O novo, o velho e o antigo

Estudioso de Chico Buarque lança um olhar provocador sobre o Brasil e suas circunstâncias

Antes de o italiano Luca Bacchini descobrir o Brasil, foi o Brasil que aportou na sua alma em notas de samba. O Novo Mundo navegava na vitrola da casa da família na Roma da sua infância em discos de vinil que o pai ganhava de um piloto da Alitalia. Ao observar a euforia dos adultos, forjando em língua desconhecida uma versão mais viva de si mesmos nos carnavais improvisados que o pai organizava, Luca capturou o Brasil como uma visão particular de paraíso. Muitos anos depois desse primeiro contato, ele se tornaria um estudioso da obra musical e literária de Chico Buarque. Um “chicólogo”, como ele diz. E uma espécie de romano-carioca que corre sobre as pedras milenares da Via Ápia enquanto planeja sua próxima passagem pela Marquês de Sapucaí.

Convidei Luca Bacchini a refletir nesta coluna sobre seus passos entre dois mundos. A vida cotidiana em Roma, talvez a cidade do planeta onde é possível apalpar como em nenhuma outra o peso do passado no presente. Onde nossos pés pisam sem deixar marcas em pedras que foram assentadas ali antes de Cristo e ali estarão muito depois do nosso fim. E a apreensão da vida nesse país do futuro que é o Brasil, eternamente jovem em sua espera pelo dia seguinte.

Nesta entrevista, Luca Bacchini nos ajuda a pensar sobre o antigo, o velho e o novo. Sobre o Brasil e suas representações. Sobre Chico Buarque e a reinvenção da língua. Professor contratado de literatura brasileira e portuguesa do curso de pós-graduação da Faculdade de Letras da Universidade ‘La Sapienza’ de Roma, ele também é crítico literário e tradutor de livros, artigos e reportagens. Já publicou vários ensaios em coletâneas e revistas especializadas sobre a literatura e a música brasileira, especialmente sobre Chico, Tom Jobim e João Gilberto. Dedica-se nesse momento a escrever um livro sobre o romance Budapeste, de Chico Buarque. É também conhecido em alguns meios como “Luca do agogô”. Mas este é um personagem que só se manifesta durante o Carnaval no Rio de Janeiro.

Acompanhe.

Quis fazer esta entrevista ao ouvir você falar sobre a convivência entre o velho e o antigo na sua cidade, Roma. Essa lembrança constante de que as pedras sobrevivem a nós. De que somos frágeis e somos passagem. Qual é a diferença entre o velho e o antigo, para você? E como isso repercute no homem que você é?

Luca Bacchini – Uma cidade como Roma, que é chamada de “cidade eterna”, inevitavelmente implica uma relação problemática com seus habitantes, que são mortais. Dispondo de um tempo ilimitado, a cidade levará sempre uma posição de vantagem com relação a nós, que contamos com um tempo limitado. A gente aqui convive com as ruínas. A antiguidade é um período afastado e remoto, mas que persiste obstinadamente no nosso presente. O antigo é fascinante, não necessariamente belo, mas automaticamente impõe respeito. O velho já é ligado ao conceito de decadência, de enfraquecimento, de declínio de algo que era jovem, talvez bonito, e que hoje não é mais o que era antes. O antigo se mede em séculos e é o tempo “forte” das ruínas, enquanto o velho remete a um tempo “fraco”, mais humano, que inexoravelmente nos revela a caducidade das coisas. Roma é um dos lugares do mundo onde você pode perceber melhor esta diferença. O velho não se torna antigo porque não sobrevive ao tempo. É destinado à extinção, deixando apenas escombros e entulhos que irão desaparecer. Ao contrário das ruínas, que ficam para sempre. Tudo aqui se alimenta da tensão entre estas duas temporalidades antitéticas que acabam vivendo num contraste amoroso.

Como é essa convivência no cotidiano?

Luca – Roma impõe respeito, mas sem inibir. É uma cidade monumental – e não uma cidade com monumentos. A maioria das suas riquezas, artísticas e arqueológicas, não está protegida atrás de vidros blindados. Roma pretende ser usada, tocada, pisada, esculachada, sujada e continuamente re-vivida, sobretudo nas suas ruínas. No Coliseu já houve encontros de boxe e vários eventos musicais. Nas Termas de Caracalla já assisti a um show de Caetano Veloso e a uma representação daAida. Na infância, disputei peladas intermináveis no campo do Circo Massimo e hoje, duas ou três vezes por semana, corro na Appia Antica (Via Ápia). Quando termino o treino, uso as pedras da tumba dos Rabiri ou de Quinto Apuleio para fazer os alongamentos. Às vezes acontece de algum turista querer tirar uma foto e aí, tudo bem, mudo para outro sepulcro. Mas não sou profanador de tumbas. São elas que invadem a minha academia.

Você acha que este é o drama humano, também? Se vamos nos tornar velhos ou antigos, mortos esquecidos ou lembrados, permanecer além da vida? Esta é uma questão para você?

Luca – Quem dera que os homens se preocupassem em ser lembrados ou em permanecer além da vida. Seria, afinal de contas, uma preocupação nobre e profunda. Por séculos a Igreja desfrutou e alimentou essa fraqueza humana montando umbusiness incrível – basta pensar na “venda de indulgências”. Hoje, porém, estamos aflitos por exigências e necessidades muito mais práticas e imediatas. Meditar e refletir é considerado um tempo que você está subtraindo à ação. Vivemos exasperadamente a filosofia do “Carpe diem”, mas numa forma distorcida e hedonista, que tem pouco a ver com o pensamento horaciano. Acho que hoje o grande drama humano é aceitar a velhice ou, dito de outra forma, prolongar ao máximo a juventude. Daqui a 50, 70 anos a grama dos nossos cemitérios estará toda contaminada por botox e silicone.

Você acha que a morte é mais presente – ou uma presença – quando se vive numa cidade em que o passado é tão concreto e mesmo palpável?

Luca – A morte está mais presente onde há violência. Aqui na Itália não temos um contato cotidiano com a morte como no Brasil, na Colômbia, na Venezuela, no Irã, na África do Sul ou nos países envolvidos em guerras. Acredito que todos os brasileiros ou a grande maioria deles têm um parente, um amigo ou um conhecido que já foi vítima ou testemunha de mortes violentas. Dentro do meu grupo de parentes, amigos e conhecidos, até hoje eu não ouvi nenhum caso de morte ou ferimento causado por criminosos ou, pior ainda, por policiais corruptos. Pelo contrário, a morte foi bem presente na geração que viveu a II Guerra Mundial. Minha avó, por exemplo, assistiu a toda a brutalidade e desumanidade da represália nazista na Itália. Ela viu famílias inteiras deportadas, homens justiçados sob os olhos dos filhos e da esposa, mulheres abusadas, partisanos torturados e massacrados. Ainda hoje ela me fala com horror do ruído das botas dos soldados alemães que ecoavam à noite pelas ruas estreitas da cidadezinha onde ela morava.

Vivendo numa cidade tão monumental, mesmo, já que em Roma o “monumental” faz sentido e não é apenas um adjetivo vazio, como é possível construir ou inventar o novo?

Luca – Morando numa cidade monumental – e na Itália há muitas – a gente tem o privilégio de frequentar cotidiamente a arte e a história. Por um lado, nós acabamos desenvolvendo uma natural sensibilidade estética. De repente é daí que vem o que no Exterior é chamado de buon gusto ou stile dos italianos. Por outro lado, criamos uma relação meio traumática com o passado que está sempre lá, materialmente presente, te olhando, te espiando e te questionando. Em termos políticos isso se traduziu numa falta total de interesse na programação do futuro e, consequentemente, na instauração de um sistema gerontocrático. Os nossos políticos são os mais velhos da Europa. Em qualquer setor da sociedade as decisões mais importantes são assumidas por pessoas com uma idade bem avançada, em vários casos até anterior àquela dos meus pais. De um certo ponto de vista as pessoas idosas são aquelas que mais se aproximam da eternidade (risos). Com certeza, o espírito do lugar não estimula a criação do novo. Morando aqui você é levado a perceber o novo numa forma prevalentemente negativa, como uma categoria transitória, provisória, com prazo marcado. Como algo que antecipa o tempo, mas que pelo tempo afinal será sempre derrubado, que inevitavelmente passará de moda e que, em breve, se tornará velho, superado, obsoleto, até desaparecer. Afinal, é tristemente normal que uma sociedade gerontocrática considere o novo como uma ameaça à ordem constituída porque ele viola no presente a hegemonia do passado. Para mim, o Brasil, com a sua vocação congênita de país do futuro, funciona como uma espécie de alternativa libertadora para equilibrar essa falta crônica de utopia.

Mas não é possível que o novo se torne antigo? Construir algo novo que permaneça, do ponto de vista arquitetônico e também imaterial?

Luca – Para responder devidamente, eu deveria ser eterno. Por enquanto, me limito a concordar com o antropólogo Marc Augé, quando diz que a nossa época não poderá produzir ruínas porque não tem mais tempo. Somos vítimas complacentes da cultura do descartável.

“O Brasil sofre de uma falta de ruínas nas quais fundar o próprio passado”

Por que o Brasil seria, como você diz, uma alternativa libertadora devido à “vocação congênita de país do futuro”? Por que você sente isso a respeito do Brasil e não sente, por exemplo, por outros países da América Latina, todos eles jovens, já que os colonizadores destruíram a maior parte do que havia antes? O que é diferente aqui?

Luca – Naturalmente, a ideia do Brasil como “país do futuro” não é de minha autoria, mas há uma ilustre tradição secular atrás. Porém, acho muito difícil dar uma resposta satisfatória à sua pergunta. Explicar racionalmente e numa forma convincente os motivos dessa minha predileção me levaria a dizer banalidades ou a cair em lugares comuns, talvez correndo o risco de ofender outros povos latino-americanos. Tudo no Brasil é diferente. E com isso não quero dizer que tudo seja melhor ou pior que no resto do continente. Poderia argumentar essa diferença numa perspectiva histórica, cultural ou sociológica, mas isso não explicaria o meu sentimento pelo Brasil. Um aspecto interessante é que também a maioria dos italianos percebe essa diferença do Brasil com relação à America Latina numa forma muito clara e quase instintiva. Como resposta posso contar-lhe uma situação pela qual já passei e que acho bastante significativa. Cada vez que aqui na Itália, por motivos diferentes e nos contextos mais variados, devo explicar que sou um estudioso da cultura brasileira e que com um certa frequência viajo para o Brasil, assisto sempre à mesma reação. O interlocutor me olha com o mesmo jeito alusivo, ensopado por uma inveja mal disfarçada, saindo com comentários do tipo: “Você sabe tudo!”, “Você é o grande malandro”, “Eu não entendi nada na minha vida”, “Eu também deveria ter seguido o seu caminho”. Com meus colegas, especialistas de outras áreas da América Latina, a reação geralmente é entre a perplexidade e a interrogação: “Que interessante! Mas por que você resolveu ir até lá?”.

Qual é a sua percepção do Brasil? Ou, melhor, qual é a sua percepção do Rio de Janeiro, já que o “seu” Brasil é o Rio de Janeiro?

Luca – Eu sou a pessoa menos indicada para responder a esta pergunta porque gosto demais do Rio de Janeiro e, portanto, qualquer afirmação minha seria viciada por uma parcialidade tão descarada que acabaria me deslegitimando. Como todas as pessoas apaixonadas não posso ser objetivo quando falo do objeto de amor. No Rio eu quero conscientemente ser seduzido, que é também a melhor disposição para ser iludido, eu sei disso, mas a cidade é apaixonante e não tenho como resistir. Sou um caso tão desesperador que, quando estou em Roma, até sinto falta daquele trânsito horrível que toma a Lagoa nas horas de pico, daquele cheiro forte de xixi que invade as ruas durante o Carnaval, daqueles temporais que em poucos minutos inundam a cidade paralisando tudo e daquele medo constante de poder ser continuamente assaltado. Para mim, o Rio é sobretudo um lugar de sonho encontrado quando era criança e que mais tarde descobri existir no mapa. É lá que reencontro o tempo perdido da minha infância. Portanto, esse tempo é mítico, sacro e incontestável. Nessa dimensão suspensa tenho a sensação – e a ilusão – de viver no presente um tempo eterno e, assim, no país do futuro consigo me descarregar do peso das ruínas.

Que ponte você faz entre o Brasil e a Itália, Roma e o Rio?

Luca – Até pouco tempo atrás eu tinha uma teoria para explicar o Brasil. Dizia que Roma é como o Rio, Milão como São Paulo e Nápoles como Salvador. Um dia uma amiga mineira me perguntou como ficaria se colocasse Belo Horizonte dentro dessa equação. Aí deu branco! (risos) Sendo o país do futuro, o Brasil se relaciona a um tempo que está banido na Itália. Em termos de identidade, ele tem um problema contrário ao nosso. Sofre de uma falta de ruínas nas quais fundar – e legitimar – o próprio passado. A saída foi a construção de uma identidade nacional baseada mais no espaço e na geografia que no tempo e na história. Na Itália tudo pretende ser o “mais antigo do mundo” – o teatro mais antigo, a igreja mais antiga, a universidade mais antiga, etc –, enquanto no Brasil triunfa a retórica do “maior do mundo”. Nesse gigantismo natural que não depende da presença do homem, o povo brasileiro é chamado a expressar a próprio valor. Daí vem esse ufanismo recorrente baseado nos primados de grandeza: o maior estádio, a maior hidrelétrica, o maior shopping, o maior produtor disso, o maior exportador daquilo, etc. Dentro dessa visão, o que conta é só a quantidade. E isso pode ser muito arriscado, sobretudo em termos sociais de longo prazo, porque acaba narcotizando o sentido crítico do povo, que começa a avaliar a própria existência só em termos quantitativos. Um gigante sem consciência sempre será facilmente vulnerável, como demostrou Ulisses contra Polifemo (episódio da Odisseia, de Homero, em que Ulisses vence o ciclope Polifemo cegando seu único olho depois de embriagá-lo).

“O futuro está ainda longe num país que no presente tem milhões de analfabetos e de pobres”

Que tipo de consequência pode se esperar dessa visão de que tudo se resolverá num suposto dia seguinte?

Luca – Falando das cidades americanas, o antropólogo Claude Lévi-Strauss comentou que elas vivem febrilmente uma doença crônica. São sempre jovens, sem nunca gozar de saúde. Em 1935, ele visitou São Paulo e ficou maravilhado pelas “precoces devastações do tempo”. Penso que o Brasil tem um pouco dessa imagem do jovem doente. Nesses anos em que estive no Brasil eu vi um país sempre em obras, sempre envolvido em grandiosos projetos a serem realizados no futuro e que, graças a essa esperança, conseguia cotidianamente ignorar tanto os entulhos que sobraram do fracasso dos projetos anteriores quanto a persistência de graves problemas crônicos. O que mais me chama a atenção é a capacidade que o povo tem de se acostumar com quase qualquer coisa que o presente lhe propõe: violência, injustiça, corrupção, etc. Não é aceitação nem resignação, mas é a consequência de uma fé ilimitada e incondicionada na utopia do futuro que, talvez, seja para muitos a única maneira de sobreviver.

Na política também?

Luca – Na política em geral domina a idéia de que o Brasil é um país jovem e que, assim sendo, os problemas e os erros do presente em alguma medida podem ser tolerados enquanto “pecados da juventude”. Importa apenas o futuro glorioso que está na frente. E até lá o Brasil terá sempre o álibi do novato, do emergente. O fato que o slogan “Pra frente Brasil” ainda hoje seja usado pelos políticos é muito significativo. Se o Brasil não tivesse a obrigatoriedade do voto, com certeza assistiríamos a um filme bem diferente. Atualmente, poucos países no mundo adotam esse sistema e nessa pequena lista não aparece nenhuma das grandes democracias. A companhia teatral não está mais preocupada com a qualidade da comédia quando sabe que a casa está sempre cheia.

Você se refere à ultima campanha eleitoral, que elegeu Dilma Rousseff?

Luca – Estou me referindo de forma mais geral ao funcionamento do sistema político brasileiro, isto é, aos nexos entre os mecanismos para a criação do consenso, a composição do eleitorado e os programas de governo, independentemente do time que ganhou nessa eleição ou nas anteriores. Existe um problema estrutural nas regras do jogo que nenhum dos jogadores, sejam vencedores ou perdedores, têm interesse em mudar. A Dilma é apenas uma das soluções que esse sistema corretamente admite.

Você acompanhou o governo Lula e esta última eleição? O que você viu?

Luca – Sinceramente, eu não daria muita importância ao baixo nível do debate na última campanha eleitoral. Na política o transformismo paga mais que a coerência. Nesse segundo turno, Dilma Rousseff e José Serra não teriam hesitado em lançar uma campanha feroz pela abolição do churrasco se tivesse sido decisivo o voto dos vegetarianos. A busca do consenso é sempre prioritária à perseguição do bem da nação – e isso, claro, não só no Brasil. Campanha eleitoral é aquela festa de sempre em qualquer lugar do mundo. Discurso de político aos eleitores é tão confiável quanto as promessas de um homem quando faz um pedido de casamento. No circo dos horrores da política italiana de hoje encontram-se exemplos excepcionais. Quanto ao Lula, ele foi eleito como presidente e saiu do Planalto como um grande herói do povo, atuando com sucesso na fórmula de um “populismo light”, que lhe garantiu índices de consenso extraordinários, sobretudo nas faixas de baixa renda. Acho que, afinal de contas, cada cidadão brasileiro, independentemente da orientação política e do nível social, pode estar orgulhoso de ter tido um presidente como Lula. E eu também, durante esses oito anos, enquanto estudioso e amigo do Brasil, tive o privilégio de compartilhar um pouco desse orgulho tanto na Itália quanto no Exterior. Claro, Lula cometeu muitos erros, alguns até de uma certa gravidade. Não vou negar que existem várias decisões com as quais absolutamente não concordo, sobretudo na política externa.

Como por exemplo…

Luca – Penso no flertezinho com o Irã e na tentativa de legitimá-lo internacionalmente; na defesa do Cesare Battisti e nas declarações do ministro Tarso Genro sobre a Itália; no silêncio sobre a violação dos direitos humanos em Cuba e na negação de asilo aos dois boxeadores cubanos durante os jogos panamericanos; na cooperação militar com a China e, consequentemente, na decisão de alterar o voto de condenação à China no Conselho de Direitos Humanos da ONU; na aproximação com o ditador Teodoro Obiang da Guiné Equatorial, em nome do comércio exterior e do petróleo; na distribuição de camisas da seleção brasileira aos chefes de Estado durante o G8 sediado em L’Aquila, sem entender que a celebração da vitória da Copa das Confederações naquele clima de consternação geral resultaria inoportuna e ofensiva para as vítimas do terremoto. O elenco poderia continuar também no plano da política interna, mas errar é normal para quem a cada dia deve tomar decisões para uma coletividade de quase 200 milhões de pessoas. Aliás, talvez uma grande parte dos brasileiros não dê a menor importância aos fatos que citei. Com a política externa não se ganham as eleições, ao menos que o país esteja em guerra. Apesar de tudo, acredito que o grande mérito de Lula foi o de não ter repetido muitos dos erros trágicos que seus predecessores cometeram teimosamente por décadas. E isso já foi suficiente para fazer do Brasil um país melhor.

Você se referiu algumas vezes à crença do Brasil como eterno “país do futuro”. Mas hoje começamos a ouvir, em alguns meios, que o futuro chegou. Você, que nos olha de fora mesmo quando está dentro, sente isso? Se o futuro chegou, você consegue arriscar algumas hipóteses do que muda no nosso imaginário do país e de nós mesmos?

Luca – Isso acontece ciclicamente no Brasil, com a mesma frequência com que em outros países se anuncia o fim do mundo. Vozes mais ou menos intensas de que o futuro tinha chegado já circularam durante o Estado Novo, no anos JK e na ditadura do general Médici. Não é uma novidade. Agora, boa parte do país é atravessada por uma euforia infantil devido à Copa do Mundo e às Olimpíadas. A política e a mídia alimentaram a idéia de que estes dois eventos têm o poder mágico de resolver a maioria dos problemas do país. Essa ilusão é contagiante. Um trem-bala, uma estação do metrô, um aeroporto maior e um estádio reformado são suficientes para provar que o futuro chegou? O povo deveria ser bem mais exigente. Acho que o futuro está ainda longe num país que no presente tem milhões de analfabetos e de pobres, onde um número assustador de crianças vive nas ruas ou trabalha em vez de ir à escola, onde duas das maiores empresas são a prostituição e o narcotráfico. Mas isso é papo de gringo…

“O Brasil se tornou um lugar de sonho para onde fugir”

Falando em gringo, como você descobriu o Brasil?

Luca – A minha descoberta do Brasil concide com as primeiras lembranças que guardei da infância. Meu pai tinha uma amigo, piloto da Alitalia, que era apaixonado por música. Cada vez que fazia escala no Brasil, ele trazia para nós um disco de presente ou, quando tínhamos menos sorte, ele gravava numa fita o disco que tinha comprado para ele. João Gilberto, Chico Buarque, Vinícius de Moraes, Toquinho, Tom Jobim, Jorge Ben eram algumas daquelas vozes misteriosas, vindas de um país longínquo, que meu irmão e eu ouvíamos ininterruptamente. Tínhamos a certeza de que os intérpretes daquelas músicas não eram propriamente cantores, mas nossos companheiros de brincadeiras. Outros meninos, talvez um pouco mais velhos, que de um lugar indefinido chamado “Brasil” pediam que fôssemos seus cúmplices e que escutássemos em silêncio os segredos e as histórias que vinham nos sussurrar. Apesar de eles não se dirigirem a nós em italiano, conseguíamos entendê-los igualmente, cada vez numa forma diferente – afinal, quando existe uma amizade é possível se entender mesmo sem falar o mesmo idioma. Meus pais também adoravam aquelas músicas e, de vez em quando, organizavam festas de Carnaval em casa convidando os amigos. Era tudo muito surreal, todos cantando numa língua que não entendiam. Meu irmão e eu trocávamos os discos na vitrola e ficávamos olhando os adultos enlouquecidos. Para nós era uma grande alegria porque podíamos ir dormir mais tarde.

E os convidados, o que achavam desse carnaval?

Luca – Entre os convidados, quem merecia destaque era um casal gay muito amigo da minha família que morava no mesmo prédio. Osvaldo era rico, feio, culto e mal humorado. Elio era exatamente o contrário: de origem humilde, bonito, sem cultura e sempre alto astral. Nessas festas o Elio vinha vestido de mulher e o Osvaldo de Pierrot choroso, com uma lágrima pintada no rosto. E os dois sempre brigavam por causa do Brasil! (risos) Quando ouvia um samba-enredo, o Elio ficava possuído e começava a jurar que na manhã seguinte compraria uma passagem para o Rio. E o Osvaldo ficava danado!! Nossa! (risos) O sonho do Elio era passar o Carnaval no Brasil e desfilar nas escolas. Eram cenas hilárias, com os dois gritando e berrando e todo mundo rindo até chorar. Eu não entendia porque os dois brigavam, mas a partir daí ficou aquela idéia do Brasil como uma obsessão, como um lugar de sonho para onde fugir. Lembro que uma frase recorrente do Elio era: “Um belo dia chuto o balde e fujo pro Brasil.” Ele faleceu dois anos atrás e nunca conseguiu visitar o Brasil. Até o fim da sua vida, cada vez que a gente se encontrava, ele sempre me fazia mil perguntas sobre o Rio e o Carnaval, como quem estivesse pensando em organizar uma viagem daqui a pouco. O Osvaldo já não berrava mais, mas sempre olhava muito feio para ele.

Quando você desembarcou no Brasil concreto pela primeira vez houve um choque entre imaginação e realidade?

Luca – Minha primeira vez no Brasil foi em 1999, junto com meu irmão, e foi totalmente hilária. Na época eu estava finalizando a minha tese de graduação sobre o uso das metáforas bíblicas nos cronistas do Novo Mundo e tinha ganhado uma bolsa de estudo para pesquisar na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Lembro sobretudo do choque climático. Viajamos em julho, trocando o tórrido verão romano pelos trópicos, sem imaginar que nos trópicos as temperaturas não são sempre “tropicais”, no sentido estereotipado que a gente atribuía a esse adjetivo. Partimos completamente desprevenidos porque estávamos indo para um país que, pela fantasia, frequentávamos desde a infância. Na mala só tínhamos colocado bermudas, sungas, camisas de mangas curtas e protetor solar. Naquele dois meses choveu muito e fez um friozinho bastante violento. Para enfrentar a emergência tivemos de comprar roupa pesada. Às 17 horas já era escuro e isso para nós era inaceitável num país tropical! Mesmo com frio e sem entender quase nada adoramos a cidade. Não tínhamos outra opção, porque aquele lugar tinha para nós um fortíssimo valor emocional e afetivo que invalidava qualquer capacidade crítica. Voltamos para Roma com o protetor solar ainda lacrado, mas com os corações já completamente apaixonados pelo Rio.

Quantas vezes você voltou, desde então?

Luca – A partir de 1999 voltei quase todos os anos, ficando dois ou três meses. Durante o doutorado era bem legal porque dava para ficar direto, por muito mais tempo. Agora, com os compromissos da faculdade, é tudo mais complicado. No ano passado nem pude ir ao Brasil. Tenho desfilado nas escolas de samba sempre que vou e sempre em mais de uma escola. A Estácio (de Sá) é uma constante, seja no grupo especial ou no grupo de acesso. As outras se alternam: Império, Caprichosos, Mangueira, Salgueiro, União da Ilha, Porto da Pedra. Digamos que sou um “viciado do samba”: qualquer escola que oferece a possibilidade de desfilar… eu vou.

Por quê? Como é o “seu” Carnaval?

Luca – Meus primeiros carnavais cariocas foram vividos inconscientemente na minha casa, em Roma, durante a infância. Assim, passar o Carnaval no Rio tornou-se uma maneira de alimentar uma espécie de tradição de família. Os samba-enredos sempre tiveram um poder emocional muito forte para meus pais, meu irmão e eu. Quanto ao “meu” Carnaval no Rio, ele tem um dimensão plural e coletiva e, portanto, seria mais correto que eu fale do “nosso” Carnaval, aquilo que passo em companhia dos meus amigos. A cada ano chegamos ao dia do desfile absolutamente convencidos de que a nossa escola vai ganhar, mas a apuração pontualmente nos contradiz. Então, começamos a gritar que foi um escândalo, que a escola foi roubada, que chegou a hora de acabar com a nossa inglória carreira de foliões e que nunca mais iremos desfilar. Mas já em agosto, timidamente, voltamos a falar da escolha do novo enredo e dos esboços da fantasias… Nos últimos anos comecei a tocar na bateria de alguns blocos de rua. O problema inicialmente foi que eu não sabia tocar nenhum instrumento de percussão. Até fiz um cursinho para aprender o básico do tamborim. Mas, como alertava Noel Rosa, “o samba não se aprende no colégio”. Então, mudei de estratégia. Pensei que a única solução fosse escolher um instrumento pouco difundido que quase nenhum bloco tivesse. Foi assim que comecei a tocar o agogô. Ainda hoje toco mal pra caramba, mas graças à falta de concorrência sou sempre muito bem-vindo nas baterias. Aliás, o fato de ser estrangeiro às vezes ajuda. Um dia um amigo me apresentou ao diretor de um bloco de uma maneira completamente maluca: “O rapaz aqui é “Luca do agogô”. Ele é italiano, nunca desfilou com a gente, mas em Roma já tocou para o Papa em São Pedro durante a missa do galo”. O diretor me olhou emocionado e me perguntou se eu tinha conhecido pessoalmente o Bento XVI! (risos).

Se o Rio surgiu para você como um lugar mágico para onde fugir, é isso o que é, em certa medida, ainda hoje? Neste sentido, você foge do quê?

Luca – Geralmente se foge “de” um lugar e não “para” um lugar. No meu caso ficou a idéia infantil de que o Brasil é um destino que se alcança pela fuga, e não por uma simples viagem, mas sem que a partida implique escapadas ou evasões.

Você quer morar no Brasil? Como seria viver no lugar mágico de fuga? Não teme não ter mais para onde fugir?

Luca – Queria morar aí, mas sempre com uma passagem de volta para Roma na mão, como forma de preservar a magia do lugar e não renunciar à possibilidade de fugir de novo. Claro que tenho medo – e muito – de perder o meu lugar de fuga. E nem faço questão de averiguar esse risco. A experiência de quem me precedeu não foi promissora. O austríaco Stefan Zweig, cuja fama se liga principalmente ao livro Brasil, um país do futuro, foi vítima da mesma utopia que o seduziu e que contribuiu para sustentar. Para fugir do nazismo Zweig teve de enfrentar uma longa peregrinação pela Europa e pela América. Desembarcou no Brasil em 1936, quase por acaso, e foi logo amor à primeira vista. Descreveu a cidade do Rio de Janeiro como uma das impressões mais poderosas que experimentou na vida, uma mistura de fascinação e estremecimento causada pela paisagem e pelo tipo de civilização encontradas. Os destinos sucessivos foram Argentina, Portugal, França, Inglaterra, Estados Unidos, até resolver se mudar definivamente para o lugar dos seus sonhos, em 1941. Foi morar em Petrópolis, mas enquanto os meses passavam e a chance de voltar para a Europa tornava-se sempre mais improvável devido à extensão do conflito mundial, ele entrava no túnel de uma depressão progressiva. No ano seguinte, suicidou-se em pleno Carnaval, junto com a esposa. No dia anterior tinha descido ao Rio para assistir aos desfiles na Praça Onze. Será que eu estou fugindo do Berlusconi sem sabê-lo? (risos)

Quando está no Brasil, você tem saudade da Itália?

Luca – Em Roma sou capaz de rodar a cidade inteira em busca de um feijão preto importado ou de uma goiabada em lata. Eu, que quase não bebo, até cheguei a comprar cachaça só para sentir o cheiro. No Brasil revira-se o imã da saudade e começo a comprar compulsivamente macarrão. Depois de muita procura, achei até uma loja que vende uma marca importada de Nápoles. Nunca como tanto spaghetti – e faço questão da grafia italiana da palavra – como quando estou no Rio. (risos)

“Chico Buarque é um genial inovador da língua”

Por que você escolheu Chico Buarque como tema de estudo? Por que o Chico e não outro?

Luca – Estudar Chico Buarque foi uma decorrência natural do meu interesse pela literatura e pela música brasileira. Muitas músicas do Chico ficaram gravadas inconscientemente na memória sonora da minha infância. Mas não foi só a vontade de resgatar esse baú de lembranças musicais que me levou ao estudo da obra dele. Afinal, Chico Buarque não era o único artista brasileiro que a gente ouvia em casa. Minha primeira pesquisa no âmbito da literatura brasileira foi sobre os cronistas do século XVI e XVII. E daí fui me aproximando devagarinho da contemporaneidade. Para chegar ao estudo de Chico Buarque demorei bastante. E isso foi bom, porque enfrentar a obra dele não é fácil. Exige muito da gente. Para o crítico é um fascinante desafio interpretativo cheio de obstáculos e armadilhas.

Na sua opinião, qual é o significado de Chico Buarque para a cultura brasileira?

Luca – Na minha opinião, Chico Buarque representa uma das figuras imprescíndiveis da cultura brasileira contemporânea. Não é apenas um músico extraordinário, que avança idealmente no mesmo caminho iniciado por Villa-Lobos e continuado depois por Tom Jobim, mas é também um genial inovador da língua portuguesa que podemos colocar ao lado de clássicos consagrados como Machado de Assis, Guimarães Rosa e Carlos Drummond de Andrade. Antônio Cândido definiu Chico Buarque como “uma grande consciência, inserida num enorme talento”. Cada vez que sai um novo disco ou romance do Chico, a gente se dá conta de que esta consciência e este talento têm um tamanho muito maior do que se imaginava até aquele momento. Chico é um gênio em permanente expansão e evolução e por isso não deixará nunca de nos surpreender com a sua música e com a sua literatura. O estudo da obra dele é um exercício tão prazeroso e estimulante que se tornou o objeto principal das minhas pesquisas. E, assim, virei um “chicólogo”.

Como você começou a se tornar um “chicólogo”?

Luca – Comecei a me dedicar à obra de Chico Buarque durante o doutorado em Estudos Americanos na Universidade de Roma Tre. O título da minha tese era “Francisco-Francesco. Chico Buarque de Hollanda e a Itália”. Trata-se de uma reconstrução da relação do Chico com a Itália, a partir da estadia de 1953-54 até hoje, tentando um diálogo entre a vida e a obra. Recolhi muito material inédito ou pouco conhecido na Itália e no Brasil, como fotos, gravações, recortes de jornais, correspondências, etc. Ao mesmo tempo, tive o privilégio de entrevistar várias pessoas extraordinárias, famosas ou não. Além do próprio Chico e de seus familiares, pude contar com a colaboração de Sergio Bardotti, Toquinho, Ennio Morricone, Elza Soares, Lucio Dalla, Sergio Endrigo, só para citar os mais conhecidos. Foi uma experiência muito enriquecedora do ponto de vista humano antes que intelectual.

Você está escrevendo sobre o romance Budapeste. Pode contar um pouco sobre suas percepções?

Luca – A história de José Costa (personagem do livro) me ensinou que há sempre a possibilidade de plágios e roubos no mundo editorial. (risos) De repente alguém lê essa entrevista e resolve contratar um ghost writer para escrever um livro baseado nas minhas respostas. Já pensou nisso? A associação dos escritores anônimos é mais ativa do que o romance faz imaginar! (risos) E visto que ainda não assinei um contrato com uma editora, tenho que ser prudente nos adiantamentos. Em síntese, a minha pesquisa aborda o Budapeste focalizando-se no estudo do espaço, da intertextualidade e da linguagem. Trata-se de um trabalho de crítica literária que enriqueci também com as vozes das pessoas que entrevistei, inclusive aquela do próprio autor. O elemento recorrente nos vários níveis da análise proposta é a presença de um ménage à trois criativo entre o Brasil, a Hungria e a Itália. O Budapeste se tornou uma espécie de leitura obsessiva com a qual, daqui a pouco, vou celebrar seis anos de convivência. E o barato é que o livro ainda continua me surpreendendo. Por causa dele até me aproximei da cultura húngara e – ai de mim! – também um pouco do idioma, mas só o pouco suficiente para concordar com José Costa de que “o húngaro é a única língua que o diabo respeita”. Nos últimos anos já re-percorri todos os passos de José Costa no Rio e, provavelmente, na próxima primavera vou fazer uma breve viagem para Budapeste, apesar de o Chico ter escrito o romance sem visitar a cidade antes.

O quanto você se identifica com esse personagem entre duas cidades, duas línguas?

Luca – Na verdade, eu acabo me identificando com todos os personagens, até com os mais chatos, antipáticos e revoltantes. Acredito que essa tendência seja um elemento constituinte do processo de leitura. Afinal, os personagens de ficção têm a chance de sobreviver apenas graças a nós. Uma vez que fechamos um livro, eles não se extinguem, mas ficam conosco, iluminando com a própria sombra a nossa leitura do cotidiano. Com efeito, a vida de um personagem de ficção completa e complica a nossa experiência do mundo real. Cada um de nós, quando lê um livro ou escuta uma música, mergulha na história e nos sentimentos dos personagens e, daí por diante, começa a ver o próprio mundo de uma forma mais ampla, que abrange também a perspectiva deles. Esse processo de identificação acontece independentemente do sexo, da idade, do caráter ou do nível social do personagem. Graças à obra de Chico Buarque entramos em contato com uma galeria de personagens – e também de condições e sentimentos – extremamente variada. Nos tornamos íntimos de pedreiros, malandros, emigrantes, vagabundos, atrizes, sambistas, pivetes, prostitutas, favelados… E, ao mesmo tempo, assistimos a todas as possíveis declinações do amor – da paixão e da ternura até a raiva e a violência. Nessa lista, figura naturalmente também o José Costa, com a sua incapacidade de identificar-se plenamente com uma cidade, uma língua e uma cultura. No meu caso, o Budapeste oferece um acervo extraordinário de situações e cenas que recorrentemente desfruto para elaborar a percepção do que estou vivendo. Não posso negar, por exemplo, que no Rio as minhas caminhadas pela orla ficaram irremediavelmente marcadas por aquelas do José Costa. Sem que eu queira, suas palavras começam a bater na minha cabeça, misturando-se em harmonia com outras vozes e imagens que já encontrei em outros livros, músicas, filmes ou em experiências anteriores que já vivi na vida real. Os personagens de ficção têm a capacidade de nos surpreender quando menos esperamos, assim como acontece com as lembranças das pessoas que compartilharam conosco um trecho da existência.

Quando você virá ao Brasil novamente? Neste Carnaval?

Luca – Ainda não tenho uma previsão. De qualquer forma, outro dia me ligou meu amigo Adilson e me disse que a Estácio está linda e que vai ganhar o Carnaval, com certeza absoluta!

(Publicado na Revista Época em 15/11/2010)

Em nome do bem se faz muito mal

As tentativas de censurar a literatura são mais graves e menos isoladas do que parecem

Apenas entre agosto e outubro deste ano foram três tentativas de censurar a literatura. Três que se tornaram conhecidas, podem ter ocorrido outras. A mais rumorosa delas foi o parecer do Conselho Nacional de Educação recomendando que o livro “Caçadas de Pedrinho”, de Monteiro Lobato, fosse banido das escolas públicas. Ou apresentasse notas explicativas alertando sobre a presença de “estereótipos raciais”. Os membros do CNE viram racismo na forma como a personagem Tia Nastácia é tratada no livro. Dois meses antes, em agosto, pais de estudantes do ensino médio da rede pública de Jundiaí, no interior de São Paulo, protestaram contra o uso do livro “Cem Melhores Contos Brasileiros do Século”. Segundo eles, o conto “Obscenidades para uma dona de casa”, de Ignácio de Loyola Brandão, usa “linguagem chula” para descrever atos sexuais narrados em cartas recebidas por uma dona de casa. Ainda em agosto, mais uma polêmica. Desta vez por causa do livro “Teresa, Que Esperava as Uvas”, de Monique Revillion, também destinado ao ensino médio. No conto “Os primeiros que chegaram” a autora descreve um sequestro com estupro e assassinato.

É bastante diferente quando a tentativa de censurar a literatura parte de pais ou pedagogos – indivíduos, portanto – e quando é encampada por um órgão que tem a tarefa de pensar a educação brasileira e ajudar a aprimorá-la com suas análises e recomendações. A má qualidade da educação na rede pública, como todos sabemos, é uma das maiores, senão a maior tragédia nacional. Entre as causas da indigência educacional brasileira está o fato de que os brasileiros leem pouco ou nada leem. Boa parte deles porque não tem acesso a bibliotecas, triste realidade que os programas governamentais têm tentado mudar com menos empenho do que seria necessário.

Quando soube das tentativas de censura, minha primeira reação foi rir. Era tão absurdo que parecia mesmo piada. Percebi então que enquanto nós rimos, eles proíbem. Esta última polêmica atingiu uma repercussão tão grande, capaz de fazer o ministro Fernando Haddad manifestar-se pedindo uma revisão do parecer, apenas por tratar-se de Monteiro Lobato, um autor consagrado. Quem teve a sorte de conhecer Tia Nastácia, Dona Benta, Pedrinho, Narizinho, Emília e todos os habitantes do Sítio do Picapau Amarelo deve ao autor uma das partes mais saborosas de sua infância. Tão deliciosa quanto os bolinhos da Tia Nastácia, aliás. Nos outros dois casos, os protestos e a repercussão tiveram um volume menor.

É assim que o autoritarismo vai se insinuando em nossas vidas, pelas bordas. Vai nos comendo aos poucos e um dia se instala em nosso cotidiano como se fosse um dado da natureza. Acontece quando a equipe responsável pela seleção dos livros depara com um conteúdo que já provocou polêmica antes e, para se poupar de problemas, acaba optando por uma obra mais palatável. Pronto, o livro em questão, apesar de sua reconhecida qualidade, jamais chegará às bibliotecas. Ou quando o professor na sala de aula, que já é criticado por quase tudo, prefere abster-se do risco. Em vez de escolher o melhor livro, opta por aquele que não causará a reação raivosa de nenhum pai ou mesmo uma discussão acalorada na classe. Pronto, os alunos só terão acesso a textos que nada provocam. Ou ainda quando algum escritor começa a se policiar nos termos que usa e nos temas que aborda para ter alguma chance de ser selecionado pelos programas de governo. É assim, muito mais pelo que não é dito, pelos caminhos subjetivos, que a vida se empobrece e o controle se instaura.

A História nos mostra que censurar livros e controlar o que é escrito estão entre os primeiros atos de regimes autoritários. Vale a pena revisitar a obra de Ray Bradbury, “Fahrenheit 451”, um pequeno livro essencial que possivelmente o CNE não aprovaria.

Nas democracias, o autoritarismo costuma vir embalado no discurso do bem. Que é, de longe, o mais insidioso e difícil de identificar. Se o CNE afirma que Tia Nastácia é tratada de modo preconceituoso, como vamos nos posicionar contra a eliminação de algo tão abjeto como o racismo sem nos sentirmos boçais? Só mesmo porque o autor se chama Monteiro Lobato. Mas e se fosse um escritor menos conhecido, ainda que brilhante? Será que tantos teriam a coragem de defender a sua obra?

É preciso dizer que o CNE nega ter cometido qualquer ato de censura da obra de Monteiro Lobato. Ele apenas “recomenda” que todas as obras com “preconceitos e estereótipos”, como “Caçadas de Pedrinho”, não sejam compradas nem distribuídas pelos governos. Para o CNE, isto não é banimento. No caso de clássicos como os livros de Monteiro Lobato, se insistirem em usá-los nas salas de aula, o CNE sugere que seja feita uma nota explicativa alertando para seus pecados. Interpretar esta recomendação bem intencionada como uma tentativa de censura seria apenas mais uma das incontáveis “manipulações da imprensa”.

Entre os argumentos utilizados para defender o parecer está o de que os professores da rede pública não teriam preparo para discutir uma questão complexa como o racismo. Ou para contextualizar a época de Monteiro Lobato assim como o Brasil que ele retrata. Surpreende-me que nenhum professor tenha se manifestado contra uma generalização que poderia ser interpretada como preconceito. Mas, supondo por um momento que esta afirmação esteja correta, a saída seria banir todos os conteúdos que hoje são mal trabalhados nas salas de aula, de Monteiro Lobato à equação de segundo grau?

Neste mesmo rumo, acreditar que as crianças, por lerem “Caçadas de Pedrinho”, começariam a discriminar os negros nas ruas é no mínimo subestimá-las. É preocupante perceber que pessoas responsáveis por pensar e aprimorar a educação brasileira possam enxergar as crianças como meros receptáculos, vazios e passivos, sem capacidade de fazer relações, inferências e mediações. Se aceitarmos o argumento de que Tia Nastácia tem um tratamento racista na obra, sob os olhos de hoje e não da época de Monteiro Lobato, a atitude de um bom educador deveria ser a de calar as contradições e eliminar a oportunidade de debate?

Eu, que tive a sorte de ler toda a obra de Monteiro Lobato entre os 8 e os 9 anos e incrivelmente não me tornei racista, gostaria de dizer aos membros do CNE que mesmo a sua interpretação da personagem Tia Nastácia é pobre. Bem pobre. Mas a Academia Brasileira de Letras disse isso de uma forma muito melhor do que eu faria. Transcrevo aqui parte da manifestação da ABL, contrária ao parecer do CNE:

Um bom leitor de Monteiro Lobato sabe que tia Nastácia encarna a divindade criadora, dentro do sítio do Picapau Amarelo. Ela é quem cria Emília, de uns trapos. Ela é quem cria o Visconde, de uma espiga de milho. Ela é quem cria João Faz-de-conta, de um pedaço de pau. Ela é quem “cura” os personagens com suas costuras ou remendos. Ela é quem conta as histórias tradicionais, quem faz os bolinhos. Ela é a escolhida para ficar no céu com São Jorge. Se há quem se refira a ela como ex-escrava e negra, é porque essa era a cor dela e essa era a realidade dos afrodescendentes no Brasil dessa época. Não é um insulto, é a triste constatação de uma vergonhosa realidade histórica.

Em vez de proibir as crianças de saber disso, seria muito melhor que os responsáveis pela educação estimulassem uma leitura crítica por parte dos alunos. Mostrassem como nascem e se constroem preconceitos, se acharem que é o caso. Sugerissem que se pesquise a herança dessas atitudes na sociedade contemporânea, se quiserem. Propusessem que se analise a legislação que busca coibir tais práticas. Ou o que mais a criatividade pedagógica indicar.

Mas para tal, é necessário que os professores e os formuladores de políticas educacionais tenham lido a obra infantil de Lobato e estejam familiarizados com ela. Então saberiam que esses livros são motivo de orgulho para uma cultura. E que muito poucos personagens de livros infantis pelo mundo afora são dotados da irreverência de Emília ou de sua independência de pensamento. Raros autores estimulam tanto os leitores a pensar por conta própria quanto Lobato, inclusive para discordar dele. Dispensá-lo sumariamente é um desperdício.

A obra de Monteiro Lobato, em sua Integridade, faz parte do patrimônio cultural brasileiro”.

A única parte boa desta tentativa de censura foi me dar uma excelente desculpa para reler “Caçadas de Pedrinho” (Editora Globo) aos 44 anos e renovar minha gratidão a Monteiro Lobato pelo tanto de imaginação que me deu. Assim como comprar “Os cem melhores contos brasileiros” (Objetiva) para ler o texto de Ignácio de Loyola Brandão que provocou furor no interior de São Paulo. E de quebra ler Clarice Lispector, Graciliano Ramos, Machado de Assis, Mário de Andrade, Nélida Piñon, Lygia Fagundes Telles, Hilda Hilst, Carlos Drummond de Andrade, Raduan Nassar, Moacyr Scliar, Caio Fernando Abreu, João Ubaldo Ribeiro e todos os grandes da literatura brasileira que fazem parte da coletânea. Banir tal livro das escolas? Por favor, não!

O conto de Ignácio de Loyola Brandão é excelente. Ótimo mesmo. Quando li a notícia de que alguns pais e estudantes queriam proibi-lo por usar “linguagem chula” na descrição de atos sexuais, estranhei. Afinal, tratava-se de adolescentes do terceiro ano do ensino médio, na faixa dos 17 anos. Neste mundo. Nesta época. Será que não seriam capazes de lidar com isso? Parece-me que, se não conseguem lidar com isso, então sim temos um problema.

Foi só ao ler o conto que formulei minha própria hipótese sobre a razão de tanto incômodo. Eu arriscaria dizer que o que pode ter perturbado estes pais e estes filhos é uma outra realidade que o conto desnuda, esta sem “linguagem chula”, com a qual muitos podem se identificar. Quem ler o conto, talvez concorde comigo. É verdade que é sempre mais fácil proibir aquilo que nos produz incômodo do que olhar para dentro e tentar compreender com honestidade os nossos porquês. Perturbar, incomodar e até transtornar o leitor, em minha opinião, são qualidades num texto.

Não encontrei o “Teresa, que esperava as uvas” (Geração Editorial), de Monique Revillion. Infelizmente. Pelo que li nos jornais, o conto da discórdia chocava pela crueza da descrição da violência. De novo, o livro era usado como material de apoio para estudantes do ensino médio, com idades a partir de 15 anos. Houve quem acreditasse, com bastante estardalhaço, que os adolescentes não seriam capazes de lidar com temas como a violência urbana e a sexual. Não compreendo como não ocorreu a estas mentes privilegiadas proibir logo todo o noticiário, que nem mesmo pode alegar em sua defesa que é ficção. Que os jornais e revistas sejam vendidos nos fundos das bancas, junto com os filmes pornôs.

Tudo isso – sempre – em nome do bem. Com as melhores intenções.

Sou filha de professores de português e literatura que dedicaram boa parte da vida a dar aulas na rede pública. Meus pais, que me ensinaram a amar os livros, se esforçaram muito para que tivéssemos uma biblioteca em casa. Na minha família as roupas eram remendadas e herdadas dos primos mais velhos. Se sobrava algum dinheiro era sempre para livros, para a educação. Numa cidade pobre em bibliotecas e com bibliotecas pobres, a nossa era uma das melhores. E foi lá que amigos meus e de meus irmãos, assim como alunos dos meus pais, se serviam livremente das letras. Volta e meia encontro alguém que me interrompe o passo na rua para me dizer que a biblioteca da minha casa foi fundamental na sua vida.

Devo a esta lucidez e a esta biblioteca boa parte do que sou e consegui fazer de mim. Assim como a Lili Lohmann, a moça da livraria cuja história já contei aqui. Nunca, em nenhum momento, nem meus pais nem Lili dificultaram o acesso a um livro. Eu lia o que bem entendia porque eles sabiam que esta busca pertencia a mim, era determinada pelos meus anseios e pelos meus incômodos, pela minha curiosidade que só aumentava. A viagem da literatura é talvez a travessia mais fascinante, importante e – ainda bem – sem fim da minha vida.

Eu era criança e já intuía que a literatura era o território do indizível. Nela cabia tudo o que era humano. Mesmo o feio, o brutal. Mesmo a covardia, a inveja, os sentimentos todos que a gente prefere dizer que não sente. A literatura, como as várias manifestações da arte, é o não-lugar geográfico onde podemos lidar com nossos demônios sem que eles nos devorem. A literatura só é literatura se incontrolável.

Tenho medo que os bem intencionados do politicamente correto inventem a maior ficção de todas, que é um homem sem conflitos, sem pequenezas e sem contradições. E então a literatura, que não será mais literatura porque deixará de estar encarnada na vida, ficará reduzida a uma casca vazia e sem ressonância onde não nos reconheceremos. Porque se estes iluminados se decidirem a revisar a literatura sob a ótica do que é politicamente correto nesta época, podem começar a alimentar sua fogueira com a Odisséia de Homero. E dali em diante não sobra nada. Em sua sanha não devem se esquecer de incluir a Bíblia – aliás, como ainda não pensaram nisso?

É sério, muito sério. E nenhum de nós deve se omitir quando tentarem arrancar o cachimbo do Saci Pererê ou submeter as bruxas dos contos de fadas a um tratamento a laser para eliminação das verrugas. Sobre isso sugiro ler “Saci sem cachimbo, lobo sem dentes e gente sem pensamento”. Percebam bem quantos absurdos nos assediam, nas mais variadas instâncias, em nome do bem. Estamos conseguindo resistir, mais ou menos, e até colecionamos algumas vitórias parciais, como a reversão da censura ao humor nestas eleições. Mas é preciso se manter vigilante nesta luta de resistência.

Não sei o que pensam vocês. Mas eu, quando vejo aquelas pessoas com seu par de olhos angelicais, anunciando que ainda que seja contra a minha vontade estão fazendo o que fazem para o meu bem, não hesito. Corro.

(Publicado na Revista Época em 08/11/2010)

Ninguém quer o futuro

Vivemos um presente esticado porque o amanhã nos apavora

No passado, havia um futuro. Cresci acreditando que o futuro seria um tempo melhor. Meus pais cresceram acreditando que no futuro haveria um mundo melhor. Minha filha começou a duvidar do futuro. Meus netos possivelmente temerão o futuro. Não é uma mudança pequena. Não consigo avaliar com precisão o quanto isso nos modifica, mas escuto e olho e percebo que nos transforma. E imagino que seja uma transformação profunda. Esta vida em que preferimos não ter nenhuma representação de futuro. Já que qualquer representação baseada na realidade prevê a possibilidade do nosso fim. Não mais um fim do indivíduo, com a morte que nos aguarda a todos, mas o fim da espécie.

Tento lembrar no que eu acreditava nestes dias em que São Paulo está em estado de alerta, descendo aos 12% de umidade relativa do ar, e as capas de jornais mostram a nuvem de chumbo da poluição sobre os prédios e casas onde tentamos viver nossas vidas. Acabei de acordar e espirro sem parar. Nós, que sofremos de rinite alérgica, padecemos mais nestes dias. E eu já tomo antibiótico por causa de uma doença respiratória causada pela combinação de secura e contaminação do ar. Você quer sabe como será o mundo logo ali? Olhe para São Paulo. O pôr-do-sol tem exibido uma beleza assustadora. Poderia ser usado num filme de fim de mundo.

O que acreditávamos no futuro do passado? Ou pelo menos o que parte da minha geração, nascida sob o signo da chegada do homem à Lua, talvez tenha sido a última a acreditar? Que a ciência cumpriria suas promessas e nos libertaria do jugo do trabalho alienante. Além de nos garantir vida longa, juventude e bem-estar. Que teríamos todas as benesses da tecnologia sem pagar nenhum tributo ao planeta por isso. Que, seja qual fosse a nossa ideologia, por diferentes caminhos chegaríamos a um mundo em que ninguém mais fosse explorado ou passasse fome. Ninguém duvidava também que estaríamos viajando no espaço e desbravando outros planetas.

É verdade que a ficção científica desenhava um mundo muito mais sombrio e parecido com este aonde realmente chegamos – ou ainda chegaremos. De Aldous Huxley (Admirável Mundo Novo) a Philip K. Dick (Andróides sonham com carneiros elétricos?, no qual se baseou o filme cult de Ridley Scott, Blade Runner), Ray Bradbury (Fahrenheit 451) e outros. Mas era ficção. E tínhamos tanta certeza nas possibilidades do futuro que poderíamos ler o livro e assistir ao filme sem acreditar na imagem no espelho. O futuro, afinal, nos pertencia. Bastava depor ditadores e combater as corporações.

O que sabemos hoje é o suficiente para mudar radicalmente nosso desejo: nós gostaríamos que o futuro nunca chegasse. Diante de nós, há dificuldades de sobrevivência não apenas como indivíduo ou povo de uma nação determinada, mas como espécie. Começando, como sempre, pelos mais pobres e os mais frágeis entre nós, na geopolítica mundial e na geopolítica dentro do nosso quintal. Diante de nós se desenha uma guerra por água, alimentos contaminados e o aquecimento global. Os ditadores continuam por aí e as corporações extrapolaram as dimensões que conseguimos abarcar.

A tecnologia nos permitiu comunicação instantânea e a internet mudou para sempre nosso jeito de nos relacionar com o espaço, com o tempo e com os outros. Mas esta tecnologia espetacular faz com que o conceito de horário de trabalho tenha se tornado obsoleto e os chefes e as tarefas nos alcancem por email, torpedo e outras ferramentas que nos submetem onde estivermos, estendendo a jornada para todas as horas e confundindo espaços e limites. Mesmo os consideráveis avanços da ciência em várias áreas nos provocam desconfiança. É difícil achar que a clonagem e os transgênicos sejam apenas uma ótima notícia. E, depois da grandiosa pisada de Neil Armstrong na Lua, só conseguimos despachar umas sondinhas espaciais um pouco mais longe. Ou seja: estamos presos no planeta que exploramos além da conta. E começamos a nos sentir claustrofóbicos nele.

Assim como nos sentimos claustrofóbicos dentro de nossa própria vida. Não é a toa que tanto se fala de felicidade hoje. Este discurso da felicidade soa como um discurso do desespero. É uma noção de felicidade desconectada do real e dos sentidos dados para a vida, uma felicidade por si mesma. Afinal, torna-se difícil viver quando a melhor ideia de futuro que conseguimos ter é a quitação da casa própria depois de centenas de prestações ou a compra de uma TV com tela plana ainda maior para a Copa do Mundo no Brasil ou um carro que pode andar no deserto do Atacama, mas que vai ficar parado no trânsito da cidade.

Nossa concepção de futuro se apequenou. Restringiu-se a materialidades logo ali. Ao reduzir nossos sonhos à compra de objetos de consumo, reduzimos nossa humanidade e nossa vida. A rejeição do futuro nos ajuda a entender a mediocridade do nosso presente. E de nossas aspirações. Explica por que, ao perguntar a alguém qual é o seu desejo, esta pessoa possa responder que é um Ipad. E ninguém estranhe.

Não é curioso um monte de gente acreditar que o mundo vai acabar em 21 de dezembro de 2012 por causa da suposta profecia de um povo para o qual o fim do mundo chegou muito antes, pelas mãos dos espanhóis? Parece ser mais fácil gastar energia e teses com um fim de mundo mirabolante do que encarar que, sim, o nosso mundo pode acabar. Não por profecias, mas como consequência de nossas ações e de nossas escolhas. Não em 2012. Mas progressivamente, como já vem acontecendo.

Dá para entender por que o fim do mundo dos maias é mais palatável. Ele não depende de nós. Não precisamos nos responsabilizar por ele. Qualquer saída é mágica. Podemos continuar sendo os mesmos cretinos com relação ao meio ambiente e aos outros, porque o apocalipse cai do céu. Com a realidade do esgotamento do planeta é mais complicado. Ela exige de nós profundas mudanças de hábitos de consumo e de comportamento. Muito além de fazer uma reciclagem de lixo mais ou menos e achar que por isso estamos fazendo a nossa parte. Exige de nós um novo tipo de ser – humano – e de estar no mundo.

É verdade que o planeta está sofrendo. E uma variedade de espécies de flora e de fauna desaparece pela nossa sanha. Mas não é o planeta que vai acabar se continuarmos nesta toada. Somos nós. Tempos atrás, assisti ao documentário De volta a Bikini (National Geographic), do mergulhador Lawrence Wahba. O documentário conta o que aconteceu ao atol de Bikini, nas Ilhas Marshall, no Oceano Pacífico, onde os Estados Unidos testaram armas nucleares nos anos 40 e 50. Numa exibição de seu poderio bélico, expulsaram a população e destruíram a natureza de uma forma atroz ao detonar duas bombas atômicas como as de Hiroshima e Nagasaki. Assim como a Bravo, a primeira bomba de Hidrogênio, o mais potente artefato lançado pelos EUA em sua história.

Passados 60 anos, o atol se recuperava, os peixes voltavam e a vida se refazia. Ao assistir ao documentário, me choquei menos com a capacidade de destruição humana, já que esta é bem conhecida. O que me chamou a atenção foi o fato de que a vida se impunha sem nós. É o que possivelmente aconteça com a Terra depois que nos matarmos. Sem nós ela se renovará e seguirá seu curso. A passagem humana será apenas um lapso de tempo – nossos milhares de anos um nada perto dos milhões em que os dinossauros dominaram o planeta como espécie. Uma história curta que ninguém vai contar.

Em uma palestra no ótimo Café Filosófico, programa da TV Cultura, a filósofa Viviane Mosé se arriscou a ser mal interpretada. Não lembro as palavras exatas, mas ela sugeria que há algo de bom no aquecimento global. Pela primeira vez algo nos une para além das convenções arbitrárias, das ideias de nação, de religião, de etnias, de ideologias e de crenças – para além de tudo o que nos divide e nos afasta. Ainda que os mais frágeis e os mais pobres sejam os primeiros a sofrer, estamos todos no mesmo planeta que se esgota pelas nossas ações. Desta vez, não vai dar para os mais ricos saírem voando numa nave espacial de luxo para um planeta novinho em folha. E, ainda que estejamos todos mortos, já que assistimos apenas ao início de um possível fim de mundo, é dos nossos descendentes que se trata. Por paradoxal que pareça, o aquecimento global nos permite olhar para o planeta e para nós como os astronautas em órbita: sem divisões.

É uma chance. Uma oportunidade de sermos melhores. Porque talvez só sendo melhores possamos voltar a ter um futuro onde ancorar. Um que valha a pena imaginar e que impulsione as ações do nosso presente. Para isso, é preciso abrir mão das várias formas de anestesia diante desta realidade. Inclusive abdicar da exigência de uma felicidade que não se conecta à vida, que só é possível alcançar por alguma droga – legal ou ilegal.

Vale a pena analisar a literatura produzida nestes tempos sem futuro – ou melhor, com um futuro que ninguém quer. A literatura de qualidade, claro – e não as catastrofistas de ocasião. Talvez o exemplo mais interessante seja A Estrada (Alfaguara), do excelente Cormac McCarthy, levada aos cinemas por John Hillcoat e já em DVD. Nele, um pai e seu filho empreendem uma jornada num mundo pós-apocalíptico. É uma fábula sobre esse tenebroso futuro sobre o qual especulamos, mas é também uma narrativa sobre a única coisa que nos salva – o amor.

Quanto mais vivo e olho o mundo, aumenta em mim a convicção de que só o amor faz sentido e dá sentido. Não este amor umbigólatra por si mesmo. Ou no máximo pelos seus. Mas o amor que só se justifica no outro, que abarca a humanidade inteira. Enquanto tentarmos salvar “o nosso”, que é o de cada um, não temos a menor chance. Desta vez, os espertos de sempre não vão se safar. Ou pelo menos não por muito mais tempo que todos os outros.

Quando é a sobrevivência da espécie que está ameaçada, não há salvação individual. Ou nos tornamos melhores todos, nos reinventamos como homens e mulheres novos a partir das necessidades de um presente que está aí ou continuaremos assistindo ao nosso fim anunciado, aceitando as progressivas limitações que já contaminam nossa vida. Estes novos homens e mulheres precisam estar conscientes da precariedade da condição humana e de sua insignificância na história do planeta. É pelo reconhecimento da fragilidade que nos une que podemos nos tornar grandes de uma maneira inédita, uma que nos permita viver e deixar viver.

Há tantos clichês, alguns até bem bonitos, sobre viver o presente. Somos povoados por orientalismos neste sentido. Mas não é simbólico. Não desta vez. Tudo o que temos agora é esse presente esticado. Já que preferimos não imaginar o futuro, alargamos o presente. Mas a questão é exatamente estar presente – no presente.

E não anestesiados de várias maneiras, como tem acontecido. Não se trata do imperativo do gozo pelo gozo, do prazer instantâneo. Não é por acaso que às vezes saímos da mesa do bar onde bebemos e alguns de nós se drogam na companhia de estranhos próximos, mas que continuam estranhos apesar do riso, com a sensação de vazio, de que nada de importante aconteceu de fato. De que por maior que tenha sido a nossa euforia e a nossa performance, não estávamos ali. Ninguém estava.

Não é isso que é estar presente no presente. Viver no presente é ser capaz de criar sentido. Escutar o outro e a si mesmo. Se arriscar a ser transformado por esse contato. Só é possível estar no presente amarrando, ao mesmo tempo, o passado e o futuro. Só é possível mudar se arriscando a estar. No presente. Ainda que às vezes doa. Há um filme muito bonito sobre a coragem de abdicar de uma vida anestesiada e se arriscar a estar no presente. Pode ser encontrado em qualquer locadora. E fala dessa geração que começou a temer o futuro. Em português, se chama “Hora de voltar” (Garden State, de Zach Braff).

Temos alguma chance se passarmos a determinar nosso estar no mundo por uma atitude amorosa com as pessoas e com o planeta. Começando pelas pequenas ações de todo dia, da relação com o motorista de ônibus e com a moça da padaria ao que realmente precisamos comprar e consumir, já que qualquer objeto tem um custo em recursos naturais e vai demorar a se decompor. Nenhum de nossos atos é impune. E agora, mais do que nunca, não é mesmo. Pagaremos o preço ainda nesta vida.

É uma transformação profunda. E que dá trabalho. Mudar é dificílimo. Acho que a maioria das pessoas vai continuar consumindo e se anestesiando loucamente. Sem nem mesmo perceber que é estranho ter de comprar água não contaminada ou ter dor no peito depois de uma caminhada, como acontece agora em São Paulo. Não tenho muita esperança. Mas me agarro à pouca que tenho. A de que mais gente desperte e esteja presente no presente. Para, quem sabe, reconquistarmos um futuro que valha a pena imaginar.

(Publicado na Revista Época em 30/08/2010)

Alison e a ,

Delícias e tormentos de uma tradutora do Brasil

Alison Entrekin é uma mulher singular de várias maneiras. Por exemplo. Um dia ela acionou a secretária eletrônica do seu telefone e ouviu a voz que todas as mulheres do Brasil sonham ouvir no seu aparelho. Sim. Ele. Chico Buarque de Holanda. Ligou para dar seu telefone a Alison. E pediu que ela ligasse de volta. Tinha assuntos urgentes a discutir com ela. Alison pensou no que eu e você e até mesmo um leitor seguro de sua masculinidade pensaria? Não. Alison vislumbrou aqueles olhos de ardósia? Não. Cantarolou “O meu amor tem um jeito manso que é só seu/E que me deixa louca quando me beija a boca/A minha pele toda fica arrepiada/E me beija com calma e fundo/Até minh’alma se sentir beijada…”? Também não. Alison quase morreu? Sim. Mas não como eu e você e mesmo o leitor seguro de sua masculinidade. Alison quase morreu de medo. Alison é uma mulher que quando ouve a voz de Chico Buarque na secretária eletrônica só pensa em vírgulas. E ponto final.

A australiana Alison Entrekin era dançarina profissional. Machucou a coluna quando dançava nos Estados Unidos e foi obrigada a encerrar a carreira. Pensou então no que mais gostava depois de dançar. E lembrou os cem anos de solidão do colombiano Gabriel García Márquez. Voltou para a Austrália para fazer curso universitário de criação literária e depois virou professora. Queria ser escritora quando atravessou o mundo e encontrou o Brasil no seu caminho 14 anos atrás. Sentiu-se dentro de um romance de realismo fantástico nos primeiros anos em que viveu no país. Casou-se com um brasileiro e mora em Santos. Tornou-se uma tradutora obstinada pela busca da palavra exata ao verter a literatura brasileira para o inglês. Budapeste. Cidade de Deus. O Filho Eterno. Eles eram muitos cavalos. Alison traduziu algumas das obras de sintaxe mais complexa da literatura contemporânea brasileira.

Vista de perto ela é uma mistura de Nicole Kidman com Olivia Newton-John. Do tamanho da última. Mas depois de conhecê-la a gente tem vontade de se referir a ela sempre com aumentativos. Trabalha de segunda a segunda em uma quitinete defronte à sua casa. É lá que moram seus 45 dicionários e um cachorro chamado Patão. Uma mistura de pincher e fox paulistinha que resultou proporcionalmente quase tão mignon quanto ela. E também com uma personalidade superlativa.

Na mesa de trabalho de Alison há uma estátua do deus indiano Ganesha. Ela passa a mão em sua cabeça de elefante quando está com algum problema intrincado como um recado de Chico Buarque. Perto dela há um antúrio que chegou ali com três folhas e agora está com oito. É com ele que Alison treina seus discursos antes de discutir pontuação com os escritores que traduz. Na estante é possível encontrar tudo sobre palavras em português. Até mesmo um dicionário de candomblé e um de portoalegrês. Mas o que Alison queria mesmo era um dicionário de maconha. Logo mais ficará claro o porquê.

Conheci Alison em um encontro literário na Casa de Cultura de Paraty promovido pelo Itaú Cultural neste início do mês. Ela desvelou a língua portuguesa de uma forma que mudou o meu jeito de olhar para sempre. Eu jamais havia imaginado que traduzir pudesse ser algo ao mesmo tempo tão fascinante e tão enlouquecedor. Alison percebeu detalhes em livros que li que a mim tinham passado despercebidos. Pelos olhos dela adivinhei belezas que haviam me escapado. Percebi que ao despir a língua os tradutores descobrem uma nudez do país invisível para nós que aqui nascemos. Ampliam nosso olhar sobre nós mesmos. E nos provocam.

De imediato quis compartilhar esta experiência com vocês aqui nesta coluna. E pedi uma entrevista. Conversamos mais de uma hora na mesa do café da manhã. E quando eu tinha capturado todas as palavras meu gravador digital (ah que saudades das fitas!) saltou da minha mão e eu perdi Alison inteira na queda. Gentilmente ela aceitou ressuscitar todas as suas frases e ainda aumentá-las em uma hora a mais de conversa. Só fomos interrompidas pelos latidos de ciúme do Patão. E por uma tentativa dele de suicidar-se comendo uma abelha.

Esta é uma entrevista para ser lida sem pressa. Foi feita como um presente para quem ama as palavras e a língua portuguesa. Em homenagem a Alison Entrekin fiz este texto de apresentação sem usar uma única vez a diminuta figura que lhe provoca pesadelos com suas enormidades.

Quando você ouviu a língua portuguesa pela primeira vez?
Alison Entrekin – Havia uma festa da comunidade brasileira na minha cidade (Perth, Austrália). Uma amiga tinha vindo ao Brasil e aprendido a dançar lambada. Na festa não teve lambada, mas teve muita música. Achava que o português era algo mais próximo ao espanhol e descobri que não era nada disso. Me lembrava o francês, pelo som. Quando você escuta uma língua e não tem ligação com o sentido, só escuta a musicalidade. Achei uma língua lindíssima, com uma sonoridade diferente. As mulheres falavam num tom mais alto. E depois de muitos anos notei que falo inglês num tom mais baixo e português num tom mais alto. As palavras parecem não terminar, na sonoridade do português. Quando você escuta línguas asiáticas, elas parecem sílabas picadas. Quando você escuta o português parece uma palavra interminável, porque as ligações entre palavras são suaves. Isso me encantou.

ÉPOCA – Se a língua fosse um personagem, como você o descreveria?
Alison – Vejo o Brasil e a língua portuguesa como uma coisa tão múltipla que não consigo enxergar como uma coisa só. Eu traduzo gente do país inteiro e parece que toda vez estou aprendendo uma nova língua. Um novo dialeto, novas gírias, um novo jeito de falar a língua. Estou sempre lidando com estas pluralidades, não consigo dar uma identidade só. São vários personagens ao mesmo tempo, mulheres e homens.

Você diz que o inglês é mais homogêneo, pelo menos na Austrália. É um inglês só. E no Brasil são vários brasis e várias línguas. O que isso revela do Brasil?
Alison – A Austrália particularmente é um lugar que não se nota tanta diferença de sotaque. E é um país quase tão grande quanto o Brasil. De um lado a outro, quase 5 mil quilômetros, não dá para saber se a pessoa é de Sidney ou de Perth. Você pode perceber que é do interior, mas é uma diferença muito ligeira. E a condição social é mais ou menos igual, então a língua não precisa se desdobrar para representar estas realidades todas. O Brasil é geograficamente vasto, teve muitas colonizações, em ondas de imigrantes, e tem muita diferença social. A palavra otário, por exemplo, que aparece em Cidade de Deus, livro do Paulo Lins. Era a gíria que usavam para os caras com emprego fixo, que tinham de bater cartão todo dia e cumprir horários. Acho fantástica, porque sublinha a rebeldia e o ponto de vista dos malandros, que achavam um absurdo serem subordinados a alguém, trabalhar duro para não sair do lugar, para continuar na miséria. Então, para eles, os otários eram os trabalhadores, aqueles que não viviam do crime. Mas não era uma gíria usada pela classe média, que encara o trabalho de forma diferente, por causa de todo um contexto de vida diferente.

Você diz que o tradutor tem de desconfiar do sentido das palavras o tempo todo. Como é isso? Me conta a história de uma palavra intrigante.
Alison – O tradutor trabalha com o desconfiômetro ligado o tempo todo. É necessário fazer as perguntas mais bestas, mas é necessário. Se faço dez perguntas bestas e, se uma delas evita um erro de tradução, valeu a pena. A palavra trampar, por exemplo. Apareceu em Cidade de Deus. Eu conhecia trampar como gíria para trabalhar. Neste contexto me parecia que não cabia. O livro falava de um malandro que mora no morro, se sustenta roubando, e o irmão travesti aparece por lá. E ele não gosta que apareça, tem vergonha porque o irmão é travesti e quer que ele vá embora. Pega então coisas que ele roubou e dá para o irmão. Dá o relógio. E fala: “É pra tu ir trampar lá no Estácio”. Pensei: “Mas o que o travesti vai fazer trabalhando no Estácio?”. Comecei a perguntar para algumas pessoas ao meu redor se trampar podia ter outro significado. E todo mundo falava: “Não, é trabalhar”. E aquilo estava me incomodando. Finalmente fui perguntar para o autor, o Paulo Lins. Ele explicou que não, naquele contexto, naquele momento histórico, significava vender. Faz todo sentido. Dá um relógio pro irmão travesti vender e ganhar uma grana. Mas este tipo de coisa leva horas, dias, às vezes semanas e até meses.

Como fica este incômodo na tua vida cotidiana? A palavra fica ali, te incomodando o tempo todo?
Alison – Geralmente aparece quando estou lavando louça ou lavando o cabelo. Sempre estou com as mãos ocupadas e envolvida com algum tipo de produto de limpeza. São as horas em que estou mais relaxada. Só com meus pensamentos e fazendo alguma coisa realmente banal. É aí que me vêm as melhores respostas, as melhores soluções.

Me conte alguma resposta que surgiu assim.
Alison – Em geral é quando o autor fez uma brincadeira linguística e eu estou atrás de algo para fazer o encaixe. Tem uma no Leite Derramado, do Chico (Buarque). É bonitinha esta palavra. Bulício. Ele usa uma palavra no começo e depois volta a ela muitos capítulos depois. Cria um eco. E conforme o livro vai indo há cada vez mais ecos, as repetições vão ficando maiores. Todas as vezes em que os personagens vão se amar, ele usa a palavra bulício. A empregada sabia que era hora de sair para o armazém ao pressentir nosso bulício. Ou em outro momento, leva a criança para a praia porque também pressentiu o bulício deles. Não é uma palavra ordinária, é uma palavra especial, colorida, que dá uma ideia muito legal. Aí fiquei pensando que palavra vou usar em inglês. Usei bedlam. É caos, comoção, e o legal é que embutido nesta palavra tem bed, que é cama. Encontrei esta palavra tomando banho.

Quando você olha para a palavra, já sabe que ela vai te dar trabalho?
Alison – Às vezes não. Elas me pegam de surpresa. Quando leio o livro em português, sou incapaz de entender o tamanho da encrenca. Sempre leio primeiro como leitora, acho que tenho de entender o que me provocou como leitora e não como tradutora, porque são coisas muito diferentes. Tradutor é chato, tradutor vai pegar em cada vírgula, cada nuance da palavra. Quando li O filho eterno, do Cristovão Tezza, achei um livro lindíssimo e foi uma leitura rápida, uma leitura que flui. Tive uma sensação de vertigem… Aonde ele vai agora, com estas frases imensas? Eu lia e ia seguindo. Quando comecei a fazer a tradução, nem tinha pensado na questão do presente histórico que ele usa o tempo inteiro. Em português funciona, em inglês não. Então metade do livro já foi traduzida para outro tempo verbal, o que já é uma baita de uma diferença. E também todas as outras questões linguísticas muito particulares da sintaxe dele ficaram desencaixadas, por causa desta grande mudança. E eu não tinha nem atinado pra isso lendo o livro.

Foi o seu livro mais difícil?
Alison – Foi. Quando encontrava uma solução para uma coisa, esta solução atrapalhava outra que tinha encontrado antes.

O desafio maior do tradutor é encontrar as palavras que levem à mesma sensação que o autor quis dar em sua própria língua? Como esta vertigem, por exemplo, que você sentiu lendo O filho eterno?
Alison – A questão é a sintaxe, é a pontuação. Acho que as emoções humanas e as sensações são muito iguais de um lugar para o outro. E acho que todas as línguas têm palavras adequadas. A questão é de sintaxe, de estrutura da língua, das orações, das ligações que se faz entre uma oração e outra. E eu vou me deparando com isso em cada autor que traduzo. Os autores contemporâneos brasileiros brincam com a pontuação, não obedecem à norma culta. Nos lugares onde pela norma culta deveria ter um ponto final, eles põem uma vírgula e continuam. Pela minha experiência, 90% dos autores de ficção que traduzo fazem isso, continuar onde deveria ter um ponto final. Acho que o português se presta mais a isso. Se todo mundo brinca de uma forma ou de outra com a pontuação, isso cria uma geração de leitores que relaxam quando encontram esta pontuação. Não se espantam com isso, nem estranham. Mas se eu, na tradução, obedecer a esta pontuação, crio um estranhamento tão maior em inglês do que em português que, nas poucas vezes em que tentei fazer isso, os comentários do editor são de que é muito estranho. Teoricamente, se um autor quebra uma regra numa língua e existe a mesma regra na outra língua, por que eu não posso obedecer isso? Faz sentido. Só que fui descobrindo que quebrando a mesma regra não criava o mesmo efeito. Isso me fez pensar. Meu dever como tradutora é reproduzir a experiência de leitura acima de tudo. E fazendo uma coisa aparentemente igual, na verdade criava-se outra experiência para o leitor. E se cria outra experiência, então não fiz meu trabalho direito.

A língua portuguesa é mais flexível que a inglesa?
Alison – Poder colocar o sujeito antes ou depois do verbo dá uma grande flexibilidade à língua. As palavras podem mudar de lugar de uma forma bem elástica na construção de uma oração. Em inglês o sujeito tem de estar antes do verbo. Eu fiz a tradução de uma oração do português para o inglês em que o sujeito que estava no final da frase vai para o início. Só que este sujeito que estava no final também servia como o sujeito da próxima oração. Em inglês não pode. O natural seria colocar um ponto final ou fazer um desdobramento maluco para que tudo possa caber de outra forma. Aí vai tomando outro formato e nisso podemos perder a fluidez do original.

Quando você começou a traduzir e percebeu o tamanho da encrenca, como você diz, como se virou?
Alison – Lembro que fui atrás das traduções dos livros do (José) Saramago, porque ele tem uma pontuação muito particular, muito dele. Mas ele é tão consistentemente assim em tudo que o tradutor não teve escolha, teve de obedecer. E funciona porque depois de uma página o leitor já está acostumado, ele passa a sentir assim. Meu problema é que eu trabalho com autores que não são sempre assim, são às vezes ou pela metade do tempo. O exemplo que mais me lembro é o Budapeste, (de Chico Buarque), onde há muitas orações ligadas por vírgulas. Esta foi a primeira vez que eu realmente parei para pensar: “Meu Deus, o que eu vou fazer com esta pontuação?”.

Como foi este primeiro contato com o Chico Buarque?
Alison – Isso foi antes de eu conhecê-lo. Ele deixou um recado curto na secretária eletrônica. Passou o telefone dele. Disse que tinha alguns capítulos traduzidos e queria falar sobre a pontuação: “Você usa ponto final onde eu não usei”. Eu morri de medo: “Meu Deus do céu, ele quer falar de pontuação comigo!”. Agora eu sei que o Chico é uma pessoa muito legal, que dá para conversar. Mas na época eu só pensei: “Jesus, vou morrer agora”. Aí eu expliquei para ele este estranhamento que causava. E ele me disse que não pretendia nenhum estranhamento no original. A solução que eu achei na época foi usar de duas maneiras. Havia momentos no livro em que José Costa (o personagem narrador) ficava obcecado por alguma coisa e os pensamentos vinham se atropelando. Nestes momentos, achei que usar uma vírgula onde no inglês usamos ponto final transmitia esta angústia dele. E não criava estranhamento pelo contexto, porque todo o contexto era uma coisa alucinada, confusa. Nestes trechos eu mantive uma pontuação muito mais fiel ao original. Em outras partes, onde ele estava contando a história com mais calma, às vezes usava ponto e vírgula, às vezes deixei passar algumas vírgulas que estruturalmente não causavam tanto estranhamento, e nos momentos em que faria o leitor parar por um estranhamento vindo da pontuação, aí sim, ponto final. Porque o ponto final, para nós de língua inglesa, é invisível. Quando autores de língua inglesa brincam com a pontuação, brincam mais com o ponto final, com frases curtas. Visualmente, se você tem uma página que é uma única frase cheia de vírgulas numa língua e, na outra, são 20 frases curtas, com um monte de pontos finais, a coisa fica muito diferente. Não é pra tanto. É preciso encontrar uma maneira de andar sobre esta corda bamba.

Você ainda fala de vírgulas com Chico Buarque?
Alison – Depois que tive contato com ele, deixei o medo de lado. É um autor generoso, bem humorado. Acompanha a tradução com olhos de águia, mas não atrapalha em nada. Ele entende as dificuldades de tradução e está sempre disposto a ajudar. E, de vez em quando, ainda pergunta sobre vírgulas. É impossível não perceber o quanto ele se importa com os mínimos detalhes e, como eu também me importo com os mínimos detalhes, acho ótimo. Adoro os livros dele e me divirto com a pessoa também.

A grande questão da tradução é a vírgula, então?
Alison – Eu tenho pesadelos com vírgulas. Fico muito feliz quando consigo dar o tom certo e achar as palavras certas. Porque é possível manter a graça do original na maioria das vezes. Mas nesta coisa da pontuação eu estou há anos batalhando com isso e não acho uma solução. Por isso toda vez que vou traduzir um autor que trabalha com a pontuação desta maneira eu tenho de passar por tudo isso de novo. Uma vez que você sai da norma culta, em qualquer língua, você está num campo subjetivo, que não pertence a ninguém. Que pertence ao mesmo tempo a todos e pertence ao indivíduo. Então não há mais regras para a tradução, é muito da cabeça de cada um. Pego um novo texto que tem isso, vírgulas, e fico analisando o texto. Que efeito estas vírgulas criam, por que o autor fez assim e não do jeito tradicional. Depois de compreender a intenção do autor, preciso encontrar um jeito de manter este efeito para que o leitor de língua inglesa possa ter esta mesma experiência, sem maior ou menor estranhamento que o leitor do original.

Você ama ou odeia as vírgulas?
Alison – Atualmente odeio. (ri muito)

O que esta liberdade dos escritores com a pontuação, com as vírgulas, revela sobre o Brasil?
Alison – O brasileiro tem uma relação mais relaxada com regras e com leis. Ele obedece ao que ele acha bom obedecer e não obedece a aquilo que ele acha que pode não obedecer, que não vai ser pego. Eu vejo isso pela sonegação, pelos motoristas passando pelo semáforo vermelho no meio da noite.

Você acha que este comportamento é similar no uso da língua?
Alison – Acho que é uma hipótese, não tenho certeza.

Mas há um lado bom nesta flexibilidade? O que você citou não é muito bom…
Alison – O próprio jeito do brasileiro viver é assim. O brasileiro não entra em pânico. Acho que porque historicamente passou por tudo. Economicamente, com ditaduras, com o (Fernando) Collor. De forma geral, é um povo que vive muito o hoje, é um povo menos tenso, menos preocupado. Eu cheguei aqui no Brasil e logo fui para a praia. Queria conhecer esta praia linda. Aí coloquei um chapéu grande, coloquei um maiô, peça única, coloquei uma saia, porque na Austrália a gente não mostra a bunda, coloquei óculos e coloquei uma sandália. As mulheres estavam só de biquíni e um biquíni bem pequeno. Tanta gente olhou pra mim como uma criatura no zoológico que eu comprei um biquíni no dia seguinte.

Um bem pequeno…
Alison – Fui para a praia e me senti pelada naquele biquíni, mas ninguém me olhava, sinal de que eu estava dentro da norma. Aquela coisa de regra, de se preocupar em fazer tudo certinho, a gente tem muito isso. Se eu desobedecer a uma regra de trânsito, se eu sem querer passar por um sinal vermelho, na Austrália já estaria cortando os pulsos. E brasileiro deixa pra lá.

O que este contato profundo com a nossa língua te mudou?
Alison – A língua é um meio de a cultura chegar à pessoa. Conforme fui vivendo, estou há 14 anos no Brasil, fui relaxando com relação a certas coisas, nesta preocupação com regras. Outro dia tive de ir à Polícia Federal avisar da minha mudança de endereço. Eu não sabia, mas estrangeiro tem 30 dias para avisar que mudou de endereço. Aí fui lá já meio brasileira, quis dar uma de que não entendia esta regra de 30 dias e ver se conseguia não pagar a multa. Passei o comprovante do endereço novo. A funcionária perguntou: “Há quanto tempo você se mudou?”. Eu não aguentei e tive de falar: “Há três anos”. Depois contei para o meu marido e virei a piada do final de semana entre todos os amigos: só gringa para pagar multa.

Como você conta o Brasil para seus amigos?
Alison – No começo foi um momento de deslumbramento com a beleza física do país. Todo gringo fica um pouco louco quando vem pra cá. Essa liberdade das pessoas, esse jeito relaxado de levar a vida, de tomar uma saideira e não se preocupar com o dia seguinte. Isso é encantador porque é uma liberdade que a gente não se dá, pelo menos no meu país e em outros países de língua inglesa. Me encantei muito com a beleza. Santos é uma ilha, fica no meio de uma enseada cercada de ilhotas e é cheia de mato. Eu sou de um país muito seco, um deserto. E lá todas as plantas são mais para o marrom que para o verde. E aqui tem este verde descendo a serra. Quando cheguei esta coisa de emails ainda estava no comecinho. Então comprei um fax para escrever cartas a mão e passar por fax para as pessoas. Em meus primeiros anos vivendo no Brasil tive uma sensação de estar vivendo uma aventura de um livro. E não de uma coisa real.

Que tipo de livro?
Alison – Alguma coisa do Gabriel García Márquez. Na época estava fascinada pelo realismo mágico. Eram tantos absurdos e coisas tão impensáveis para a gente. Acho que esta expressão veio para nós como a descrição de todo um gênero de literatura. Mas, conforme eu fui vivendo aqui no Brasil e vivenciando o país e as suas peculiaridades culturais, passei a perceber que metade das coisas que estes escritores escreviam poderia acontecer aqui. Sabe, o Collor, o que ele fez, é uma coisa tão surreal para a gente, mas podia acontecer aqui, como aconteceu. E outras coisas deste tipo. Passei a perceber que estes escritores estavam descrevendo a sua realidade. Não era mágico. Não que isso diminua a qualidade do que escrevem ou o seu talento. Escrevem livros maravilhosos. Mas passei a perceber que tudo aquilo que eu achava que era imaginado não era. Vinha da realidade deles.

O que é um tradutor, afinal? Ele também é um autor?
Alison – Eu não sou daqueles tradutores mais militantes, que insistem que o tradutor é coautor. Acho que o tradutor merece o reconhecimento pelo que faz, não pelo que não faz. O autor criou um enredo, criou personagens, criou seu jeito de falar, criou várias coisas ali que eu não posso mexer. Eu não posso fazer nada a não ser traduzir estas coisas. A criatividade do tradutor se dá no momento em que cria soluções, procura maneiras de expressar aquelas coisas em outra língua. Mas você está criando a partir de um precedente, criando para refletir algo que já existe. Não é criação no sentido de criar do zero um texto. Eu não curto muito a palavra coautor por causa disso. Não que eu ache que o que eu faço não mereça reconhecimento. O tradutor é o tradutor – e não aquele ser invisível que ninguém se lembra de citar o nome. Acho que podia existir um esforço maior por parte das editoras para lembrar o tradutor, colocar o nome na capa ou pelo menos na primeira página.

Mas, para você, a competência do seu trabalho como tradutora parece estar ligada a um respeito radical à voz do autor e não a uma recriação pela sua própria voz. É isso?
Alison – Por isso eu gosto de citar pequenos trechos. Acontece muito com o Chico (Buarque), porque ele é um autor que além de contar a história, ele ama a língua, é evidente no que ele faz. Ele brinca com as palavras. E eu tenho muita preocupação em reproduzir as brincadeiras linguísticas que ele faz. Se eu apenas traduzir as palavras, perde a graça. Por exemplo. O José Costa (personagem narrador de Budapeste) diz a mesma coisa em três frases diferentes no seguinte trecho: “A lourinha era abusada, me apontava às gargalhadas e gritava para o fotógrafo: é bom saber que eu vou para a cama com esse cara, ou: comigo na cama esse cara vai saber o que é bom, ou: saiba que eu vou é com esse cara bom de cama, ou coisa que o valha; eu já me considerava prestes a dominar a língua húngara, quando falada em alto e bom som.” A graça está nestas três frases que dizem a mesma coisa, com as mesmas palavras, mas mudando a sua posição em cada frase. Se fosse apenas traduzir, faria três frases completamente diferentes, com nenhuma semelhança entre si. Tive de pensar o que era mais importante ali: traduzir apenas o sentido ou traduzir toda esta brincadeira linguística que faz a gente dar risada quando lê. Para mim não havia possibilidade de apenas traduzir estas três frases. Aí é preciso vestir a camisa do poeta e recriar outra frase que contenha esta possibilidade de se desdobrar de três maneiras diferentes, mas obedecendo todas às mesmas regras. Ficou assim: “The blonde was insolent and pointed at me in fits of laughter, shouting at the photographer: I’ll get this good-time guy in bed with me, or: with me this guy’ll get it good at bedtime, or: it’s time I got this guy’s goods into bed, or something of the sort.”

Há outro exemplo em Budapeste que consumiu dias até você encontrar uma solução?
Alison – Sim. O personagem é um ghostwriter (escritor fantasma, que escreve livros e textos que serão assinados por outros). Ele escreveu um livro chamado “O ginógrafo”, publicado em nome de um alemão. Aí ele vai embora do Brasil, mora uma década ou mais fora e, quando volta, vê um livro na vitrine da livraria e acha que é o dele. Ao chegar mais perto descobre que o livro se chama “O naufrágio”. A beleza disso em português é que as duas palavras possuem quase as mesmas letras, mas organizadas de forma diferente. Embaralharam a vista dele. Em inglês, ginógrafo virou “gynographer“, mas naufrágio seria, numa tradução literal, “shipwreck“. Nada a ver entre si. Tive de vasculhar o Oxford English Dictionary página por página, palavra por palavra, até achar uma que tivesse os mesmo atributos: “hypnologist“. Ela não tem tantas letras em comum, mas as mais marcantes estão todas ali. É nestas horas que sinto que estou brincando de palavras cruzadas.

Traduzir, para você, é similar a fazer palavras cruzadas?
Alison – Acho que é a coisa de achar o encaixe perfeito. Principalmente nos autores que têm uma preocupação lírica com a linguagem, que criam um eco repetindo a mesma frase. Tem de funcionar num contexto e em outro. Não é qualquer palavra que se presta a esta duplicidade. Quando faz palavras cruzadas, você tem aquela palavra, o significado e sempre há vários sinônimos. Mas só uma vai se encaixar ali cortando todas as outras. O tradutor tem de ter sensibilidade para todas estas coisas e tentar trazer todas elas para a sua língua. E esta é a criatividade do tradutor. Eu queria que as pessoas reconhecessem isso, meus fracassos e meus sucessos. E não me chamassem de coautora. São duas artes diferentes.

Qual é a sua palavra favorita na língua portuguesa?
Alison – Orelhudinho.

Sério? Por quê?
Alison – É como o meu Patãozinho (nome do seu cachorro) aqui. É muita informação embutida numa palavra só. Acho isso maravilhoso. Esta elasticidade da língua portuguesa. Dos diminutivos e dos aumentativos.

Quando você ouviu “orelhudinho” pela primeira vez?
Alison – Eu estava dando aula de inglês e uma professora falava de um aluno que tínhamos em comum, mas eu não lembrava o nome. Aí ela disse: “Sabe aquele orelhudinho…” Eu morri de rir e identifiquei na hora. É incrível que uma pessoa possa ser grande e pequena ao mesmo tempo. Esta contradição embutida na palavra é maravilhosa.

Por que você acha que existem tão poucas traduções da literatura brasileira para o inglês?
Alison – Aqui no Brasil cerca de 50% dos livros publicados são traduzidos de diversas línguas. Em muitos países europeus, como a França, também. Mas, nos países de língua inglesa, a estatística corrente é de apenas 3% de livros traduzidos de todas as línguas para o inglês. Acho que as culturas têm suas próprias estéticas. Isso se aplica a tantas coisas. O que o brasileiro acha bonito em uma mulher é diferente do que é bonito no meu país. Aqui gostam de mulheres com bunda, coxa, carnes, e no meu país gostam de magricelas, mulheres que são feias para os padrões brasileiros. Acho que acontece o mesmo em outros aspectos da vida, inclusive na literatura. Acho que as preocupações literárias são diferentes. Lá as editoras gostam muito de publicar livros que contam uma história, que tenham começo, meio e fim, que não tenham tantas divagações filosóficas. Se você pegar um livro francês, muita coisa da literatura é mais devagar, contempla mais as coisas. E há editores de língua inglesa que não gostam de publicar as coisas da França por causa disso. Acho que o Brasil tem um pouco em comum com a França neste sentido. É uma estética diferente. Esta questão da pontuação, por exemplo, não é sempre aceita de braços abertos pelos editores de língua inglesa porque não é a estética deles.

Você teve uma discussão com o editor de O Filho Eterno, de Cristovão Tezza, sobre isso, não?
Alison – Ele queria reescrever um monte de coisas na edição em inglês. Eu achei que era facilitar um pouco demais, deixar as coisas mais claras quando o autor não quis ser tão claro. O autor quer que você trabalhe um pouco para chegar num sentido, então não dá para deixar tudo tão mastigadinho. É claro que há concessões necessárias numa tradução, porque a pessoa pode não entender o raciocínio de um brasileiro. Há momentos em que é preciso dar condições para que o leitor em inglês possa entender, mas isso não significa simplificar demais. Eu defendo o livro, sempre. Uma vez um editor me pediu para explicar uma metáfora. Não, pelo amor de Deus, a metáfora se explica sozinha. O autor não quis explicar aquilo. Então, de jeito nenhum vou explicar uma metáfora. Mas tenho de ficar brigando. Por outro lado, um autor pode ter um domínio bom da língua, mas às vezes tem uma visão parcial. Afinal, a gente nunca tem uma visão total nem da nossa própria língua. Às vezes o autor pode não perceber a estranheza que ele não sente, mas que um nativo vai sentir. Então às vezes eu também tenho de brigar com o autor. Sempre brigo pelo livro.

Cidade de Deus, de Paulo Lins, consumiu dois anos para ser traduzido. Você poderia contar um pouco de suas dificuldades com esta tradução?
Alison – Eu imaginava que seria difícil, mas não tinha noção de que o buraco estava muito mais embaixo. O livro se passa nos anos 60, 70 e 80, e o Paulo Lins vai refletindo estas mudanças no livro pelo tipo de droga, pelo tipo de arma, pelo tipo de gírias que usavam em cada época. Então eu tinha de encontrar soluções em inglês que não fossem anacronismos. Eu não podia usar o termo de uma droga que apareceu nos anos 90 e que ninguém tinha conhecimento nos anos 70. Muitas destas coisas não estão nos dicionários. Eu não sei se existe um dicionário de maconha. Se existir eu preciso ter na prateleira (risos). Então eu consultava pessoas que fumavam maconha naquela época, sobre como falavam a palavra baseado. E quando vendiam cocaína, qual era a palavra para a unidade vendida. É difícil achar quem compartilhe estas informações. E também é difícil para as pessoas se lembrar de quando começaram a usar a expressão que falam hoje. Então me falavam coisas muito modernas e insistiam que tinham falado isso sempre. E eu sabia que não tinham. Eu tinha também outro problema, que o era o fato de o livro estar sendo traduzido simultaneamente para o inglês britânico e o americano. Quando você fala em registro linguístico, quanto mais acadêmica a linguagem mais parecida fica. Linguagem acadêmica dá para publicar nos dois lados do Atlântico sem grandes problemas. Quanto mais coloquial, porém, mais específica. As gírias pertencem a um pequeno número de pessoas. E como Cidade de Deus é coloquial e tem gírias do começo ao fim, não tinha como fazer uma tradução que satisfizesse os britânicos e os americanos. Se eu fizesse apenas para o inglês britânico e a mesma coisa saísse nos Estados Unidos, os ingleses achariam muito natural e se entregariam à leitura. Mas os americanos não iriam se entregar porque toda hora se deparariam com palavras que soariam britânicas. Isso poderia levar o leitor americano a imaginar uma história se passando na Inglaterra e não no Brasil. Da mesma forma que não posso usar as gírias de um bairro pobre de Nova York para falar da realidade de uma favela no Brasil, porque os leitores vão entender aquela realidade como sendo a de Nova York e não a do Brasil. É bem complexo.

Era uma missão impossível, então?
Alison – Impossível. Sem saída. Fiz para o inglês britânico, mas pedi que houvesse uma revisão para o inglês americano, feita por um editor americano, para ajustar estas gírias, para fossem naturais para este leitor, já que uma única versão não satisfaz todo mundo.

Mas como foi a sua pesquisa para o Cidade de Deus?
Alison – Há, por exemplo, todo um trecho que se passa na prisão. Um dos personagens da favela vai preso e tem toda uma questão de mulher de prisão. Na verdade, a “mulher do xerife”, sendo que o xerife é o presidiário que manda lá dentro. E havia outros presidiários que eram as mulheres dos amigos do xerife. Estes presidiários que eram as mulheres tinham de usar calcinha, fazer sexo, lavar as cuecas. Era isso ou a morte. A crueldade humana é ubíqua, está em todo lugar, e eu achei que tinha de ter uma realidade correspondente. Aí fui atrás para tentar achar as expressões e gírias. Para encontrar, entrei num site de apoio a ex-presidiários na Inglaterra. Comecei a trocar emails com um deles. Senti que era extremamente humilhante para ele falar disso, mas ele me deu as palavras. Só que depois desta pesquisa toda, acabei traduzindo mais ao pé da letra. Embora na Inglaterra possam não chamar de xerife, achei que refletia algo daqui, pelo fato de terem escolhido chamar de xerife. Às vezes a gente faz toda esta pesquisa para jogar fora depois. Toda a pesquisa para Cidade de Deus levou muito tempo. Drogas, prostituição, armas. Nunca segurei uma arma na minha vida nem quero segurar, mas aprendi o que era cada parte da arma, tive de saber as mínimas coisas.

O alemão Berthold Zilly, tradutor de Euclides da Cunha e Machado de Assis, diz que há diferença entre o número de opções, de sinônimos, para algumas palavras entre uma língua e outra. Por exemplo, há muitos sinônimos em português para “carícia” e poucos em alemão. E isso diz da cultura de cada país. Você deparou com algo assim?
Alison – Em Leite Derramado (de Chico Buarque) há um trecho de mais ou menos uma página em que o Chico usa muitos verbos diferentes para “chicotear” e muitos sinônimos para a palavra “chicote”. Ele fez questão de não repetir a mesma palavra. Descobri então que português tinha uma ligeira vantagem sobre o inglês na questão do chicote. Acabo de verificar a palavra “chicote” em dois dicionários analógicos em português. Um traz 44 sinônimos e o outro, 30. No entanto, meu dicionário de sinônimos em inglês só tem 12 sinônimos para “chicote” e 17 jeitos de “chicotear”. Não sei de onde vem essa riqueza em matéria de flagelação em português. Só sei que a língua e as palavras nascem de realidades. Mas pode ser que estejam na língua há muito tempo, antes de o Brasil ser o Brasil, talvez tenham vindo de outras línguas. Não sei te dizer os porquês, infelizmente. Mas adoraria saber.

Quais são as impossibilidades de tradução? Você sofre muito com o que chama de seus “fracassos”?
Alison – O sotaque é uma destas impossibilidades. Jamais vou conseguir manter um sotaque mineiro, de Cataguases, por exemplo, como o dos livros de Luiz Ruffato. Assim como não dá para recriar na língua inglesa a diferença entre um sotaque carioca e o do sul. Dói, mas sei que tradução é uma coisa incompleta. Eu sei que é impossível, então tenho de aceitar. É possível explicar em nota de rodapé, mas aí esbarra na fluidez, em não querer quebrar a suspensão da descrença do leitor. Há autores em que sinto que a perda é maior. Luiz Ruffato é um deles. Ele trabalha com toda uma classe social e representa as pessoas de uma forma que, lendo, você acha que conheceu um cara exatamente assim. Mas ele fala de coisas tão brasileiras, de uma condição social. Isso está ali na tradução, como no original, mas, sem conhecimento do Brasil o leitor não vai enxergar. Vou dar um exemplo concreto, de um trecho: “Às onze, encostou junto ao meio-fio do bar do Auzílio, a charanga surdo-repinique-tamborim-zabumba-pandeiro-apito choramingando por favor, vai embora,/minha alma que chora,/está vendo meu fim./ Fez do meu coração a sua moradia,/ já é demais o meu penar…” A gente já escuta o barulho só lendo a frase. Mas a sonoridade vai embora na tradução porque os instrumentos não têm tradução, e mesmo que tivessem, a maioria das pessoas de língua inglesa não faz idéia do som que cada um faz. Sem falar na letra dessa música tão conhecida, que todo mundo que lê já põe para tocar na cabeça. Até tentei recriar a corrente de palavras com sons, em vez de instrumentos, mas achei que perdeu a graça totalmente, e acabei tendo de aceitar a perda. Foi uma derrota. E fiquei triste.

(Publicado na Revista Época em 16/08/2010)

Vida de photoshop

O que a Lisbeth Salander de Hollywood não dirá sobre nós

Assisti na semana passada ao filme baseado no primeiro livro da trilogia Millennium, do sueco Stieg Larsson: “Os homens que não amavam as mulheres”. Como milhões de pessoas no mundo inteiro, fui capturada por Lisbeth Salander, a perturbadora (e perturbada) hacker que desvenda nossa sombria humanidade (e alguns crimes) em parceria com o jornalista idealista Mikael Blomkvist. Sou fascinada por literatura policial e li os três volumes quase de uma vez só. O autor, um jornalista que morreu de enfarte antes de ficar milionário, conseguiu criar algo que poderia ser considerado um dos primeiros romances policiais pós-modernos. Ao começar a assistir ao filme, porém, tive um estranhamento. E foi um ótimo estranhamento.

O filme, falado em sueco, é uma produção conjunta da Suécia, Dinamarca e Alemanha. Logo de cara, eu me surpreendi com o ator que interpreta Blomkvist. O ator Michael Nyqvist é charmoso, mas tem cicatrizes de acne no rosto e barriguinha de sedentário. Em seguida, estranhei as rugas de Erika Berger, a sócia (e amante) de Blomkvist na pequena e combativa revista Millennium. Na sequência, me espantei com a acanhada redação da revista. Eu imaginava um conjunto pequeno, mas estiloso e muito moderno. E assim segui, de estranhamento em estranhamento. À primeira vista, só aprovei Noomi Rapace, a atriz que interpreta Lisbeth Salander, muito jovem no livro e no filme. E bem mais bonita no filme do que sua descrição no livro.

Até que compreendi (por sorte no início do filme). Era isso! Enquanto lia os livros, eu havia imaginado os personagens. Normal, nunca será como a gente imagina. A questão é que minha imaginação está condicionada pelos blockbusters de Hollywood. No livro, fica claro que Blomkvist está fora de forma. Que a revista luta com dificuldades financeiras. Que Erika é uma mulher que passou dos 40. E assim por diante. Mas eu imaginava um filme de Hollywood, onde os heróis têm barriga tanquinho, as mulheres chegam aos 60 com carinha de 30 e a pobreza tem estilo. Até as marcas, quando existem, são estetizadas.

Vejo muitos filmes que não atendem à estética dos blockbusters de Hollywood, óbvio. E até alguns de Hollywood que não se curvam ao modelo vigente. Mas são filmes que versam sobre outros temas. Quando vou assistir a um filme francês, alemão, japonês, coreano, iraniano, israelense, brasileiro etc, sei que vou ver gente normal, gente com marcas. Mas uma história policial com vocação de blockbuster, hoje, é quase sempre produzida por Hollywood. Neste escaninho do filme policial, de suspense, de ação, as imagens já vêm à minha cabeça no formato Hollywood.

Foi assustador perceber o quanto esta estética condiciona a minha imaginação, está entranhada no meu cérebro, apesar do meu constante questionamento. Eu já tinha um filme de Hollywood na minha cabeça quando fui assistir a um filme sueco, baseado num livro que se passa na Suécia, escritor por um autor sueco, com personagens que são cidadãos suecos.

Desconfio que o filme não fez tanto sucesso por aqui por causa desse estranhamento. Achei o filme bastante bom. Acompanho agora, nos sites e blogs especializados, a expectativa pela produção hollywoodiana da trilogia, com comentários como: “agora sim, a obra terá a adaptação que merece” ou “a trilogia está salva”. Para o papel de Blomkvist, especula-se com os nomes de Brad Pitt e George Clooney, entre outros. Agora sim, teremos um jornalista mais sedentário do que gostaria, fumante, passado dos 40, sem marcas e sem barriga, com muitos músculos e todos no lugar. Para encarnar Lisbeth Salander, uma garota de 20 e poucos anos com corpo de 12, esquisita, desajustada, muito longe de qualquer padrão de beleza, já foram cogitados os nomes de Kristen Stewart, Natalie Portman, Anne Hattaway, Carey Mulligan e até Scarlett Johannsson, entre outras. Com certeza, quando for lançada, a versão hollywoodiana fará muito mais sucesso que a sueca. A maioria de nós terá a sensação de que finalmente está tudo no seu lugar.

Mas a verdade é que está tudo fora do seu lugar – e não da forma que nos leva a algum lugar, mas da forma que nos deixa na mesma.

A estética que impera em Hollywood tem o mesmo sentido da que domina as novelas brasileiras e as revistas de celebridades. Vivemos em um país de gente cheia de cáries e falhas nos dentes ainda hoje. Mesmo quem cuida bem da sua boca – e tem dinheiro para bons dentistas – não envelhece sem ver seus dentes se gastarem e amarelarem. Mas atores e atrizes, jornalistas e apresentadores, todos que aparecem na TV, exibem uma dentadura de comercial de creme dental. Minha dentista me conta que as pessoas aparecem no consultório com capas de revista na mão, dizendo: “Eu quero dentes iguais a estes”.

Fico imaginando um historiador, no futuro, revirando os arquivos da imprensa do início do século XXI. Ele vai ler uma tonelada de páginas, impressas e virtuais, sobre celulite, por exemplo. Mas vai ter muita dificuldade para descobrir por que a celulite era uma questão para as mulheres desta época, já que não vai encontrar uma única criatura do sexo feminino com celulite. Quem aparece é linda, magra e mantém o corpinho liso, “sem o famoso efeito casca de laranja”, à custa de um pouco de malhação e alimentação saudável. Algumas nem gostam de fazer ginástica, é puro dom da natureza. O historiador do futuro vai estar diante de um enigma digno da esfinge do mito de Édipo: a celulite é uma grande questão para a mulher do início do século, mas nenhuma mulher tem celulite.

As celulites só aparecem quando se trata de “denunciar” uma celebridade que foi flagrada por um paparazzi em estado natural. Neste caso, para ser ridicularizada. Ahá, te peguei, você é igual a mim. Vingança. De novo, um pesquisador que analisar nossa época vai ter problemas, porque não vai saber qual é a imagem verdadeira: a que passou pelo photoshop e está em todas as capas – ou esta, que se apresenta como um flagrante.

Os documentos que deveriam ser testemunhos do nosso tempo estão quase todos “photoshopados” desde que as fotografias se tornaram digitais e passaram a ser manipuladas, retocadas para eliminar marcas e imperfeições ou alteradas para imprimir determinado efeito. “Tratadas”, no eufemismo do jargão. Até as fotos de políticos, empresários e jogadores de futebol em geral passam pelo photoshop, para melhorias aqui e ali. Embora existam uns poucos órgãos da mídia que resistem, a maioria se rendeu aos retoques da realidade.

Basta conversar com colegas em diferentes redações – e não apenas nas de revistas de celebridades – para descobrir que o tamanho da foto e o espaço do personagem na matéria são definidos cada vez mais em função de sua beleza e juventude. Para um feio ou velho virar capa, em boa parte das publicações ele tem de ter feito um sucesso estrondoso. Ou ser tão famoso ou tão rico que se tornou bonito ou sem idade. E os bonitos e jovens ficam mais bonitos e jovens ainda por obra do photoshop.

Alguns jornalistas contam que chegam das entrevistas e o editor lhes pergunta: “Mas fulana é bonita, rende abertura de matéria ou capa?”. Ou, depois de conferir a foto: “É muito feia, não dá para botar na matéria. Não resolve nem com photoshop!”. E, se não for bonita, “não vende”. Em algumas redações, criou-se inclusive a exigência de que o repórter faça uma foto do entrevistado com seu celular, para que o editor possa avaliar se está dentro dos padrões de beleza e juventude exigidos. Alguns desses colegas entram em crise quando percebem que já introjetaram o modelo e começam filtrar os entrevistados também pela aparência – e não apenas pela relevância do que têm a dizer.

Estou falando agora não mais de Hollywood ou de telenovelas, mas de jornalismo, cuja busca da verdade é um dos pilares mais fundamentais. E poucas coisas podem ser mais verdadeiras – ou falsas – que a imagem e a escolha da imagem. Tive a sorte de nunca ter sido pressionada a fazer esse tipo de escolha – e a serenidade de saber que, se fosse, não aceitaria.

Tudo isso revela alguns caminhos por onde um tipo de olhar vai impregnando nosso modo de ver o mundo, aos outros e a nós mesmos. A cada dia nós vamos às ruas e enxergamos a realidade e as pessoas como elas são. A cada manhã nos olhamos no espelho e encaramos nossas marcas. Mas cada vez mais acreditamos e esperamos que exista uma outra imagem do mundo – e uma outra imagem de nós mesmos. Uma que não tem marcas, não engorda e não envelhece. E começamos a acreditar que esta é a imagem mais verdadeira.

Sofremos não pelo que somos, mas pelo que deveríamos ser e nunca seremos, por mais caros que sejam os cremes, mais sofisticadas e invasivas as cirurgias plásticas. Mesmo assim, passamos a medir nossa vida – ou nosso sucesso na vida – por essas duas imagens que jamais se tornarão uma. Passamos a acreditar que o que deveríamos ser – e não o que somos – é nossa versão mais verdadeira. Emprestamos verdade à imagem “photoshopada” dos homens e mulheres das capas das revistas. E falsidade ao nosso rosto no espelho. Como não inventaram um photoshop da vida, sofremos. E nos vemos sempre aquém do melhor de nós mesmos.

O que nem todos percebem é que, por mais que a indústria do entretenimento, a publicidade e, em alguns casos, também o mau jornalismo, tentem nos convencer do contrário, só há um jeito de não ter marcas: não viver. O vivido se inscreve em nós pelas marcas, as físicas e as psíquicas. Elas são o inventário de nossa vida. A prova de que vivemos.

Por isso temo pela versão de Hollywood da trilogia Millennium. Não tenho a menor dúvida de que será bem produzida. Mas, talvez, bem demais. A curta obra de Stieg Larsson conquistou o sucesso que tem porque o escritor criou personagens com muitas marcas da vida. Que ecoam em nós porque nos perturbam, porque nos reconhecemos neles. A mais jovem desses personagens, Lisbeth Salander, tem tantas marcas psíquicas na alma, que precisou tatuar no corpo marcas com as quais pudesse se identificar e, então, pertencer mais a si mesma. Ela, que foi violada e arrancada de si mesma de tantas maneiras, a ponto de não ter nem a tutela da própria vida.

Assim, é sempre possível apaziguar a alma à espera da próxima redenção de Hollywood. É como tantos de nós têm vencido os dias. Mas, se quisermos ter uma vida de photoshop, só há um jeito (e não é o bisturi): morrer ao nascer.

(Publicado na Revista Época em 31/05/2010)

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