A prisão da identidade

Prefiro me desinventar do que assinar minhas certezas em três vias

Antes, a pergunta que determinava nosso lugar no mundo era: “De que família você é?” ou “Qual é o seu sobrenome” ou “Você é filho de quem?”. Depois, a pergunta migrou para: “O que você faz?”. Tanto que, junto ao nome, em qualquer matéria jornalística, segue a profissão e, de preferência, a filiação profissional. Não é mais a filiação paterna, mas sim a filiação da instituição ou da empresa que confere legitimidade a um indivíduo e o autoriza a falar e a ser escutado. “O que você faz?” ou “Onde você trabalha?” é também a segunda ou a terceira pergunta que você escuta de quem acabou de conhecer em uma festa ou evento social. Só não é a primeira porque ainda faz parte da boa educação se apresentar pelo nome antes, ou fazer algum comentário sobre a qualidade da comida ou qualquer outra banalidade. A questão que se impõe, antes ou agora, é a mesma: a partir de que lugar você fala. A partir do lugar de onde alguém fala, prestamos atenção ou não naquilo que diz. O lugar de onde falamos é, portanto, o que nos confere identidade. E a identidade é uma exigência do nosso mundo.

Escrevo sobre isso porque tenho tentado escapar da prisão da identidade. Ou da prisão de uma identidade imutável como a impressão digital do meu polegar. E esbarro no funcionamento do mundo. Há um ano e meio vivo sem emprego. Por opção. A pergunta que mais escuto é: “Por que você deixou de ser repórter?”. Respondo que nunca passou pela minha cabeça deixar de ser repórter. Eu apenas deixei de ter emprego, o que é muito diferente. “Então você está frilando?”. Não exatamente. Não foi apenas uma troca de cadastro, de pessoa física para jurídica. Foi uma mudança mais profunda.

Explico que, a partir de uma investigação sobre a morte, compreendi que precisava me reapropriar do meu tempo e, desde então, venho fazendo uma mudança radical no meu jeito de viver. “Mas então você nunca mais vai ter emprego?”. Sei lá. Como saber? Não tenho nenhum interesse em assinar qualquer declaração de intenções em três vias. “Mas você agora trabalha mais do que antes!”, é o comentário seguinte. Sim, mas eu não mudei para trabalhar menos, pelo contrário. Eu adoro trabalhar e não me sinto oprimida pelo trabalho, porque, para mim, trabalhar é criar. Eu mudei para experimentar outras possibilidades de me expressar e de viver, o que para mim é quase a mesma coisa. “Mas você não separa trabalho da vida pessoal?” Não. Trabalho é bem pessoal para mim. “Mas você trabalha mais e ganha menos?”. Sim. “Hum.”

Eu faço várias coisas que quero fazer, tento explicar. “Então você se tornou documentarista?”, é a próxima pergunta, quando descobrem que estou no meu terceiro documentário. Às vezes, mas é mais como uma experiência de contar histórias do que como uma profissão. “Mas por que você decidiu parar de contar histórias reais para escrever ficção?”, é o questionamento mais recente, desde o lançamento do meu primeiro romance. Eu não deixei de contar histórias reais, apenas senti necessidade de escrever ficção. É mais uma voz na tentativa de dar conta do que me escapa (e continuará escapando) – e não minha única voz. “Mas então agora você é ficcionista?”. Sim e não. Sou várias coisas ao mesmo tempo. “Hum.”

Estes são diálogos frequentes no meu cotidiano. A partir deles – e da necessidade persistente do mundo de me encaixotar em alguma identidade fixa e fácil de compreender – comecei a me indagar sobre isso. Afinal, o que as pessoas perguntam é: “Quem você é?”. E antes era fácil dizer: “Sou jornalista”. Só que isso dizia muito pouco sobre mim, já que ser jornalista é só o começo da resposta sobre quem sou eu. Assim como ser pedreiro, enfermeiro, morador de rua ou CEO é o começo superficial de uma resposta sobre quem é qualquer pessoa. Mas ter uma resposta simples para algo complexo deixava todo mundo satisfeito. Agora, minhas respostas sobre quem sou eu não satisfazem ninguém. Porque o melhor e mais honesto que posso oferecer ao meu interlocutor são mais pontos de interrogação. E, definitivamente, pontos de interrogação não são populares. O mundo exige respostas com pontos finais e, de preferência, exclamações peremptórias.

Ora, quem sou eu? Não sei quem sou eu. E, quando penso que sei, me escapo. Alguém já conseguiu responder a esta pergunta com alguma quantidade razoável de certeza? Ainda assim, por não ter uma resposta fácil para uma pergunta que define as relações do nosso mundo, tornei-me um incômodo. Mas, como a questão é legítima, tenho me aprofundado nela. E, nessa busca para compreender a questão da identidade, deparei-me com uma ótima história de Michel Foucault.

Em uma passagem pelo Brasil, em Belo Horizonte, Foucault foi questionado sobre o seu lugar: “Mas, finalmente, qual é a sua qualificação para falar? Qual é a sua especialidade? Em que lugar o senhor se encontra?”. Foucault ficou chocado com a “petição de identidade”. A exigência, constante em sua trajetória, motivou uma resposta de grande beleza em seu livro Arqueologia do Saber (Forense Universitari):

“Não estou, absolutamente, lá onde você está à minha espreita, mas aqui de onde o observo, sorrindo. Ou o quê? Você imagina que, ao escrever, eu sentiria tanta dificuldade e tanto prazer, você acredita que eu teria me obstinado em tal operação, inconsideradamente, se eu não preparasse – com a mão um tanto febril – o labirinto em que me aventurar, deslocar meu desígnio, abrir-lhe subterrâneos, soterrá-lo bem longe dele mesmo, encontrar-lhe saliências que resumam e deformem seu percurso no qual eu venha a perder-me e, finalmente, aparecer diante de quem nunca mais tivesse de reencontrar? Várias pessoas – e, sem dúvida, eu pessoalmente – escrevem por já não terem rosto. Não me perguntem quem eu sou, nem me digam para permanecer o mesmo: essa é uma moral do estado civil que serve de orientação para elaborar nosso documento de identidade. Que ela nos deixe livres no momento em que se trata de escrever”.

Lindo. Michel de Certeau que, como Foucault, foi alguém que conseguiu escapar dessa identidade de túmulo e, ao mesmo tempo, construir um sólido percurso intelectual, analisa essa questão em um dos textos de um livro muito instigante: História e Psicanálise – entre ciência e ficção (Autêntica). Certeau diz o seguinte sobre o episódio vivido por Foucault em Belo Horizonte:

“Ser catalogado, prisioneiro de um lugar e de uma competência, desfrutando da autoridade que proporciona a agregação dos fiéis a uma disciplina, circunscrito em uma hierarquia dos saberes e das posições, para finalmente usufruir de uma situação estável, era, para Foucault, a própria figura da morte. (…) A identidade imobiliza o gesto de pensar, prestando homenagem a uma ordem. Pensar, pelo contrário, é passar; é questionar essa ordem, surpreender-se pelo fato de sua presença aí, indagar-se sobre o que tornou possível essa situação, procurar – ao percorrer suas paisagens – os vestígios dos movimentos que a formaram, além de descobrir nessas histórias, supostamente jacentes, ‘o modo como e até onde seria possível pensar diferentemente’”.

A resposta de Foucault para a plateia de Belo Horizonte foi: “Quem sou eu? Um leitor”.
Quando me perguntam sobre o lugar de onde eu falo, tenho dito nos últimos tempos: “Quem sou eu? Sou uma escutadeira”. E agora posso até citar Foucault para a resposta ficar mais chique.

Na semana passada, participei de um debate na Jornada Nacional de Literatura, em Passo Fundo (RS), com Edney Silvestre e Nick Monfort. Terminava minha apresentação dizendo:

“A vida é um traçado irregular de memórias no tempo. Quero que, como inventário do vivido, meu corpo tenha as marcas de todas as histórias que fizeram de mim o que sou. E, se meus netos e bisnetos forem me contar, espero que jamais cheguem a qualquer conclusão fechada sobre a minha identidade. Esta seria a maior prova de que vivi”.

Depois, a certa altura do debate, repeti que minha identidade era fluida. E que hoje estava mais interessada em me desinventar do que em me inventar, em me desidentificar do que em me identificar. À noite, quando me preparava para deixar a universidade, fui cercada por um grupo de garotas: “Obrigada pelo que você disse sobre a identidade”.

Percebi que, no mundo líquido em que a internet nos lançou, há algo sobre a compreensão do que é identidade que começa a mudar. É neste mundo novo que os mais jovens tentam dar passos de astronauta, mas a gravidade da antiga ordem os prende no chão. Ainda que por razões e tempos diferentes, eu e aquelas garotas, assim como muitos outros por aí, nos conectamos nas esquinas voláteis de um mundo que ainda é determinado por padrões de cimento.

Ao pegar o avião que me levaria de volta para São Paulo, olhei para a carteira de identidade descolada, parcialmente apagada e um tanto esfarrapada que apresentei no embarque. E finalmente entendi por que não consigo me convencer a substituí-la por uma nova. Enquanto me permitirem, é com ela que vou embarcar. Porque é nela que me reconheço. Quando me obrigarem a trocá-la, vou obedecer. Mas as autoridades jamais saberão que é em uma identidade que se desprende de si que reside minha verdade.

(Publicado na Revista Época em 29/08/2011)

A doença de ser normal

Com medo da liberdade, preferimos aderir à manada

Na semana passada, li uma entrevista do professor José Hermógenes de Andrade Filho, uma lenda no mundo da ioga no Brasil. No texto, ele conta ter criado uma palavra – “normose” – para dar conta daquele que talvez seja o grande mal do homem contemporâneo. “Normose” seria a “doença de ser normal”. O professor explica: “Como diz o título de um documentário que fizeram sobre mim: ‘Deus me livre de ser normal!’. Pois, na dita normalidade em que vivemos, somos constantemente alimentados pelo que nos aliena de nós. Com isso, perdemos a noção das coisas, do sentido de nossa vida, deixando que o mundo interfira muito mais do que deveria. (…) Essa normalidade nunca esteve tão distante da verdade”.

A entrevista faz parte de uma coletânea de boas conversas com pessoas ligadas ao universo da espiritualidade – não necessariamente religiosa – no Brasil e no mundo, escrito em dois volumes pelo jornalista mineiro Lauro Henriques Jr., com o título “Palavras de poder” (LeYa, 2011). Ganhei os dois livros de uma pessoa especial na minha vida e por isso comecei a ler com curiosidade. Me deparei com a “normose” do professor Hermógenes. E fiquei instigada a pensar sobre ela.

No mesmo período, o psicanalista e romancista Contardo Calligaris fez na Flip, em Paraty, um comentário bem provocador: “Quando desistimos da nossa singularidade para descansar no comportamento de grupo, aí está a origem do mal. O grupo, para mim, é o mal.”

Acredito que, por caminhos diferentes, Hermógenes e Calligaris nos estimulam a pensar em algo que vale a pena, que um chamou de “normose” e o outro de “comportamento de grupo”. Daqui em diante, enveredo pelas minhas reflexões a partir das provocações de ambos – que possivelmente sejam diversas do que eles pensaram ao propô-las. A responsabilidade, portanto, é minha.

No passado, a vida no Ocidente era determinada pela tradição. O destino de cada um era imutável, definido pela sua origem, pela categoria social a qual pertencia, e não havia dilemas sobre o que seria a sua passagem pelo mundo: se você fosse homem, seguiria os passos do pai; se fosse mulher, os da mãe. De todos era esperado o cumprimento de um roteiro previsível, que, se você nascesse homem, consistia em dar sequência aos negócios ou ao ócio da família, ou trabalhar para o mesmo patrão ou senhor do pai; e, se nascesse mulher, casar-se com alguém do mesmo nível social, em contratos arranjados previamente, reproduzir-se e cuidar da sua própria casa ou servir na casa em que a mãe serviu. Além disso, esperava-se que cada novo núcleo familiar seguisse a religião dos pais e participasse da comunidade do jeito de sempre, cada um no seu lugar determinado pelo estrato social.

A modernidade embaralhou tudo isso. E fomos, como disse Sartre, “condenados a ser livres”. É o preço que o indivíduo paga para ser indivíduo. Ainda que, em países desiguais como o Brasil, a classe social na qual se nasce influencie as chances que cada um vai ter, mesmo aqui estamos muito longe de ter o lugar cimentado da tradição do mundo de ontem. E cada governo democrático, se quiser garantir a continuidade de seu projeto no poder, precisa agora prometer trabalhar para igualar as bases de onde cada cidadão partirá para construir sua história. No mundo contemporâneo, cada um é o principal responsável pelas suas escolhas, pelos seus desejos e pelas suas desistências.

Embora existam muitos órfãos da tradição, suspirosos de nostalgia, penso que a prisão daquela vida determinada desde antes do nascimento era mais assustadora do que a liberdade de se estrepar que a modernidade nos deu. É verdade, porém, que para viver hoje é necessário um outro tipo de coragem, já que cada homem ou mulher virou em si um projeto em constante construção e desconstrução. Não é que não exista mais chão, mas ele é pantanoso, e cada um precisa escolher diante de um emaranhado de trilhas. E, se cada uma delas leva a lugares diferentes, é fato que nenhuma é segura.

É aí que a “normose” ou o “comportamento de grupo” se encaixa. Qual é o desafio de cada um de nós hoje? Desde que você não esteja na faixa da população em que toda energia e talentos são gastos na luta pela sobrevivência mais básica, o desafio que se impõe diante de cada um é a busca da sua singularidade. E esta é a busca de uma vida inteira. Não como se você tivesse uma essência que precisasse encontrar e, tão logo encontrada, estivesse tudo resolvido. Pelo contrário, esta procura leva à invenção de nós mesmos – e nunca está nada resolvido, já que sempre podemos nos reinventar. Não sem limites, mas às voltas com eles.

A proposta da modernidade e da ideia de indivíduo, muito mais libertária do que nossos antepassados amarrados pela tradição jamais sonharam, parece ótima. O problema é que dá uma angústia danada, já que, a rigor, não haveria ninguém para culpar por uma escolha equivocada ou porque o enredo que inventamos para a nossa vida saiu diferente do nosso desejo. Então, com medo de nos “enforcarmos nas cordas da liberdade”, como diz o ator Antônio Abujamra no programa “Provocações” (TV Cultura), em vez de nos arriscarmos a criar uma vida, nos responsabilizando por ela, aderimos à manada. E aqui, é importante deixar bem claro, não estou me referindo a lutas coletivas movidas por indivíduos unidos por suas singularidades, mas à adesão que implica se deixar possuir pelo grupo para não se arriscar a ser possuído por si mesmo.

Nesta adesão à manada, a “normose” ou o “comportamento de grupo” substituiria ilusoriamente o vazio deixado pela tradição. Com medo da liberdade e dos riscos inerentes a ela, muitos de nós colam no grupo. Seja ele do tipo que for: religioso, corporativo, profissional, cultural, intelectual, político, de orientação sexual ou até esportivo. Cada um deles garante, ainda que de forma muito mais frágil do que a tradição, um certo jeito de se comportar e de se vestir, um tipo de ambiente a frequentar, temas que merecem ser debatidos, gêneros de lazer e de viagens para as férias e para os fins de semana, crenças para compartilhar e até bens para adquirir. Um tipo de “normose” – que, paradoxalmente, mas com muita lógica, dentro do grupo é tratada como “diferentose”, já que, como coletivo, contrapõe as suas verdades a dos outros grupos, em geral vistos como inferiores ou limitados.

E como estas são as pessoas com quem se convive, torna-se meio inevitável namorar e ter filhos com gente da mesma turma. Assim como a tendência é reproduzir mais e mais os mesmos padrões e visão de mundo. Sem questionar, porque questionar possivelmente levaria a uma ação. E todos nós conhecemos gente, quando não nós mesmos, que prefere deixar tudo como está, ainda que doa, para não se arriscar ao desconhecido. É assim que muitos de nós abrem mão da época histórica mais rica de possibilidades de ser em troca de uma mercadoria bem ordinária: a ilusão de segurança. Mas, como sabemos, lá no fundo sentimos que algo está bem errado. Especialmente quando fica difícil levantar da cama pela manhã para seguir o roteiro programado.

Suspeito que o mal-estar contemporâneo tem muito a ver com não estarmos à altura do nosso tempo. No passado, havia “outsiders”, gente que desafiava a tradição para inventar uma outra história para si. Hoje, com a (bendita) falência da tradição, talvez o que se exija de nós seja que todos sejamos “outsiders” à nossa própria maneira – não no sentido de contrariar o mundo inteiro, mas de encontrar o que faz sentido para cada um, arriscando-se ao percurso tortuoso do desejo. Ciente de que, logo adiante, vamos perder o sentido mais uma vez e teremos de nos reinventar de novo e de novo, num processo contínuo de construção e desconstrução movido pela dúvida – e não pelas certezas.

Vivemos numa época de intenso movimento interno, em que se perder seja talvez o melhor caminho para se achar, mas nos agarramos à primeira falsa promessa como desculpa para permanecermos imóveis. Voltados sempre para fora e cada vez com mais pressa, porque olhar para dentro com a calma e a honestidade necessárias seria perigoso. Queremos garantia onde não há nenhuma, sem perceber que o imprevisível pode nos levar a um lugar mais interessante. Podemos finalmente andar por aí desencaixotados, mas na primeira oportunidade nos jogamos de cabeça numa gaveta com rótulo. Ainda que disfarçada de vanguarda.

Mas o que pode ser mais extraordinário do que inventar uma vida, ainda que com todas as limitações do existir? E que utopia pode ser maior do que nos igualarmos pela singularidade do que cada um é?

Acho que vivemos um momento histórico muito rico. Só precisamos de mais coragem. Como diz o professor Hermógenes, do alto dos seus 90 anos, “Deus (seja ele o que for – ou não – para cada um) me livre de ser normal!”.

(Publicado na Revista Época em 18/07/2011)

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