O céu nos espera

O que o universo conta sobre mim e você

Quando eu era criança, queria ser astrônoma. Na verdade, como muitos, eu queria mesmo era ser astronauta, para chegar mais perto das estrelas. Meu irmão mais novo me garantiu que, para ser astronauta, eu precisava ser astrônoma. Então, eu repetia para todo mundo que era essa profissão insondável que queria ter. Depois, esse mesmo irmão, que mais tarde se tornaria um físico brilhante, me explicou que para ser astrônoma eu teria de estudar muita matemática. Ele estava certo, mas foi assim que meu sonho foi se apagando e eu acabei virando jornalista. Nas redações por onde andei, os colegas costumam dizer que estou sempre em outro mundo. Nessa perspectiva cosmológica, pode ter um fundo de verdade.

Nas noites estreladas, e na minha cidade pequena havia muitas delas, minha família e eu sentávamos no retalho de quintal que nos cabia, esparramados em preguiçosas, só para ver as estrelas. Ficávamos horas por lá, abismados com o universo. Nenhum de nós possuía o mínimo conhecimento científico sobre o que se passava acima de nossas cabeças, mas tínhamos algo importante: um sentimento de pertencimento, de conexão. O universo estava em nós, como nós estávamos no universo. Do nosso modo simples, ignorante mesmo, nos víamos refletidos em cada estrela do céu, reconhecíamo-nos no firmamento. O mistério não nos afastava. Pelo contrário.

Em algum ponto da vida adulta perdi minha conexão com as estrelas. Não só desisti do desejo de vê-las de mais perto, como aceitei que elas ficam longe de mais. Pior que isso, percebo agora. Deixei de achar o universo fascinante. Não que não o ache, em tese, mas foi me parecendo tão inescrutável, impossível de alcançar não pela distância em anos-luz de quase tudo que nele habita, mas por curto que são os meus neurônios, que abandonei o sonho de compreendê-lo. Seja com a mente, seja com a intuição da alma de criança que já tive. Começo a ler as reportagens sobre as novas descobertas, os enigmas, a tal da matéria escura, e em algum momento me perco das letras, não consigo entender nem me reconheço. É tão grande, tão incompreensível, e eu sou tão pequena, tão limitada, tão carente de matemática e física.

Primeiro, parei de olhar para as estrelas. (Até porque há quase dez anos vivo numa cidade onde é difícil enxergar uma delas no céu.) Depois, parei de ler sobre as estrelas. Por fim, só raramente lembro que elas existem. Escrevo esse texto e me horrorizo com a descoberta da minha cegueira. Há quanto tempo eu, que sonhava em alcançar as estrelas, não busco uma estrela no céu? Não lembro. E o que meu desligamento do universo diz sobre a minha vida?

Só voltei a pensar nisso nos últimos dias, quando comecei a ler um livro muito especial, chamado Panorama visto do centro do universo – a descoberta de nosso extraordinário lugar no cosmos (Companhia das Letras, 2008). Eu tropecei nesse livro na redação da Época. Alguém resolveu passá-lo adiante e o deixou numa mesa pública, onde colocamos tudo aquilo que não queremos mais e pode servir para outro. Passei, olhei, segui adiante. Voltei. Folheei. Segui adiante. Dei uns três passos. Voltei. Peguei. Comecei a ler. Fiquei encantada.

E voltei a olhar para o céu. Claro, chovia sem parar em São Paulo na semana passada e teria sido mais apropriado ter tropeçado num livro sobre a vida dos anfíbios. Não enxerguei nada, nem mesmo o firmamento em si, mas pelo menos lembrei que há algo maior do que esse mundinho cada vez mais tacanho e encolhido que tenho habitado. Algo muito maior ao qual eu também pertenço. Descobri também que meu pescoço ainda consegue fazer esse movimento de olhar para cima, a memória das noites estreladas da minha infância permaneceu gravada na parte do cérebro que manda no meu pescoço. Ainda tenho salvação, portanto.

O livro foi escrito por um casal de americanos, esboçado enquanto cozinhavam e conversavam noite adentro com amigos cientistas. Joel Primack é astrofísico e Nancy Ellen Abrams uma advogada especializada em políticas científicas. A obra, uma delícia de ler, até mesmo para uma astronauta sem nenhum futuro como eu, parte de uma premissa fascinante. Pela primeira vez temos telescópios poderosos e conhecimento científico para começarmos a saber como é o universo na realidade. Não saber o que o universo não é, como os cientistas do passado, mas ter as primeiras pistas sobre como ele pode ser. Nunca, porém, tivemos tão apartado dele. Essa desconexão faz com que percamos a melhor parte de uma história que está acontecendo hoje, agora: o que o universo fala sobre a nossa vida quando, pela primeira vez, temos instrumentos para entender o que ele nos diz.

“O que emerge (da cosmologia atual) é a primeira representação humana do universo como um todo que até poderia ser verdadeira. Incontáveis mitos da origem do universo existiram, mas este é o primeiro que nenhum contador de histórias inventou – somos todos testemunhas cheias de expectativa” – os autores escrevem. Ou pelo menos deveríamos ser testemunhas cheias de expectativa. Mas os antigos, que tiveram de criar uma mitologia para o cosmos, já que não tinham nenhuma informação científica disponível, eram muito mais conectados do que nós.

O que aconteceu com nossa relação com o universo? Durante séculos, cristãos, judeus e muçulmanos acreditaram que a Terra era o centro do universo e que tudo o mais girava em torno de nosso planeta, em torno de nós. Quando cientistas como Galileu (1564-1642) provaram, há 400 anos, que a verdade era muito diferente da crença, algo foi aos poucos se perdendo para a maioria de nós. Ao descobrir que habitávamos um dos menores planetas que giravam em torno de uma entre bilhões de bilhões de estrelas de uma das bilhões de galáxias, nossa desimportância parece ter nos acabrunhado. Aos poucos, o universo se tornou algo insondável, povoado por corpos igualmente insondáveis, no qual não tínhamos a mínima relevância. Melhor seria ignorar “esse vazio sem fim salpicado de estrelas”.

Como lembram Joel e Nancy, o primeiro cientista a expressar o efeito deste “mal-estar cósmico” causado pela nova ideia de universo pós-Galileu, foi o francês Pascal (1623-62), físico, matemático e monge: “Me sinto engolfado na imensidão infinita de espaços sobre os quais nada sei e que nada sabem de mim. Estou aterrorizado”. Do universo medieval, dizem os autores, compreendido como uma catedral magnífica e com pé-direito alto, Pascal se sentiu jogado num universo científico que era frio, disforme e imenso para além da compreensão. Nele, seres humanos sentiam-se insignificantes. Essa é a impressão do universo que dura até hoje.

Ao nos levar pelas páginas do livro, os autores nos lembram do nosso extraordinário lugar no cosmos. Um extraordinário que nada tem a ver com uma noção medíocre de importância, mas sim com a grandeza de quem compreende que só com muita imaginação é possível alcançar a realidade.

Essa resumida trajetória do sentimento humano diante do universo lembrou minha pequena história pessoal. Eu vivi esse desencanto da minha maneira. Imagino que cada leitor tenha a sua memória dessa relação com o firmamento. Quando eu nada sabia sobre o céu acima da minha cabeça, era capaz de me encantar com seu mistério. O não-saber não me afastava das estrelas, pelo contrário. Me permitia imaginar e criar enredos, já que tudo era possível. Foi minha fase medieval, digamos.

Quando meu irmão me informou que para alcançar as estrelas era preciso não desejo, mas matemática, o universo começou a se afastar de mim. Quanto mais eu crescia e mais informação tinha, em livros, revistas e programas de TV, mais longe ele me parecia. Senti o mesmo terror de Pascal. Mas, ao contrário dele, que era um grande homem, resolvi meu medo da pior forma: passei a olhar cada vez mais em linha reta, perdendo os ângulos mais amplos da existência. Desgarrei-me das estrelas sem entender que, ao fazê-lo, perdia algo de essencial de mim mesma. Não no sentido metafórico, mas literal. Que direito tenho eu agora de reclamar quando olho ao redor de mim e só vejo paredes cinzas?

O que eu perdi? O que nós perdemos? É disso que Joel e Nancy nos falam. “Cosmicamente desabrigada, nossa cultura ao longo dos séculos minimizou a importância de ter um lar cósmico”, dizem eles. “O universo no imaginário popular se tornou pouco mais do que um espaço disforme ou um cenário de fantasia para ficção científica, nenhum dos quais parece ter muita importância no que as pessoas chamam de mundo real. Hoje é normal considerar que gente mais preocupada com a realidade cósmica do que com ganhar dinheiro é sem noção ou irrealista. Esta é possivelmente nossa maior deficiência mental em resolver problemas globais”.

O livro nos mostra que vivemos por séculos num filme preto-e-branco. E agora o grande filme da evolução do universo está entrando em foco. “É como de repente ver em cores, e isso muda não só o que está longe, mas o que está bem aqui. O universo está aqui, e é mais coerente e potencialmente significativo para nossa vida do que se pode imaginar”, afirmam os autores. Joel e Nancy nos levam à compreensão de que não estamos no centro do universo, até porque não existe centro geográfico num universo em expansão, mas somos centrais de várias formas inesperadas. “A história do universo está em cada um de nós. Cada partícula em nosso corpo tem um passado de um multibilhão de anos, cada célula e cada órgão do corpo têm um passado de um multimilhão de anos, e muitas das nossas formas de pensar têm passados com multimilhares de anos. Cada um de nós é um tipo de centro neural onde essas várias histórias cósmicas se cruzam. O tempo é uma chave para apreciar o que somos”.

Adoro a imagem – real – da Terra vista do espaço. Ela não nos mostra países, nações, grupos raciais, étnicos e religiosos. Só porções de terra, oceanos e nuvens. Precisamos sair e nos olhar do outro lado da rua para perceber que pertencemos a um planeta indivisível. Todo o resto, que nos faz guerrear, o que nos separa e também o que nos dá aquele tipo de importância que só existe na comparação à desimportância de um outro, é arbitrário. Inventado. De um certo modo, não é real. Só é real por que tornamos essa arbitrariedade mais real que todas as outras.

Ainda não cheguei ao fim do livro, mas Joel e Nancy prometem mostrar que diferença tudo isso faz para cada um. “Para a vasta maioria das pessoas ocupadas, não há por que aprender um monte de ciência a não ser que você possa fazer algo com esse conhecimento que tenha valor para a sua vida. Queremos mostrar que você pode”. Quero muito saber como “pensar cosmicamente poderia nos ajudar a vivenciar o que significa ser a parte humana do universo”, como entender o universo ajuda a me entender. E, principalmente, uma ideia que me move na vida e no exercício da reportagem, como contadora de histórias reais: o resgate do extraordinário que nos habita.

Por me dedicar às trajetórias não dos planetas, mas de homens e mulheres, compreendi que não existem vidas comuns. Só mesmo nossa cegueira sobre os outros e sobre nós mesmos nos separa do extraordinário do que somos. Desconheço o cosmos, mas conheço (um pouco) o humano. Com a ajuda desse livro e de alguns outros que vieram antes, começo entender onde essas pontas se encontram. Compreendo por que Carl Sagan dizia que somos o universo compreendendo a si mesmo. Como poeira de estrelas – um fato científico, além de uma imagem poética – somos pedaços brilhantes do universo.

Como deixar-se apequenar na vida depois disso? Como pedaços brilhantes do universo, seres feito de estrelas, ousam deixar-se mediocrizar a cada dia, perder-se em pequenezas cotidianas? Querendo ou não, nossa matéria é a das grandes aspirações. Não as ditadas pela moda do momento, pela lógica política e econômica de uma ou outra época. Mas algo mais profundo, algo que é nosso e ninguém pode nos tirar. Um sentido do extraordinário que é parte de nós, tanto quanto são as nossas células repletas da memória do big bang.

Acabo de perceber que, de certo modo, ao contar histórias de gente, acabei encontrando meu próprio caminho para as estrelas.

(Publicado na Revista Época em 03/08/2009)

Fragilidade

Por que tememos tanto o que nos torna humanos?

“Há algo perdido na vida de cada um”, diz o artista inglês Mark Leckey. “As pessoas tentam preencher essas lacunas com imagens.” Ele fala de seu filme, Parade (2003), que será exibido na sexta-feira, 15/5, na mostra do Museu Sammlung Goetz, de Munique, promovida pelo Itaú Cultural, em São Paulo. Nos 31min30s do filme, me senti incomodada pelo brilho ofuscante da imagem de seres humanos que em nada lembravam humanos. Seres inanimados de uma vida glamourosa sem vida, vestidos de grifes, com sorrisos que não riem. De repente, esses modelos ofuscantemente belos desaparecem e o vazio toma conta da tela, agora que as imagens já não estão mais ali para nos cegar. Mark Leckey fez um filme “sobre se sentir perdido no começo do século XXI”, um filme sobre o vazio. “Estou doente de imagens”, ele diz.

Eu também. Há muitos caminhos para pensar sobre o filme de Leckey. Eu gosto de pensar sobre a fragilidade que mora em nós e que tanto nos assusta. A certeza, ainda que inconsciente, que dentro de nós há uma fratura. Essa dor à espreita que faz com que nos disfarcemos de tantas formas – e que nos torna vítimas tão dóceis, contentes até, de todas as armadilhas de consumo que preenchem nosso cotidiano.

Algo precisa ser feito quando o vazio nos ronda com sua lucidez implacável. Nem que seja, para uma mulher, comprar um sapato novo que dirá aos outros que nada falta exceto talvez uma bolsa para combinar com ele. E nesse ato não importa se compramos na grife que criou o modelo, na loja de departamentos que o copiou com material de menor qualidade ou no camelô do centro que pirateou o produto. A categoria sócio-econômica não altera nosso medo do abismo. Nesse ato, estamos todos nus.

Você já experimentou permanecer num shopping quando as lojas se fecham e não há mais iluminação sobre os produtos, nem gente colorida andando de um lado para outro sem ir realmente a lugar algum? Vale a pena se arriscar a essa experiência tão urbana. Os seguranças continuam ali, mas não estamos mais seguros.

Em seu livro Fragilidade (Objetiva), o roteirista francês Jean-Claude Carrière reflete sobre a imagem dos corpos brilhantes, malhados nas academias. Com a justificativa da saúde e da beleza – hoje dois conceitos quase inseparáveis –, passamos horas de cada um de nossos dias carregando peso para que nossos corpos ganhem músculos, transformem-se progressivamente em armaduras para que possam ser exibidos em todas as vitrines. Mas por que precisamos de corpos tão fortes, tão impenetráveis? Por que precisamos mostrar força física para sermos atraentes? Por que tantos de nós passam outras horas deleitando-se no espelho com seus bíceps, tríceps e quadríceps? E por que este é o padrão de beleza dessa época?

A hipótese de Carrière é que esse corpo modelado em aparelhos para se tornar ele mesmo uma armadura, uma muralha ou uma fortificação serve para esconder uma intimidade quebradiça, a matéria frágil de que somos feitos. É uma ideia interessante. Levamos uma imagem de saúde e força física a um mundo de imagens, esperando que ninguém adivinhe nosso medo de sermos descobertos, ou suspeite que nossos músculos – como tudo em nós – são mais vulneráveis do que parecem. Desfilamos sob muitas luzes, nunca tantas como hoje, na esperança de que possamos cegar os outros tanto quando essa overdose de flashes nos ofusca a cada dia. O que aconteceria se deixássemos toda a maquiagem de lado, e também a de nossos músculos hipertrofiados? O que aconteceria se as luzes se apagassem de repente? Não é curiosa uma época em que para enxergar é preciso ficar no escuro?

Vivemos num tempo em que as mulheres, em sua magreza, têm de ser retas e rijas como um homem e pendurar enormes peitos artificiais, uma imagem que no passado pertencia apenas aos transsexuais. Por que de repente os seios de carne ficaram aquém do feminino e se tornou necessário fabricar outro à custa de intervenção cirúrgica? Que ideal de corpo feminino é esse que criamos? Duro, definido e sem gordura, nele o único lugar em que só a maciez era possível foi substituído por silicone. Quando foi que nossos corpos se tornaram insuficientes e a saída foi torná-los menos nossos? O que estamos dizendo ao desfilar essa imagem pelas ruas do mundo?

Somos hoje tão duros, tão definidos, talvez porque nunca antes fomos tão vulneráveis, tão indefinidos. Nós, que estamos nesse mundo como indivíduos, sem o amparo da tradição, quase sem utopias. Há algo para sempre fora do alcance dos aparelhos e dos bisturis. Acredito que é o melhor de nós. O que nossos corpos construídos como cidadelas – exilados de nós, feitos para serem impenetráveis até para nós – tentam esconder é o que deveríamos mostrar. É a “essência de vidro” de que falava Shakespeare.

É nossa fragilidade – e não a nossa força – que nos faz humanos. Só chegamos mais perto do que somos ao reconhecermos a fragilidade que nos habita. Só alcançamos o outro pelas fendas entre nós, só podemos amar um outro porque há um rasgo em nós. Não há ponto de contato entre corpos inexpugnáveis. Só criamos pelo que de frágil nos habita, só evoluímos tanto como espécie pelo que há de vulnerável em nossos corpos. E só destruímos o planeta que nos serve de casa e outros de nossa espécie pela recusa à fragilidade que nos constitui – e pela ilusão de uma força que não vem dela.

Não há nada menos interessante – e mais falso – do que um homem ou uma mulher que só exiba força. Não há nada menos sedutor do que gente que não tira máscaras. Assim como poucas coisas são mais embrutecedoras que esse mundo de imagens, em que nós mesmos somos apenas atores coadjuvantes que não sabem como viver quando as luzes se apagam.

Nossa fragilidade é a nossa força. E será melhor viver nesse mundo quando soubermos disso.

(Publicado na Revista Época em 11/05/2009)

Os novos antropófagos

Artistas da periferia de São Paulo lançam sua própria Semana de Arte Moderna

Eliane Brum (texto) e Frederic Jean (fotos)

Manifesto da Antropofagia Periférica

A Periferia nos une pelo amor, pela dor e pela cor. Dos becos e vielas há de vir a voz que grita contra o silêncio que nos pune. Eis que surge das ladeiras um povo lindo e inteligente galopando contra o passado. A favor de um futuro limpo, para todos os brasileiros.
A favor de um subúrbio que clama por arte e cultura, e universidade para a diversidade. Agogôs e tamborins acompanhados de violinos, só depois da aula.
Contra a arte patrocinada pelos que corrompem a liberdade de opção. Contra a arte fabricada para destruir o senso crítico, a emoção e a sensibilidade que nasce da múltipla escolha.
A Arte que liberta não pode vir da mão que escraviza.
A favor do batuque da cozinha que nasce na cozinha e sinhá não quer. Da poesia periférica que brota na porta do bar.
Do teatro que não vem do “ter ou não ter…”. Do cinema real que transmite ilusão.
Das Artes Plásticas, que, de concreto, querem substituir os barracos de madeira.
Da Dança que desafoga no lago dos cisnes.
Da Música que não embala os adormecidos.
Da Literatura das ruas despertando nas calçadas.
A Periferia unida, no centro de todas as coisas.
Contra o racismo, a intolerância e as injustiças sociais das quais a arte vigente não fala.
Contra o artista surdo-mudo e a letra que não fala.
É preciso sugar da arte um novo tipo de artista: o artista-cidadão. Aquele que na sua arte não revoluciona o mundo, mas também não compactua com a mediocridade que imbeciliza um povo desprovido de oportunidades. Um artista a serviço da comunidade, do país. Que, armado da verdade, por si só exercita a revolução.
Contra a arte domingueira que defeca em nossa sala e nos hipnotiza no colo da poltrona.
Contra a barbárie que é a falta de bibliotecas, cinemas, museus, teatros e espaços para o acesso à produção cultural.
Contra reis e rainhas do castelo globalizado e quadril avantajado.
Contra o capital que ignora o interior a favor do exterior. Miami pra eles? “Me ame pra nós!”.
Contra os carrascos e as vítimas do sistema.
Contra os covardes e eruditos de aquário.
Contra o artista serviçal escravo da vaidade.
Contra os vampiros das verbas públicas e arte privada.
A Arte que liberta não pode vir da mão que escraviza.
Por uma Periferia que nos une pelo amor, pela dor e pela cor.

É TUDO NOSSO!
Sérgio Vaz
Poeta da Periferia

________________________________________

ARTISTAS DE DOIS MUNDOS Na foto, Sérgio Vaz e a comissão organizadora da Semana de Arte Moderna da Periferia, no boteco do Zé Batidão, na zona sul de São Paulo.

ARTISTAS DE DOIS MUNDOS
Na foto, Sérgio Vaz e a comissão organizadora da Semana de Arte Moderna da Periferia, no boteco do Zé Batidão, na zona sul de São Paulo.

O escritor Oswald de Andrade, um dos líderes da Semana de Arte Moderna de 1922, fez uma profecia: “a massa ainda comerá do biscoito fino que fabrico”. Morreu sem vê-la realizada. Oitenta e cinco anos depois do marco do movimento modernista, Sérgio Vaz, poeta da periferia de São Paulo, pretende comer o biscoito fino, o próprio Oswald, o Bispo Sardinha, a “elite que viaja para Miami” e mais alguma coisa. E depois, diz ele, “vomitar”. Líder da Cooperifa, o maior sarau de poesia do Brasil, Vaz é o idealizador da Semana de Arte Moderna da Periferia, a Semana de 2007. De 4 a 11 de novembro, os artistas querem “provocar” o centro onde o destino do país é forjado – e onde também se determina o que é arte. Se fosse vivo, o modernista Oswald possivelmente teria um sorriso nos lábios ao ser devorado pelos antropófagos das margens de São Paulo.

A força da Semana de 2007 vem da primeira geração de escritores da periferia, forjada à margem da escola, na legião dos sem-museu, sem-cinema, sem-teatro, sem-biblioteca. Pela primeira vez, o Brasil tem não um, nem dois autores, mas um movimento literário nascido nas margens. Seus protagonistas se identificam pela origem, marcam essa diferença e buscam uma estética fundada nessa raiz. Eles se apropriaram de um código da elite – a palavra escrita – e começaram a escrever sua versão da História. Agora, preparam-se para sacudir o marasmo cultural de um país que viu muito pouco de original desde o tropicalismo dos anos 60.

“Antes eram os intelectuais que escreviam sobre a periferia. Hoje, alguns dizem que não sabemos escrever. Estamos chegando agora pra aprender, depois de 500 anos”, diz Sérgio Vaz, de 43 anos. “A arte sempre foi o pão do privilégio. Agora é servida no café-da-manhã da periferia. Com menos manteiga, talvez, mas arte. Nossa literatura tem menos esses, menos crases, mas é literatura. Agora que escrevemos sobre nós, o que os intelectuais vão fazer? Que comam brioches!”

quem e quem

1) Sérgio Vaz, 2) Jairo, 3) Sales, 4) Gunnar, 5) Wéley Noog, 6) Ademir, 7) Cocão, 8) Ana Bela, 9) Marcelo, 10) Mavortirc, 11) Juliana, 12) Robson Canto, 13) Casulo, 14) Preto Will, 15) Ricarda, 16) Rose Dorea, 17) Tadeu, 18) Euller, 19) Roberto, 20) Jair Guilherme, 21) Wagner Felipe, 22) Marcio Batista, 23) Lerói, 24) Anderson, 25) Vicente

Mais uma provocação. O antropófago da periferia vive na última de uma tripa de casas nos arredores de Taboão da Serra, na Grande São Paulo. Deixou uma carreira de auxiliar de escritório para ser poeta no Brasil. Vendeu 5 mil livros de poesia sem editora e sem livraria, de mão em mão. Só o quinto – Colecionador de Pedras (Global) – chegou ao mercado. Em 2001, Vaz criou a Cooperativa Cultural da Periferia (Cooperifa) ao ocupar uma fábrica abandonada para fazer um evento de arte. Já estava tentado pela Semana de 1922.

O sarau da Cooperifa passou de bar em bar até achar seu lugar no boteco do Zé Batidão, na zona sul de São Paulo. “Na periferia não tem museu, tem boteco”, diz Vaz. “Então transformamos o Zé Batidão em centro cultural.” Toda quarta-feira, três centenas de cidadãos periféricos ali desembarcam depois de um dia de trabalho duro para fazer e ouvir poesia. “Povo lindo! Povo inteligente! É tudo nosso!”, diz Vaz, abrindo a noite. E o boteco vem abaixo, a multidão se espalha pelas ruas. É tudo deles, sim.

A Semana de 2007 começou a nascer nessa esquina, pelas mãos ásperas de poetas sem berço. Seu primeiro ato será uma caminhada dos artistas pela periferia. Nada vai acontecer no centro. Quem quiser conhecer o que se passa nas bordas de São Paulo terá de inverter o tráfego. Os grupos Manicômicos (teatro), Arte na Periferia (cinema), Espírito de Zumbi e Umoja (dança) são alguns dos autoproclamados “focos de resistência” que tentam fincar sua estética em ruas onde antes só corria esgoto. “Escolhemos um símbolo da elite paulistana pra provocar. Vamos à casa grande mexer com eles”, diz Vaz. “Que seja o estopim.”

Imagem dos organizadores da Semana de Arte Moderna de 1922, no Hotel Terminus, no centro de São Paulo

Imagem dos organizadores da Semana de Arte Moderna de 1922, no Hotel Terminus, no centro de São Paulo

.

________________________________________

RAIZ FORTE

O hip-hop está na raiz dessa árvore antropofágica. O movimento praticamente inventou a identidade periférica. Especialmente seu símbolo maior: os Racionais MCs e seu líder, Mano Brown. Capazes de vender milhões de CDs sem precisar nem de gravadoras nem de imprensa, eles provaram que é possível viver, fazer sucesso e sustentar a família fora do mercado. E sem sair da periferia.

Desde o fim dos anos 80, os “manos” e as “minas” passaram a proclamar: “Eu sou da periferia. Vocês são do centro, playboys”. Comportamento oposto ao dos pais, migrantes nordestinos que, de cabeça baixa, mentiam o endereço. O hip-hop dançou break sobre o mito da democracia racial. Agora havia “nós” – e havia “eles”. As diferenças – explícitas no cotidiano, mas não pronunciadas – estavam colocadas. E por quem, havia pouco tempo, só tinha voz quando cantava samba. Foi também a primeira vez que os ídolos não se mudaram da periferia como sempre fizeram os astros de futebol na primeira oportunidade.

O hip-hop mantém parte de sua força. Mas, neste início de milênio, uma figura nova assumiu a vanguarda: o escritor. Em 1960, uma negra semi-analfabeta chamada Carolina Maria de Jesus assombrou o Brasil – e o mundo. Ao fazer uma reportagem numa favela do Canindé, na beira do Rio Tietê, em São Paulo, o jornalista Audálio Dantas descobriu Carolina e “uns 20 cadernos encardidos em seu barraco”. Quarto de Despejo – Diário de uma Favelada vendeu 10 mil exemplares numa semana. Foi traduzido para 13 idiomas. Carolina só teve dois anos de estudo formal. Tornou-se a primeira favelada publicada no Brasil.

Na virada do milênio, três novos escritores mostraram que algo diferente acontecia nas margens das capitais brasileiras: o carioca Paulo Lins, com Cidade de Deus (Companhia das Letras), em 1997, e os paulistanos Ferréz, com Capão Pecado (Labortexto, reeditado pela Objetiva), de 2000, e Luiz Alberto Mendes, que descobriu a literatura durante mais de 30 anos de cárcere, com Memórias de um Sobrevivente (Companhia das Letras), de 2001.

A partir de 2000, Ferréz e a revista Caros Amigos organizaram três edições especiais com a produção de 30 escritores das periferias do Brasil, sob o título Literatura Marginal. Em 2005, uma coletânea do material virou livro. O escritor não era mais caso isolado, mas fenômeno coletivo. Na apresentação, Ferréz escreveu: “Cala a boca uma p…, agora a gente fala, agora a gente canta, e na moral agora a gente escreve. Quem inventou o barato não separou entre literatura boa/feita com caneta de ouro e literatura ruim/escrita com carvão (…). Não somos o retrato, pelo contrário, mudamos o foco e tiramos nós mesmos a nossa foto”.

________________________________________

SUBURBANO CONVICTO

alessandro buzo
Quando Alessandro Buzo caminha pelo Itaim Paulista, nos confins da zona leste de São Paulo, os meninos o cumprimentam, reverência na voz: “Aê, Buzo”. Só daqui a uma década será possível avaliar o impacto da mudança: a referência de sucesso na periferia não é mais – ou apenas – o traficante, mas o escritor. “A elite achava que a gente não sabia nem ler”, diz Buzo. “E agora a gente escreve.”

Aos 35 anos, Buzo tem quatro livros publicados, o último deles um romance, Guerreira. Editou na base da prestação, pagou uma parte com feijão, arroz, macarrão e azeite, porque ganhava a vida vendendo comida. Há alguns meses, vive de arte, R$ 1.500 por mês. Ele sozinho é um movimento cultural. Criou uma biblioteca num bloco carnavalesco. Comanda o Favela Toma Conta, evento anual de hip-hop. Duas vezes por mês faz o Cine Favela, levando filmes brasileiros às periferias. É dono de uma “lojinha de periféricos” (livros, DVDs e CDs feitos nos guetos). Dá oficinas de escrita para os garotos da Febem. No dia 25, lança uma coletânea de 12 autores das periferias de sete Estados. E ainda faz literatura nos dois cômodos de sua casa na Favela do Buraco, onde vive com a mulher, Marilda, e o filho Evandro, de 7 anos. Alessandro Buzo declara-se “Suburbano Convicto, escritor da periferia”.

Oitava série incompleta, Buzo é filho de mãe doméstica e pai “que se mandou”. A mãe fugia da devastação da vida devorando livros comprados com trocados nos sebos. Um dia deu ao filho um presente raro: o Menino Maluquinho, de Ziraldo. Ainda moleque, Buzo endoidou pela história. Anos depois, maluco por cocaína e mesclado (maconha com pedra), diz que só não foi bandido porque a mãe que tudo lia avisou com antecedência que jamais leria carta de presidiário.

“Aqui o tráfico não é nem de maconha
nem de cocaína. Nós traficamos livros”
Alessandro Buzo“

Buzo conta que começou a escrever por indignação. O trem remendado e triste que carrega o povo da zona leste ao centro levou Buzo para a literatura. Ele queria expressar sua revolta com tanta gente amontoada, tanta indiferença. Escreveu um texto, espalhou pelo trem e, no dia seguinte, era celebridade.

O trem virou o primeiro livro. Vendeu pouco, os passageiros mal tinham dinheiro para comer, livro era de outro planeta. Buzo ia se desgarrando da literatura quando escutou o rap dos Racionais: O covarde morre sem tentar… você é do tamanho dos seus sonhos… junta seus pedaços e desce pra arena. Buzo se levantou. Ou melhor: sentou e escreveu mais. E o resto é – literalmente – história.

________________________________________

A SEMANA DE 2007

No Manifesto Antropófago, lançado em 1928, Oswald de Andrade data o início do Brasil por um episódio insólito: a morte do Bispo Sardinha, devorado por índios canibais. É uma ironia para definir o conceito de arte antropofágica: os primeiros brasileiros digeriram – literalmente – a cultura européia. Com o Manifesto da Antropofagia Periférica, os organizadores da Semana de 2007 escrevem um capítulo inédito. Nele, os novos antropófagos tratam pouco de estética, muito de política e de comportamento. Sérgio Vaz comenta os principais pontos:

1) Somos periféricos
“Ninguém gosta de esgoto a céu aberto nem de barraco. Mas nós queremos mudar a periferia – e não da periferia.”

2) Criamos nosso mercado
“Nós produzimos a nossa arte. Estamos criando um outro mercado, o nosso. Vamos comprar nossos CDs, nossos livros, nossos filmes.”

3) Sabemos consumir
“Ninguém nos diz o que devemos consumir. Não podemos boicotar o Cirque du Soleil porque nunca tivemos dinheiro pra pagar. Mas podemos boicotar Ivete Sangalo, livro de auto-ajuda, um monte de coisas. Não queremos nossas filhas dançando na boquinha da garrafa nem cantando Festa no Apê. Nem nossos filhos precisando de tênis Nike. Nós boicotamos o pirata, porque não somos cidadãos de segunda classe, e boicotamos o original porque é ruim ou é caro ou não precisamos.”

4) Queremos educação
“Revolução sem r é evolução. Queremos escola de qualidade. Não pregamos a saída pela arte. Não dá pra todo mundo virar artista. As ONGs querem ensinar o povo a cantar e a dançar. A gente não agüenta esse discurso ongueiro, que pega R$ 1 milhão pra ensinar a batucar. TV, pra nós, é entretenimento. Nos preocupa a televisão que educa. Queremos escola que eduque. Se a escola educar, nossos filhos vão saber ver TV.”

5) O artista tem de ser cidadão
“Queremos artista comprometido com a comunidade. Não queremos arte que imbeciliza, teatro que quando acaba dá pra comer pizza, música que vende guaraná de manhã, macarrão à tarde e carro às 15 pras 8. Somos contra artista enriquecer. ”

________________________________________

LADRÃO DE LIVROS

sacolinha
Na abertura do primeiro romance, Graduado em Marginalidade, o escritor apresenta sua origem em oito linhas. Nela, os homens são reduzidos a um espermatozóide sem nome, mas com profissão: “De Isabel Alves de Souza, com um dono de escravos, nasceu Maria. A junção de Maria Alves de Sousa, com um trabalhador rural, gerou Geralda. De Geralda Alves de Sousa, com um pedreiro, nasceu Maria Natalina. Do namoro de Maria Natalina Alves, com um carpinteiro, nasceu Ademiro Alves”. Ademiro Alves é Sacolinha, o primeiro homem da linhagem com nome e sobrenome. E pseudônimo: Sacolinha é escritor.

Aos 24 anos, ele diz: “Se não fossem os livros, eu estaria a sete palmos de terra”. Sacolinha – filho de pai sumido e mãe feirante – trabalhou dos 9 aos 21 anos como cobrador de lotação: “Metrô Itaquera, Cidade Tiradentes, Jacupêssego, Iguatemi…”. Nessa linha urbana, diz que beijou na boca a primeira menina, despediu-se alegremente da virgindade, virou homem e foi batizado de Sacolinha.

Para chegar ao trabalho, eram 40 minutos de trem. Sacolinha terminara o ensino médio “semi-analfabeto, sem entender o que lia”, mas estava enjoado de olhar a cara dos passageiros. “Reparei então que tinha gente que lia e resolvi experimentar, pra passar o tempo.” O único parente possuidor de livros era um tio que estudava para padre. Sacolinha bem que pediu com gentileza, mas o tio não acreditou nas intenções letradas. O sobrinho conta que iniciou então uma bem-sucedida carreira de ladrão de livros pela própria família. Ampliou suas atividades por livrarias, bienais e conferências. Tem certeza de que não cometeu crime algum. “Eu precisava muito e não tinha dinheiro”, diz.

Aos 18 anos, Sacolinha começou a ler. Aos 22, conta que fez uma rifa para publicar o primeiro romance. Chefe de família, vivia com a mãe e dois irmãos em dois cômodos construídos abaixo do nível da rua. Não tinha água nem luz. Estragou os olhos lendo à luz de velas, mas iluminou-se todo. Ao encontrar Carolina Maria de Jesus em seu Quarto de Despejo, sua vida sofreu uma freada brusca e pegou outro rumo: “Não acreditei que tava lendo um livro assim. Bati na mão e disse: ‘É isso que eu quero ser’”.

Sacolinha partiu em busca de professores de Literatura. “Me disseram que eu podia ler Ferréz e Paulo Lins, mas devia também ler os clássicos”, conta. Sua jornada pela literatura é um sobressalto: “Aluísio Azevedo descreveu de um jeito a primeira menstruação da Pombinha que me deu até vontade de menstruar. Memórias do Cárcere, do Graciliano Ramos, tava muito chato. Até eu perceber que ele tava passando a chatice do cárcere pro leitor. Fantástico!”.

“O Brasil só vai melhorar quando o povo começar
a roubar livros em vez de armas, drogas e dinheiro”
Sacolinha

“Salvo pela literatura”, Sacolinha criou uma ONG para divulgar novos autores, organizou trocas literárias para abastecer bibliotecas, criou dois saraus de poesia, promoveu oficinas de escrita, entrou na faculdade de Letras e publicou um livro de contos. Desde 2005 é coordenador de literatura da Prefeitura de Suzano, na Grande São Paulo. “Se a porta do banco trava porque sou negro, feio e uso calça larga, não discuto mais com o segurança”, diz. “Meu projeto é muito maior: tenho de discutir com o público.” Sacolinha dá entrevista em sua nova casa-escritório: dois cômodos mobiliados em 45 prestações nas Casas Bahia. Serve vinho rosé. Guarda os manuscritos do primeiro romance em perfeitas condições – “para a posteridade”.
________________________________________

A TOMADA DA CANETA

A primeira geração de escritores da periferia se formou à margem da escola. Em alguns casos, apesar dela. A conquista da escola se iniciou de forma inusitada: pela literatura das ruas, entrando pelo portão na mão dos alunos. “Literatura sempre foi uma palavra alienígena pra nós. Fica do outro lado do interditado. A gente sempre se viu mal representado como personagem”, diz o escritor Allan da Rosa. “Nossa missão é entrar dentro do sistema pra conseguir nosso espaço. E o sistema é letrado. Quem marioneta a parada são os letrados. Então vamos fustigar o sistema de dentro dele.”

Aos 31 anos, Allan é um dos poucos escritores que chegaram à universidade. Formou-se em História na USP e hoje faz mestrado em Educação. Filho de atendente de enfermagem e presidiário, começou a trabalhar aos 13 anos, como office boy. Depois vendeu churros, incenso, livros, seguros, jazigos de cemitério. Começou a escrever por causa do futebol de botão. Inventava times e criava uma biografia para cada craque. “Eu não tenho lembranças positivas de leituras dentro da escola. Tenho de fora, de outros rolês”, diz Allan.

Hoje, ele é um dos escritores reivindicados nas aulas por alunos de escolas públicas. “Quando a gente entra no sistema escrito, consegue poder. Não o poder substantivo, mas o poder verbo. Poder criar em vez de só sair de manhã, pegar duas horas de busão lotado e trabalhar prum cara onde você não pode nada. E depois voltar cansado demais pra viver”, diz ele. “A palavra falada é majestosa, a música é rainha. Mas a palavra escrita tem dentro dela algo que só ela tem. Que é poder chegar nas escolas com seu jeito de escrever, com seu tema e começar a tomar conta do que sempre usaram pra nos orquestrar.”

________________________________________

MUÇULMANO DO GUETO

Ridson
A primeira piada racista que o menino Ridson ouviu foi em casa, contada pelo pai, um negro. Seu Lourival, baiano que migrara para São Paulo, padeiro de profissão, dizia que não tinha sotaque “porque já tava domesticado”. O filho achava graça. Quando o irmão mais novo tinha 6 anos, Ridson conta que o garoto começou a se recusar a tomar café e a comer feijão. Só aceitava leite e arroz. A mãe, Hosana, mistura de africano com europeu, estranhou. O menino então explicou: “Se eu comer só arroz e leite agora que sou pequeno, quando eu crescer vou ficar branco”.

Ridson tinha 10 anos. Nunca mais riu das piadas do pai: “Foi a primeira vez que percebi que algo de muito errado acontecia ao meu redor”. Ridson começou então a se transformar em Dugueto, nome que tatuou no braço direito para gravar na pele raça e geografia. “Eu sou negro. Minha identidade quem define sou eu”, diz. “E isso incomoda. Até hoje me perguntam por que digo que sou negro se ‘sou tão bonito e tenho olhos verdes’. Nenhum branco é racista até ter a seu lado um negro orgulhoso.”

Há dois anos, ele se transformou em Dugueto Shabazz. Havia descoberto sua terceira identidade – muçulmano. Shabazz, como Malcolm X, o ativista negro dos Estados Unidos convertido ao islã. Muçulmano negro do gueto, ele usa a caneta para denunciar preconceito e desigualdade. É uma das vozes mais contundentes do movimento literário da periferia. Além de escritor, é rapper. Já esteve na Venezuela, em Cuba e na França, onde conviveu com jovens muçulmanos dos subúrbios franceses, em 2005. Lá, conta ele, foi expulso de uma loja num ato de discriminação.

Educado, gentil, com voz baixa e suave, ele fala sobre dores e convicções numa mesquita. A seu redor, muçulmanos de várias partes da África, migrantes em São Paulo, formam uma babel de línguas e dialetos entre uma oração e outra. “Espero que não me faltem poesias porque tenho muita raiva”, diz Dugueto Shabazz. Tem 24 anos.

Espero que não me faltem poesias porque tenho
muita raiva. Não queremos cisão, mas reparação”
Dugueto Shabazz

Então fala longamente sobre uma nação ferida: “Acho que ainda vai haver uma grande cisão neste país. A sociedade branca e rica tem se incomodado cada vez mais com o orgulho negro. Nós queremos nossa contribuição reconhecida. Basta olhar a história. Quem deve pra quem? Quem está nas favelas, nas cadeias, na rua? Todos os dias há uma cobrança nos faróis, encarnada pelo menino que faz malabares quando deveria estar na escola, de 50 pessoas no coletivo e o cara atrás do blindado. Mas não percebem. Como muçulmano, busco a paz até o último instante. A gente não quer cisão, a gente quer reparação. Mas, se for para ter uma nação bicolor, então escolhemos ser negros – e não brasileiros”.

Dugueto Shabazz se cala para atender ao chamado da última oração do dia.
________________________________________

A REINVENÇÃO DO LIVRO

Em 2005, Allan da Rosa decidiu fazer “livro pra quem não sabe ler”. A Toró, um selo editorial, nasceu dentro da Cooperifa. Já publicou oito escritores periféricos. “Toró vem da chuva que alaga ruas e barracos e porque chegou a hora de fazer chover livros”, diz ele. A mudança estética, proposta pelo movimento literário periférico, já começa pelo objeto livro. O livro da Toró é impresso numa gráfica, mas chega nu. Cada exemplar é acabado em casa, alguns deles escritos à mão, em letra cursiva. Têm pano, bordados, conchinhas, corda. “Dizem que nossos livros não podem ir pra biblioteca porque não seguem os padrões. Paciência. Pra nós, é segundo plano que nossos livros estejam nas bibliotecas do centro. Queremos ser lidos nas duas horas de busão”, diz Allan.

Na prosa e na poesia, além de falar de seu próprio mundo, de um cotidiano estrangeiro à classe média, os periféricos usam palavras inventadas nas margens, trazem o movimento e a riqueza da língua recriada nos guetos, às vezes misturada a dialetos africanos, obedecendo a outras sintaxes. Algumas palavras trazem s a grafia “errada” para estar literariamente “certas”. A escolha é expressão artística e ato político: a exclusão pela linguagem empurrou muitas crianças pobres para fora da escola. “A arte da palavra permite que a gente ventile as coisas, mas é preciso ter sensibilidade”, diz Allan. “O Gato Preto (escritor baiano) deu o título pro seu texto de ‘Colombo, Pobrema, Problemas’. Há um diálogo aí, ele sabe o que tá fazendo.”

O escritor das margens é novo também no modo de estar no mundo: ele não é uma figura submersa em si mesma, distante. Cada um é ligado a uma ação cultural. Ou a várias. A maioria deles tem casas de um ou dois cômodos. Tecem enredos sem solenidade, enquanto alguém frita um pastel, o filho joga bola. “A gente é trágico, sentimental, gosta de tocar nas pessoas”, diz Sérgio Vaz.

Escrever na periferia é um ato profano. A literatura nasce ao rés do chão, sem pedestal. Por ter atravessado séculos inalcançável, a palavra escrita precisa ser dessacralizada. Quando a Toró decide fazer livros à mão, escritos à mão, não é um capricho. É preciso que o leitor toque – também literalmente – a letra do escritor. Para que possa ser tocado pelo que sempre lhe esteve interditado. Na antropofagia periférica, por definição nada é sagrado. Muito menos as letras, agora capturadas entre as presas de antropófagos que até pouco tempo atrás se supunha sem dentes.

________________________________________

PERIFÉRICO NO CENTRO
sebastiao
Sebastião Nicomedes é de outra periferia: o centro geográfico de São Paulo. Nascido em Assis, interior paulista, ele praticamente ressuscitou no centro depois de uma queda de 4 metros de altura. Tentava instalar o luminoso de uma loja quando, há três anos, despencou lá de cima. Quando acordou, Sebastião estava só. Machucado, sem poder trabalhar, ninguém apareceu para ampará-lo. Estava no chão. Até para se matar, coisa que diz ter cogitado, era preciso subir alguns degraus. Sebastião virou morador de rua. Percebeu então que só precisava ter uma caneta para reescrever sua vida. E lentamente foi escalando sua queda, agarrado às cordas das letras.

Hoje, Sebastião vive só na “cobertura” de uma pensão do Brás. Em agosto, o Teatro Sérgio Cardoso abrigou a segunda temporada de sua peça, Diário dum Carroceiro. Seu primeiro livro, Simone, Cátia e Outras Marvadas (Dulcinéia Catadora), foi lançado no ano passado. “Minhas histórias vêm do segundo mundo, que ninguém quer ver”, diz.

Quando anda pelas ruas do centro, ele vai apontando as placas arrancadas pela Lei Kassab para combater a “poluição visual”. Placas pintadas por ele, de que se orgulhava. As últimas provas materiais de que Sebastião Nicomedes teve outra vida. Seu celular toca. Do outro lado, uma voz avisa que mais um morador de rua morreu de frio. Sebastião sofre. “Minha escrita é o clamor da alma de cada indigente que morre”, diz. “Escrevo pra não me armar de fuzil.”

Toda a literalidade de sua vida – começando pela queda real – não é um detalhe. Marca também sua escrita. Isso fica explícito quando, depois de muito tempo, ele confessa, envergonhado, que passa frio à noite. Até então não tinha cobertor, só uma colcha fina. Sebastião não interpreta o frio, não inventa o frio, não nomeia o frio. Sebastião – quando escreve sobre o frio – sente o frio.

Tempos atrás, ele andava assediado por ONGs e governos. Por ser uma figura simbólica, recebia propostas. Numa, ganharia R$ 900 por mês para trabalhar num albergue. Sebastião conta que caminhou até a porta, viu os moradores de rua, percebeu que caberia a ele expulsar os bêbados, “os que mais precisam”. “Não era um emprego, era um cala-boca”, diz. Virou as costas.

“Minha escrita é o clamor da alma de cada indigente
que morre. Escrevo pra não me armar de fuzil”
Sebastião Nicomedes

Naquela noite, deixou seu quartinho pobre na pensão e dormiu na rua. Ao amanhecer, escreveu de uma lan house do centro um e-mail. Nele, conta ter decidido não manter nada de seu, exceto a alma: “Ontem eu refiz um caminho de busca para reencontrar esse cara que ressurgiu das cinzas. Catei um papelão e fui dormir na rua. Fiquei a maior parte do tempo acordado. Lembrei dos meus anseios e das coisas que queria ter. Eu não pedia grandes coisas. Um lugar pra me proteger da chuva, um travesseiro, um chuveiro, um fogão pra comer o que me desse vontade, sem esperar hora e ordem pra fazer o que quero. E fazer o que mais gosto: escrever. Quando acordei pela manhã, nos primeiros raios de sol, o clarão forte ardeu-me os olhos. Levantei e vi que tudo o que pedi eu tenho. Eu não pedi carro, não pedi cheques e roupas de marca, relógio, ouro ou tela plana. Eu tenho exatamente tudo o que sonhava”.

Fotos: Frederic Jean/ÉPOCA, Anderson Schneider/ÉPOCA, André Valentim/ÉPOCA e I.E.B.

(Publicado na Revista Época em 20/02/2009)

P.S.: Beijo tua boquinha gulosa

As cartas de amor de Guimarães Rosa para Aracy revelam o lado mais sensual do autor de Grande Sertão: Veredas

MUSA  Aracy Guimarães Rosa, na época em que encantou o escritor. Hoje, ela ainda vive, aos 100 anos

MUSA
Aracy Guimarães Rosa, na época em que encantou o escritor. Hoje, ela ainda vive, aos 100 anos

Olhe bem para a boca da bela mulher do retrato. Para esses lábios, um dos maiores nomes da literatura brasileira escreveu: “Antes e depois, beijar, longamente, a tua boquinha. Essa tua boca sensual e perversamente bonita, expressiva, quente, sabida, sabidíssima, suavíssima, ousada, ávida, requintada, ‘rafinierte’, gulosa, pecadora, especialista, perfumada, gostosa, tão gostosa como você toda inteira, meu anjo de Aracy bonita, muito minha, dona do meu coração”.

Sim, ele mesmo. João Guimarães Rosa, o autor de Grande Sertão: Veredas, entre outras obras-primas da língua portuguesa, o diplomata sempre refinado do Itamaraty, escreveu essas linhas condimentadas e centenas de outras para a grande companheira de sua vida, num estilo que em nada lembra a prosa de Riobaldo e Diadorim. Quando “Joãozinho” escrevia para “Ara” (era assim que eles chamavam um ao outro ), era direto, rasgado, explícito. Só pensava em “boquinha sabida”, “pintazinha do pé esquerdo”, “camisolinha cor-de-rosa”.

O acervo – grande parte dele inédito – é composto por 107 cartas, 44 postais, bilhetes e telegramas, escritos por Rosa para Aracy entre 24 de agosto de 1938 e 18 de agosto de 1960. A pesquisa da correspondência foi confiada a duas estudiosas da obra do escritor, Neuma Cavalcante, da Universidade Federal do Ceará, e Elza Miné, da Universidade de São Paulo. Elas se dedicam agora a escrever a biografia de Aracy Moebius de Carvalho Guimarães Rosa, uma personagem extraordinária por motivos que vão muito além da condição de mulher de grande homem.

O livro será lançado ainda no ano do centenário de Aracy, que se encerra em 20 de abril. “Quando comecei a ler as cartas, fiquei muito tímida, como sempre acontece quando lemos a correspondência de alguém”, diz Neuma. “Fiquei muito emocionada com a vida deles. Aos poucos, senti como se fossem da família.”

A pesquisa foi iniciada no fim da década de 90. Em 2006, Neuma e Elza publicaram um artigo analisando a correspondência amorosa, nos Anais do Seminário Internacional em comemoração aos 50 anos de Grande Sertão: Veredas. Na biografia que preparam, as cartas serão reveladas e ganharão sentido no contexto da vida e da época de Aracy.

Aos 100 anos, Aracy vive em São Paulo com a família de seu único filho, Eduardo Tess. Sofre de mal de Alzheimer e esqueceu-se de quem é. Rosa a conheceu ao desembarcar na Alemanha, em 1938, para assumir o posto de cônsul-adjunto em Hamburgo. No Brasil, ele deixara a primeira mulher e as duas filhas. Aracy, desquitada e com um filho pequeno, era funcionária do consulado. Já era notável por três características: a estampa de atriz, a língua afiada e uma determinação capaz de meter medo nos SS de Hitler. Apaixonaram-se.

Aracy fez sua própria lenda ao ajudar judeus a conseguir vistos para fugir da Alemanha nazista. Ao fazê-lo, ela desobedecia à diplomacia de Getúlio Vargas. Pelas vidas que salvou, recebeu o título de “Justa entre as Nações”, conferido pelo Museu do Holocausto, em Jerusalém.

Rosa morreu praticamente em seus braços, em 1967. Nas três décadas de sua história de amor, ele publicou os livros que o tornaram imortal. A Aracy dedicou sua obra-prima, Grande Sertão: Veredas. Dedicou, não. “Deu”, como explicou ao tradutor do livro para o francês.

A correspondência revela o alcance desse romance da vida real. Aracy era a amante cujo perfume – Femme – ele sentia mesmo quando havia um oceano entre eles. E era a crítica exigente de sua obra: “Melhor ficaria se a minha mulherzinha estivesse ao meu lado, (…) revendo os meus escritos e dando a sua acertada opinião. Digo isso, porque introduzi todas aquelas alterações propostas por você”.

As cartas iluminam o lugar de Aracy nas várias dimensões da vida de Rosa. E algumas são belas. Mas a delícia dessa correspondência, como de boa parte das cartas de amor de grandes literatos, são os trechos de absoluto desatino. As frases derramadas os aproximam da carne imperfeita dos leitores. Cada excesso, uma fragilidade exposta. Como apaixonado, o gênio é um homem comum. Até mesmo Fernando Pessoa – Todas as cartas de amor são ridículas/Não fossem ridículas não seriam cartas de amor – provou a agudeza de sua poesia ao cometer algumas bem estapafúrdias. Do amor ninguém escapa: nem os príncipes de Gales, nem os gênios.

Rosa reinventou a língua em sua obra, mas, como qualquer homem, ao pegar da caneta para escrever à amada, não inventou coisa alguma. Nada de “nonada”. No amor, era só “João Babão”. É um Rosa deliciosamente prosaico que emerge dessas linhas, chamando sua mulher de “m%” (“meu cem por cento”). E disposto a tomar veredas estilisticamente arriscadas para honrar os “pezinhos” de Aracy: “Meu amorzinho, podes, claro, comprar os três pares de sapatos de que gostaste. Se sobrar algo, compra outros chinelinhos, também. E… traz, depressa, os pezinhos para mim…”.

FELINOS  Rosa gostava de gatos porque são animais “contemplativos”. Aracy chamava o marido de “Gatão”, por conta de seu temperamento caseiro

FELINOS
Rosa gostava de gatos porque são animais “contemplativos”. Aracy chamava o marido de “Gatão”, por conta de seu temperamento caseiro

Trechos de cartas escritas por Guimarães Rosa para Aracy entre 1938 e 1960

”Mas meu amorzinho, para mim você não é só corpo, se bem que você é e será sempre a minha Vênus, a minha cocaína, o diabinho carnal que se apoderou da minha pele e penetrou em mim até a medula dos ossos.”

”Quando é que irás compreender que eu sou mais teu do que é tua aquela pintazinha que tens no pé esquerdo, ou do que aquela verrugazinha que tens no flanco?”

”Será que você está nesta hora também pensando em mim? Agora vou para a cama, para dormir com a camisolinha cor-de-rosa, depois de conversar um pouco com os chinelinhos chineses, que me falarão dos lindos pezinhos de sua dona.” (25/8/1938)

“Uso externo:
Sorriso para o amado 10,0 grs
Cara fechada para os outros 5,0 grs
Tintura de gentileza 5 gotas
Pó de bom humor 5,0 grs
Vaselina 30,0 grs (rasurado)
Uso explicado.
VI-VI-939
Dr. João Babão”

FANTASIA  Aracy vestida para um baile de Carnaval no anos 20, antes de conhecer Rosa

FANTASIA
Aracy vestida para um baile de Carnaval no anos 20, antes de conhecer Rosa

”O Ilmar mostrou-me hoje um colar de pérolas naturais, que havia comprado para ela. Gostarias? Dizem que vale a pena comprar jóias antigas, algumas com pérolas, que são bonitas e não tão caras como no Brasil. Também estou em busca de rendas de encaixe. Pretendo assistir a um desfile de modelos, em grande costureiro. O que me agradaria seria comprar um belo modelo para ti, meu amor.” (Paris, 18/8/1946)

”Sinto e tenho a necessidade tremenda de sentir o amor como cousa NÃO HUMANA, SUPER-HUMANA, sublime, acima de tudo merecendo todos os sacrifícios, mesmo os mais inauditos. Sempre precisei disto. Isto ou nada. ‘Ou a perfeição, ou a pândega!’ Não me satisfaria um amor burguês, morno, conformado, dosado, raciocinando sobre conveniências ou inconveniências. Quando conheci você, estava já descrente de encontrar a mulher que seria a MINHA, capaz de sentir como eu e amar assim.” (Bogotá, 24/3/1943)

”Os outros eu conheci por ocioso acaso. A ti vim encontrar porque era preciso.” (1946)

PERSONAGENS DE ROMANCE  O casal em noite de gala, no início de sua história de amor

PERSONAGENS DE ROMANCE
O casal em noite de gala, no início de sua história de amor

Seriam duas alegrias enormes: a chegada de ARA e a chegada de SAGARANA. (Mas, em caso de perigo – TÓI! Tói! Tói! – joga fora o Sagarana e venha só a ARA, que é trezentos bilhões de vezes mais importante para mim.” (24/3/1946)

Para mim tuas cartas são como marmelada, doce de laranja, aipim, manjar branco, artigo elogiando ‘Sagarana’ no suplemento do jornal… Oh, Ara, que feitiço é esse?” (24/9/1946)

Serás tudo para mim: mulher, amante, amiga e companheira. Sim, querida, hás-de ajudar-me, ao escrever os nossos livros. Não só passarás à máquina o que eu escrever, como poderás auxiliar-me muito. Tu mesma não sabes o que vales. Eu sei. Sei, e sempre disse, que tens extraordinário gosto, para julgar coisas escritas. Muito bom gosto e bom senso crítico. Serás, além de inspiradora, uma colaboradora valiosa, apesar ou talvez mesmo por não teres pretensões de ‘literata pedante’. E estaremos sempre juntos, leremos juntos, passearemos juntos, nos divertiremos juntos, envelheceremos juntos, morreremos juntos.” (6/11/1942)

Assim, querida, ‘chérie’, eu me despeço. Com um abraço tão forte que depois de abraçada você ficará ainda presa contra o meu corpo e só com dificuldade poderá se desprender. Então eu beijarei a luz dos teus olhos e o riso da tua boca. Amo-a, Ara.”

(Publicado na Revista Época em 05/09/2008)

Freud e as fadas

Psicanalistas convocam personagens como Cinderela e Harry Potter para contar os conflitos de crianças e adultos de hoje

fadas diva capaDepois de comer um pouco de carne e beber do sangue da avó, Chapeuzinho Vermelho atendeu ao convite do lobo:

– Tire a roupa, minha filha, e venha para a cama comigo.

O striptease da menina é lento e completo. Passa pelo avental, pelo corpete e pelas meias. Ela joga cada peça no fogo porque o lobo lhe assegura que não precisará mais delas. Deitada com ele, a garota tem uma súbita vontade de urinar. O animal manda que faça na cama mesmo. Chapeuzinho recusa-se. O lobo permite então que ela vá, mas a amarra ao pé da cama com um cordão. Chapeuzinho consegue escapar e corre o mais rápido possível para casa.

Essa é a mais antiga versão para a clássica história contada até hoje para embalar o sono dos pequenos. Com o tempo, as passagens mais eróticas e perturbadoras, como canibalizar a doce avozinha, foram eliminadas. Era preciso atender às necessidades impostas pela moderna visão da infância, com sua exigência de inocência. Ainda que mais insossa, porém, Chapeuzinho Vermelho continua sendo ouvida com atenção por crianças que podem, no minuto seguinte, ligar a TV nos Power Rangers.

Por que histórias como essa sobreviveram? O que faz com que alguns contos de fadas permaneçam e outros pereçam? O que revelam sobre nós as partes eliminadas e as que subsistem? De que necessidade partem as transformações sofridas pelos personagens para se manter vivos, como a mãe má que vira madrasta e o pai cruel que se torna ogro? E, principalmente, o que Chapeuzinho, Cinderela, Branca de Neve, João e Maria e tantos outros habitantes do mundo da fantasia desde os nossos tataravós têm a dizer ao cibernético século XXI? Essas são algumas das perguntas a que os psicanalistas gaúchos Diana e Mário Corso respondem na obra Fadas no Divã. O livro será lançado nesta segunda-feira na Livraria Cultura, em Porto Alegre.

A inspiração, como não poderia deixar de ser, veio da obra seminal do austríaco Bruno Bettelheim – Psicanálise dos Contos de Fada (1977). Diana e Mário, porém, vão além. Têm o mérito de não desprezar o que veio depois da tradição. Na segunda parte do livro, eles vão perguntar a Pinóquio e Peter Pan, Mafalda, Harry Potter e à Turma da Mônica, entre outros ”modernos”, sobre o que têm a dizer às crianças – e aos adultos – para ter conquistado o direito de perambular pelo milênio.

Casados há 21 anos, é como psicanalistas com duas décadas de clínica, mas também como pais, que Diana e Mário se lançam nessa jornada. E pais contadores de histórias – as da tradição, as da modernidade e as próprias. As filhas, Laura e Júlia, hoje são adolescentes. É possível dizer que o livro começou a ser gerado junto com elas – embora só tenha sido escrito a quatro mãos nos últimos três anos.

Um capítulo, inclusive, é dedicado a um conto familiar: ”Vampi, o Vampiro Vegetariano”. Nele, Mário compartilha com os leitores a intimidade da construção de uma história com as filhas pequenas. É um dos momentos mais emocionantes do livro. Mostra a importância dos pais narradores – e criadores. Como diz a psicanalista Maria Rita Kehl no prefácio do livro, ”esses (pais) são capazes de tecer uma teia de sentido em torno das crianças, e ao mesmo tempo deixá-la incompleta para que continuem a tarefa de produzir o romance familiar apropriado a suas pequenas vidas”. Em ”Vampi”, Mário é generoso ao revelar como medos e conflitos de seu pequeno núcleo familiar foram sendo resolvidos na trama – ou como certas verdades se impuseram.

Era para ter sido, no máximo, efeito colateral. Aconteceu, porém, com a maioria dos que tiveram a chance de ler Fadas no Divã antes que desembarcasse nas livrarias. Ao abrir o livro não são as fadas que vão para o divã, mas o leitor. Mário brinca que é uma espécie de ”auto-ajuda psicanalítica”. Cada vez que pediam aos amigos uma crítica rigorosa, eles voltavam entusiasmados com as sacadas que – agarrados às tranças de Rapunzel ou debaixo da asa solitária do Patinho Feio – tiveram sobre sua própria história.

O livro vem com bula, basta escolher o caminho. Os autores sugerem dois modos de usar as 326 páginas: pela ordem original, se o leitor for movido por interesses acadêmicos, ou de forma aleatória, seguindo preferências literárias. Neste caso, pode ir e vir à vontade – e pular capítulos sem susto. A obra foi escrita para todo tipo de gente. Não é preciso ser iniciado em psicanálise – basta ter alguma vez parado diante do espelho mágico e…

”Fizemos o possível para entregar ao leitor o fio de Ariadne, para que o Minotauro da chatice não nos devore…”, dizem. Esse risco não há. Mas muitos outros estão à espreita do leitor a cada página virada.

Entrevista com os psicanalistas Diana e Mário Corso

ÉPOCA – Como vocês tiveram a ideia deste livro?
Diana Corso – A cultura infantil era o que mais consumíamos nos anos de infância de nossas meninas. Com o tempo fomos descobrindo que existia um grande vácuo sobre o assunto, buscávamos literatura e além de escassa, freqüentemente era coalhada de preconceitos. Quase tudo era qualificado de influência perniciosa, que tornava as crianças autômatos agressivos, imediatistas, simplórios e consumistas, enfim, verdadeiros monstros gestados no ventre de produtos culturais malignos. Aquilo não era o que víamos na prática. Nossas crianças, filhos, amigos e pacientes cresciam, brincavam, elaboravam seus pequenos dramas e se divertiam embaladas por todo tipo de fantasias, desde os clássicos contos de fadas, até os filmes da Disney, do maravilhoso Castelo Rá-Tim-Bum, aos programas trash da televisão. A ficção era uma chave para se expressar e interpretar o mundo.

Mário – A ficção que criamos e consumimos é eloquente, ilustrativa, de um tempo e sua gente. Interpretá-la é tentar compreender isso. Falando de livros, filmes e outros fenômenos da cultura contemporânea, podemos divulgar idéias psicanalíticas e principalmente pôr a teoria a trabalhar, testando sua capacidade de interpretar novos fenômenos. Acreditamos que uma teoria só sobreviverá se ela souber adaptar-se e deixar-se questionar pela época em que vive, por isso nos lançamos nesse desafio de conjugar a psicanálise no tempo presente.

ÉPOCA – O que está se oferecendo as crianças hoje é bom, então?
Mário – Nosso estudo é justamente para evitar respostas fáceis e taxativas, do tipo ‘está tudo perdido, não é como antigamente’. Estamos diante dum universo enorme e mal explorado. A conclusão parcial que chegamos é que não devemos nos alarmar tanto. Se quiséssemos apenas julgar, primeiro teríamos que definir o que é bom, e bom para quem? Nossa premissa de que as histórias infantis não prosperam se o que ela tem para oferecer não for o que serve ao seu público, portanto as histórias que se tornaram populares são as que vieram a calhar. Sendo assim, gostando ou não temos que prestar atenção naquilo que cai nas graças das crianças. É como aqueles malditos jingles que grudam, por vezes são terríveis, mas se fazem lembrar… Para nós o que importa é que a ficção possa ser apropriada pelas crianças para fazê-las pensar, para desequilibrar suas maneiras de entendimento e fazê-las ir adiante. Ou seja, que forneça elementos para soltar a sua imaginação e ao mesmo tempo dar forma a seus conflitos.

ÉPOCA – A falta de limites das crianças contemporâneas seria menos uma conseqüência dos programas de TV e dos jogos de computador e mais um problema de educação?
Diana – A gênese dos problemas da infância contemporânea não pode ser vista sem levar em conta a vida real das crianças. Fica mais fácil dizer que elas estão ficando individualistas, precocemente erotizadas e violentas por causa da programação da TV do que concluir o óbvio: que elas reproduzem o que vivem em casa e na rua. As crianças são filhas do seu tempo, é claro, mas principalmente de seus pais.

Mário – Ficar jogando a culpa na mídia, nos games e nas personagens infantis é algo que faz eco porque convém aos pais, que não querem parar para pensar sobre o que transmitem como valores. Além disso, não se deve desprezar o fato de que são as crianças e os jovens, com sua adesão e entusiasmo, que selecionam os produtos culturais que farão sucesso. O que formata o seu gosto e suas preferências senão as referências emocionais e culturais da sua família? Com o livro, queríamos também colocar as coisas em seus lugares e diluir essa caça às bruxas, alimentando o debate sobre o que estamos esperando da infância hoje.

ÉPOCA – E o que estamos esperando?
Diana – Que realizem nossos sonhos… só isso. Para tanto bastam coisas ‘simples’ como ser inteligentes, mas do tipo criativo, que inventa soluções e rompe com o estabelecido (consideramos a tradição uma carga); fortes como ninjas, mas sensíveis como Polyanna; amadas por todos e amantes atléticas, mas independentes de vínculos que fossem lhes limitar o voo. Para os nossos filhos é preciso ‘apenas’ almejar tudo sem abrir mão de nada! Não se estranha, então, que uma criaturinha de meio metro ache que pode com seus gritos e esperneios conseguir que lhe seja comprado o objeto que quer ou dado o alimento que escolheu ou se tornar o centro das atenções. Ela só estará sendo tão importante e grandiosa como queremos que ela seja. O que ninguém se dá conta é do óbvio, as crianças são extensões narcísicas de seus pais, estão aqui para redimir nossas falhas. Se não entendermos essa marca inicial, não vamos entender nada. Quando chegam aos consultórios os pais nos perguntam de que planeta veio essa criança que eles mesmos formataram.

ÉPOCA – Como selecionaram as histórias?
Diana – Quanto às histórias modernas e contemporâneas, o primeiro critério foi o de ter sido um sucesso consagrado junto às crianças. Parece-nos a melhor peneira: se as crianças gostaram, é porque elas têm algo a dizer. Era também necessário que a história trabalhada fosse significativa para nós, pois sem um envolvimento pessoal não conseguiríamos tecer as hipóteses psicanalíticas. Nem todas elas foram de igual intensidade para todos: algumas provieram da nossa infância, compartilhada com nossas filhas, como os contos de fadas e a Turma da Mônica; outras foram escolhidas a partir de descobertas feitas por elas, como é o caso do Ursinho Pooh, do Mágico de Oz e de Harry Potter. Claro que clássicos do século XX, como Pinóquio e Peter Pan, não poderiam ficar de fora. Era necessário também que as narrativas escolhidas possibilitassem uma leitura psicanalítica mais rica, que nos permitisse compreender quais fantasias se precipitavam ali e nos ocorresse um caminho para interpretá-las. Algumas personagens foram examinadas por serem nosso objeto de paixão adolescente, como Peanuts, Mafalda e Calvin & Hobbes, o que nos possibilitou falar da representação da infância contemporânea. Muitas vezes tivemos que escolher os casos mais exemplares e os roteiros mais sintéticos, essa é a razão pela qual João e o Pé de Feijão venceu a concorrência do Gato de Botas. O livro analisa um universo muito vasto de narrativas e cada capítulo funciona como um pequeno ensaio.

ÉPOCA – Como escreviam? A quatro mãos?
Diana – Escrevemos juntos há tanto tempo que não dá para saber direito quando foi que começou. Mesmo os textos que pertenceriam a apenas um de nós têm tanta influência e palpite do outro que acabam sendo de certa forma compartilhados. Há uma parte em que nos diferenciamos, pois cada um tem seus assuntos prediletos. Antropologia e mitologia, por exemplo, é território de conhecimento do Mário, enquanto eu fico incumbida do que diz respeito à psicologia infantil e identidade feminina. Mas isso é somente para o chute inicial, depois um assume o texto do outro, transforma-o, se apropria dele. Funciona mais ou menos como uma trova, na qual um retoma desde onde o outro deixou, numa disputa lúdica, cujo resultado é um texto cadenciado, onde um corrige os vícios do outro… ou se contamina com eles.

ÉPOCA – Como foi o processo de escrevê-lo? Houve participação das filhas?
Diana – Como escrevemos no tempo ‘livre’, pois nossa ocupação profissional é a clínica, o livro se incorporou totalmente à vida familiar. O tipo de pesquisa que fazíamos tinha um lado objetivo, que era o de ler muitos contos de fadas e obras teóricas de referência, assim como os livros originais das obras contemporâneas (como Peter Pan, Ursinho Pooh), mas tinha uma grande faceta emocional. As obras e contos que escolhemos para interpretar eram as significativas para nós e para as nossas filhas, portanto o trabalho era freqüentemente tema de discussão familiar, não somente com a Laura e a Júlia, mas também com as outras crianças e jovens que frequentam a casa. Elas liam originais dos textos e o que escrevíamos, muitas vezes foram autoras das hipóteses propostas, outras contribuíram com críticas e precisões sobre personagens e tramas. Ao longo dos últimos quatro anos, também nossos familiares e amigos queridos acabaram se resignando com o fato de que havíamos nos tornado uns chatos monotemáticos, e aceitaram nos ajudar com evocações, hipóteses e leituras.

Mário – Houve um momento muito prazeroso para mim, quando encontrei nas minhas filhas o mesmo interesse e envolvimento pela Turma da Mônica que tive na minha infância. Certamente o encontro das gerações enriqueceu o capítulo sobre a obra do Maurício, ao meu ver uma grande contribuição do Brasil para o universo infantil popular. Essas personagens são a princípio simples, previsíveis, basicamente cada uma tem uma característica e pronto. Seu universo, o Bairro do Limoeiro, é protegido como o da infância. É nessa redoma que as coisas se complicam: inveja, competitividade, medos, fantasia, dificuldade de se fazer compreender, e assim por diante. Além disso, nas características de cada personagem estão retratados aspectos essenciais das crianças: as fobias do Cascão, tão corriqueiras, a onipotência da Mônica, tanto maior quanto se é menor, a voracidade da Magali (e seu antônimo, o Dudu), a guerra dos sexos do Cebolinha. A leveza do cenário e principalmente o humor, permitem que pequenos dramas sejam encenados.

ÉPOCA – Empacaram em algumas histórias?
Diana – Nem sempre o processo fluía. Houve histórias que pareciam estar prontas no teclado, enquanto outras se revelavam um osso duro de roer. Cinderela, por exemplo, que nos convocava a falar de conceitos psicanalíticos impopulares e difíceis de explicar, tornou-se uma odisseia. Outras nos venciam pela complexidade e riqueza do texto, como foi o caso de Peter Pan. Houve também partes muito divertidas: quando escrevemos o capítulo dedicado aos personagens das histórias em quadrinhos, Mafalda, Calvin e Charlie Brown (um humor para gente crescida, mas com personagens crianças) tínhamos ‘razões científicas’ para ler quadrinhos durante horas a fio, às gargalhadas, assim como para comprar coleções completas de nossas histórias preferidas.

ÉPOCA – O que aconteceu com Cinderela? Que conceitos impopulares eram esses?
Diana – Cinderela é uma história que é simples mas condensa vários níveis de significações. Por exemplo: pensar o fetichismo é incontornável, afinal, ela é lembrada por seu pé delicado. Embora seja uma história ‘de mulherzinha’, ela também é a chave para entendermos a erótica masculina: faz parte do desejo dos homens apegar-se a um traço, uma cor de cabelo, um pé bonito, um par de seios, de nádegas, para se interessar por uma mulher, sem esse atributo, nada feito… Além disso, é uma princesa que tem seu lado ‘sujo’ de Borralheira e sua aparência deslumbrante no baile, sabe ser princesa e ‘vagabunda’, como bem cabe ao jogo erótico. Como se não bastasse, ela é mestre no jogo da sedução, é uma mascarada que encanta e foge, e várias vezes. Isso sem falar nas rivalidades fraternas e na dupla face da mãe: a fada madrinha e a madrasta. Por isso agrada a tantos, mas foi um osso explicá-la.

ÉPOCA – Vocês escrevem que os contos iluminam cantos escuros. Quais são as histórias preferidas de cada um de vocês e por quê?
Mário – Eu não sou muito original. A história que me comovia, na minha memória um conto de terror, era o Patinho Feio. É uma história para todos, a melhor tradução para o desamparo infantil, da sensação de insignificância que temos para o com mundo. Nunca me tornei belo, mas a sensação de desamparo eu já seguro melhor.

Diana – Quando era bem pequena minha personagem predileta era a Branca de Neve. Aliás houve um período em que eu exigia que me chamassem assim, tão identificada eu estava com a personagem. Certamente a fonte de tanta empatia era sua condição de órfã desamparada, pois eu perdi meu pai muito cedo e meu padrasto demorou seis anos para chegar. Mais tarde, era o jogo de esconde-esconde da Cinderela com seu príncipe, assim como a apoteótica revelação da sua identidade secreta o que mais me excitava. Na contramão desse gosto está meu desgosto, por Pinóquio, com cujas trapalhadas sempre me identifiquei e sofri junto. Por isso é uma história significativa, tanto que me é quase insuportável.

ÉPOCA – Qual é a origem da maioria dos contos de fadas que sobreviveu até hoje? De onde eles vêm, já que não vêm das fadas?
Mário – Os contos de fada são, com poucas modificações, oriundo dos contos folclóricos, também chamados ‘Contos Maravilhosos’. Já a origem desses se perde no tempo. Existe um grande desafio nunca respondido pela Antropologia: por que os contos folclóricos se parecem, considerando culturas distintas e muitas vezes isoladas? Talvez a única explicação seja uma origem comum remotíssima, de quando a cultura humana ainda não havia se diversificado tanto. Já outros autores, como Mircea Eliade, por exemplo, acreditam que esses contos são restos, cacos, de antigos mitos, agora dessacralizados. Enquanto gênero, os contos de fada por vezes se aproximam das fábulas, às quais também são histórias curtas, em que os deuses estão geralmente ausentes. Não fazem parte de um todo maior, uma cosmogonia, como os mitos, e tentam passar uma sabedoria. Os contos e as fábulas se opõe aos mitos e às sagas, pois embora estes últimos possam ser também histórias curtas, eles constituem sempre uma peça de um grande painel. Nas fábulas, a moral da história é o fecho e é explicitada, enquanto nos contos de fada isso fica diluído e nem sempre há exatamente uma moral, o mais importante é um desfecho resolutivo.

ÉPOCA – Como foi, usando as palavras de vocês, ‘que esses restos do passado vieram parar nas mãos das crianças de hoje’? O que faz com que sobrevivam? Ou por que ainda ecoam em nós?
Mário – Evidentemente que a sociedade contemporânea tem pouca semelhança com a de nossos tataravôs, não somente no sentido da tecnologia, mas também da vida privada. É do lado das mulheres e das crianças que as grandes modificações se processaram, no sentido da libertação das primeiras e da valorização das segundas. Na realidade, em nossos sonhos utópicos, desejávamos modificar ainda mais, libertando-nos do casamento e da família enquanto núcleo de poder e neurose. Não deu. Com o passar dos anos, terminamos por consolidar ainda mais os vínculos entre pais e filhos, já que a família deixou de ser grande e cheia de ramificações, reduzindo-se a um pingo de gente presa num apartamento. Com o casamento ocorreu o mesmo, pois ele se tornou a grande tábua de salvação contra a solidão e o desenraizamento que sentimos. Não importa que não dure, continuamos casando compulsivamente. Os contos de fadas se prestam para retratar dramas íntimos de forma metafórica: sair de casa, expulsa pela madrasta, enfrentar um ogro, encontrar no amor a solução de todos os males, travar uma luta mortífera com figuras poderosas e aventurar-se na floresta, correr o risco de virar iguaria de uma bruxa canibal. Tudo isso são absurdos que, por incrível que pareça, podem ilustrar nossos conflitos inconscientes. Se outrora os contos folclóricos narraram de forma fantástica questões relativas à sexualidade e aos problemas de filiação, hierarquia e herança, hoje, trazidos para a intimidade doméstica, alguns desses relatos servem para finalidades similares. O mundo pode ter mudado totalmente, mas tornar-se mulher ou homem, assim como enfrentar o crescimento e a morte ainda são nossos problemas. No que diz respeito a certas questões, tudo mudou… para que pudesse continuar do mesmo jeito.

ÉPOCA – Os contos de fadas são muito mais antigos que a visão moderna de infância, datada do século XIX. Eles se tornaram infantis apenas quando o conceito de infância muda?
Diana – De fato, os contos de fadas e a magia sobraram para as crianças quando passaram a ser pensadas enquanto seres humanos em construção e sua fragilidade foi reconhecida. Concomitantemente, a sociedade promoveu a racionalidade enquanto sua maior aquisição. A elas, seres incompletos, coube a identificação com o que restava em nós de primitivo, algo que se acreditava que seria superado com tempo e pedagogia. Mas, apesar da queda da Bastilha, ainda crescemos em um reino, embora reduzido a alguns poucos metros, com seus reis e súditos. Hoje os pais estão mais para monarcas apavorados e inseguros do que para déspotas esclarecidos. Porém, para seus filhos pequenos ainda são figuras enormes e poderosas, não é de surpreender então que as crianças tenham se apropriado, e que os adultos tenham promovido isso, dos restos de um passado socialmente distinto, mas psicologicamente evocativo. É a insegurança infantil da infância que promove os pais a essas encarnações monárquicas: quanto menores somos, maiores terão que ser nossas figuras protetoras, quer seja pela sua nobreza ou pelos super-poderes. Na modernidade não foram só as crianças que mudaram, que ganharam legitimidade e atenção especial, os adultos também são outros. A elas ainda é reconhecido o direito à dependência e à incompletude, enquanto aos adultos, criados no seio do individualismo racionalista e empreendedor, nada deve restar de identificação com os assustados camponeses e sua visão mágica do mundo. Tudo balela: a almejada auto-suficiência e o pensamento científico são constantemente derrotados pelo sonho do amor romântico, assim como crescentes ondas de misticismo tomam conta de tudo. A sociedade contemporânea se infantiliza cada vez mais, e uma das razões é o fato de que o direito ao pensamento mágico ficou teoricamente reduzido à infância. No fundo, nunca crescemos tanto quanto gostaríamos.

ÉPOCA – O que fez com que alguns contos sobrevivessem e outros perecessem? Ou pelo menos parte deles?
Diana – Em primeiro lugar é preciso entender que os contos de fadas são como um caleidoscópio, onde peças se combinam de formas diversas para formar desenhos diferentes. Ler coletâneas de contos folclóricos das diversas origens é surpreendente, pois muitas histórias revelam-se versões, repetições ou combinatórias das nossas clássicas conhecidas. Provavelmente, as sobreviventes foram aquelas que apresentaram as melhores sínteses, o que ajudou com que caíssem nas graças de alguns dos responsáveis pelas versões consagradas, como Perrault ou os irmãos Grimm. Foram estes os maiores responsáveis pelas versões que hoje utilizamos, graças ao seu esforço de adaptação das histórias folclóricas à moral e estética de seu tempo. Justamente do trabalho de encaixe destes narradores é que provém a maior parte das censuras, de histórias ou de partes delas, assim como as distorções.

ÉPOCA – Alguns exemplos…
Diana – No final do século XVII, Perrault contou uma Bela Adormecida que é deixada em seu castelo enfeitiçado com a criadagem, mas sem a companhia de seus pais, os quais devem se resignar a que o tempo do despertar da filha já não será o de seu reino. O príncipe que a desperta envolve-se com ela em uma relação de amantes, que se mantém clandestina por dois anos e somente será assumida após a morte do pai do moço, quando ele precisa fazer aparecer sua rainha. Porém, do lado de fora do castelo da Bela quem a espera é a sogra, uma ogra que tenta comer a nora e os dois netinhos, Sol e Aurora, nascidos durante os anos de concubinato. Pouco mais de um século depois, os irmãos Grimm construíram a versão que Disney consagrou: a família adormece toda junta, os pais não são superados dessa forma tão radical, o príncipe a desperta com um beijo e vivem felizes para sempre. Como se vê, faltam as partes mais picantes e emocionantes. A história fica mais adequada para o uso da família, principalmente a idealizada pela mente romântica dos compiladores alemães, onde se faz de conta frente às crianças que o sexo não existe, e a morte e a violência são ocultas ou amenizadas. Algumas histórias, como Bicho Peludo ou Capa de Junco, ficaram esquecidas devido a seu conteúdo francamente incestuoso. Conhecemos algumas versões de Pele de Asno, onde o pai que quer casar com a filha é convenientemente substituído por um tio.

ÉPOCA – Os contos de fadas contêm mais horror que os noticiários mais sensacionalistas de hoje. Se houvesse censura, eles não baixariam dos 18 anos. Tem incesto, degolas em série, transformações de pessoas em animais, pais que abandonam os filhos na floresta, pais que querem levar as filhas para a cama, bruxas que querem comer gente, lobos que comem avós, horrores sem fim. Tudo o que é considerado sórdido na humanidade está lá. É este o segredo de sua perenidade? Como podem ser infantis?
Diana – Na infância, nosso pensamento é naturalmente hiperbólico, tudo ganha proporções dramáticas. As crianças gostam dos contos de fada pois ali encontram uma similitude no modo de ver o mundo. Tudo é mágico, muito maravilhoso e muito perigoso. O pensamento infantil, se pudesse ser censurado, também ficaria para depois dos 18 anos. No pensamento infantil tem incesto, execuções sumárias e massacre de todos aqueles que se interpuserem entre as crianças e seus desejos, tem canibalismo, adultos assustadores e animais fantásticos. Tudo isso de forma metafórica, inconsciente e até lúdica, bem entendido. Os contos de fadas administram esta pequena loja dos horrores da mesma forma que as crianças: tudo pode ser aludido, sem que nada tenha de ser explicitado. Provavelmente esta é, sim, uma das fortes razões de sua sobrevivência.

Mário – O que nos atrapalha entender a natureza dos contos de fada é a nossa auto-imagem moderna. Gostamos de nos imaginar governados pela razão, quando na verdade somos arrastados pelas nossas paixões e desejos. Nos educamos para pensar e escolher racionalmente, mas muitas vezes o peso dos mitos e das superstições fazem valer sua força. Como os cidadãos do Ancien Régime não tinham essa preocupação de serem racionais, nem tinham a exigência de uma sensibilidade politicamente correta, talvez apreciassem mais intensamente os contos de fada.

ÉPOCA – Muitos contos de fada sofreram modificações para se tornarem mais palatáveis aos tempos de hoje. Quais foram as mudanças mais significativas e famosas? E o que elas significam?
Mário – Creio que a modificação mais interessante é a do Príncipe Sapo. Hoje todos sabemos que ele ganha um beijo e vira príncipe. Ora, na história original a princesa se irrita com a sua asquerosa presença e o joga contra uma parede. É esse ato violento que o desencanta. Surpreendente, não? O que era violência vira amor, essa é a tônica de tantas outras modificações, que suavizam e pasteurizam as tramas. Vivemos uma ÉPOCA de maior sensibilidade para com as crianças e os elementos mais grotescos foram sendo removidos. Quem representou muito bem esse processo foram os irmãos Grimm, que a cada nova edição iam depurando, principalmente atuando na proteção da imagem da mãe. A construção e idealização da figura da mãe como a encarnação do amor que une a família nuclear tornou-se essencial. A família pequena, quente e claustrofóbica como a que temos hoje, levou centenas de anos para ser lapidada. Os irmãos Grimm fizeram sua parte eliminando as mães más, transformando-as em madrastas. O vínculo que o sangue selou não devia ser maculado… Mas esse processo de censura pode atingir uma história inteira, como em Bicho Peludo ou Pele de Asno, por exemplo. São histórias cujo mote é o desejo incestuoso dos pais pelas suas filhas. Nossa nova sensibilidade reprimiu esses contos que circulavam como outros quaisquer nos séculos passados.

ÉPOCA – Quando lemos o livro, não são as fadas que estão no divã. Mas o leitor. O livro, além de nos recordar das histórias da infância que seguem nos habitando (ou assombrando), pode funcionar como uma espécie de terapia. Foi essa a idéia? Poderíamos chamar de auto-ajuda psicanalítica?
Mário – O livro foi pensado como uma contribuição teórica. Nesse sentido é para quem trabalha ou se interessa pela infância (inclusive a própria). Efeitos em quem lê são um contrabando bem-vindo. Aprender psicanálise de um modo verdadeiro significa analisar-se, ou seja, sentir em si os efeitos do próprio inconsciente (aquilo que a gente faz ou pensa e não sabe o porquê) e descobrir que é possível compreender-se a partir daí. Se o nosso texto conseguir tocar o leitor e fazê-lo pensar sobre sua vida ficaremos realizados. Provavelmente o que conseguiremos será precipitar conclusões ou associações que já estavam se insinuando na cabeça do leitor, por isso a leitura pode acabar sendo mais lenta, reflexiva, tendendo a produzir devaneios. Esse é um efeito que não se pode pretender quando se escreve, ele acontece ou não, esperemos que nesse caso sim. Algumas pessoas que o leram enquanto escrevíamos se sentiram pessoalmente tocadas, veremos…

Diana – Esse efeito também é conseqüência do fato de que escrevemos a partir da nossa própria experiência de divã: as leituras que fazemos dos contos contém conclusões pessoais, algo do que aprendemos com o próprio sofrimento neurótico, isso talvez facilite a empatia do leitor. Mas não podemos esquecer que o objeto, especialmente os contos de fada, também são potencialmente capazes de mexer com nossas entranhas subjetivas. Eles ativam pensamentos que temos arquivados desde a infância. Talvez nosso livro possa despertar as histórias infantis adormecidas nos adultos.

ÉPOCA – E as novas histórias, como Harry Potter, elas podem ser consideradas contos de fadas? Com o que rompem, com relação às histórias da tradição, e o que trazem de novo?
Mário – Essas novas histórias fornecem elementos úteis à subjetividade infantil tal qual os contos de fada, mas decididamente não são novos contos de fada. Harry Potter, assim como Pinóquio ou Peter Pan, podem até ter um final reconfortador, mas essas personagens são complexas e ambíguas. Trazem para a infância elementos do romance moderno, onde a aventura tem um papel tão relevante quanto o crescimento subjetivo da personagem ao longo da história. As personagens dos contos de fada são unidimensionais, só são boas ou só são más, o que facilita sua apreensão pelas crianças bem pequenas, mas não devemos subestimar as crianças, elas bem cedo fazem uso e se beneficiam de histórias onde o mundo é mais complexo. Nos contos de fada os heróis não têm impasses, todos querem crescer, ter um lugar no mundo, casar e ter filhos. Peter Pan não quer nada disso, enquanto Pinóquio se arrepia quando o assunto é estudar ou trabalhar. Ou seja, nas histórias infantis modernas a magia se mantém, mas tudo está em questão, inclusive – e principalmente – crescer.

ÉPOCA – Com relação à segunda questão que vocês se propõem a responder no livro, o que estas histórias do século XX dizem sobre o tipo de gente que estamos nos tornando?
Mário – Elas nos dizem o que o resto das produções culturais dizem. Estamos nos tornando mais individualistas, portanto com uma necessidade maior de diferenciar o nosso destino do destino dos outros. Como já não há lugares prontos, é mais trabalhoso para cada um construir o seu. Harry Potter e sua orfandande talvez seja um bom exemplo disso. Todos somos como órfãos, pois não há muitas garantias do lugar que ocupamos, não sabemos bem o que significa a origem familiar que temos e mesmo quando ela se impõe de alguma forma, preferimos corrompê-la, fazer da vida uma versão pessoal. Precisamos sentir que estamos fundando nosso próprio destino. Como Peter Pan, gostaríamos de ser sempre jovens, como Pinóquio gostaríamos de levar uma vida sem tantos fardos, de não pagar um preço tão elevado para nossa estada no mundo. Como Dorothy, do Mágico de Oz, adoraríamos seguir acreditando que existe um pai que possa nos guiar nesse mundo confuso. Além disso, gostaríamos que o mundo fosse seguro como o é para o Ursinho Pooh. A questão é que em todas essas histórias esses personagens têm suas expectativas ou ingenuidades criticadas ou frustradas: Potter tem que aprender muita coisa e está longe de ser um herói auto-suficiente, Pan não cresce, mas vai perder seus amigos para a vida adulta, Pinóquio se resigna a estudar e trabalhar, enquanto Pooh tem suas ingenuidades expostas pelo seu dono, que o chama de ‘velho urso bobinho’. Na verdade, as histórias infantis atuais não são muito alentadoras. Ao contrário dos contos de fada, elas não querem que as crianças se iludam muito com o que nos espera adiante. Elas são mágicas, mas ao mesmo tempo muito realistas…

ÉPOCA – O livro clássico do Bruno Bettelheim, Psicanálise dos Contos de Fadas, foi uma fonte de inspiração? Quais são as principais diferenças e divergências com o Fadas no Divã?
MárioPsicanálise dos Contos de Fadas de Bettelheim foi, sim, a nossa inspiração, um livro que abriu caminhos para o entendimento do papel das histórias infantis. Mas ele tanto está envelhecido quanto comete um pecado que o enfraquece. Existe em Bettelheim uma supervalorização da forma e do conteúdo que não faz sentido para nós. Quanto ao conteúdo, para ele os Contos de Fada, por serem folclóricos e antigos, trariam em si uma profundidade psicológica naturalmente embutida. Na verdade, não há uma simbologia universal em cada trama. Certas questões têm perdurado através dos tempos, mas a leitura que nossos bisavós faziam das mesmas histórias não era como a nossa. Quanto à forma, pensamos que a fantasia e sua eficácia independem do meio ao qual estão vinculados. O que vale são os efeitos que produzem sobre a criança e não se são provenientes de uma história milenar, como Cinderela, ou de um programa de TV descartável, feito em Hong Kong, ao estilo de Power Rangers. As crianças se apegam àquelas histórias que conseguem tocar em alguma questão importante para elas. Por desdenhar a cultura de massa, Bettelheim ficou cego para a produção cultural infanto-juvenil que veio num crescendo durante todo século XX. É claro que recomendamos os Contos de Fada, que são extremamente ricos, mas o importante é ver o que as crianças estão realmente consumindo e o que elas conseguem fazer com isso.

ÉPOCA – Bruno Bettelheim acredita que os contos de fadas passaram por uma espécie de seleção natural de Darwin: ou seja, sobreviveram até hoje os que continuaram tendo o que contar ou os que se adaptaram melhor às circunstâncias, exigências e perguntas do novo mundo. Como esta seleção não é ‘natural’, como ela funciona?
Mário – A seleção é cultural. Vivemos num mundo cada vez mais atento à sensibilidade infantil, acreditamos que devemos poupar as crianças das coisas mais brutas e mais cruas, logo, os contos de fada sofreram uma adaptação aos novos tempos. Eles conservam os elementos centrais, mas estão mais depuradas das ditas ‘grosserias camponesas’. Os traços centrais da censura vão na direção de preservar a família, para tanto os pais maus viram tios ou ogros, e as mães más viram madrastas. O sexo deve ser menos aparente, então as alusões são abrandadas. A violência deve ser contida e o amor prevalecer, como que o século XX não iria deixar suas marcas nos contos de fada?
ÉPOCA – Vocês fazem uma crítica ao apresentar o livro: que apesar de nunca ter se investido tanto e tão obsessivamente na infância – e se esperado tanto das crianças – é muito reduzido e inexpressivo o espaço dedicado à crítica para a ficção que lhes é oferecida (livros, filmes etc). E que, quando ela é feita, em geral é catastrofista, com respeito aos efeitos nefastos de games e desenhos animados violentos. A que vocês atribuem este paradoxo?

Mário – Esquecemos a maior parte da nossa infância e nem sempre lidamos bem com o que resta dela. A amnésia da própria infância se dá porque é difícil constatar que vivemos nossos primórdios alienados nos desejos dos nossos pais, que éramos tão pouco senhores do nosso destino. A criança é frágil, dependente, ilude-se fácil, vive com medo de ser abandonada ou desprezada, sentindo-se minúscula frente ao que se espera dela. Os intelectuais não estão fora disso. Também desconhecem a criança que um dia foram. A produção teórica sobre a cultura infantil sofre as conseqüências dessa relação ambivalente com a própria infância e, quando as resistências são vencidas, ocorre que as ficções e fantasias que faziam sucesso já não estão mais em cartaz. Poucos conseguem conectar-se com o que a próxima geração está assistindo e isso só acontece, parcialmente, quando se têm filhos. Mas nem sempre nossa alma está ali realmente vibrando quando assistimos algo como Pokemon, afinal já não somos mais crianças e nossos desenhos animados eram outros… A tendência é um estranhamento, um raciocínio auto-centrado, acreditando que ali não há uma fantasia com uma pulsação verdadeira. Uma boa critica vêm de quem realmente viveu uma fantasia e não a viu de longe. A indústria cultural tem justamente sanado esse problema com produtos uni-temporais, que tentam atingir pais e filhos. Neles, as gerações podem, como nos contos de fada, falar sobre uma fantasia compartilhada. Esses filmes, sim, possuem uma boa crítica e sabemos sobre o que está sendo ofertado às crianças. Na verdade esses novos produtos culturais, que interessam a gente de todas as idades, retomam algo que é um dos segredos dos contos de fadas: são universais, comuns a pais, avós e crianças, e permitem um diálogo entre as gerações.

Diana – Somos poucos os que realmente sentamos com as crianças e topamos ouvi-las e brincar com elas. Não é difícil de compreender essa dificuldade, pois elas sabem ser repetitivas (chatas) e ter um raciocínio cruel, que deixa o adulto embretado. ‘Mãe, o fulano vai morrer?’, ‘Vamos ficar pobres?’, ‘Porque a gente não dá todas nossas coisas pra essa gente que precisa?’, ‘Eu odeio a professora, tomara que ela seja atropelada por um ônibus!’. Os programas que são oferecidos às crianças e jovens e consagrados pelo seu gosto são muitas vezes grosseiros e cruéis, mas ao pensar tão mal deles esquecemos quão escabrosas sabem ser as idéias que as crianças se permitem ter, já que a relação com seus desejos e tendências inconscientes é menos recalcada que a nossa. Elas costumam expressar sinceramente aquelas coisas que temos vergonha de contar até para o nosso analista.

ÉPOCA – Vocês dizem que as narrativas familiares são muito importantes, que os pais devem criar suas histórias porque só elas podem contar algo importante sobre aquela família, quase como a recriação e transmissão de uma mitologia daquele mundo familiar. E que devem fazer isso sem planejar as histórias, sem medir palavras, como uma livre-associação psicanalítica. O quanto isto é importante? E, no avesso, o que contam aos filhos os pais que não contam histórias suas?
Diana – Fomos pais contadores de histórias. A maioria delas criações coletivas familiares, e não foi muito difícil descobrir (tempos depois, bem entendido) que as tramas que inventávamos eram decantadas do inconsciente familiar. Foi por isso que incluímos no livro uma história que o Mário contava para as meninas. Através da análise dela tentamos demonstrar como é que acabamos falando com as crianças sobre o que nem nós sabíamos que estávamos pensando, como sexo, o amor entre os pais, a morte, as dificuldades da vida. Nas histórias inventadas, assim como nas pré-existentes que escolhemos para contar, palpita o inconsciente de uma família, seus segredos, impasses, frustrações e sonhos. Freud já dizia que os escritores podem antecipar-se, em sabedoria e capacidade de compreensão do inconsciente, aos analistas. Pois bem, as histórias narradas em família oferecem aos pequenos essa mesma sabedoria. Se não houver quem lhe conte histórias, a criança as coletará na televisão, nas conversas dos adultos, no rádio. A única certeza é que a imaginação é artigo de primeira necessidade, feijão com arroz da nossa sobrevivência psíquica, instrumento fundamental de elaboração e construção da nossa identidade.

ÉPOCA – Uma das transformações é a mãe má em madrasta. Quando não podemos mais suportar que nossa mãe seja má? Que época e que mundo é esse em que a mãe precisa ser idealizada?
Mário – A família moderna é fruto de um grande investimento de educadores e moralistas. A Mãe (assim com maiúscula) é uma invenção recente (meados do XVIII, XIX e XX). Nessa invenção, a mãe é representada como um ser maravilhoso, pura bondade, rainha do lar, sempre com a intervenção correta para com os filhos. Essa posição tem a vantagem de fazer parecer que nossa forma de organização social, a família nuclear, é algo da ordem natural. Aparecem como vínculos que se originariam no dom de procriação feminino e se perpetuariam do lado de fora do ventre, com as mesmas características de aconchego e dedicação. Nessa versão idealizada, a mãe nunca quer o mal de ninguém e sempre aponta o melhor caminho para os filhos. O problema não é que tenham inventado semelhante anjo, o problema é que há muitos seres humanos com filhos que se julgam assim, sem falhas, sem mácula, sem maldade, puro amor. Dessas santas é melhor manter distância, pois tanta pureza só pode ser mantida às custas de ignorar (e atuar) os impulsos e sentimentos mais inconfessáveis. Logo, todo cuidado é pouco com essa mãe. É claro que o mundo das fadas acompanhou esse processo, e as mães más viraram madrastas.

ÉPOCA – A batalha das filhas/princesas/afilhadas com as mães travestidas de madrastas/bruxas/madrinhas, segundo o livro, é uma batalha pela conquista da identidade feminina, que implica identificação e superação, a um custo nada baixo. Nos contos, é uma batalha de vida e morte. E na vida, tem como ser diferente?
Diana – O livro não está de marcação com as pobres das mães. Há, por exemplo, o capítulo dedicado a João e o Pé de Feijão, aonde o que vem ao caso é vencer um pai-ogro gigantesco e terrível para passar de menino a homem. A identificação é um processo doloroso, porque se torna necessário superar e derrotar justamente aqueles que mais se admirou e amou: os pais. A relação do menino com seu pai é uma disputa franca e clara, embora dê medo derrotá-lo, pois fica-se desamparado. Já entre a menina e a mãe, essa disputa envolve um problema amoroso, pois a mãe foi, também para a menina, sua primeira paixão. Como então abandonar um vínculo, vencê-la como uma rival qualquer, se de seus olhos, de seu toque, veio nossa imagem corporal, de sua voz nossa primeira identidade? Por isso a separação entre a menina e a mãe, assim como a identificação necessária para tornar-se mulher, é um processo mais tumultuado, que contém mágoas, ressentimentos e agressividade, enfim, tudo que marca o fim de uma história de amor. Assumir uma identidade sexual, seja masculina ou feminina, passa necessariamente por receber um aval para usá-la, ser reconhecido pelos pais nesse lugar. Nos contos isso nunca é fácil: João, por exemplo, cutuca o ogro roubando-lhe todo tipo de tesouros enquanto ele dorme, até que por fim ele acorde e o persiga. Só nesse momento o monstro reconhece no menino o ladrãozinho que o vinha depenando e sai em sua perseguição para o embate final. Observando bem, a madrasta de Branca de Neve vai buscar a pobre coitada, que está escondida na cabana dos anões, sem pretensão de incomodar ninguém, para livrar-se dela ou para prepará-la para a chegada do príncipe? Os feitiços que ela usa para vencer a rival são também mimos de mulher: um pente, cadarços para o espartilho e uma maçã. No final das contas, é ela que acaba tirando Branca de Neve da inocência, oferecendo-lhe o fruto proibido, ensinando-lhe a cuidar dos cabelos e a afinar a cintura. É um drama bem caótico sim, mas é útil.

ÉPOCA – Por que a inveja materna é fundamental para que a filha possa se tornar mulher? E o que resta à mãe na vida, já que nos contos só lhes resta morrer – literalmente? Não bastaria que a filha fosse embora de casa?
Diana – Não basta para a filha ir embora, esconder-se. A mãe tem que participar ativamente dessa separação. É nesse sentido que a inveja materna constrói a identidade da filha. Ela terá que aprender a ser mulher com a mãe, entre tapas e beijos. Quanto à mãe, a inveja é inevitável, pois seu viço declina (independente de quantos recursos ela use contra o trabalho cruel da gravidade) na mesma proporção que o de sua filha desabrocha. Para a filha essa inveja é como o despertar do ogro, o reconhecimento de que ela é uma rival à altura.

ÉPOCA – Vocês escrevem que a adolescência é um período de adormecimento e ilustram essa tese com histórias como Branca de Neve e Bela Adormecida. Por que é necessário estar dormindo para seduzir um homem? Ou é simplesmente um ‘despertar para o sexo’?
Diana – A adolescência não é vivida no mesmo lugar e tempo que a maturidade: durante os anos da juventude os amores são experimentais, os lugares que frequentamos são em geral públicos ou estão vazios de seus donos (praças, parques, shopping centers, a rua, as casas das famílias cujos pais estão ausentes), de tal forma que os acontecimentos demonstrem seu caráter avulso, provisório. Por isso é que os jovens adoram dizer que ‘não dá nada’, quando estão, onipotentemente, recusando-se a escutar os avisos e recomendações dos mais velhos. Estão vivendo um tempo de inconsequência, exilados da seriedade da vida, uma espécie de presente contínuo. Nesse sentido, estão despertos para o sexo, mas adormecidos para o mundo. O momento do despertar das princesas, quando elas acordam para o casamento (como em Branca de Neve e na Bela Adormecida dos irmãos Grimm), equivale para elas também à saída desta vida de estagiário, de adulto em treinamento. Quanto ao sono, ele é uma metáfora da disponibilidade erótica. Convém observar que nesses sonos enfeitiçados elas costumam manter as cores da vida, o rubor, as cores que cativam seus príncipes, os quais estão longe de ser necrófilos. Sua espera é passiva, mas de uma expectativa excitada. O gosto pelos amantes em posição de passividade, abandonados à serviço do desejo de outrem não é exclusivo do amor adulto: as mães se derretem frente a seus anjinhos adormecidos, inermes, entregues à sua adoração, seus obscuros objetos de desejo.

ÉPOCA – Ao ser uma princesa adormecida, à espera do primeiro mané real que chegar até lá, ela não se exime de assumir a autoria de seu desejo? Por que essa figura sobrevive no tempo em que as mulheres se tornaram caçadoras assumidas e leitoras compulsivas de revistas femininas?
Diana – Não é pelo fato de que uma mulher tenha aprendido a arte da caça que ela vai abrir mão do desejo de ser caçada. Aliás, as histórias de fadas que foram expurgadas (como Bicho Peludo, Capa de Junco), aquelas que não se tornaram tão populares, são pródigas em princesas que caçam seus príncipes enquanto se fazem de caçadas. Um bom exemplo é a própria Cinderela, a qual se paramenta toda, vai ao baile, enlouquece o príncipe e some, fazendo-o procurá-la que nem um louco, rodando o sapatinho por todas as moças do reino. Se a seleção social, através do tempo, tem dado destaque às princesas inermes, que ficam se fazendo de mortas enquanto o beijo não vem, a leitura que as mulheres fazem disso não é, nem nunca foi, simplória. Antes de deitar, numa aparente entrega total, não há mulher que não prepare a cena, ajeitando cada detalhe, e isso não é de hoje. A fêmea humana sempre foi temida, considerada ardilosa, fofoqueira e pouco confiável, vide as tantas que acabaram na fogueira. Os contos de fadas sempre lembram que as moças até podem jogar o jogo da passividade, mas basta a maturidade chegar e a bruxa ou a madrasta revelam todo seu fel. Mulher madura boazinha nos contos de fadas é mulher morta, como a mãe da Branca de Neve…

ÉPOCA – Neste mundo em que tenta se impor a juventude como período único e eterno da vida, especialmente às mulheres, o que as mães/madrastas/bruxas dos contos de fadas têm a nos dizer? As plásticas, botox, cremes, academias e outras mirabolâncias/feitiços as impede de matar todas as filhas/princesas realmente jovens de hoje?
Diana – Realmente, se temos algum tabu hoje, esse é o envelhecimento. Aliás ele surge exatamente quando a longevidade tornou-se possível graças aos avanços da Medicina. Foram eles que geraram a expectativa não da vida prolongada, mas da juventude eterna. Apresentar sinais da passagem do tempo, como as rugas de expressão que deixam estampado no rosto nossas caretas mais típicas, é como andar por aí com uma bomba relógio na testa, mostrando que resta pouco prazo. Admiramos nos jovens sua condição de potencial, de promessa, eles não escolheram ainda seu amor, sua profissão, seu modo de vida, por isso nos parece que eles têm o mundo em suas mãos, pois escolher é perder. Acredito que a qualquer momento da vida estamos em condições de reinventar outro destino, dar guinadas (por isso sou psicanalista), e quando fazemos isso na maturidade é de forma menos ingênua, e, porque não dizer, mais sábia. Se investirmos todas as nossas energias em ocultar a idade (e isso custa muito tempo, trabalho e dinheiro), como o hábito faz o monge, seremos imaturos como nossa imagem sugere, o que, convenhamos, numa pessoa mais vivida é bem patético. Conseqüentemente, acabaremos sem condições emocionais para aproveitar a vida do jeito que a sabedoria do tempo nos ensinou. Aliás, quanto mais sabedoria, menos remendos na imagem necessitamos. Quanto às mulheres, como no nosso baralho o amor é uma carta que vale mais do que no baralho masculino, somos mais dependentes da imagem, a qual consideramos decisiva para ser amadas. Porém essa é uma diferença que está diminuindo entre os dois sexos, cada vez mais encontramos homens na frente do espelho dizendo: ‘espelho, espelho meu, haverá um homem mais belo do que eu?’.

ÉPOCA – Na maioria dos contos, a casa paterna/materna é sempre uma ameaça. Mais seguro se está na floresta. Por quê?
Mário – A casa paterna nem sempre é uma ameaça, ela torna-se quando exigimos que a criança cresça, pois ela se sente expulsa. Nesse momento a floresta (representando tudo que é fora de casa) confunde-se com o lar, pois o aconchego, segundo a criança, já não existiria. Não raro as crianças tomam as tentativas educacionais dos pais como maus tratos. A mensagem ‘cresça’ é escutada como ‘não gostam mais de mim’. Outro momento em que esta questão pulsa é quando o jovem desperta para o sexo e, como sabemos, o destino dessas pulsões só pode ser o dos habitantes da ‘floresta’. Nesse momento a floresta apresenta sua face ameaçadora, terrífica, obscura, como são os segredos do sexo para quem está começando.

ÉPOCA – Que lugar tem o espelho, falante ou não? Quem ou o que é – e nos diz?
Diana – Assim como o ‘auto-móvel’, que não sabe mover a si mesmo sem um motorista, a auto-imagem depende de que alguém testemunhe, confirme e afirme em alto e bom som eu que somos bonitos, amados e tudo de bom. Como se vê, não temos muita ‘auto-nomia’! É aí que entra o espelho em seu caráter metafórico. Nós o olhamos um número maior de vezes do que seria necessário para ver se o cabelo, a maquiagem ou a barba ficaram bons, e isso é porque ele é mudo. Fosse como o da madrasta da Branca de Neve talvez tivéssemos alguma independência dele. Poderíamos ficar nos repetindo suas palavras – és a mais bela das mulheres- como um mantra auto-reconfortante. A imagem corporal que temos foi construída quando éramos bebês graças à voz, ao toque, ao olhar da nossa mãe (ou quem ocupe lugar similar), por isso ela será para sempre uma fonte de diálogo com essa alteridade, esse olhar de fora que o espelho representa.

ÉPOCA – De todos os contos, o que mais se prestou a apropriações eróticas nos dias de hoje foi Branca de Neve por causa dos sete anões. O que aconteceu com o anões? O que eram e o que são?
Mário – Sinceramente não conheço estatísticas de uso erótico das histórias de fada, mas faria sentido. Os anões nos parecem uma fusão do ‘fora do sexo’ ou seja, eles têm o tamanho das crianças e as barbas e a idade da velhice. Quando Branca de Neve procura um lugar onde sua beleza não incomode é ali que encontra um lugar seguro. Nos mais variados contos de fada os anões estão sempre em busca de um tesouro ou guardando um tesouro, o seu objeto de cobiça nunca é erótico/amoroso. Logo sexualizar os anões seria, se a simbologia se mantém, sexualizar as crianças e os velhos, o que de fato cria um eco em todos, pois na verdade são seres sexuados desde sempre, embora isso seja um tabu.

ÉPOCA – Por que, ao contrário das mães, os pais são sempre perdoados, mesmo quando seu desejo é incestuoso, como em ‘Pele de Asno’?
Mário – Os pais nem sempre são perdoados. Quando o herói é masculino, como em João do pé de feijão, por exemplo, o pai-ogro termina morto. As mãe boas não são perdoadas por que nem ao menos foram acusadas, pobrezinhas, morreram no começo da história. Quem vai para a fogueira mesmo é a madrasta. Em Pele de Asno não há uma figura de pai dissociado, onde um possa morrer e o outro maravilhoso estará sempre no nosso coração. Só nos resta fazer as pazes com ele, então. Até por que os contos de fada trazem uma verdade psicológica importante, depois de sair de casa fica mais fácil conviver com os pais. Acredito que o perdão das princesas que foram desejadas pelos pais chega depois que elas se dão conta que estavam mais envolvidas nesse processo que gostariam de admitir. Em suma, o desejo que esses homens-pais expressaram por elas ajudou com que se tornassem mulheres (porém, este deve ser suposto, jamais atuado). Senão, por que pediriam aos pais mais e mais vestidos deslumbrantes, mesmo sabendo que eles os davam movidos pela paixão incestuosa? Assim é o processo de construção da identidade feminina: é necessário que pai esteja lá na medida certa.

ÉPOCA – Mesmo como as vilãs dos contos, o veneno/maldição que as mães/madrastas/bruxas dão às filhas/princesas/afilhadas é justamente a sexualidade (seja pela maçã, seja pelo fuso da roca), o que torna esta morte apenas uma passagem da vida de menina para a vida de mulher. Neste sentido, as vilãs não estariam libertando as princesas?
Diana – Com certeza. As vilãs como a bruxa de Branca de Neve estão dando às princesas os atributos necessários para despertar para o desejo sexual (nas três vezes que a visita, a madrasta entrega a ela um pente, cadarços para o espartilho e o fruto proibido). Em muitos contos de fadas, as jovens mulheres recebem de auxiliares mágicas, mulheres mais velhas, objetos que representam a identidade feminina e com os quais conquistarão seus príncipes. Porém, nesses casos, a sucessão se dá sem conflitos, o que não ocorre quando a mulher mais velha ainda mantém seu viço, ainda não abdicou de seu lugar entre as mulheres desejáveis. Via de regra é assim que ocorre na vida, pois quando a filha fica com aquele corpinho invejável, a mãe ainda é uma mulher jovial, que gosta de sexo e quer ser desejada. É aí que a inveja materna, representada por disputas de beleza ou algumas farpas verbais (mulheres lutam com as línguas, não com os punhos) cumprem uma função importante: a de assinalar à jovem que a mãe a reconhece como uma rival à altura, uma a mais entre as mulheres. Quando isso ocorre, a criancinha amada da mamãe, aquela que era arrumada como uma bonequinha, morre. Em seu lugar desperta uma jovem mulher, que poderá, nas histórias da vida com final feliz, tornar-se uma amiga de sua mãe, mas não será mais seu bebê encantado. Sendo assim, se alguma libertação acontece, é a de que com essa disputa o idílio entre mãe e filha se encerra de vez, assim essas mães vilãs estariam libertando as filhas-princesas de si mesmas.

ÉPOCA – O que acontece depois do ‘felizes para sempre…’ E quando e porque os ‘felizes para sempre’ passaram a encerrar os contos de fadas?
Mário – A ideia de Bettelheim ainda é a melhor explicação. Ele nos diz que a expressão significa, na verdade: ‘Agora não haverá mais angústia de separação’. Em boa parte das histórias há um desencontro radical inicial e o final é o re-encontro num patamar mais elevado. O que as crianças e, convenhamos, os adultos querem acreditar é que nunca mais vamos nos separar dos seres amados que nos cercam, nunca mais vamos ter perdas amorosas. Nem todas histórias da tradição tinham o fecho com essas palavras, mas o conteúdo tinha esse mesmo sentido. Atualmente é um mote tão obrigatório assim como o: ‘Era uma vez…’ Os contos de fada são por definição resolutivos ao contrário dos mitos que tendem ao trágico. Logo, depois do felizes para sempre pode haver outra história que, por mais tenebrosa que seja, também terá um final feliz.

ÉPOCA – Qual a personagem infantil mais moderna? A que retrata melhor o nosso tempo?
Mário – Acredito que seja o Pinóquio. Embora escrito no fim do século XIX, talvez seja o mais atual. O drama dessa marionete, que quer a qualquer preço chegar a ser um menino, centra-se na incomunicabilidade entre pai e filho. Eles não se entendem, vivem momentos muito diferentes. Gepeto quer que ele seja obediente como um…marionete, enquanto Pinóquio é neurótico, desobediente e confuso como um… menino! No mesmo processo que se constrói a maturidade do filho, o pai vai aprendendo os ossos do ofício, tanto que, já nas primeiras páginas do livro de Collodi, Gepeto chora lágrimas de arrependimento quando descobre quão trabalhoso é ser pai e descobre que é tarde demais para voltar atrás. Pinóquio traz principalmente uma verdade cruel para os pais: eles vão ter que aguentar os filhos fazendo os mesmos erros que eles próprios cometeram. Pinóquio é um banho de água fria nas utopias pedagógicas, considera que a transmissão da experiência é quase impossível. É preciso errar para crescer, e ser pai é também saber aguentar isso.

Trecho do livro Fadas no Divã, de Diana e Mário Corso

O Rei Sapo

A mais célebre história de um noivo animal e da transformação do repulsivo em atraente é com certeza O Rei Sapo. Nele, um monarca enfeitiçado depende do afeto de uma princesa para voltar à forma original. Uma das mais clássicas cenas evocadas pelos contos de fada é justamente a da bela princesa beijando um repulsivo batráquio, permitindo-lhe o retorno da metamorfose. A possibilidade de um sapo virar príncipe é um bom argumento para o fato de que as aparências não devem ser impedimento para uma relação. Seguidamente as mulheres recorrem a essa história como metáfora, quando argumentam que vale a pena investir em determinado pretendente, apostando mais no que ele se tornará do que naquilo que é no presente. Mas vale a leitura do conto, tal como estabelecido pelos irmãos Grimm, para nos surpreendermos com um fato importante: a princesa também tem lá sua feiura.

Trata-se da filha mais jovem do rei, como sempre, a mais bela de todas as princesas. Nos dias quentes, ela tinha por hábito brincar com sua bolinha de ouro perto de uma fonte, mas uma vez deixou cair seu precioso objeto na água profunda, fazendo o brinquedo desaparecer. Desesperada, pôs-se a chorar como um bebê, aos gritos. Nesse momento surge um sapo, prometendo alcançar-lhe a cobiçada bola, mas somente se ela concordar em levá-lo para a casa dela. Além disso, teria de lhe aceitar como companheiro de brincadeiras, compartilhar com ele seu prato e admitir sua companhia até na própria cama. A jovem concordou, mas sem a mínima intenção de honrar uma promessa feita a tão desprezível criatura – e aqui ela se mostra uma pessoa bem pouco bonita. Depois de obter a bola de volta, ela foge correndo do sapo, mas ele vai até o castelo e bate à porta, exigindo o cumprimento da palavra da princesa caçula.

Horrorizada com a aparição do sapo, a princesa relata o ocorrido ao pai que, ao invés de apoiá-la, exige-lhe que faça jus à promessa. Assim, tomada de nojo, é obrigada a admitir o batráquio em sua mesa e em sua cama; na hora de dormir, ela não aguenta mais o assédio dele e raivosa o atira contra a parede. Ele, então, se transforma num belo príncipe e ela, numa enamorada princesa.

É surpreendente que o gosto popular recente tenha se apegado a uma cena que simplesmente não existe na narrativa clássica dos irmãos Grimm: a da princesa beijando o sapo. Não só nossa heroína jamais se disporia a isso, como também a transformação não era provocada por um ato de amor e sim de violência. Na atual versão popular, o sapo esclarece à jovem que ele é um príncipe enfeitiçado e, em nome da perspectiva da transformação, ela se sacrifica e vence o nojo, beijando-o. Já nesta narrativa mais antiga, a princesa se envolve com o animal sem esse consolo, a aparição do belo príncipe é uma surpresa que a recompensa pelos maus bocados por que passou.

Ao sermos fisgados pelo amor, temos como conseqüência a saída da casa dos pais para vivermos a relação, porém, isso nem sempre é pacífico. Por mais que os contos insistam que o amor é uma promessa capaz de recompensar pela infância e pela família perdidas, partir é mais fácil para os heróis que têm madrastas bruxas, pais fracos, egoístas ou que são mesquinhos movidos pela fome. Quando o lar convida a ficar, sair será uma operação dolorosa e brusca, que pressuporá algum tipo de expulsão, comumente personificado por um casamento imposto contra os desejos da jovem. Na história do Rei Sapo, o pai da princesa lhe impõe a companhia do ser viscoso em seu leito, submetendo-a à violência desse convívio. O gesto agressivo da jovem está à altura do caráter torturante da situação em que se viu envolvida, mas também é um gesto dramático de rompimento, de revolta contra a autoridade do pai e contra as exigências do sapo. A independência não pode ser construída de submissão, crescer é também perceber a limitação da força e do poder da autoridade parental.

A versão popular do beijo não enfatiza o ato de rebeldia da princesa. Naquele caso, a jovem se dispõe a uma troca vantajosa: ela faz um esforço para vencer o nojo em nome de um amor possível (voltaremos ao tema da repulsa mais adiante). De qualquer maneira, ela se submete, mas o fará somente se isso lhe convier. Um sacrifício movido por uma razão pragmática não é um ato de obediência, é uma troca.

De qualquer maneira, o que é conhecido como um beijo, originalmente foi escrito como um arremesso, sendo assim, não há como suavizar essa trama. Para ocorrer, um amor depende de que um rompimento com a família de origem esteja em curso ou consumado, é necessário que o amor entre pai e filha tenha encontrado uma nova dimensão.

Histórias não garantem a felicidade nem o sucesso na vida, mas ajudam. Elas são como exemplos, metáforas que ilustram diferentes modos de pensar e ver a realidade e, quanto mais variadas e extraordinárias forem as situações que elas contam, mais se ampliará a gama de abordagens possíveis para os problemas que nos afligem. Um grande acervo de narrativas é como uma boa caixa de ferramentas, na qual sempre temos o instrumento certo para a operação necessária, pois determinados consertos ou instalações só poderão ser realizados se tivermos a broca, o alicate ou a chave de fenda adequados. Além disso, com essas ferramentas podemos também criar, construir e transformar os objetos e os lugares.

Uma mente mais rica possibilita que sejamos flexíveis emocionalmente, capazes de reagir adequadamente a situações difíceis, assim como criar soluções para nossos impasses. Certamente essas qualidades dependem de que tenhamos recebido um suporte adequado na infância, ou seja, uma família que nos ofereceu a proteção e o estímulo necessários para crescer, um nome e uma missão na vida. Porém, independente do quanto nossa família tenha nos providenciado um bom acervo emocional, os problemas, as dúvidas e as exigências surgirão, como uma esfinge devoradora que se interpõe no caminho. Bem, essa é a hora em que uma boa caixa de histórias é de grande valia.

Por acreditar no poder da fantasia, nos lançamos na tarefa de refletir sobre o que as histórias antigas, que ainda são narradas, e as novas, que surgiram modeladas por valores contemporâneos, têm a dizer às pessoas que recorrem a elas. Supusemos que há uma relação pragmática com a ficção, usamos o que nos é útil. Porém, essa utilidade não depende de mensagens diretas, pois, se esse fosse o caso, apenas se consumiriam livros de auto-ajuda e manuais variados, o que felizmente não é verdade. Muitos adultos caem nessa cilada, fato que somente os torna mais pobres de espírito, na medida em que esse tipo de leitura não os alivia das obsessões, nem os livra de suas ruminações labirínticas.

Por sorte, as crianças são muito mais espertas, elas são adeptas irrestritas da ficção e quanto mais mágica, onírica, radical e absurda, melhor. Pode-se também traçar um paralelo interessante com a poesia, através da qual as palavras se tornam ferramentas polivalentes. Crianças adoram trocadilhos, rimas divertidas, sentidos surpreendentes e humor, e é nisso que as julgamos sábias, pois o domínio da língua flexibiliza o entendimento da realidade e faz nosso pensamento mais versátil e ágil. Enfim, é uma sorte que na mesma época em que estamos em formação, arrumando as malas que conterão os fundamentos que vamos levar na viagem pela vida afora, sejamos consumidores vorazes de ficção.

(Publicado na Revista Época em 23/09/2005)

Página 34 de 34« Primeira...1020...3031323334