Saci sem cachimbo, lobo sem dentes e gente sem pensamento

Uma conversa com o psicanalista Mário Corso sobre o politicamente correto

Era uma vez um mundo de gente muito chata. E um tanto perigosa. O Saci estava ali, na dele, pulando numa perna só e aprontando umas e outras, quando… zás! Sequestraram seu cachimbo. O Saci olhou para um lado, olhou para o outro, e viu umas criaturas de olhos estalados e cara de melhores intenções. O Saci não tem medo de quase nada, mas descobriu que morre de medo de seres com cara de melhores intenções. É para o seu bem, disseram os entes desconhecidos. Fumar faz mal. E dá mau exemplo. Se você for bem bonzinho, a gente lhe dá uma prótese aerodinâmica para você saltitar com duas pernas. O Saci disse que estava muito bem obrigado com uma perna só há alguns séculos e ficaria bem satisfeito se pudesse pitar seu cachimbo sem nenhum enxerido apitando no seu ouvido. Não adiantou. Aqueles seres só tinham certezas – e uma delas era saber o que era melhor para ele.

Desde então, vem aparecendo uns sacis sem cachimbo – e sem magia – por aí. Não bastassem lobos que em vez de avós comem cenouras, crianças que não atiram pau no gato e madrastas da Cinderela com doutorado em pedagogia, resolveram mexer com o Saci.

O ataque mais recente foi denunciado no Rio Grande do Sul, semanas atrás. O Internacional, time gaúcho de futebol, está sutilmente escanteando o Saci, símbolo do clube. E substituindo-o por um macaco chamado Escurinho. Na condição de gremista, eu achei até bom. Porque o Saci, bem invocado, poderia piorar bastante a situação do clube que não só lhe arranca o cachimbo nas poucas imagens em que ele ainda aparece, como o renega pelas beiradas. Mas o Saci está acima das rivalidades futebolísticas. E tudo tem limite nessa vida.

Diante do questionamento de torcedores, o diretor de marketing do clube, Jorge Avancini, respondeu ao colunista Wianey Carley, de Zero Hora, que o Saci continua sendo a mascote do clube, “o Escurinho é a mascote dos projetos sociais”. Ah, bom. Um ponto da resposta é particularmente interessante. Na tentativa de ser politicamente correto, Avancini escorregou. Não um escorregãozinho qualquer, mas um que foi de Porto Alegre a Uruguaiana.

Para mim, coisa do Saci. Ninguém diria isso de livre e espontânea vontade. Confira: “O Saci hoje tem rejeição por parte das crianças, pelo fato de não ter uma perna, isso é visto como perdedor, e por fumar cachimbo, além de ser politicamente incorreto, as crianças estão associando este ato ao ato de fumar Crack. Se observares onde temos usado o Saci, ele já aparece sem o cachimbo”.

Dá para imaginar uma criança olhando para o Saci e pensando: “Bah, vou fumar crack!”? Ou um dirigente de clube dizendo a um jornalista que as crianças rejeitam o Saci porque não ter uma perna é coisa de perdedor? Pois é.

O fato é que o Saci é apenas mais uma vítima. (E eu, aqui no meu canto, quero continuar sua amiga.)

É natural que os personagens dos contos, do folclore e também das fadas, sofram mudanças ao longo do tempo. Eles podem mudar, como tudo, mas não sofrer um processo de limpeza que arranque deles a sua essência, o que de melhor têm a nos dizer. E, no caso da patrulha politicamente correta, arranque deles os conflitos, as diferenças, o estranho e o incômodo. Tudo aquilo que há séculos cumpre a função de nos ajudar a elaborar nossos mais fundos temores. Não é a toa que as crianças pequenas pedem para repetir sempre a mesma história – e sempre do mesmo jeito. Ali, elas podem controlar o final, administrar o medo, começar a aprender a lidar com a violência, os conflitos e o estranhamento inerente a toda vida.

Para além do bizarro destas intervenções, há algo sério em curso. Algo sobre o qual precisamos pensar. E que não é coisa só do Brasil, mas vem se esparramando pelas democracias ocidentais, já que nos regimes totalitários a censura é de outra ordem e sem nenhuma sutileza. Em 2008, por exemplo, uma agência educacional do governo britânico proibiu uma versão da história dos Três Porquinhos nas escolas, porque ela poderia ofender os muçulmanos. Outro fator que pesou foi o fato de que o conto seria uma ofensa aos pedreiros e construtores, ao tratá-los como “porcos ignorantes, que constroem casas que podem ser derrubadas pelo vento”. Só para ficar claro que a ausência de pensamento não tem limites geográficos.

É importante que o cravo continue a brigar com a rosa (e não tenham uma vida de flores de plástico), a madrasta seja uma bruxa má (e não vá para a balada de mão com a Cinderela) e o lobo devore a avó (e não seja vegetariano ou, infâmia das infâmias, prefira tomar refrigerante, como numa história que li dias atrás). A fantasia – e a arte – é o território onde lidamos com nossas verdades mais profundas. E não podem ser enquadradas pela cartilha de uma pseudo-pedagogia que tem pavor de conflitos e do lobo mau.

Para nos ajudar a pensar sobre o furor politicamente correto e os efeitos sobre nossa vida e a de nossas crianças, procurei o psicanalista Mário Corso. Ele é autor de dois livros imperdíveis: Monstruário – inventário de entidades imaginárias e de mitos brasileiros (Tomo Editorial, 2002) e Fadas no DivãPsicanálise nas histórias infantis (Artmed, 2006), este último escrito em parceria com a também psicanalista Diana Lichtenstein Corso. É uma conversa longa, como todas as boas conversas.

EU – Assistimos há alguns anos a uma espécie de “purificação” dos personagens infantis, tirando deles tudo o que é diferente, incômodo ou revelador de conflitos. Mais recentemente, começaram a implicar com o cachimbo do Saci. Ele seria um mau exemplo para as crianças e também para os adultos. Faz algum sentido um Saci sem cachimbo?
Mário Corso – O Saci é um dos raros trickster do nosso folclore. O trickster é um ser enigmático, nunca sabemos o que esperar dele. Afinal, ele pode ser bondoso ou maldoso, nos ajudar ou nos atrapalhar, nos dar um presente ou nos roubar, enfim, a sua essência é ser imprevisível. Além disso, o Saci é um ser do ar, provoca e vive nos redemoinhos. É natural que seu alimento, por excelência, seja a fumaça. Vão é matá-lo de fome se tirarem o cachimbo!

EU – Um Saci sem cachimbo é ainda um Saci? Ou é outra coisa? Daqui a pouco vão colocar uma prótese nele… O que acontece quando a gente esvazia estes personagens daquilo que os constitui?
Corso – Acontece como aconteceu a outras figuras: a gente se esquece delas. Como elas vão cada dia nos dizendo menos, elas caducam e desaparecem. A gente ainda conhece a Mula-sem-cabeça, mas a sua prima Cumacanga não. A gente vê filme com Zumbi, mas não conhece o Corpo Seco, figuraça de horror que assombrava nossos avós. Mas com o Saci acho difícil. Creio que o Saci ficou tão popular porque representa as três raças. Ele é negro, mas usa um barrete vermelho, bem ao velho estilo português, que é, aliás, a fonte de seu poder. E usa o fumo, que é um dos “presentes” que a América deu à humanidade. Ou seja, o gosto pelo fumo é o seu elemento índio. Sem cachimbo, ele perde um pouco da sua força, mais ainda é um saci. Quem sabe dias melhores virão, quando o tabagismo e o crack não sejam os demônios a serem domados e lhe restituam seu cachimbo.

EU – O Saci não é a primeira vítima desta ânsia purificadora. Os contos de fadas foram sendo alterados ao longo dos séculos, para se tornarem mais palatáveis às sensibilidades do momento. Especialmente a partir do século 19, quando viraram histórias para crianças. Há algum tempo, passam por uma nova mudança, com releituras politicamente corretas. O que acontece com as histórias e com as crianças que ouvem as histórias, quando é promovida esta “limpeza”?
Corso – Na verdade, os contos foram se adaptando ao público. Existem três migrações importantes e cada uma deixou uma marca. Não necessariamente elas seguiram uma ordem, mas podemos sistematizá-las assim: 1) os contos de fada provêm da tradição folclórica oral e, naquele momento, não pertenciam a nenhum público específico; 2) as histórias mudaram de veículo e ganharam um registro escrito, modificando então seu habitat, já que não eram contadas mais nos serões de trabalho e sim nas cortes, ou seja, deixaram o campo e vieram para a cidade; 3) por último, foram destinados às crianças. Cada mudança implicava uma adaptação a uma sensibilidade diferente. Perderam, portanto, certa crueza e rudeza camponesa.

Além disso, depois que ficaram exclusivamente infantis – e na medida em que se acredita na influência educadora de tudo o que se ministra à infância –, é natural que tenham ganhado um filtro adicional, especialmente nos aspectos que remetem à questão sexual. Mas houve também a limpeza de várias outras arestas, como passagens mais violentas, francamente incestuosas, canibalismo, esquartejamentos, tortura de vilões, filhas entregues a monstros, adultério e outros eventos mais espetaculares que divertiam seu público original, que pedia mais emoção. Quem se preocupa com os filmes violentos e o gosto dos contemporâneos por emoções fortes não se dá conta que os camponeses daquele tempo achariam Tarantino uma florzinha.

EU – Estaríamos então passando por mais uma mudança nos contos de fadas e no folclore brasileiro, com o politicamente correto? O quanto é relevante esta intervenção de certo tipo de pedagogia nos contos de fadas e no folclore? Isso no caso de podermos chamar de pedagogia uma intervenção que busca eliminar os conflitos em vez de trabalhar a partir deles…
Corso – Existem coisas que se pode dizer e coisas que não se pode dizer, esta é a lógica do politicamente correto. Aplicado a questões raciais e sexistas, o discurso de correção política pode ser muito bem-vindo. Por exemplo, eu mesmo fico muito contente em não escutar mais as piadas racistas que escutava na minha infância. Nunca gostei de escutar esse lixo, me fazia mal. Mas chegando à discussão política, aos temas amplos contemporâneos, é um desastre.

O politicamente correto na política já não é só uma escolha de palavras, mas é uma forma de não pensar. Ela pressupõe certos axiomas, especialmente o “coitadismo” e a vitimização do cidadão. E, como contrapartida, a responsabilidade total do Estado: se as coisas chegaram aonde chegaram é por que o Estado em algum momento falhou. As pessoas, os cidadãos, não falham. Eles são sempre bons e oprimidos por forças superiores.

A questão aqui é definir o que se entende por um discurso politicamente correto. Se você está pensando em algo como “1984”, de George Orwell, eu concordo. Ou seja, ele projetou nesse livro um mundo em que o totalitarismo venceria – e para quem viveu no século XX foi um pesadelo bem possível. Uma das consequências do totalitarismo seria a “novilingua”. Esta língua teria um número mínimo de palavras, feitas para diminuir a capacidade de pensar e, consequentemente, a de manifestar críticas ao governo. A lógica era a de que só corrompendo a linguagem era possível corromper o pensamento. Os fascismos e o stalinismo e várias ditaduras nos deram demonstrações práticas de um vocabulário oficial como este. É bom lembrar que os governos autoritários são muito atentos às palavras – mais do que as democracias.

Porém, a questão que nos interessa: seriam sociedades ditas democráticas imunes à corrupção da linguagem? Será que nestas sociedades democráticas encontraríamos a plena expressão? Escutando certas pessoas, eu penso que, infelizmente, não. Estamos utilizando novas formas de “novilingua”. Isso tanto na política quanto na linguagem empresarial, nos discursos sobre marketing.

Também poderíamos dizer que andamos falando “Jerkish”. Ivan Klima, um romancista tcheco, usou essa palavra para designar a linguagem oficial da cortina de ferro. Na origem, “Jerkish” quer dizer uma linguagem desenvolvida para falar com chimpanzés, portanto sem possibilidade de metáfora, onde tudo é direto. Pão-pão, queijo-queijo – ou então banana-banana. Na verdade, trata-se de um vocabulário oficial baseado em clichês e que nos faz falar sem dizer nada. Não sai nada além da informação mais banal e esperada. Quem fala com esse vocabulário dá voltas e mais voltas nas questões, diz o que é previsível, o óbvio ululante, e estamos conversados.

A questão principal é que o “Jerkish” não pede a marca singular de quem fala. Dessa forma, todos ficam iguais, independentemente se enunciado por um ou por outro. O que é dito será a mesma coisa, já que essa linguagem não permite um estilo próprio. O resultado é um empobrecimento da linguagem, e, em decorrência, o esvaziamento do pensamento.

EU – O politicamente correto é um fenômeno da nossa época?
Corso – Quem acha que a correção política é nova não é atento à História. Depois da Revolução Francesa, por exemplo, houve um surto de correção política. A abelha rainha tornou-se abelha poedeira (abeille pondeuse). E também houve trocas nos baralhos e nos jogos de xadrez. Nada de reis, rainhas, valetes, bispos… Os baralhos vinham com “liberdade, igualdade, fraternidade”. O “vous”, que supunha uma certa assimetria social, foi trocado pelo “tu” ou “tois”. A esperança revolucionária era substituir todo “vous” por “tu”. “Monsier” e “Madame” viraram “Cidadão” e “Cidadã”. Hoje, a gente pode até rir disso, mas os revolucionários achavam isso uma grande questão.

Mas, voltando. Sim, podemos dizer que os contos de fada, as histórias e canções para as crianças, podem estar ganhando mais uma “limpeza”.

“Ao tentar proteger os filhos, os deixam sem armas para o pior”

EU – Que mundo é este que precisa “limpar” os contos de fada e as histórias do folclore brasileiro? Não sei que palavra você usaria para o que está acontecendo já há algum tempo… Censura? De onde vem essa necessidade?
Corso – É um pouco de tudo, algo entre uma nova sensibilidade e a censura. Um conto muito popular até o século XIX era Bicho Peludo (ou Pele de Asno). Ele tem como mote o desejo incestuoso de um pai por sua filha. Ora, isso não é bem visto hoje, logo a história não é mais contada. Certamente Disney não vai fazer uma versão. E olha que ela era tão popular como Cinderela! Vivemos tempos psicológicos, sabemos ou intuímos o que as histórias mais transparentes nos dizem e temos uma convicção interior de que as obras de arte ou ficção mobilizam elaborações e sentimentos importantes. Portanto, passamos a evitar a evocação de assuntos polêmicos quando nos dirigimos às crianças. Talvez na esperança mágica de que o conflito não se estabeleça.

EU – Quem perde com isso?
Corso – Quem perde com isso são as crianças. São os adultos que censuram, mas são elas que deixam de dispor de excelentes histórias, que poderiam ajudar a dramatizar os conflitos que vivem. Ou alguém acredita que uma menina vai deixar de se apaixonar por seu pai e querer que a mãe suma do mundo só por que não escutou uma história infantil?

EU – Esta ânsia de eliminar os conflitos, como se os conflitos fossem ruins e incompatíveis com os bons valores da vida, é movida por qual desejo?
Corso – O que está por trás de tudo é proporcionar uma “boa educação” para as crianças e não poluí-la de maus exemplos. O mesmo serve para a violência, como se a violência fosse fruto não das relações reais que a criança vive, mas do mundo da imaginação. O que esse pessoal que acredita nessa pedagogia cor-de-rosa demonstra é que conhece muito pouco de seus filhos e esqueceu totalmente da sua infância. Esqueceu os fatos, mas de certa forma é traumatizado pela infância, tanto que quer evitar que seus filhos tomem contato com as fantasias que eles viveram e não elaboraram.

O que temos aqui é uma transmissão do medo que eles sentiram na infância. Ao tentar proteger seus filhos os deixam sem armas para o pior. Serão crianças que, sem trânsito mais aberto pelo mundo da fantasia, o que poderia treiná-las para o mundo real, vão viver os golpes do destino da forma mais dura. E ninguém pode viver sendo poupado.

Portanto, mais do que exercer uma atividade de censura, no sentido de julgamento moral, a transformação dos contos de fadas em histórias mais suaves ou mesmo didáticas provém muito mais de uma condição neurótica de pais e educadores. Eles tentam criar condições para uma infância livre de conflitos, como se isso fosse possível.

Cada novo indivíduo que nasce está fadado a ter seus sofrimentos neuróticos, que são normais e dão consistência à personalidade que ele está construindo. Seus adultos, porém, gostariam que ele fosse livre de tudo isso. O ideal dos adultos é o transcurso de uma infância e adolescência que sejam leves, uma vida de puro prazer e liberdade, uma onde eles imaginam que seria bom terem crescido.

Não estamos defendendo que se mantenha a versão da Chapeuzinho Vermelho na qual o lobo a convida a comer a carne do corpo da vovó assassinada, mas que se mantenham as histórias com direito a dramas mais encorpados, onde a complexidade do destino e da personalidade não fiquem tão abafados. Os pais e escolas de hoje “escaneiam” os livros em bibliotecas e livrarias buscando eliminar qualquer coisa que possa angustiar os pequenos. Mas eles se angustiam igual, porque a infância é uma época difícil de viver, e não há outro jeito de atravessá-la. Sentir coisas fortes sozinho é pior. A criança se sente maluca, estranha.

EU – Há algum risco dessa “reforma” nos contos de fadas e outras histórias infantis vingar? O cinema, os games e a literatura continuam produzindo vilões. Do contrário, provavelmente teriam prejuízo. Não dá para imaginar Harry Potter sem o Voldemort, por exemplo. Até mesmo “Up – altas aventuras” tem um vilão interessante….
Corso – Vinga e não vinga. Uma coisa é o que a intenção pedagógica reinante quer, outra é o que as crianças vão buscar. Existe um sem número de livros infantis e programas de crianças que são falidos, ficaram pelo caminho. As crianças cheiram o cavalo de tróia da vontade moralizadora e nem o deixam entrar. Os grandes estúdios, as grandes editoras e especialmente os games, que movem um montante de dinheiro incrível, sabem do gosto infantil por sentir medo, por temer vilões, e fabricam esses pequenos diabos para deleite dos pequenos. Não é a indústria cultural de produtos para a infância que tem essa visão moralizadora. É o espírito da nossa época, dos pais e mestres contemporâneos que acreditam que é possível e necessário educar também através das obras e personagens da cultura infantil. Invadem então o território da fantasia com tarefas escolares e tentam usar a ficção como veículo para seus sermões subliminares.

EU – Nos contos de fadas, em geral os vilões são bem populares. Por quê? Imagino que nenhuma mãe precise ficar preocupada se seus filhos gostarem do lobo mau ou da bruxa da Branca de Neve…
Corso – O mundo é muito perigoso, até para os adultos. Imagine então para as crianças, que são frágeis, pequenas, dependentes, e que não entendem metade do que está acontecendo. Como é que elas não vão querer brincar e fantasiar com o elemento do medo? O medo na fantasia é controlado, a criança pode evitá-lo, se aproximar, se afastar, ter a ilusão de controle. Enfim, ela dialoga com algo que lhe é importante. Por isso o vilão é importante. Ele é o mal, e cada um quer saber como se defender dele. O mal é um grande assunto.

O mundo não vai ficar melhor se privarmos as crianças da violência dos games, das histórias, que não é nada mais do que um aprendizado para uma violência que um dia ela vai ver na realidade. Ninguém fica violento porque joga games, eu diria até o contrário. Salvo raríssimos casos de crianças gravemente perturbadas, todas as crianças têm muito claro o que é fantasia e o que é realidade. O nosso mundo é que é violento, esses produtos são só um reflexo disso. Não adianta tentar arrumar a violência real pelo cerceamento da violência virtual. Isso é uma bobagem.

“Eu não sei se o germe mais perigoso é o totalitarismo ou a burrice”

EU – É possível educar para a não-violência?
Corso – Eu acredito em uma educação para a não-violência, mas esta deve ser feita nas relações reais que essa criança tem, na forma como ela deve tratar os outros, os seus semelhantes, a funcionária que trabalha em sua casa, o porteiro do prédio, os colegas da escola que são mais tímidos, os velhos. Como os pais não educam seus filhos onde devem educar, ficam tentando o caminho mais fácil, imaginando que é nos seus brinquedos e fantasias que está a chave para a formação do caráter.

Educar dá muito trabalho, mas muito trabalho mesmo. Essa é a chave, e nem todos estão preparados para isso, pois é preciso ler um pouco, sair do senso comum, cultivar-se. Os pais não preparados para a função projetam no mundo, em especial na mídia, a responsabilidade pela formação moral dos seus filhos. Por isso essa histeria com a violência e a sexualidade nas histórias infantis, na TV, nos games.

EU – Se as crianças procuram o medo, usam as histórias para elaborar suas questões, faz sentido histórias em que todo mundo é bom, se dá bem e não há nenhum conflito? Para que serviria uma história como essa?
Corso – Histórias assim tão chatas só servem para tranquilizar pais medrosos. Por outro lado, esse tipo de obra, que no fundo é paradidática, presta um desserviço para a literatura. Através desse tipo de narrativa – que era para ser literária e na verdade é pedagógica – afasta-se a criança da experiência estética, que é a de se emocionar com uma narrativa, com uma imagem que as traduza poeticamente, que as faça entender algo além da compreensão racional. A arte pode ser nossa melhor tradução, ou talvez a tradução do melhor de nós. Ao reduzi-la à educação, como tanto se tentou nos regimes totalitários, mata-se ao mesmo tempo a obra e seu público.

EU – E histórias como a do Shrek, em que os lugares são embaralhados… O monstro é o herói (ainda que como anti-herói), a princesa arrota e prefere ser ogra etc. Continua tendo vilões, mas o vilão maior é o príncipe encantado e a fada madrinha… Histórias como esta têm espaço para a elaboração, na medida em que, embora embaralhem a identidade de vilões e heróis, reproduzem os conflitos clássicos?
Corso – Shrek é um exemplo perfeito da atualização possível dos contos de fadas, que têm sido umas dos raros elementos da tradição que apresentam eterna vitalidade em nossa sociedade tão fascinada pelo novo. Para isso, porém, precisam se reciclar a cada nova geração de crianças. Para as atuais, um herói tem que ter consistência emocional, o antigo e simples maniqueísmo é pobre para elas. O ogro verde tem conflitos interiores, para se socializar, para aceitar os outros e se aceitar. E isso é muito compreensível para as crianças, que se vêem psicologicamente retratadas nele, que também é tão deliciosamente humano em seu corpo gordinho e produtor de todo tipo de gases.

Além disso, há o humor, que é um pré-requisito de crítica e inteligência da qual nem as crianças nem nós, adultos, abrimos mão. O humor é o grande herdeiro artístico de todas as revoluções que já protagonizamos e vivemos. Enquanto ele sobreviver, nenhuma ditadura será eterna.

Para as crianças, há poucas idealizações disponíveis. Nem seus pais, nem mestres, nem governantes, nem mesmo deuses estão disponíveis para serem admirados irrestritamente. A irreverência chegou para ficar entre os humanos e isso é bom. Por isso, devemos acrescentar atributos aos elementos imaginários disponíveis, como o ogro e o Saci – e não tirar os que eles já têm. Ziraldo já fez do Saci um bem humorado personagem. E este é o caminho, já que se trata de arranjar oportunidades para as criaturas mágicas. E não relegá-las ao desemprego, alegando que estão fora de moda.

EU – O politicamente correto nos é vendido embalado nas melhores intenções. Mas, como você disse, contém nele um germe totalitário. Como podemos nos contrapor a isso, como pais e pessoas que vivem nesse mundo?
Corso – Eu não sei se o germe mais perigoso é o totalitarismo ou a burrice mesmo. A gente usa totalitarismo com muita leviandade. Se o discurso politicamente correto for totalitarismo, teremos de inventar outra palavra para dizer como funcionava o nazismo ou mesmo a vida hoje no Irã. Lá sim é que o bicho pega. Que um iraniano ouse em um lugar público discordar do que diz um Aiatolá e veja onde vai parar…

Ou seja, o discurso politicamente correto é a versão ligth do discurso totalitário. Afinal, vivemos num estado democrático. Eles se parecem na essência porque ambos são armadilhas do pensamento, são formas de suprimir e atalhar pensamentos complexos. Ambos usam um jargão pré-estabelecido sobre todos os assuntos polêmicos, tapando as questões ou os seus desdobramentos. Ambos falam em nome do bem comum. E falar em nome do bem comum funciona como um escudo. É como os religiosos que falam em nome de deus. A partir dessa premissa não há mais questionamento possível. Eles se acham certos e pronto, estão do lado do bem.

Todo valor pode ser transformado em uma espécie de mercadoria esvaziada do seu papel. Quanto mais estratificado nosso mundo se torna, mais falamos em igualdade e tolerância. E mais falamos em igualdade e tolerância justamente quando estamos quase totalmente desprovidos de pensamento utópico, da esperança de um mundo diferente, norteado por valores realmente igualitários. Quanto mais imersos numa cultura de mercado, onde a produção de lixo se dissemina e é democratizada, mais ecologia ensinamos aos pequenos. As intenções são boas, mas a coerência é que está em falta.

“Ninguém diz mais o que pensa, e sim o que é certo dizer”

EU – O que nos leva a esse discurso vazio?
Corso – O que leva ao clichê, ao discurso vazio, é a falta de sinceridade. Ninguém diz o que realmente pensa e sim o que é certo dizer. E, com o tempo, de tanto insistir no que seria correto dizer, convencemo-nos de que aquilo é o que realmente pensamos. Só que isso não é mais um pensamento: sendo uma repetição de fórmulas esquemáticas, é justamente a ausência de pensamento. Aqui a preguiça contribui de fato: é mais fácil não pensar.

A utilização da linguagem politicamente correta, ou seja, o policiamento do que é dito em busca de que a tolerância seja um enunciado universal, baseia-se justamente nessa premissa: de que o modo de falar daria forma ao modo de pensar – e não o inverso. A intenção é das melhores, mas o resultado foi esse saneamento da linguagem, visando expurgá-la dos preconceitos a partir de uma esterilização dos enunciados.

Eu sempre fui envolvido com a questão da reforma psiquiátrica. Estudei muito a questão, estive presente em momentos políticos e desdobramentos práticos desse movimento. Especialmente na questão de formação de pessoas com um arsenal teórico para dar conta desse novo momento. Mas não consigo usar o famigerado “portador de sofrimento psíquico” para dizer “louco”. Acho que eu sempre fui atento aos loucos, cuidei de muitos deles, milito para que os escutemos na sua singularidade, que sempre que possível não se abafe seus delírios com medicamentos. Enfim, para que sejam tratados como iguais. Não acredito que eu vá mudar dizendo isso – “portador de sofrimento psíquico” –, nem eles. Posso mudar de idéia, mas até agora ninguém me convenceu.

EU – Não me parece que essa “limpeza” esteja acontecendo na produção cultural para adultos. Não é o que a literatura e o cinema nos mostram. Já no mundo das crianças tiraram até o pau que elas atiravam no gato. Por que essa preocupação com o mundo infantil? Há aqui uma nova idéia de infância em curso?
Corso – Não há nova idéia sobre a infância, o que existe é uma neo-ignorância sobre a infância. Estamos esquecendo o que já sabíamos.

EU – Por que estamos esquecendo? E por que agora?
Corso – Talvez com um exemplo fique mais claro. É fácil encontrar mães que não cantam canções de ninar para seus filhos do tipo “a Cuca vem pegar…” O que elas dizem é que a Cuca criaria uma fobia na criança. E elas têm razão, a Cuca serve para isso mesmo. A questão é que é melhor um objeto fóbico do que uma angústia difusa. Se é a Cuca que vem me pegar, eu posso me defender, eu nomeio um mal-estar. Além disso, se é a Cuca que me quer não é a minha mãe. Ela está do meu lado e não quer me botar para dentro de seu corpo, de onde eu saí. Ou seja, elas raciocinam corretamente, mas não conhecem o psiquismo de um lactente. Pensam nos seus medos.

A tradição, neste caso, é mais sábia que essas mães que, tentando defender seus filhos, os deixam mais desprotegidos, mais ansiosos. A eliminação de figuras como a Cuca empobrece uma cultura. Abandonamos a tradição e colocamos no lugar um pretenso saber científico que, na verdade, é um senso comum rasteiro.

O que se perdeu é a continuidade entre as gerações. As mães não recorrem às suas mães – ou pensam que elas não sabem de nada – para criar filhos. Então, entra a figura do especialista. O médico, o pediatra, o psicólogo, o psiquiatra… Cada um falando de um saber técnico sobre a criação dos filhos. Ou seja, tudo fragmentado e, não raro, superficial.

Bom, não vou ficar com saudades dos tempos dos palpites das comadres, mas se jogou muita coisa fora com o afastamento das gerações. Ou ainda, dizendo de outra forma, são pais que não mais confiam no seu nariz para criar seus filhos. Não se posicionam, estão perdidos sobre o que fazer e como fazer.

Como você disse, só falta proporem uma prótese para a perna do Saci. Ou, em vez de prendê-lo numa garrafa, para que nos sirvamos de suas travessuras, a gente se penalize de seu defeito físico e as crianças sejam chamadas a incluí-lo em suas brincadeiras, como se fosse um amiguinho cadeirante.

O Saci só tem a perna esquerda. Ele é assimétrico, como ocorre com várias criaturas mágicas, que mancam de um pé. Ou é assimétrico como sinal de sua passagem pelo mundo dos mortos. Tudo na natureza tende ao simétrico. Logo, o sinal de pertencer ou ter passado pelo outro mundo é a assimetria. Essa simbologia é muito antiga. Portanto, o Saci recebe seu poder do seu contato com o outro lado da força. Essa é uma tradição imaginária cuja profundidade não nos cabe julgar nem compreender, só deixar que ela se revele em nós e reverbere em nossas fantasias.

As maiores maldades vêm das menores almas”

EU – O Saci é um personagem bem menos popular hoje do que foi na minha infância. Me parece que ele já vem perdendo prestígio há mais tempo. Como, em geral, os personagens do folclore brasileiro. Por que você acha que isso acontece?
Corso – Eu acredito que muito dos nossos monstros estão desaparecendo. Creio que a responsabilidade por isso é da incompetência dos nossos escritores para escrever e reinventar boas histórias sobre nossos personagens folclóricos. Descreveram com maestria nossa realidade, mas se esqueceram da nossa alma mágica, supersticiosa, nossos medos arcaicos. Não é a toa que temos uma invasão, especialmente da cultura de língua inglesa, nesse assunto. Harry Potter, o Senhor dos Anéis... Mais recentemente, a atenção dos mais jovens têm se polarizado em torno das sucessivas séries que reciclam os vampiros. Há ainda os livros americanos da série “Percy Jackson e os Olimpianos”, que proporcionaram uma nova visada na mitologia grega. Seus autores, todos de língua inglesa, prosperam porque usam uma faixa que está livre. No Brasil, depois de Monteiro Lobato, poucos se aventuram nessa trilha. Nós deixamos o terreno baldio, não podemos reclamar se outros ocuparam.

EU – Há algumas semanas se estabeleceu uma polêmica sobre o fato de o Internacional (time gaúcho de futebol), cujo símbolo é o Saci, estar progressivamente limando o personagem, apagando o Saci…
Corso – Sim, acompanhei um pouco a discussão e me entristeço tanto por ser colorado como por ser sacizista. Não está bem definido isso ainda. A questão é que o cachimbo do Saci poderia lembrar o cachimbo do crack. Não podemos esquecer que estamos vivendo o pesadelo dessa droga. Mas acho que isso é pegar o problema pelo lado errado. Ninguém vai começar no crack porque viu um saci com cachimbo, vamos ser sérios!

De novo esquecemos a vida real da pessoa, seus laços ou a ausência deles, sua família e geralmente a omissão e a ausência dela. É aí que está a porta do crack, não em qualquer coisa que ele viu na TV ou no pátio da escola.

EU – Tudo isso só revela nossa confusão com relação à violência?
Corso – Acredito que há uma confusão sobre a gênese da violência. E ela revela o tipo de relação que temos com os outros humanos e com os limites que a vida nos impõe. Mas lidamos com o assunto como se ela fosse apenas a gênese de um aprendizado, como se pudéssemos eliminar a violência apenas com educação, sem mexer no mundo real. Somos violentos porque estamos pouco preparados para pertencer a uma sociedade. Dependemos de códigos sociais muito rígidos para ter um mínimo de capacidade de conviver em sociedade, pois a cada passo imaginamos que o outro pisou em nosso território, invadiu e baniu nossa individualidade.

O dramático em nossa sociedade é justamente a exigência da individualidade, o valor que damos a ser únicos, ímpares, e ter que conviver numa sociedade a cada dia mais massificadora. A individualidade é vendida como algo natural – e não como uma construção social de alguns séculos. Dá muito trabalho e é fonte de um bate-cabeça eterno com nossos semelhantes.

É complicado de compreender, já que nossa subjetividade nasce dessa interação: é o olhar da mãe, é o modo como nossa família fica dizendo o que somos e o que seremos que nos constitui como alguém que acabamos nos tornando um dia. Mas passamos o resto da vida tentando lidar, nos digladiando com a importância superlativa que esse olhar do outro tem sobre nós. Precisamos partilhar a vida com outros seres humanos, amar e ser amados, mas odiamos depender tanto, e acabamos mesmo odiando todos aqueles cuja presença no mundo parece ocupar o mesmo lugar da nossa ou mesmo excluí-la.

Vivemos em camadas onde o círculo da intimidade, das classes sociais, das culturas, nada disso dialoga entre si. Temos pavor de todo tipo de diferença e questionamento. Portanto, não adianta treinar as crianças para a tolerância se estamos tentando abafar nelas, e em nós, tudo aquilo que nos impede de compreender o contexto maior da nossa vida, a repercussão de nossos atos e pensamentos individuais sobre o lugar e o tempo em que vivemos. Nosso isolamento alienado faz com que tudo seja vivido como ameaça à nossa integridade. Tendemos, então, a sermos defensivos como cães em seu jardim.

EU – As crianças são mais violentas hoje ou é a nossa sensibilidade para a violência que mudou, como você costuma dizer?
Corso – É muito engraçado. Minha geração era muito cruel com animais. Na minha infância assisti a todo tipo de morte e maus tratos com passarinhos, gatos, cães, sapos, morcegos. Os animais eram um suporte para a crueldade humana. Os adultos pouco se inteiravam do fato, ou não davam a mínima. As crianças de hoje são muito melhores com os animais. Não consigo imaginar hoje bodocadas em passarinhos. Mas nós achamos que elas é que são violentas por causas de seus desenhos animados ou games.

Existe uma mudança na sensibilidade. Mesmo o bullying, que hoje é tão falado – parece que descobriram a América! – era muito pior, pois incluía o racismo e a homofobia. Eu creio que nós não vivemos tempos tão violentos, o que mudou é a sensibilidade. Toleramos menos a violência, o que é ótimo. A questão, insisto, é onde estaria a gênese da violência. A confusão vem disso.

EU – E onde está a gênese da violência?
Corso – As crianças, deixadas à própria sorte, sem a presença de adultos, podem desenvolver pequenas e grandes tiranias umas com as outras. Elas podem ser especialmente cruéis e violentas, justamente porque são frágeis, inseguras, pequenas. A violência sempre está acompanhada da impotência e/ou da ilegitimidade. As maiores maldades vêm das menores almas.

Quando uma criança apela para isso, quer fazer valer um espaço, um valor que simbolicamente não tem, e então usa do ato violento, da intimidação, para “crescer” frente ao grupo. A resposta para a violência e o bullying é que as crianças estejam acompanhadas, que seus adultos responsáveis – incluindo os professores, que geralmente e infelizmente têm de se ocupar de um número excessivo de alunos – zelem por elas. E isso, eu insisto, dá muito trabalho. E é caro. É mais fácil botar a culpa nos games e no cinema.
——————————————
Ou no cachimbo do Saci.

(Publicado na Revista Época em 24/05/2010)

Divorciada aos 10 anos

A incrível história de uma menina chamada Nujood

Ela sai de casa para comprar pão para a família. É o único momento que terá. Seu coração bate tão forte e tão rápido que teme que o escutem. Deixa as ruas conhecidas e dirige-se à avenida. Nas mãos, tem o pouco dinheiro que a segunda esposa do pai botou em suas mãos, dinheiro ganho pedindo nas ruas. E o dinheiro do pão, também ganho pedindo nas ruas. Ela é a única criança sem acompanhante. Olha para o chão. Salta para dentro do ônibus junto com a multidão. Escapa.

Quando o ônibus a deixa nas ruas novamente, ela não sabe como vai atravessar a avenida de tráfego insano. Ela nunca fez isso antes. Ela nunca fez tanta coisa antes. Avista o táxi. E faz sinal, como viu sua irmã mais velha fazer um dia. Entra no táxi e diz: “Me leve ao tribunal”. O motorista estranha, mas nada diz. Na corte, há tanta gente, e ela não sabe a quem se dirigir. Então avista a mulher numa mesa e anuncia: “Quero falar com o juiz”.

A mulher faz muitas perguntas. Ela só repete: “Quero falar com o juiz”. Finalmente a mulher a leva até uma sala onde, ao longe, sentado atrás de uma mesa, ela vê um homem parecido com aqueles que viu na televisão do vizinho. Espera a sua vez pensando no mar que sonha conhecer. Ela tem um oceano inteiro na cabeça, como todas as crianças que precisam imaginar para vencer dias em que a sobrevivência é arrancada minuto a minuto. A sala se esvazia. É a sua vez. Ela se posta diante do juiz. Diz:

– Quero o divórcio.

Era 2 de abril de 2008. Em Sanaa, capital do Iêmen. Neste dia, Nujood Ali, uma menina de 10 anos, torna-se maior do que qualquer das lendas de sua infância brutalmente interrompida. Sozinha, metida no véu preto das mulheres casadas, ela atravessa um mundo para transformá-lo para sempre.

Sua história em livro, escrita com a ajuda de uma jornalista radicada em Beirute, Delphine Minoui, acaba de ter a versão em inglês lançada nos Estados Unidos – I am Nujood, Age 10 and Divorced (“Eu sou Nujood, 10 anos e divorciada” – Three Rivers Press, 2010).

O que me capturou na história de Nujood, além do extraordinário explícito, foi compreender que tipo de força moveu uma menina de 10 anos a vencer as ruas de uma cidade caótica e séculos de submissão para alcançar a mesa do juiz de um país muçulmano para pedir o divórcio. Quando fazem a ela a pergunta – como você foi capaz? –, a pequena Nujood apenas diz: “Eu não suportava mais”.

Era isso. Ela não suportava mais.

Olho para o globo na minha escrivaninha xerife – tenho um mini que levo a todos os lugares onde trabalho para nunca me esquecer que o mundo é grande e a pequenez não vale nem a pena nem a vida. Quero compreender melhor Nujood. O Iêmen é distante para mim.

As últimas notícias que ouvi sobre esse país tão longe de nós contavam que a Al Qaeda havia transferido sua base de operações terroristas para lá. No passado, os romanos chamavam a região de “Arábia Feliz”, porque suas terras eram as mais férteis e irrigadas da desértica península arábica. A rica rainha de Sabá, citada na Bíblia, era dessa terra solar.

A região teve muitos conquistadores, de turcos otomanos a britânicos. O Iêmen do Norte tornou-se republicano nos anos 60 e sofreu uma sucessão de golpes militares durante os 70. Na mesma época, o Iêmen do Sul tornou-se o único estado comunista do Oriente Médio. Apenas em 1990 o Iêmen fundiu-se em uma só nação, até hoje assolada por conflitos separatistas que já geraram mais de 150 mil refugiados.

Não por acaso a Al Qaeda acha que é uma boa ideia se estabelecer nesse país convulsionado de 23,6 milhões de habitantes: além de preencher os requisitos geográficos, 41% da população é analfabeta, quase metade vive abaixo da linha de pobreza e o desemprego atinge um quarto da força de trabalho.

Nujood é filha de uma dessas famílias abaixo da linha de pobreza. Migrou para a capital, Sanaa, com seus pais e irmãos, depois de serem expulsos de sua aldeia no campo em uma desavença que envolveu o estupro de uma das irmãs mais velhas. Na cidade, o pai perdeu o emprego e não conseguiu outro, os filhos passaram a vender bugigangas e a pedir esmolas nas avenidas, como fazem a maioria de seus vizinhos. Apesar de seu país ter um presidente e uma legislação unificada, o mundo de Nujood é ainda aquele que se curva à tradição e ao poder dos chefes locais. A força dos costumes revela-se no ditado popular: “Se quiser garantir um casamento feliz, case-se com uma menina de 9 anos”.

Não é uma brincadeira. Metade das meninas do Iêmen é casada por seus pais na infância e na adolescência com homens adultos. Quando o pai de Nujood anunciou que a entregara em casamento a um homem de sua aldeia, na faixa dos 30 anos, aos olhos de seu mundo não estava fazendo nada nem errado nem incomum. Mona, a irmã preferida de Nujood, levantou os olhos num movimento que deve ter lhe custado muito e disse: “Ela é muito jovem para se casar”. O pai retrucou: “Muito jovem? Quando o profeta Mohammad desposou Aïsha, ela tinha apenas 9 anos”. Depois, o pai ainda afirmou: “Ele prometeu não tocá-la antes da primeira menstruação”.

Em fevereiro de 2008, dois meses antes de postar-se diante do juiz e mudar um mundo inteiro, Nujood foi casada contra a sua vontade. E levada pelo marido desconhecido de volta à aldeia onde nasceu. Na mesma noite, foi violentada por esse homem cheirando a cebola. Nujood gritou, pediu socorro à sogra, correu e derrubou coisas pelo caminho. Silêncio. Ninguém a acudiu. Quando se sentiu queimar por dentro, e uma dor além do suportável, desmaiou.

No dia seguinte, nua e machucada, foi acordada pela sogra e pela cunhada: “Parabéns!”. E assim seguiram-se as horas de sua nova vida de criança casada, trabalhando na cozinha durante o dia, sendo estuprada e espancada à noite. Maltratada pelas mulheres da família do marido e pelas vizinhas por gritar e chorar nas madrugadas, o que consistia numa rebeldia inaceitável.

No mês seguinte, o marido a levou à capital e consentiu que ela ficasse algumas semanas na casa de sua família. Nujood achou que estaria salva. Mas o pai disse a ela que agora era uma mulher casada e seu lugar era ao lado do marido. Do contrário, estaria jogando na lama a honra da família. A mãe afirmou que a vida de todas as mulheres era assim, que era preciso se resignar e aceitar seu destino.

Com o tempo se esgotando, Nujood descobriu que estava sozinha. Como último recurso, bateu no pobre apartamento onde a segunda esposa do pai vivia com cinco filhos, à custa de pedir esmolas nas ruas. Depois de ouvi-la, a jovem mulher disse: “Você precisa ir ao tribunal”. E fechou as mãos da menina sobre o pouco dinheiro que conseguira naquele dia.

Na manhã seguinte, quando a mãe disse a Nujood que fosse comprar pão para a família, a menina atravessou o mundo e postou-se diante do juiz.

O juiz e seus colegas acolheram Nujood. Shada Nasser, advogada iemenita e ativista dos direitos das mulheres, assumiu sua causa. Um repórter brilhante, Hamed Thabet, e a editora-chefe do jornal Yemen Times, Nadia Abdulaziz al-Saqqaf, fizeram um grande barulho na imprensa, que atravessou as fronteiras e se espalhou pelo Ocidente. Nujood começou a conhecer uma outra face da sociedade iemenita, culta e progressista, onde as mulheres não se sentiam obrigadas a cobrir o rosto e o corpo com niqabs, estudavam e elegiam seus destinos.

Em 15 de abril de 2008 Nujood tornou-se a primeira esposa-criança a obter o divórcio no Iêmen. Hoje, com 12 anos, vive com sua família. No princípio, os pais e os irmãos achavam que ela tinha lançado vergonha sobre seu nome. Agora, que os royalties do livro garantem uma parte do sustento de todos, sua história tornou-se mais palatável. Em casa, não se fala sobre o que aconteceu. O irmão mais velho apenas anuncia, a voz irritada, que mais um jornalista estrangeiro está batendo na porta.

Nujood e sua irmã menor voltaram para a escola. E esta é outra face extraordinária da história de Nujood: depois de toda a violência, ela voltou a ser criança. Mais madura, mais sábia, mais doída, mais livre. Ainda assim, de volta à infância como uma criança que brinca, desenha e sonha.

Como repórter, acompanhei muitas histórias de crianças violadas de todas as maneiras. Percebi que só sobreviviam com chance de ter uma vida àquelas que conseguiam manter dentro de si algo de intacto. Uma parte delas mesmas que seus algozes não conseguiam alcançar. Com essa ínfima parcela íntegra nos confins de si mesmas, quando tinham a sorte de serem salvas, reinventavam uma vida. As que não conseguiam, as que eram violadas por inteiro, podiam seguir respirando, mas estavam mortas. E não há nada mais brutal do que o rosto de uma criança morta que respira.

Ao ler a história de Nujood, penso que com ela se passou algo assim. E, por mais paradoxal que pareça, acredito que ela tenha encontrado forças para sobreviver e para resistir porque era amada por sua família e, mesmo em meio à pobreza e a dificuldades de toda ordem, conheceu momentos de alegria. Pela memória, pela imaginação e pelo sonho, Nujood manteve sua subjetividade intacta. E, por fim, encontrou alguém que a escutou: a segunda esposa do pai, os juízes da corte.

Nujood tornou-se o fio de esperança e de possibilidade onde as meninas casadas do Iêmen podem se agarrar para alcançar um destino novo. Depois de seu exemplo, outras duas garotas, Arwa, de 9 anos, e Rhim, de 12, foram à corte pedir o divórcio. O parlamento iemenita aprovou uma lei proibindo casamentos antes dos 17 anos para ambos os sexos. Ainda que no interior do Iêmen as leis tribais e os costumes pesem mais que a legislação oficial, é um começo promissor. Na vizinha Arábia Saudita, outra criança entregue pelo pai a um homem na faixa dos 50 anos pediu o divórcio. A menina tinha 8 anos.

Este é o momento em que muitos de nós, brasileiros, suspiramos aliviados. Gratos por viver em um país menos arcaico, onde coisas assim não acontecem. O Iêmen, trazido para perto de nós por Nujood, volta a tornar-se borrado no tempo e no espaço, longe e diferente demais para nos reconhecermos nele. Exótico.

Não é o que vejo. Guardadas as enormes diferenças culturais e históricas, há muito de semelhante que deixamos de enxergar. E não apenas a prostituição infantil diante de nossos olhos nas capitais do Nordeste e do Norte, nas estradas que cortam o país, no interior de São Paulo, em todos os lugares.

Não foi o Superior Tribunal de Justiça do Brasil que, em 2009, absolveu o corredor Zequinha Barbosa e seu assessor, Luiz Otávio da Anunciação, acusados de terem feito sexo com três meninas, de 13, 14 e 15 anos, em troca de valores entre R$ 60 e R$ 80? A justificativa: as garotas já eram “prostitutas reconhecidas”. Não foi o ministro Marco Aurélio de Mello, do Supremo Tribunal Federal do Brasil, que em 1996 absolveu um homem que tinha feito sexo com uma garota de 12 anos? O argumento: “Nos nossos dias, não há crianças, mas moças de 12 anos”.

Nessas duas decisões antológicas, é importante assinalar, não estamos falando dos fóruns estropiados dos rincões do Brasil, mas das cortes superiores. Se aplicassem a lógica contida nessas decisões, diante do pedido de Nujood os juízes do Iêmen poderiam argumentar que: 1) casamentos de meninas fazem parte da tradição do país; 2) ela já não era uma virgem, mas uma “esposa reconhecida”; 3) Não existem crianças de 10 anos no Iêmen, mas moças. E, com tantos bons argumentos, poderiam ter despachado Nujood de volta ao inferno. Benditos juízes do “exótico” Iêmen.

Para muitos – como Nujood lá do outro lado do mundo, como milhares aqui –, a Justiça não é o último recurso, mas o único que têm para conter a violência da qual são vítimas. Se ela falha ao deixar de escutar ou tarda demais, arrebenta a vida daquele indivíduo que sofre – e corrompe a todos nós.

Em 2006, busquei investigar um fenômeno novo: as viúvas-crianças do tráfico. Na periferia de Fortaleza, entrevistei uma menina que, se escrevesse um livro como o de Nujood, poderia ter o seguinte título: xxxxxx , 14 anos, viúva, uma filha. Não posso dar o nome sem violar o Estatuto da Criança e do Adolescente. Mas ela estava lá, conversando comigo com a filha nos braços. E sua história foi contada em meu terceiro livro.

A garota vivia com um assaltante viciado em crack por vontade própria. Quando ele foi assassinado, tinha 13 anos e estava grávida. Este não era um drama para ela. A tragédia era voltar para o barraco da família. Tinha escolha? Nenhuma.

Em 1997, numa reportagem sobre incesto, entrevistei uma menina de 12 anos que havia sido estuprada pelo pai numa das maiores cidades do interior do Rio Grande do Sul. Ao longo de seu terrível relato, ela me contou que agora namorava o policial que havia atendido o seu caso. Ou seja: aquele que tinha, oficialmente, como representante do Estado, o dever de defendê-la dos abusos do pai e de qualquer outra violação, botou o pai na cadeia e passou a abusar dela. Eu o denunciei. Mas com certeza não é o único caso.

Conto estas histórias aqui porque não acredito no jornalismo que transforma o outro em exótico. Aquele que permite aos leitores acreditarem que a violência e a injustiça pertencem ao outro – e, neste caso, ao outro do outro lado do mundo. Prefiro que meus leitores não respirem aliviados nem se sintam tão a salvos. O mundo só começa a mudar quando olhamos para dentro de nós – e para o nosso quintal – com a verdade possível.

O que mais me fascina, na história de Nujood, é a força que moveu essa criança de 10 anos a atravessar sozinha a cidade e vencer séculos de opressão para dizer uma frase que continha o mundo inteiro: “Quero o divórcio”. Nujood não dá a si mesma nenhuma qualidade especial. Com sinceridade, ela apenas diz a todos que insistem em compreender o extraordinário que ela contém: “Eu não suportava mais”. Em sua simplicidade, ela não permite que lhe atribuam algo de especial – e então outras meninas não poderiam seguir o mesmo caminho por não possuir este algo a mais.

Acho que é isso que ela também nos dá. Nas pequenas e nas grandes tragédias da vida de cada um de nós – e de nossa comunidade, de nosso país, do planeta – às vezes, tudo o que precisamos dizer para os outros e principalmente para nós mesmos é isso: “Eu não suporto mais”.

Estamos, então, prontos para atravessar a rua de nós mesmos. E mudar nosso pequeno mundo.

(Publicado na Revista Época em 15/03/2010)

Escrivaninha Xerife

Minha nova vida precisa de gavetas e da coragem de assumir as cicatrizes

Esta coluna é inteiramente sobre mim. Aviso na primeira linha, que é para nenhum leitor reclamar que estava desavisado. Se achar que não vale a pena, pode parar por aqui e pular para outra.

Desde pequena, eu sonho com uma escrivaninha Xerife. Não sabia que se chamava xerife a escrivaninha dos meus sonhos. Descobri agora. Esta escrivaninha de madeira é cheia de gavetinhas e escaninhos de vários tamanhos e tem uma tampa. Quando você para de trabalhar, você fecha e ninguém sabe o que há lá dentro. Não tenho a menor ideia de onde eu possa ter visto uma dessas na minha cidade, lá no interior do Rio Grande do Sul. O fato é que eu sempre achei que essa era a única escrivaninha que um escritor poderia ter. Por causa das gavetinhas e, especialmente, por causa da tampa.

É mágico. Você está lá, escrevendo, todo escancarado e, de repente, você fecha. E até chaveia. Seus anjos e principalmente seus demônios ficam lá dentro, sem risco de se dependurarem no lustre, esconderem-se em algum lugar onde você não os ache ou mesmo assombrar o resto da família.

Tive várias escrivaninhas ao longo da vida, de fórmica à penúltima, toda modernosa, feita com madeira de demolição. No sábado, comprei minha última, a minha própria Xerife. Por que só agora? Porque só agora a mereci.

Decidi que vou me enforcar nas cordas da liberdade. Para isso, precisava me reinventar com tudo aquilo que já era meu. Para marcar este ato, queria transformar algo da matéria volátil dos sonhos em existência concreta. A escrivaninha dos devaneios da minha infância materializou-se, com tudo de incontrolável que existe quando nos arriscamos a desentocar os sonhos – com uma vara que é sempre meio curta – e os expomos às intempéries do real.

Foi um ato de profundo simbolismo para mim, que adoro rituais de passagem. Um dia antes da compra, na sexta-feira, deixei a redação da revista ÉPOCA, depois de dez anos. Poderia continuar ali por mais 20 (se continuassem me querendo, claro), mas achei que estava na hora de inventar uma nova vida para mim. Deixei Porto Alegre e a redação do jornal Zero Hora, onde trabalhei por 11 anos, em janeiro de 2000, para vir para São Paulo e para a ÉPOCA. Estava bem confortável lá. Mas há um momento que, pelo menos para mim, o conforto vira desconforto.

Na ocasião, me perguntavam por que eu deixaria tanto para ir para uma cidade maluca. Eu estava em um ótimo momento. Tinha acabado de ganhar um prêmio Esso (que para os jornalistas é muito importante), tinha uma coluna de reportagem (A Vida Que Ninguém Vê) que eu amava, adorava a cidade, tinha mais amigos do que conseguia dar conta, meu próprio apartamento quitado etc etc. Eu gostava de tudo, mas estava curiosa com a possibilidade de criar uma nova história para mim. Respondia: estou indo porque não quero saber como será a minha vida daqui a cinco anos. E fui.

Agora, completei dez anos incríveis na ÉPOCA. Fiz reportagens que transformaram a minha vida (e, espero, algumas outras), perambulei por Amazônias desconcertantes (elas são várias e sempre escapam), viajei pelas muitas periferias de São Paulo e testemunhei pequenos grandes milagres de gente. Hoje, sou povoada pelos personagens extraordinários com quem cruzei nesta última década. Sou uma Eliane muito mais rica agora do que quando cheguei. E tudo o que vivi dará sentido à nova Eliane que virá.

Não foi uma decisão intempestiva. Ela vem acontecendo dentro – e fora de mim – há um bom tempo. Há cinco anos tenho trabalhado nas férias e finais de semana em projetos paralelos, como documentários, livros, oficinas e palestras. Queria experimentar coisas novas e abrir outros caminhos para fora de mim. Outras maneiras de estar no mundo. Tenho uma convicção comigo: temos uma vida só, mas dentro dessa, podemos viver muitas. E eu quero todas as minhas.

Em 2008, comecei a escrever sobre a morte, de várias maneiras, em minhas reportagens na ÉPOCA. Olhar o rosto da morte, para mim, era desatar o nó que ainda me impedia de viver uma vida mais viva. Desde pequena, eu tenho esta característica. Quando tenho medo de alguma coisa, vou lá e faço. Quase perdi algumas partes do corpo por causa disso. E certamente perdi algumas porções invisíveis de mim mesma.

Ao fazer a principal reportagem desta série, quando acompanhei uma paciente de câncer até o fim da sua vida, perdi um naco da minha alma de supetão. Levei um tempão para parar de sangrar, como quem acompanha esta coluna sabe. Mas, um dos meus muitos apelidos é “Tixa”, de “lagartixa”. Há quem faça fantasias sobre a origem dele. Mas é bem menos picante. Passei a vida deixando a cauda em sustos pelas esquinas de mundo. Sempre acabo me regenerando, ainda que leve tempo. Todos somos lagartixas em alguma medida, apenas que eu abuso um pouco dessa vantagem evolutiva.

Minhas incursões no universo da morte deram-me maior clareza sobre a natureza da vida. Algumas pessoas comentavam que eu devia ter algum problema para ser tão mórbida. Bobagem. Morbidez é outra coisa. Não se fala da morte por causa da morte, mas por causa da vida. Lidar bem com a certeza que todos temos de morrer um dia, mais cedo ou mais tarde, é fundamental para viver melhor. E para compreender a natureza fugaz e preciosa da vida.

A vida rugiu com mais força dentro de mim depois dessas várias reportagens sobre a morte. A última delas, que encerra um ciclo, sairá em breve na revista. Faço 44 anos em maio. Fiz uns cálculos e descobri que preciso me apressar se quiser conhecer o mundo inteiro – e eu quero. E também para escrever o tanto que sonho. Como já disse mais de uma vez, escrever não é o que faço, é o que sou. E estava na hora de comprar minha escrivaninha Xerife e mudar de cenário.

Vou continuar fazendo reportagem. Apenas de um outro jeito, num outro tempo. Sou repórter até os confins da minha alma – e um pouco além. Se conseguir escrever ficção, como também sonho, só será possível pelo tanto de vida real e personagens de carne e osso que conheci nestes últimos 21 anos de reportagem. Só o real é absurdo. A ficção é sempre possível.

Estou com medo, muito medo. Volta e meia choro com saudade de uma vida que já não há. Mas eu não tenho medo de ter medo. Deixo um emprego seguro, numa revista onde respeitam o que sou e o que faço, com um bom salário e todos os benefícios, para me entregar ao vazio. Sei que tudo pode dar errado, sempre pode. Mas se der, eu invento outro jeito de seguir adiante. Esta é outra convicção que tenho: prefiro fazer as coisas do meu jeito e cometer meus próprios erros. Tanto quanto os acertos, os erros também devem nos pertencer.

Esta nova vida que começa hoje vem sendo construída há muito, mas só no final do ano passado descobri que a hora era agora. Não sei como foi. Nem se houve um momento exato. Lembro de dois pequenos episódios, apenas. Num deles eu corria para algum lugar com o João, meu marido, quando ele interrompeu meu passo marcial e disse: “olha”. Eu olhei para todos os lados e nada vi. Até que, com a ajuda dele, localizei uma florzinha diminuta no meio do concreto. Nós nos acocoramos e ficamos olhando o tanto de detalhes que ela tinha. Como era especial e linda e única. Aprendi isso com o João, que se esquece de tudo para passar intermináveis minutos vendo a forma de uma flor ou de uma nuvem ou de uma fatia de bolo de chocolate. Nunca vi ninguém enxergar tanta beleza no mundo quanto ele. Somos tudo o que somos. Mas as pessoas que amamos exacerbam algumas partes de nós, para o bem e para o mal. E o João tem este efeito sobre mim, de me tornar o melhor do que sou.

Naquele instante, percebi que corria tanto para fazer as tantas coisas paralelas que tinha inventado, que estava esquecendo daquilo que sempre deu sentido à minha reportagem, à minha vida: estava esquecendo de olhar de verdade.

O outro episódio aconteceu no final do ano. Eu estava com os meus pais na casa de praia que eles alugam a cada verão. E ficava olhando para eles. Me dava enorme prazer ver os dois se mexendo. Observar o jeito que cada um funcionava com relação a si mesmo e naquele casamento tão amoroso. (Eles andam de mãos dadas depois de 56 anos de casados e o pai dá flores pra mãe no aniversário de “conhecimento”). Num certo momento, fiquei olhando para o cabelo da mãe, o cabelo do pai, o jeito que o vento batia neles. E descobri que não podia mais continuar numa vida que eu não tivesse tempo para olhar o cabelo deles se mexendo com o vento.

Quando voltei para São Paulo e para a ÉPOCA, soube que tinha chegado a hora de partir. E agora lá vou eu. Não sei bem para onde, mas sei que é para mais perto de mim mesma.

Comecei então a procurar minha escrivaninha. Entrei no Mercado Livre, o site da internet que vende tudo, e coloquei na busca: “escrivaninha antiga”. E aí veio de todo o jeito e de toda época, com pés palitos, forma de bambolê, e também a minha, que descobri que se chama Xerife. Havia vários exemplares, mas gostei particularmente de duas. Uma era do Rio de Janeiro, o frete seria caro. A outra morava em São Paulo. Apostei nesta. O dono me deixou dar uma olhada nela antes de comprar. E lá fui eu na quinta-feira com o João num galpão da Barra Funda.

Ela era uma escrivaninha viva. Olhei para ela, ela olhou para mim, e eu soube que era a “minha”. Como na história do Harry Potter, em que é a varinha mágica que escolhe o bruxo – e só há uma varinha, única e singular, para cada bruxo –, a minha escrivaninha era assim, minha. Nasceu antes de mim e pertenceu a outros donos porque precisava me esperar.

Examinamos, eu e o João, ela inteira. E descobrimos que ela tinha mais cicatrizes do que nos prometeram. E alguns moradores indesejados. Numa das gavetinhas, havia um ninho de cupins. Nas costas, ela tinha sido quebrada em algum episódio de violência ou mau humor. Mas eu nunca fui uma boa negociante. As coisas práticas não têm muito efeito sobre mim. A escrivaninha também me receberia com mais rugas e feridas fechadas e abertas do que talvez esperasse. Nenhuma de nós nasceu ontem. Ambas queríamos – e precisávamos – nascer de novo.

Aceitei as cicatrizes da minha escrivaninha como parte da história de sua vida antes de mim. E fechei o negócio. Ela queria ir embora pra casa comigo já, eu senti isso. E o João também. Mas eu ainda precisava fazer o depósito e acertar o frete. Enquanto isso, o vendedor providenciaria um exterminador de cupins. Ao contar para a Maíra, minha filha, sobre a escrivaninha, eu dizia, toda empolgada: “ela tem cupins, mas também tem uma alma dentro dela!”. Com seu senso de humor peculiar, Maíra comentou: “Se tem alma, não traz para casa!”.

O problema é que eu tenho um fraco por almas. Venho de uma família de mulheres que falam com os fantasmas que vagam pela casa com a maior sem-cerimônia. Dava até pena do meu tio-avô, um homenzinho pequeno que passou a vida inventando objetos mirabolantes e deu a si mesmo um nome de passarinho. Quando ele arrastava os chinelos pelo assoalho, era despachado pela sua viúva: “Vai-te embora, Graúna, já disse que não te quero aqui!”. Para ele, a morte não mudou nada. A mulher continuava mandando em seu melancólico espectro.

Hoje é o primeiro dia da minha nova vida. Tenho que fazer um rearranjo completo na minha cabeça programada em mais de duas décadas de vida de funcionária. Não sigo mais uma lógica de segunda a sexta. Posso escrever às 6h da manhã de domingo, como faço agora. E ir ao cinema no meio da tarde de segunda-feira, como pretendo. Minha semana não terá mais finais e começos. Posso ficar acordada à noite e dormir de dia. Posso almoçar à meia-noite e tomar café ao meio-dia. Posso apenas ouvir a chuva batendo no telhado. Posso permanecer olhando para o teto por horas a fio.

O tempo é meu. Esta é a grande mudança. Vou perder dinheiro, segurança, carteira assinada, benefícios, férias remuneradas, décimo-terceiro. Em troca, retomo a propriedade do meu tempo. Me preparei para viver com pouco. Criei minha filha, comprei apartamento, não tenho um real de dívida. Só tenho agora que manter o meu corpinho. E ele é bem barato. Três pratos de feijão o deixam todo feliz.

Mantenho esta coluna exatamente aqui onde está. Ela faz parte do meu projeto de liberdade. Queria muito continuar, não sabia se queriam que eu continuasse. A ÉPOCA e a Editora Globo quiseram. Sou grata por isso. Assim como pela forma extremamente respeitosa com que a ÉPOCA e a Editora Globo trataram minha saída e meu desejo de reinventar minha vida.

Eu adoro escrever para vocês. E amo a internet. Então, toda segunda-feira estarei aqui, como sempre, logo de manhã, para pensarmos juntos sobre essa confusão que é a vida do mundo e a de todos nós.

Agora, vou abrir minha escrivaninha Xerife. Estaremos, eu e ela, com todas as gavetas de nossas almas escancaradas. De peito aberto, no vazio. Vamos ver o que conseguimos fazer juntas.

Torçam por mim! (Por nós!)

(Publicado na Revista Época em 01/03/2010)

O perigo da história única

Contar uma única versão sobre nós mesmos pode significar abrir mão de viver

Desde muito cedo percebi que a trajetória de uma vida continha bem mais do que os conflitos visíveis. Em parte, me transformei numa contadora de histórias ao intuir que a forma como é contada uma vida pode significar a possibilidade desta vida. Assim como pode determinar sua morte. O mundo é um palco onde se digladiam as versões – e o poder é usado para impor a história única como se fosse toda a verdade. Não só entre os países, mas na vida social e também dentro de casa. Compreender o poder da narrativa é o primeiro passo para construir uma vida que vale a pena. É também a chave para alcançar a complexidade – ou as várias versões – da vida do outro.

Na semana passada, duas experiências me fizeram voltar a refletir sobre o poder das histórias, um tema recorrente nesta coluna e no meu trabalho. A primeira foi o filme Preciosa, já lindamente comentado neste site na coluna de Cristiane Segatto. A outra foi uma palestra de uma escritora nigeriana chamada Chimamanda Adichie.

Em Preciosa, filme de Lee Daniels em cartaz nos cinemas, concorrente ao Oscar, a personagem é uma negra gorda e enorme, abusada sexualmente pelo pai e de várias outras maneiras pela mãe, que frequenta há anos a escola sem que ninguém perceba que não sabe ler. Preciosa, este também é o nome enormemente simbólico da personagem, é um nada para muitos – e também para si mesma. Um nada difícil de olhar. Ela mesma, quando se olha no espelho, não se reconhece.

Desde que assisti ao filme, na sexta-feira de Carnaval, o recomendo com veemência aos meus amigos. Mas, assim como as pessoas ao redor de Preciosa, no filme, tinham dificuldade de olhar para ela, alguns amigos têm resistência em ir ao cinema “assistir àquela desgraceira”. Ou acompanhar uma personagem que contém em seu corpo todas as características relacionadas aos perdedores. Alguns amigos viram o trailer e decidiram fugir de Preciosa.

É uma pena. E é o que tenho tentado mostrar a eles – e agora a vocês. Não ver Preciosa é não permitir que ela seja vista de outra maneira. E perder uma oportunidade rara de descobrir que a vida – não apenas a dela, mas também a nossa – pode ser decodificada de uma forma mais generosa se nos reconhecermos em olhos dispostos a enxergar além dos estereótipos. Neste sentido, ao decidir assistir a este filme – tão diferente do que se costuma produzir em Hollywood – o espectador está se tornando parte da transformação de Preciosa. E isso é genial como proposta cinematográfica.

Na capa do livro de Sapphire, uma professora do Harlem em cuja obra se baseou o filme, há uma frase perfeita: “Você testemunha o nascimento de uma alma”. É exatamente isso. O filme é o caminho de Preciosa a partir do momento em que se vê refletida nos olhos da professora que a ensina a ler. Olhos dispostos a enxergar uma alma onde a maioria só via banha, violência e miséria.

Ao percorrermos com ela esse percurso, vivemos momentos muito duros. Mas é também imensamente redentor. No momento em que Preciosa descobre que há outras versões possíveis para a sua vida – e que ela mesma pode construir narrativas melhores – o mundo que é ela se amplia. E com essa experiência, também o mundo que somos nós é ampliado. Pelo menos foi o que eu senti. Saí do cinema mais larga. E amando a humanidade inteira. (Sem contar que a interpretação da atriz que faz o papel de sua mãe já faz parte da história do cinema. Se Mo’Nique não ganhar o Oscar de atriz coadjuvante vou jogar tomates na televisão lá de casa.)

Preciosa nos evoca o perigo da história única. Até não encontrar um olhar acolhedor onde se reconhecer, ela só se reconhecia no não-olhar de sua mãe. A escola que frequentara até então continuava olhando para ela sem ver, o que a manteve analfabeta por anos. Só quando encontrou uma narrativa alternativa para si mesma, Preciosa teve alguma chance de ter não só uma vida, mas também uma alma.

E este é o tema da palestra de Chimamanda Adichie, autora de Meio Sol Amarelo (Cia das Letras, 2008). Esta escritora de 32 anos pertencia a uma espécie de classe média da Nigéria, filha de um professor universitário e de uma secretária. Em sua palestra no TED (Ideas Worth Spreading), ela conta uma história feita de embates narrativos para mostrar como a história única aniquila a vida.

Linda e bem-humorada, Chimamanda mostra como a redução das histórias fez mal a sua maneira de olhar a vida de outros em seu próprio país. E fez mal à forma como outros olharam para a sua vida quando se mudou para os Estados Unidos – e sua colega de quarto só conseguia enxergá-la a partir dos estereótipos ligados a um “país” chamado África. Nesta narrativa, Chimamanda percorre as várias crenças sobre a África – e não deixa de mostrar como ela mesma embarcou na tentação das versões hegemônicas, como quando fez uma viagem ao México e incorporou o preconceito contra “os imigrantes”.

É pela intuição do enorme poder de transformação das histórias contadas que Chimamanda se transforma numa escritora. E também Preciosa. A professora faz mais do que ensiná-la a ler. Todos os dias, Preciosa precisa escrever um diário. Ao contar sua vida, literalmente nas páginas do caderno, ela descobre que é mais do que lhe haviam contado até então. Mais complexa e multidimensional.

Ao escrever sobre sua vida com papel e caneta, Preciosa descobre que pode reescrever sua vida na concretude das ruas. E é o que faz. Agora, ela pode se reconhecer nos olhos de outros. Ela gosta da imagem que vê. E nós, na poltrona do cinema, incomodados no início com toda a coleção de estereótipos que ela representa, também gostamos do que passamos a enxergar.

Numa reportagem que fiz em 2007, sobre a primeira geração de escritores das periferias do Brasil, especialmente de São Paulo, mostro os dados de uma pesquisa de Regina Dalcastagnè, professora da Universidade de Brasília (UnB). Ao analisar os romances brasileiros entre 1990 e 2004, ela revela que 94% dos autores e 84% dos protagonistas são brancos – e apenas 24% dos personagens são pobres. Ou seja, a história contada pela nossa literatura mostra um mundo de gente branca e de classe média.

É ruim? Não exatamente. É pobre. Não há nenhum problema em escrever e ler livros com protagonistas brancos e de classe média. Brancos de classe média fazem parte da sociedade brasileira. E era só o que nos faltava ter de fazer uma literatura politicamente correta. O problema não é o que existe, mas o que não existe, o que não está lá. O perigoso é não existir livros com outras cores e realidades, com diferentes autores e personagens.

A grande novidade também no Brasil, que é a razão da reportagem citada, é que hoje vem se ampliando também a pluralidade das vozes na literatura. Com a entrada de novos protagonistas no cenário das letras, nós, leitores, temos acesso a novas maneiras de ver o mundo e de estar no mundo. E a diversidade sempre faz bem para a vida, tanto a subjetiva quanto a concreta.

Chimamanda conta como fazia mal a ela não fazer parte da literatura, como personagem, já que os livros disponíveis na Nigéria de sua infância eram os escritos pelos colonizadores britânicos. Os personagens dos livros que lia gastavam boa parte dos dias falando sobre o tempo: “Será que vai fazer sol amanhã?”. Fazia todo o sentido para um britânico, mas era estranhíssimo para uma menina nigeriana, na medida em que não era apenas um dos mundos ao qual tinha acesso através dos livros, mas toda a literatura disponível.

Ao mesmo tempo, quando ela se torna escritora, é cobrada que seus romances não são suficientemente “africanos”. Como se ela só pudesse existir como narradora de uma determinada maneira, como se só pudesse contar uma única história. Como se um escritor do Capão Redondo, na periferia de São Paulo, por exemplo, só pudesse escrever sobre a violência e só pudesse escrever usando gírias. A arte é o território da liberdade. E da reinvenção. Nela, podemos qualquer coisa. Até sermos nós mesmos.

Quando Preciosa, no filme, escapa de sua vida impossível para divagações em que é glamourosa, desejada e talentosa, descobrimos porque ela ainda está viva. É pela fantasia que ela mantém a salvo a melhor parte de si mesma. A parte incorruptível de si mesma. Como faz a maioria de nós, mesmo sem ter uma realidade tão perversa como Preciosa.

Lembro que só suportei minha inadequação, na infância, porque ficava inventando enredos na minha cabeça em que era a protagonista. Quando era obrigada a interagir com as crianças da minha idade, só suportava ouvir aquelas conversas em que não encontrava pontos de conexão porque podia escapar pela fantasia. Me sentia um ET no mundo real, mas era uma heroína em meu próprio mundo. Ter a possibilidade de “me contar” em minha literatura íntima, assim como para Preciosa, em outras proporções, me assegurou a sanidade. Até hoje, quando a vida fica muito difícil e nem consigo entender o que falam ao meu redor, mergulho em narrativas inventadas – e nem por isso menos verdadeiras.

O perigo da história única, mais fácil de analisar na geopolítica do mundo, começa dentro de casa, na família. Como no caso de Preciosa. Quando nascemos, é o olhar da mãe o primeiro a nos constituir. Só nos reconhecemos como um ser para além da mãe a partir deste primeiro olhar fundador. Na infância, é no primeiro mundo privado que habitamos, o de dentro de casa, que iniciamos nosso embate com as histórias únicas. Quando os pais determinam que este filho é inteligente, aquele é preguiçoso e um terceiro é malvado, o mais provável é que aqueles filhos assim rotulados cumpram a profecia dos pais. Por isso, é comum ouvirmos: “fulano desde pequeno já era assim…”. Claro, como poderia ser diferente?

A versão dos pais sobre nós é a primeira versão narrativa da vida de cada um. E ela nos marca para sempre. Para o bem – e para o mal. Seja pela displicência, seja pela opressão. Quando é para o mal, se torna uma prisão. Não somos o que podemos vir a ser, mas um estereótipo fechado, vendido como a única verdade sobre nós mesmos. Este é o olhar que nos transforma em pedra. Afinal, as ovelhas negras de cada família são ou tornaram-se?

Se não encontramos alguém que rompa as grades deste olhar na escola, nosso primeiro mundo público, temos poucas chances na vida. Se, ao contrário de ampliar as versões narrativas, o professor cimentar ainda mais os rótulos familiares ou criar outros tão perniciosos quanto – com sentenças como “este é inteligente”, “aquele é burro”, “o outro violento”, “aquele não tem jeito”, “este é um caso perdido” – as chances minguam.

A história única na família e na escola é o ato mais covarde cometido por pais e professores que não sabem o que fazem – ou sabem, mas não conseguem ou não querem fazer diferente. Educar é ampliar as possibilidades narrativas da vida de cada um – e da vida dos outros.

De certo modo, crescer é tornar-se capaz de quebrar a sucessão de histórias únicas sobre a nossa existência. Foi o que aconteceu com Preciosa, a partir do olhar libertador da professora.

Se você estiver atolado na vida porque lhe fizeram acreditar em uma única versão, reaja. Não acredite. Exercite a dúvida sobre si mesmo – e sobre o outro. Será que é assim mesmo? Será que isso é tudo o que sou? Será que é só isso que posso ser? Tornar-se adulto é ter a coragem de se contar como alguém múltiplo e contraditório, um habitante do território das possibilidades.

No filme, Preciosa diz uma frase maravilhosa, num dia especialmente tenebroso. Algo assim: “Que bom que Deus ou não sei quem inventou os novos dias”. É isso. Há sempre um novo dia para todos nós. Um em que podemos nos reinventar.

P.S. – Você pode assistir à Preciosa no cinema ou, se sua cidade não tiver nenhuma sala, esperar o DVD. A palestra de Chimamanda Adichie é bem mais fácil e não custa nada. Basta acessar o seguinte endereço. Ela fala um inglês pausado e claríssimo, mas há também legendas em português. Imperdível. Aliás, vale a pena frequentar o www.ted.com, onde você pode assistir a palestras de algumas das pessoas mais interessantes do mundo. (Se não entender inglês, não se encolha. Depois de entrar no site, clique em “translations”. Centenas já têm legendas em português.) Se quiser saber mais sobre os novos atores da literatura brasileira, pode ler minha reportagem Os novos antropófagos.

(Publicado na Revista Época em 22/02/2010)

Vida de clichê

Quando nos resignamos a uma existência lugar-comum

Na terça-feira (25), Humberto Werneck lançou seu O Pai dos Burros – dicionário de lugares-comuns e frases feitas (Arquipélago Editorial, 2009). Dono de um dos grandes textos da imprensa brasileira, ele passou quase 40 anos colecionando os clichês que sujam as páginas de jornais, revistas, livros. Aquelas palavras que, de tanto ouvi-las, são as primeiras a aparecer na nossa cabeça, na ponta dos nossos dedos. É automático. Chegam antes do pensamento. De certo modo, são as palavras que nos libertam para não pensar. Foram ditas muitas vezes antes, não causarão nenhuma reação inesperada. Não provocarão nada, nem de bom, nem de ruim. Tanto faz dizer que “a vida imita a arte” ou que “o futebol é uma caixinha de surpresas”. É um dizer que nada muda, é um imenso nada.

Por que então os clichês são tão populares? Porque são seguros, é o que disseram gente brilhante como H.L. Mencken e Hannah Arendt. Ao repetir uma ideia velha, o que foi dito e redito por tantos antes de nós, nada sai do nosso controle. Também nada acontece. Uma nova ideia é sempre um risco, não sabemos aonde ela vai nos levar. E, na falta de ousadia, o que nos sobra é medo.

Escrevi uma pequena matéria sobre o dicionário de clichês na edição impressa desta semana. E li todas as 208 páginas, os 4.640 clichês, para conhecer as palavras das quais deveria fugir. Desde então, adquiri um incômodo que não sai de mim. Ao colecionar lugares-comuns, Werneck espera nos instigar a pensar antes de sair escrevendo – ou falando. Se o jogo de palavras vier muito fácil, é porque já foi dito tantas vezes que abriu um escaninho no nosso cérebro. Basta apertar uma tecla invisível e sai de lá pronto. Não custa nada, nem mesmo um esforço mínimo. “O tempo é o senhor da razão”, “a esperança é a última que morre”, “nunca antes na história deste país”… os clichês estão sempre sendo produzidos, até mesmo como estratégia de marketing.

Há os clichês coletivos, que estão no dicionário do Werneck, e acredito que cada um de nós tem um repertório próprio. Expressões que repetimos nos nossos textos, nos nossos discursos, na nossa autodefesa permanente – não apenas diante de outros, mas também no banco dos réus do nosso tribunal pessoal. Ideias que já testamos e sabemos que tipo de reação provocam, um repertório confiável de velhos truques.

Criamos nosso próprio mundo de palavras e de pensamentos. Na busca de um lugar seguro, não copiamos apenas os outros, mas a nós mesmos, infinitas vezes. Se é fácil rir das frases feitas a que a maioria se agarra para não mergulhar no desconhecido, também é fácil observar que muitos dos que riem não ousam ir além dos comportamentos clichês em sua própria vida.

Foi seguindo o fio deste raciocício que fui me tornando incomodada e um pouco melancólica. Tento policiar-me para escrever sem usar fórmulas, ainda que minhas. Forçar-me a buscar jeitos novos, ser uma parte diferente de mim em cada texto. Nem sempre consigo. Mas tento me obrigar a tentar. Depois de 21 anos escrevendo na imprensa, é fácil ser uma cópia de mim mesma.

Sei disso e tento manter-me inquieta. Quando vou me tornando um bichinho, enrodilhada em mim mesma, sou também eu que me cutuco com um pedaço de pau para sair da toca. Conforto é bom, mas é também uma não-ação. Sei que apenas chegando cada vez mais perto de mim mesma é que posso alcançar a possibilidade de ser outra. E de fazer do velho em mim algo novo.

Numa entrevista a Clarice Lispector, o psicanalista Hélio Pellegrino disse algo que me cutucou com delicadeza, mas bem fundo. Sempre que leio uma entrevista ou um texto dele, fico pensando como alguém pode dizer algo tão elaborado com tanta simplicidade, numa resposta oral a uma pergunta que não esperava. E com tanta generosidade para aquele que o escuta. Suas palavras não machucam porque não foram pensadas para ferir. Com a ponta dos dedos, elas acariciam. Foram pronunciadas para dar uma chance ao interlocutor, leitor. São como uma mão que alcança – e não um pé que esmaga. Vivemos num mundo em que as pessoas se sentem mais seguras quando se tornam pés que esmagam. A mão que alcança exige mais coragem, porque alcançar é sempre um risco – e esmagar tem um final previsível.

O Hélio disse, lá pelas tantas: “Escrever e criar constituem, para mim, uma experiência radical de nascimento. A gente, no fundo, tem medo de nascer, pois nascer é saber-se vivo – e, como tal, exposto à morte”. Lembrei da frase e fui reler essa entrevista por causa dos clichês. Pareceu-me, então, que o esforço do Werneck ganhou um sentido mais amplo. Ele tenta, com seu pequeno dicionário, seu “burrinho”, como ele diz, nos chamar a atenção para as inúmeras possibilidades de nascimentos que perdemos quando repetimos um lugar-comum em vez de uma combinação de palavras que só nós podemos fazer.

Não porque somos melhores que os outros, mas porque a singularidade do nosso olhar é só nossa. Como diz o poeta, “se eu morrer, morre comigo um certo modo de ver”. Ou, na frase genial do menino de 8 anos que li na seção “Quem diria” da Revista da Folha do último domingo (23): “Pai, tô em extinção. Só tem um Guilherme Ribeiro Kierpel no mundo”. Ele descobria ali, depois de uma aula de ciências, a singularidade do que era. Um dia pode descobrir que, para alcançá-la em sua integridade, precisará de muita coragem. Terá de resistir ao conforto de uma vida de lugar-comum.

Clichês são letra morta. Palavras que nasceram luminosas e morreram pela repetição, já que a morte de uma palavra é o seu esvaziamento de sentido. Agarrar-se aos lugares-comuns para não ousar arriscar-se ao novo é matar a possibilidade antes de ela existir. É matar-se um pouco a cada dia, ao matar nossa expressão no mundo. De homens, nos reduzimos a papagaios. Como naquelas reuniões de empresa em que as pessoas se digladiam numa guerra de jargões coorporativos que nada dizem delas, mas fingem dizer. Acreditam que assim mantêm o emprego, seu diminuto lugar no mundo. Se os clichês forem pronunciados em inglês, mais seguras se sentem.

O mundo das frases feitas serve também para isso, para não deixar o novo entrar. Quem não conhece o manual – e é preciso um certo tempo para descobrir que os jargões só são cascas de palavras e não palavras –, é colocado do lado de fora da linguagem. Exilado, não ameaça ninguém – nem o funcionamento do todo – com as palavras mais subversivas e ameaçadoras para este mundo: as próprias.

Quando nos expressamos por palavras, temos sempre a possibilidade de nascer. E se renunciamos ao nascimento, ao trocar a possibilidade do novo pelos chavões, aceitamos a morte antes de viver? Fiquei pensando nisso. Parece-me que os lugares-comuns vão muito além das palavras. A gente pode transformar nossa vida inteira num clichê. Não basta apenas pensar antes de escrever, na tentativa de criar algo nosso. É preciso pensar para viver algo nosso – antes de repetir a vida de outros.

Do mesmo modo que é mais fácil botar no mundo o primeiro chavão que nos vem à cabeça, também é mais fácil – e mais aceito – viver segundo os clichês da nossa família, sociedade, época. Penso que a maioria de nós vai vivendo e repetindo velhas vidas que aparentemente já deram certo e não incomodam ninguém. O que seria o clichê de uma vida de classe média de um brasileiro de hoje?

Vou arriscar. Estudar num colégio privado desde a creche. Começar a falar inglês ainda bebê. Alguma coisa tipo ballet ou artes marciais ou aulas de circo. Em algum momento do ensino médio ir para a Disney com a turma ou até fazer um intercâmbio para melhorar o inglês. Ingressar na universidade. Antes ou depois da faculdade morar um tempo em Londres. Em algum momento tocar saxofone ou algum outro instrumento que lembra bares boêmios, com atmosferanoir, de uma vida que leu nos livros e/ou viu nos filmes. Produzir alguma coisa de cinema de documentário e/ou criar um blog onde finalmente pode expressar seu verdadeiro eu. Rebelar-se um pouco e enfim trabalhar, reclamar do trabalho e fazer umas baladas com os colegas de trabalho e os velhos amigos da faculdade. Descobrir que ser adulto é aceitar a vida como ela é. Casar, comprar apartamento, ter um ou dois filhos, entender de vinhos e fazer viagens de férias bacanas para a Europa, Estados Unidos ou países exóticos da Ásia e mais recentemente também da África. Não sei bem como continua.

Não é ruim ou errado, não se trata disso. Pode até ser muito rico, se for vivido como algo próprio, segundo a singularidade de quem vive, não segundo a ditadura do clichê do que deve ser uma vida de uma pessoa de classe média do início do terceiro milênio. Parece-me, porém, que não pensamos muito antes de vivermos uma vida lugar-comum. Não pensamos nada quando acordamos pela manhã e seguimos até a noite uma rotina instituída por quem? Ah, sim, por nós.

Não pensamos nem mesmo que nada impede que façamos tudo diferente. Apesar da pilha de empecilhos-clichês que temos na ponta da língua para ocultar nosso medo de arriscar, se formos pensar com a necessária honestidade, a vida está mesmo nas nossas mãos.

Podemos viver um lugar-comum, que nos carrega para a zona de conforto e não ofende nem a família, nem o patrão, nem o Estado. E podemos tentar viver a nossa vida, a vida que só nós podemos viver. A vida que nos transforma desde sempre, como descobriu o menino de 8 anos, em alguém em extinção.

E com isso não falo de uma vida povoada de aventuras grandiosas, falo de pequenas aventuras que podem ser vividas até mesmo no sofá da sala, sem acompanhamento de violinos, sem testemunhas, sem reconhecimento público. A vida que só nós podemos viver, aquela que busca a singularidade do que é nosso, é aquela que pas

É também a vida sujeita ao erro, ao imprevisto, ao descontrole. De novo, a entrevista de Hélio Pellegrino a Clarice Lispector. Ela, ainda bem, não tenta arrancar nada de ninguém. Apenas pergunta, suavemente: “Hélio, é bom viver, não é?”. Ele responde, um vento avançando pelas nossas crenças: “Viver, essa difícil alegria. Viver é jogo, é risco. Quem joga pode ganhar ou perder. O começo da sabedoria consiste em aceitarmos que perder também faz parte do jogo. Quando isso acontece, ganhamos algo extremamente precioso: ganhamos nossa possibilidade de ganhar. Se sei perder, sei ganhar. Se não sei perder, não ganho nada, e terei sempre as mãos vazias. Quem não sabe perder, acumula ferrugem nos olhos, e se torna cego – cego de rancor. Quando a gente chega a aceitar, com verdadeira e profunda humildade, as regras do jogo existencial, viver se torna mais do que bom – se torna fascinante. Viver bem é consumir-se, é queimar os carvões do tempo que nos constitui. Somos feitos de tempo, e isso significa: somos passagem, somos movimento sem trégua, finitude. A cota de eternidade que nos cabe está encravada no tempo. É preciso garimpá-la, com incessante coragem, para que o gosto do seu ouro possa fulgir em nosso lábio. Se assim acontece, somos alegres e bons, e a nossa vida tem sentido”.

A vida que se vive para longe dos clichês não tem garantias. Tem vida. Tudo o que a vida que se vive para longe dos clichês nos oferece é isso, vida apenas.

Quando eu tinha 13 anos, de repente percebi que a vida que me esperava era um interminável lugar-comum. Terminar o colégio, fazer faculdade etc etc. A revelação teve um enorme impacto sobre mim. Me fechei no quarto, passei um tempo sem falar com minhas amigas, com ninguém. A falta de sentido do sentido da minha vida me esmagava. Decidi então que deixaria o colégio. Pararia tudo. Não pela convicção de que não deveria estudar, mas porque eu precisava fazer algo para interromper o fluxo inexorável rumo a uma vida feita de uma sucessão de frases feitas.

Parar tudo era um ato desesperado. E de uma lucidez assustadora para alguém de 13 anos. Anunciei a decisão aos meus pais. E disse que iria a Campinas falar com o meu irmão sobre o que sentia. Sempre fui enormemente ligada a esse irmão, que foi quem me ensinou a escrever – graças a isso escrevo como canhota, embora seja destra. Na época, ele estudava Física na Unicamp.

Peguei um ônibus em Ijuí, na minha primeira viagem sozinha, e desembarquei em São Paulo. O Zé estava lá, me esperando – e disfarçando bastante bem a enorme encrenca que representava o advento da irmã caçula em sua rotina de estudante pobre. Embarcamos num ônibus para Campinas e eu vivi a sua vida por uns dias. Ele morava numa garagem de carro, nos fundos de uma casa. Em vez do carro, tinha ele. O chão era de terra, sua cama, que passou a ser a minha cama, era um colchão em cima de uns tijolos, suas poucas roupas eram guardadas num caixote de madeira, o único móvel era uma escrivaninha onde ele estudava das 5h de uma madrugada até à 1h da seguinte, com interrupção para as aulas que ele achava que valiam a pena e para eventuais reuniões de política estudantil. A mesma rotina que ele havia iniciado com apenas 15 anos. Naquele tempo, sem saber por onde começar, começou lendo enciclopédias. Mas esta é uma outra história.

Na primeira madrugada que passei na sua garagem-casa, acordei e o vi ali, debruçado sobre os livros, os pés na terra, tudo muito pobre e muito frio. Além do almoço no restaurante universitário, sua dieta se limitava a bananas, pão e leite. Meu coração se apertou de amor pela grandeza daquele pouco mais que um menino, solitário diante do parapeito do mundo. Descobri ali, assistindo àquela cena enquanto fingia dormir, que o Zé estava obcecado em se tornar não apenas o melhor físico que podia ser, mas o melhor homem que podia ser. Estava em busca da vida que só ele poderia criar para si mesmo.

Voltei para casa. E muito aconteceu desde então. Semanas atrás, quando escrevi uma coluna sobre nosso afastamento do universo (O céu nos espera), o Zé me mandou um email sobre sua “visão cosmológica”. Escreveu na linguagem informal de um irmão escrevendo um email para a irmã: “Somos um acidente evolutivo, ou melhor, apenas um dos inúmeros (sub-) produtos. A consciência não tem nada de especial (a não ser para nós, é claro). Nossa posição temporal e geográfica no universo é totalmente irrelevante. A contrapartida é que somos capazes de perceber nossa existência (acredito que, em outros níveis, outros animais complexos também conseguem). A partir daí, o mundo, tal qual percebemos, é TUDO o que temos (e teremos!). Portanto, estamos no centro do NOSSO universo. E isso coincide com as nossas adaptações evolutivas. Assim, nossa cosmologia é encontrar um ponto de contato entre essas duas realidades: a externa, de total irrelevância, e a interna, onde somos centrais (tanto que nosso universo desaparece com a nossa morte). Por isso a religião (que resolve esse problema) é – a meu ver – uma evolução natural da nossa cultura, consequência natural da nossa evolução biológica (esse é o pensamento, mais ou menos, entre outros, do Daniel Dennett, em Breaking the Spell). Somos “believers” (crentes). O que eu acho mais interessante no ponto de vista agnóstico (ou ateu) é que, diante dessas percepções, sabemos que somos tudo o que temos (como indivíduo ou como espécie) e, portanto, temos a liberdade e a responsabilidade de definirmos o que queremos ser (como indivíduo e como espécie). A construção do nosso mundo e para onde vamos é nossa responsabilidade. Acho que não pode haver maior riqueza em uma vida do que essa liberdade”.

Era um convite para tomarmos um vinho e falarmos sobre a vida. Como conversamos lá atrás, comendo banana com leite. Agora, nós dois podemos pagar por um vinho que não dê dor de cabeça no dia seguinte. E temos um tapete para pisar. Mas nossa inquietação segue latejando, às vezes doendo muito – e nos carregando para vários lugares. Sempre em busca. E sempre usando qualquer pretexto para buscar: uma palavra, um livro, um filme, uma pessoa, uma traição, um esquecimento, uma solidão. Qualquer pedaço de madeira em que possamos nos agarrar para não sermos afogados pelo oceano de comportamentos clichês, para que nossa ânsia de vida nos leve sempre a viver. Com todas as dores, as fomes, as perdas e também os ganhos que fazem parte de uma vida não escrita. Nenhum de nós quer ser reduzido a um personagem de si mesmo, ainda que seja um bom personagem.

Foi até aqui que o dicionário de clichês do Humberto Werneck me levou. Não sei se faz sentido para mais alguém além de mim, mas no fundo sempre escrevemos para nós mesmos. Para, como disse Hélio Pellegrino, poder nascer. E descobrir-se vivo, radicalmente vivo.

(Publicado na Revista Época em 24/08/2009)

Página 33 de 34« Primeira...1020...3031323334