se saberá se não soubermos também o que é a nova mulher. E esta também é uma questão mal resolvida.

– O que você sentiu quando soube que seria pai? E o que sentiu quando viu a imagem no ultrassom?

– A gente teve que planejar. Idade… sabe como é. Então, foi um alívio saber que dava para engravidar e deu. Mas acho que o grande momento foi o ultrassom. Você vê, e é aquela coisa, ver para crer, não sei. Talvez o visual seja muito importante para nós humanos. O fato é que vê-lo pela primeira vez no ultrassom foi algo muito emocionante, inesquecível. Acho que parte daquela sensação de antigamente de vê-lo pela primeira vez no nascimento foi sentida ali. Bem, tenho de esperar nascer para daí ver como fica… comparar, etc.

– No que você quer ser diferente, como pai, do seu próprio pai?

– Hum… não penso muito nesses termos… acho que procuro mais é o que tive, que foi muito importante para mim e que gostaria de dar também. Por exemplo, sempre tive muito orgulho dos meus pais, do trabalho deles, da forma como viam suas vidas e carreiras. Da forma como lidaram com a época política da ditadura, da sua integridade. Nascer cercado de livros… lembro que, pré-adolescente, não tinha o que fazer nas longas férias de verão e meu pai me deu para ler um livro sobre os grandes cientistas, depois sobre os grandes estadistas… aquilo sempre foi muito forte para mim. Ler. A generosidade foi uma característica dele que eu sempre senti muito forte e me marcou.
Diferente? Meus pais não tiveram as oportunidades que eu tive. Mas permitiram que eu as tivesse. Tenho uma visão cosmopolita, uma vida bastante internacional. Acho que posso oferecer isso a mais. Mas vejo isso como uma continuidade. Talvez o lado mais “hereditário” que sinto, de passar de geração para geração, seja este: o conhecimento que se adquire, se acumula, se amplia.

Mas acho que a grande diferença é a proximidade, mais em nível pessoal. Para meu pai, por diversos fatores, isso sempre foi mais difícil. Acho que será mais fácil para mim. E, novamente, por estar no atual estágio de carreira/vida, posso me permitir e espero estar mais próximo do meu filho, em todos os instantes. Aiaiaiaiai… e se ele odiar isso?!

(Publicado na Revista Época em 21/03/2011)

Duas mulheres indomáveis

Aos 102 anos, Aracy e Margarethe encerraram uma vida de cinema

Margarethe Bertel Levy (à esq.) e Aracy Guimarães Rosa

Margarethe Bertel Levy (à esq.) e Aracy Guimarães Rosa

Quando Margarethe morria no hospital, em casa a respiração de Aracy começou a falhar. Como o da amiga, também o seu pulmão ameaçava afogar-se. Maria Margarethe Bertel Levy morreu no dia 21 de fevereiro – e Aracy Moebius de Carvalho Guimarães Rosa na madrugada de 3 de março. Ambas tinham 102 anos. E uma história espetacular. Aracy, funcionária do consulado brasileiro em Hamburgo, havia salvado Margarethe de morrer num campo de concentração nazista. Uma brasileira e a outra judia alemã, as duas belíssimas, iniciaram sua amizade ao tornarem-se duas mulheres contra Hitler. E fizeram dela um laço inquebrantável ao viverem no Brasil que para Aracy era a terra natal, para Margarethe a rota de fuga. Quando a morte tentou separá-las, fracassou como todos que antes tentaram obstruir o caminho destas duas. Morreram quase juntas, com diferença de dias. Deixaram como legado uma vida de cinema.

Conheci essas duas mulheres três anos atrás. Quando tinham apenas 99 anos. Aracy Guimarães Rosa, como o sobrenome revela, foi o grande amor do escritor João Guimarães Rosa. Grande Sertão Veredas, talvez a maior obra-prima da literatura brasileira, foi dedicado a ela. “A Aracy, minha mulher, Ara, pertence este livro”. Em cartas para Aracy, Rosa revela um furor sensual que ninguém diria ao olhar apenas para seu aprumo de diplomata. Como ao escrever: “Antes e depois, beijar, longamente, a tua boquinha. Essa tua boca sensual e perversamente bonita, expressiva, quente, sabida, sabidíssima, suavíssima, ousada, ávida, requintada, ‘rafinierte’, gulosa, pecadora, especialista, perfumada, gostosa, tão gostosa como você toda inteira, meu anjo de Aracy bonita, muito minha, dona do meu coração”. Para Aracy, o escritor que criou um mundo e reinventou a língua portuguesa era o seu “João Babão”.

Mas Aracy não era apenas – e não que isso fosse pouco – a mulher por quem Rosa se apaixonou e com quem viveu até a sua morte. Aracy foi autora e protagonista de seu próprio romance na vida real. Tornou-se o “Anjo de Hamburgo” – a funcionária do consulado brasileiro que salvou dezenas de judeus do nazismo ao contrariar a política de Getúlio Vargas, enganar o cônsul e dar vistos para o Brasil antes que fossem presos em campos de concentração de onde jamais sairiam vivos. Seu nome está em Jerusalém, no Museu do Holocausto, como “justa entre as nações”, a mesma honraria com que foi reconhecido Oskar Schindler, cuja história foi contada em “A Lista de Schindler”, blockbuster de Steven Spielberg.

Eu a conheci para escrever uma reportagem que se chamou A lista de Aracy. Na matéria conto o que aconteceu com homens e mulheres que puderam tecer uma vida – e gerar uma descendência que, sem Aracy, não existiria. Um deles, Günter Heilborn, deu o nome de Aracy à primeira filha mulher e o nome de sua mãe, Selma, queimada num forno nazista, a uma orquídea de pétalas brancas e amarelas que criou como botânico amador. Há um mundo inteiro que só existiu porque Aracy existiu. E teve a coragem de fazer o certo – contra quase todos.

Ao buscar Aracy, alcancei Margarethe. Estas duas mulheres se encontraram no consulado brasileiro de Hamburgo em 1938. Aracy para salvá-la, Margarethe para ser salva. Em comum tinham a beleza e o fato de não seguirem a cartilha feminina da época. Eram ambas indomáveis. Ninguém podia com elas. Aracy, por exemplo. Era desquitada, no Brasil dos anos 30 (!!!). Fluente em várias línguas, tivera o desplante de, aos 26 anos, pegar o filho de cinco anos pela mão e rumar para a Alemanha para construir uma nova vida.

Sozinha com um menino pequeno, estrangeira num país à beira da insanidade e da guerra, ela teve a ousadia de desafiar a política do seu próprio país e enganar o próprio chefe. Armou uma pequena rede clandestina com arianos contrários à perseguição aos judeus que envolvia até o dono da autoescola onde tinha aprendido a dirigir seu Opel Olympia. Chegou a passar a fronteira com um judeu no porta-malas do carro com placa diplomática. E no meio dessa confusão teve tempo para viver um tórrido romance com Guimarães Rosa, o cônsul-adjunto que havia deixado no Brasil a primeira mulher, duas filhas e uma ainda incipiente estreia literária.

Margarethe tampouco era uma judia comum. Filha de pais ricos e liberais, passou boa parte da infância e da juventude viajando. Falava sete línguas. Seduzira Hugo, seu marido, (ou foi seduzida) na cadeira de dentista. Apaixonaram-se enquanto ele, 16 anos mais velho, cuidava da bela paciente. Com a ajuda de Aracy e de vários clientes arianos, Margarethe e Hugo conseguiram embarcar no navio Cap Ancona e chegar ao Brasil com a fortuna intacta. Não faltaram nem mesmo as jóias de Margarethe. Viveram em São Paulo sem maiores relações com a comunidade judaica. Hugo teve uma sólida clientela formada entre famílias alemãs. E Margarethe seguiu com sua vida cosmopolita.

Depois que Guimarães Rosa morreu, Aracy continuou vivendo no apartamento do casal no Rio. Em 1968, ela escondeu nele o compositor Geraldo Vandré, perseguido pela ditadura militar por causa da canção “Caminhando (Pra não dizer que não falei de flores)”. No prédio, próximo ao Forte de Copacabana, moravam vários oficiais. Enquanto a repressão caçava Vandré, ele compunha no sofá de Aracy. Depois, seu neto, Eduardo Tess Filho, levou Vandré para São Paulo numa Kombi. E de lá para o exílio.

Aos 80 anos, Aracy acabara de retirar dinheiro no banco quando tentaram lhe arrancar a bolsa. Deu tantas bolsadas no ladrão que o deixou estirado na calçada de Nossa Senhora de Copacabana. Daquele dia em diante, porém, a cidade foi assolada por uma guerra que ela não tinha mais idade para combater. E ela acabou resignando-se a morar em São Paulo com o único filho, o advogado Eduardo Tess. Aos poucos, bem devagar, foi perdendo os fios de sua memória.

Depois da morte de Hugo, há cerca de 20 anos, Margarethe ficou só. Enquanto pôde, manteve a independência e dirigiu seu Corcel até os anos 90 pelas ruas de São Paulo. Sem filhos seus para apoiá-la na velhice, foi o de Aracy que a adotou, em mais uma delicadeza dessa história cinematográfica. Margarethe seguiu vivendo em seu próprio apartamento, mas amparada pelo carinho da família Tess, que a chama de “Margarida”.

Quando conheci estas duas mulheres, Aracy parecia não estar mais aqui. Margarethe pouco caminhava, tinha dificuldade para enxergar e quase não ouvia, mas mantinha a mente límpida. E afiada. Foi ela quem me disse: “Entre mim e Aracy foi um golpe de amor. Só que entre duas mulheres”. Perguntei a ela como era na juventude. “Eu era sexy”, disse. E Aracy? “Muito sexy, linda, provocante, um corpo maravilhoso, os moços saltavam.”

Do tanto que tinham em comum, elas só não compartilhavam a fé. Aracy era uma católica fervorosa. Margarethe uma judia sem religião. “Eu não tenho esse apoio (da fé). Nasci judia e vou morrer judia, mas não sei nada de religião”, afirmou. Quase virando um século de vida e ela era o que era, sem concessões.

Aos 99 anos, Margarethe me olhou com olhos que supostamente não me viam e disse: “Pegaram minha mãe em Varsóvia. Puseram minha mãe no forno. Ela queimou”. E acrescentou: “Com o tempo, a gente não esquece”. É uma grande frase, à altura desta mulher única.

Margarethe já não podia mais alcançar Aracy nas visitas que fazia a ela nos derradeiros anos de vida. A amiga parecia não reconhecê-la. Mas o laço invisível que as unia de algum modo seguia lá, intacto. Há tantos anos alheia de tudo e também de si mesma, de algum modo Aracy pressentiu que Margarethe estava partindo.

Pode ser apenas coincidência, afinal elas tinham 102 anos e Aracy completaria 103 no próximo 20 de abril. Mas prefiro acreditar que não. Na madrugada de domingo para segunda (21/2), Margarethe morria e Aracy, que até então estava muito bem, sentiu a respiração falhar. “Tiveram a mesma morte”, me disse Beatriz Tess, a nora de Aracy, que cuidou das duas como se fossem suas próprias mães. “A gente pensava que não, mas de algum modo Aracy sabia”.

Ao contemplar Aracy imóvel em sua morte, um século de história inscrito no corpo envelhecido, me emocionei ao pensar que poucas mulheres podem afirmar terem vivido com tanta intensidade. Com tanta aventura, tanta paixão, tanto risco. Tanta verdade. Por causa de Aracy, Margarethe teve pelo menos mais 70 anos de uma vida que ela soube honrar vivendo com voracidade. Seu testemunho foi decisivo para que Aracy ocupasse seu lugar no Museu do Holocausto. E quando a amiga desligou-se do passado e também do presente, era na memória de Margarethe que ambas viviam.

Conhecendo um pouco a biografia destas duas mulheres extraordinárias, que não se renderam nem aos costumes nem aos preconceitos e nem mesmo a Adolf Hitler, gosto de pensar que elas não se deixaram vencer nem pela morte que as separaria. Posso imaginar Aracy pensando: “O quê? Se Margarethe se vai, eu vou com ela”. E tratou de morrer. Do mesmo jeito. Na hora que quis. Juntas, menos pelos dias que separaram a partida de uma e de outra, mais pela inteireza de uma amizade que redime o mundo.

(Publicado na Revista Época em 07/03/2011)

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