Com a boca, ela escreveu uma vida

Aos 38 anos, Eliana Zagui, vítima de paralisia infantil, lança um livro contando como foi crescer e tornar-se mulher na UTI do maior hospital do Brasil

Eliana Zagui tinha 1 ano e 9 meses quando entrou no Hospital das Clínicas de São Paulo. Vinha no colo dos pais, quase morta, numa carona arrumada às pressas, vítima do último grande surto de poliomielite que o Brasil enfrentou nos anos 70. Assim que deixou o município de Jaboticabal, no interior paulista, o agricultor Tercílio Sitta avisou à polícia rodoviária: “Eu vou correr”. E correu. Era 10 de janeiro de 1976. Eliana viveu. Mas nunca mais deixou o hospital. Em 23 de março, ela completou 38 anos – mais de 36 deles passados entre as paredes de uma UTI do Instituto de Ortopedia e Traumatologia (IOT) do HC. Deitada numa cama, sem movimentos do pescoço para baixo, mas com todas as sensações, Eliana descobriu-se Eliana. Reconheceu-se ali, brincou ali, menstruou e virou adolescente ali, viu o melhor e o pior do humano ali. Respirando com a ajuda de equipamentos, com o orifício aberto no pescoço e a cânula da traqueostomia, Eliana formou-se no ensino médio, aprendeu inglês e também italiano, fez curso de História da Arte e tornou-se pintora. Em seu mundo horizontal, Eliana conheceu o amor e também o desespero, tentou o suicídio e testemunhou a morte daqueles que amava. Eliana Zagui fez bem mais do que isso. Criou uma vida.

Eliana, nos anos 70, maquiada para a festa junina do hospital e Eliana, hoje, aos 38 anos, após concluir o livro sobre a vida passada numa UTI (Foto: Arquivo pessoal e Belaletra Editora / Divulgação)

Eliana, nos anos 70, maquiada para a festa junina do hospital e Eliana, hoje, aos 38 anos, após concluir o livro sobre a vida passada numa UTI (Foto: Arquivo pessoal e Belaletra Editora / Divulgação)

É essa vida que Eliana nos conta no livro que será lançado na terça-feira, 10 de abril, pela Belaletra Editora: “Pulmão de Aço – uma vida no maior hospital do Brasil”. Eliana escreveu a maior parte do livro com a boca, agarrando com os dentes uma espátula de garganta na qual é amarrada uma caneta. “Fiz do meu caderno algo como um saco de soco de lutadores de boxe”, disse ela numa pequena entrevista a esta coluna. “Escrever no papel é algo muito íntimo. Pude chorar, gritar, berrar, xingar, rir e gargalhar das coisas ridículas e saudosas.”

O desejo de agarrar suas memórias a alcançou na forma de uma voz do passado. A voz da enfermeira Fininha. Tão obstinada e magra quanto um ponto de exclamação, o que lhe valeu o apelido, Josefina Aparecida Saccani já tinha encerrado seu turno naquela tarde do verão de 1976. Mesmo assim, continuava no corredor do hospital de Jaboticabal, cidade próxima a Guariba, de onde o casal tinha vindo em busca de socorro para a filha. Inconformada, Fininha tentava encontrar uma carona para a menina que morreria naquela noite se não conseguisse chegar ao Hospital das Clínicas, na capital. Não havia ambulância disponível em Jaboticabal, nem em Ribeirão Preto, e o prefeito de Guariba dissera, em resposta ao pedido de ajuda do pai de Eliana: “Não conheço nenhuma família Zagui”.

Depois de muitas tentativas e um número equivalente de “nãos”, a enfermeira esbarrou com seu vizinho Tercílio, que havia levado um funcionário ao hospital para suturar a mão. Implorou por uma carona. E Tercílio, ao contrário do prefeito, escutou. Foi para casa, tomou um banho, avisou a família, botou os Zagui no banco traseiro do Ford Belina e tentou voar pelos 350 quilômetros que separavam Jaboticabal de São Paulo, a morte da vida.

Em setembro de 2002, quase três décadas depois, Eliana atendeu ao telefone e escutou a voz de Fininha. A enfermeira nunca soube o nome da menina cuja vida salvou. Mas jamais foi capaz de esquecer a garotinha loira de olhos tristes. Foi perguntando, perguntando e, 26 anos depois, conseguiu localizar Eliana numa UTI do Hospital das Clínicas. A voz de Fininha devolveu o passado à mulher que Eliana havia se tornado. E ela percebeu que precisava se adonar de sua história para seguir adiante.

Assim começou o livro. E continuou quando os editores Ana Landi e Eduardo Belo, os dois jornalistas que criaram a Belaletra Editora, perguntaram a Eliana: “Você quer mesmo publicar um livro?”. Eliana respondeu: “Quero. E tenho até o título: Pulmão de Aço”. Pulmão de Aço é uma máquina grande, parecida com um forno, onde pessoas com insuficiência respiratória eram colocadas, ficando só com a cabeça de fora.

Eliana foi enfiada lá por cinco dias quando chegou ao HC. Para ela, porém, não funcionou. Teve de fazer a traqueostomia e ligar-se para sempre a um respirador artificial. “Minha capacidade de sobrevivência fora do aparelho de respiração é bem limitada. No máximo três ou quatro horas. Aprendi já crescida a respirar com o que me resta dos pulmões – e isso exigiu grande esforço”, conta no livro. Devagar, porém, foi descobrindo que em seu corpo frágil e insuficiente morava mesmo um pulmão – e uma vontade – de aço. O pulmão resistia aos pedaços – a vontade, por inteiro.

Eliana nunca teve dúvidas sobre o título do livro. Mas tropeçou algumas vezes na escrita. “Estagnei por uns três ou quatro anos, pois o assunto que estava escrevendo era sobre a Eliana mulher, a Eliana desejo, a Eliana apaixonada e a Eliana ‘sexo’”, conta. “Embora o sexo esteja um pouco mais liberal, ainda é um tabu para as mulheres e homens que têm alguma deficiência física. Muitos ainda nos veem como seres assexuados e intocáveis para uma relação amorosa. Não queria que ficasse uma coisa besta e boba de uma menina, adolescente, moça, mulher apaixonada que só vive no mundo da lua e que espera um príncipe, num cavalo preto ou branco, que jamais existirá e chegará ao quintal do HC.”

Eliana só pode contar com a boca para escrever, pintar, virar as páginas dos livros, manusear o celular. Por isso, quando a escrita de suas memórias começou a causar muitas dores nos dentes e no maxilar, o dentista foi peremptório: ela precisava continuar a escrever no computador. Depois de muita briga, Eliana passou a digitar em um notebook. Ainda que seja com a boca, com a ajuda da espátula e da caneta, a pressão sobre os dentes e o maxilar é menor ao apertar as teclas do que ao forjar letras no papel. “Escrever no computador é algo muito frio e mecânico demais, mas, infelizmente, não tive outra opção. Continuar a escrever o livro no computador foi uma droga, no início. Eu não continuei de onde parei no caderno, eu digitei tudo o que já tinha escrito e continuar daí é que foi horrível.” Eliana continuou. Ela sempre continua.

Ao continuar, recuperou mais do que o seu passado. Devolveu uma alma ao que tinha sobrado apenas como estatística. Entre 1955 e o final da década de 70, houve 5.789 internações por pólio no Hospital das Clínicas. De todas as crianças atingidas com severidade, sete restaram na UTI do Instituto de Ortopedia e Traumatologia. Restaram porque não melhoraram o suficiente para voltar para casa, restaram porque não pioraram o suficiente para morrer. Paralisados de quase tudo, em camas lado a lado, estes sete cresceram e adolesceram entre as paredes do hospital: Pedro, Anderson, Tânia, Luciana, Cláudia, Paulo, Eliana. E foram morrendo, não apenas porque o corpo se tornava cada vez mais devastado pela paralisia, pela insuficiência respiratória e pelas infecções, mas porque era brutal se tornar adolescente numa cama.

Em 1996, Cláudia morreu. Era a melhor amiga de Eliana. Quando a noite cobria o hospital com um frio que não podia ser medido por termômetros, as duas meninas pediam às enfermeiras para botar a mão de uma sobre a mão da outra, já que não conseguiam se tocar por si mesmas. E assim atravessavam as madrugadas de gelo e de medo. Desde que Cláudia se foi, sobraram apenas Eliana e Paulo Henrique Machado, hoje com 44 anos.

Paulo Henrique Machado, o melhor amigo de Eliana e o único que sobreviveu além dela, na infância no hospital. Na cama, o pequeno Pedro, que morreria em 1992. Hoje, aos 44 anos, Paulo tornou-se designer gráfico e começa a trabalhar com filmes de animação (Foto: Arquivo pessoal e Vitor Salgado / Divulgação)

Paulo Henrique Machado, o melhor amigo de Eliana e o único que sobreviveu além dela, na infância no hospital. Na cama, o pequeno Pedro, que morreria em 1992. Hoje, aos 44 anos, Paulo tornou-se designer gráfico e começa a trabalhar com filmes de animação (Foto: Arquivo pessoal e Vitor Salgado / Divulgação)

Seguiram os dois, tendo apenas um e outro e uma família mutante de médicos, enfermeiros e auxiliares de enfermagem – alguns notáveis, como “Pai Giovani”, “Tia Lu” e Fernando Flaquer, outros desprezíveis, como em qualquer família. Eliana e Paulo prosseguiram agarrados ao fio escorregadio de uma vida em que o ar é garantido por máquinas – decididos a arrancar dos dias uma existência subjetiva. Ainda que dentro – deles e da UTI.

Tanto Eliana quanto Paulo poderiam viver em casa, com o apoio do hospital, se tivessem uma família para onde ir. Essa possibilidade nunca chegou perto de virar realidade. As visitas dos familiares são raras – e sem abraços. “Pulmão de aço” é o livro de Eliana, mas também é de Paulo. Ele está presente na maioria das páginas e, mesmo quando há silêncio, Paulo escorre das letras. Com sonhos de cinema, Paulo tornou-se designer gráfico e hoje começa a trabalhar com animação digital. Agora mesmo, Paulo e Eliana estão lá, a cama de um diante da cama do outro. Entre quatro paredes de uma UTI, enquanto nas salas ao redor a vida de outros se encerra. Juntos, eles desafiam as estatísticas da medicina, a textura de graveto dos ossos, seus pulmões exaustos, o abandono, a falta, as ausências. Eliana e Paulo vivem porque desejam. O ar lhes falta, mas a vida eles engolem às golfadas.

É por isso que este não é um livro de pena. Perguntei a Eliana que repercussão ela esperava de “Pulmão de Aço” e me deparei com uma personalidade forte e um olhar agudo: “O que fica muito latente, em todo ser dito ‘normal’, é o vício de linguagem, ao dizer: ‘Você é um exemplo de vida’. Penso que todo ser humano, além de ser exemplo de vida ao seu modo, tem que viver na prática o exemplo que é. Mas não só para se beneficiar do outro porque se livrou de uma depressão, de uma tentativa de suicídio, das desgraceiras que poderia ter feito caso não tivesse ouvido uma história como a minha e a de Paulo, ou a de qualquer outro deficiente. Não somos bengalas e nem amuletos da sorte”.

Este não é um livro de pena porque Eliana não permite que seja. Ela diz: “O tamanho de minha ansiedade não é possível numerar em grau, pois oscila bruscamente tanto para 0,00000% como para 3.000,000000001%. É uma contagem louca e muitas vezes sem nexo, como tenho brincado nesses últimos tempos. Lançar meu primeiro livro e ainda ser no próprio hospital em que vivo há (quase) 37 anos é uma cesariana megaprogramada. Embora estarei rodeada de médicos, das mais variadas especialidades – enfermeiras, técnicos de enfermagem, todas as especialidades que há dentro desse Instituto de Ortopedia e Traumatologia – o parto será só meu. Como o Paulo disse, outra pessoa não poderia escrever essa história, pois só eu vivi, chorei, gritei, aprendi e cresci junto com ele e com os outros que também foram nossa família, mas Deus levou”.

Eliana e Paulo, sempre às voltas com o comprimento da vida, tornaram-se capazes de dar largura à sua existência. Na apresentação do livro, em letra cursiva, Eliana diz: “Se fisicamente não posso andar, em minha mente sou capaz de voar sem limites”. E ela, assim como Paulo, voa.

Acredito que a escrita, se tem uma função, não é a de apaziguar o leitor. A escrita tem de perturbar, cutucar, às vezes até ferir para lembrar que somos vivos, que sangramos e que nossa história está sempre em curso. Acho que o livro escrito por Eliana Zagui faz isso. Arranca-nos do lugar e nos leva para um universo que, sem a narrativa, jamais alcançaríamos. É por isso que é um bom livro. Porque Eliana Zagui tem uma história (e que história!) para contar. E a contou com verdade.

Os leitores desta coluna terão um pequeno grande privilégio, o de conhecer alguns trechos do livro com exclusividade. Quem quiser conhecer o livro inteiro, pode encomendar a partir de hoje pelo site da editora: www.belaletra.com.br. E, a partir do dia 10/4, também poderá comprar nas principais livrarias do país e, pela internet, nos sites de venda de livros. Escrito na primeira pessoa, com uma tiragem inicial de 5.500 exemplares, o livro deverá ter ainda um segundo lançamento, desta vez numa livraria. Eliana sonha com dar autógrafos entre prateleiras de livros – fora do hospital e além das quatro paredes.

A seguir, alguns trechos de “Pulmão de aço – uma vida no maior hospital do Brasil”:

Das centenas de crianças com pólio severa, que passaram pelo Hospital das Clínicas de São Paulo, sete sobreviveram por 20 anos. Depois, restaram Eliana e Paulo. Na foto, Eliana (na frente), Cláudia e Luciana, ainda na infância, vestidas para uma festa de Carnaval (Foto: Arquivo Pessoal)

Das centenas de crianças com pólio severa, que passaram pelo Hospital das Clínicas de São Paulo, sete sobreviveram por 20 anos. Depois, restaram Eliana e Paulo. Na foto, Eliana (na frente), Cláudia e Luciana, ainda na infância, vestidas para uma festa de Carnaval (Foto: Arquivo Pessoal)

O primeiro espelho

“Claro que não me recordo de quase nada de meus primeiros dias aqui no hospital. Mas tenho vagas lembranças de crianças dentro dessas geringonças. Lembro-me também de espelhos colocados sobre nossas cabeças, presos aos pulmões de aço ou mesmo às cabeceiras de nossas camas. Não sei de quem foi a ideia, mas a achei genial. Por meio dos espelhos pude ver que não estava só. Ao meu lado, dezenas de outras crianças encontravam-se na mesma situação.”

Mudança de endereço

“Com a erradicação da poliomielite, o Instituto passou a se dedicar quase exclusivamente a acidentados graves e doentes com problemas do aparelho locomotor, além de realizar reimplante de membros e retirada de tumores que atingem ossos e coluna. A enfermaria foi transferida do sexto para o primeiro andar. Foi a minha única mudança de endereço nesses quase 40 anos.”

Paulo

“Criada no hospital, eu o considero um irmão mais velho. A primeira pessoa a quem contei que estava pensando em escrever minhas memórias foi ele. Não só porque é meu melhor amigo. Como únicos remanescentes das vítimas da paralisia, somos colegas de quarto e ficamos juntos 24 horas por dia há mais de 30 anos. Não poderia expor minha vida sem que ele fizesse parte do relato. Ele precisava saber e concordar.

Talvez por ter enfrentado momentos delicados desde a infância, de início Paulo não se empolgou muito com a ideia. Demorou a participar deste livro. Tem sido difícil abrir sua caixa de memórias. A dor nos ensina a calar. E Paulo colecionou ao longo desse tempo alguns episódios dolorosos que justificam plenamente seu comportamento arredio.

Durante boa parte da infância, fomos mantidos sob rigorosa disciplina. Paulo conta:

– Quando eu era garoto, sempre fui chamado à atenção. Brigavam comigo porque eu falava alto. Me mandavam esperar minha vez de falar.

Praticamente, fomos educados pelo pessoal da enfermagem. Algumas pessoas foram extremamente sensíveis, doces. Outras, rígidas e frias. Mesmo assim, raramente fomos desrespeitados ou maltratados. O único episódio mais sério e literalmente traumático ocorreu justamente com Paulo.

Na infância, quando sentado, ele tinha o hábito de balançar as pernas. Sem controle da musculatura dos membros inferiores, usava o pouco movimento restante nas mãos para dar impulso às perninhas finas. Elas ficavam balançando de um lado para o outro, como se fossem pêndulos. Era só uma maneira de se divertir e passar o tempo, mas isso deixava uma das atendentes de enfermagem particularmente irritada. Em especial quando a brincadeira era feita perto da hora do almoço. Ela sempre ralhava.

– Pare de balançar essas pernas, Paulo.

Claro que ele não parava.

Um dia, depois de muito brigar e exigir que ele encerrasse a brincadeira, essa moça o viu segurar as pernas e acomodá-las com os pés juntos, em posição de lótus. Parece que isso a irritou ainda mais. Descontrolada, deu-lhe um tapa nos pés. Os ossos fracos, característicos de quem sofre de pólio severa, sofreram fraturas. Paulo passou meses com as duas pernas imobilizadas.

A direção do hospital agiu de imediato. Demitiu a atendente por justa causa.”

O dia em que o palhaço chorou

“Dr. Giovani fazia o possível para diminuir em nós a sensação de isolamento. Sempre com autorização da direção do HC, levou-nos a alguns passeios inesquecíveis.

Providenciava tudo: ambulância, cilindros de oxigênio, respirador portátil. Com ele, os meninos foram a parques e ao zoológico de São Paulo.

Mas nada pode ser comparado a nossa ida ao circo.

Conhecer o circo era um sonho. Dr. Giovani arrumou tudo, preparou a infraestrutura e nos levou — eu, Paulo, Tânia e Pedro — em duas ambulâncias. Mas naquela tarde caiu um temporal, faltou público e o espetáculo foi cancelado. Vendo nossa imensa frustração, o médico procurou o dono do circo, explicou a situação e o levou até nós, nas ambulâncias.

A reação foi imediata. A trupe nos maquiou como se fizéssemos parte do espetáculo e resolveu nos presentear com uma miniapresentação exclusiva. O encontro emocionou os artistas. A choradeira foi geral. Os palhaços conduziram o show sob lágrimas.”

Cláudia e a geografia

“Cláudia tinha a mesma idade que eu. Nascemos no mesmo ano. Eu em março, ela em abril. Só que a poliomielite a atingiu mais tardiamente. Fiquei doente antes dos dois anos, mas ela tinha mais de seis quando apresentou os primeiros sintomas.

(…)

Sentia-se num mundo estranho e, acredito, tinha esperanças de deixar o hospital e retomar o convívio dos pais. Os anos foram passando, e as visitas da família rareando até desaparecer. Depois da fase inicial, por um período de quase duas décadas, sua mãe veio ao HC apenas uma vez.

(…)

Mesmo assim, Cláudia os amava. Procurava justificar a ausência dos pais com o argumento de que moravam longe. Quando crescemos um pouco, já com dez ou onze anos, começamos a ter aulas. Uma das professoras, Elda de Lucca, nos deu as primeiras lições de geografia. Cláudia aproveitou:

— Tia, a casa dos meus pais é no Brasil?

— É sim, Claudinha. Eles são aqui da cidade de Campo Limpo Paulista, próxima a São Paulo.

— Mas isso é muito longe? – perguntou.

— Não, Claudinha. É perto.

— É como a casa da Eliana?

— Não. Pense assim: para virem para cá, os pais da Eliana demoram cinco horas. Saem de manhã e chegam só após o almoço. Os seus pais, se saíssem no mesmo horário, chegariam aqui em uma hora, antes de vocês tomarem banho.

Cláudia chorou durante uma semana.”

O abraço

“Adalberto foi protagonista de uma das minhas histórias mais marcantes. Eu tinha apenas oito anos e chorava desesperadamente. Ele entrou no quarto e perguntou o que estava acontecendo. Eu não sabia explicar. Solidão, tristeza, falta de carinho, dor. Tudo junto.

Tentou me consolar, mas eu chorava cada vez mais. Adalberto então enfiou um dos braços por trás das minhas costas, me ergueu um pouquinho e me enlaçou com força. Foi uma sensação maravilhosa. Jamais havia ganhado um abraço. Até hoje, nem mesmo meus pais jamais me abraçaram.”

Uma vida de partidas – sem poder partir

“Comecei a me dar conta de que a solidão e o sentimento de abandono me incomodavam mais que a própria doença e seus desdobramentos. A ficha começou a cair graças à população flutuante do IOT. Passei a me questionar: por que todo mundo tinha alta e ia embora? E por que a minha família não vinha me buscar também? Nessas horas, chorava muito.

O sentimento de abandono ficava ainda maior exatamente pela saída dos moradores e visitantes temporários. Quem trabalhava aqui, amigos dos amigos, pessoas que prestavam assistência religiosa e outros personagens saíam de nossas vidas da mesma forma que haviam entrado: de repente. Um por um, quase todos desapareceram, depois de termos criado algum tipo de laço.

Sei que a rotina de hospital, ainda mais numa UTI, não é das mais agradáveis… Muita gente nem tem estômago para entrar aqui. Perdi a conta de quantas pessoas desmaiaram na minha frente. Eu as entendo. Mas não consigo compreender por que alguns começam a nos visitar com constância, criam expectativas e depois desaparecem. São dezenas de casos assim. Pessoas a quem passamos a considerar nossas mães, pais, tios e irmãos. Claro que o sumiço, pelo menos da maioria, tem um motivo. Mas, quando nos apegamos a alguém, a dor da perda é muito grande.”

Perspectiva horizontal

“Quem vive numa cama não tem a mesma perspectiva das outras pessoas. Depois de tanto tempo deitados, não conseguimos mais ver o mundo na vertical. No meu caso, principalmente, a perspectiva é toda horizontal. Há anos, por problemas respiratórios, não posso mais usar nem travesseiro. Vejo o mundo de baixo para cima ou de lado. Não sei o que é olhar para baixo.

Paulo, quando criança, conseguia sentar-se um pouco. Em raras oportunidades foi colocado no chão. Por volta dos sete anos, ele cismou de jogar no chão o que estivesse por perto: cobertas, copos, talheres. As tias, intrigadas, perguntaram por quê.

— Quero ver se o chão é duro.

A experiência não aplacou sua curiosidade, e ele resolveu torná-la mais concreta: atirou-se no chão. Descobriu da maneira mais difícil que o chão era mesmo duro: duas pernas fraturadas e meses de imobilização.”

Traqueostomia na boneca

“Próximo à minha cama havia um berço vazio. Eu pedia às tias que o deixassem ao meu lado. Nele ficava minha boneca preferida, a Mechinha, da Estrela. Eu a imaginava como um paciente-bebê, uma filhinha morando comigo no hospital.

As atendentes colaboravam com minha fantasia. Colocavam um suporte com um frasco de soro e prendiam a ‘agulha’ no bracinho da boneca com esparadrapo. Mas eu queria um toque a mais de realismo: traqueostomizei a boneca e dei um jeito de injetar o soro.

Pedi que amarrassem uma cânula com gaze para simular uma traqueostomia. Na aplicação do soro, desviei uma agulha. Usei a boca para arrancar a tampinha. Com uma espátula consegui enfiar a agulha no braço do brinquedo e abrir a válvula. A boneca se encharcou e embolorou por dentro. Perdi o ‘bebê’, mas ganhei a consciência de que podia usar a boca para substituir as mãos em várias atividades.”

Greve de fome – por amor

“A presença de João do Pulo trouxe até o IOT grande número de policiais militares, encarregados de fazer a segurança e impedir o enorme assédio que se fazia ao nosso vizinho ilustre. Os policiais eram um mais lindo que o outro. Pelo menos para Tânia, Cláudia e eu.

Paquerávamos os policiais de modo muito platônico, claro. Sem ter muito que fazer, eles ficavam por lá, zanzando pelo hospital, e nos davam atenção. Ficávamos de papo com eles o dia inteiro e entramos em greve de fome quando a direção do hospital, incomodada com o nosso falatório diuturno, recomendou que os policiais não mais tivessem acesso à nossa enfermaria. O protesto deu resultado.”

Adolescência numa UTI

“A minha pior fase foi logo depois dos 12 anos. Até então, sonhava com o dia em que os médicos entrariam, esbaforidos, anunciando aos gritos a descoberta da cura para a paralisia e que, após algum remedinho ou injeção, em poucos dias estaríamos em pé novamente, correndo de volta para casa.

Na adolescência tivemos a certeza de que isso nunca ocorreria. A cada ano ficava mais claro que a nossa doença era irreversível. E que, mesmo que tivéssemos alta, não teríamos para onde ir.

(…)

Minha vida mudou aos 12 anos, quando menstruei pela primeira vez. Cláudia também, mais ou menos na mesma época e com a mesma idade. Foi um reboliço. Acho que por mais que todos estivessem cientes de que isso iria ocorrer — Tânia, por ser mais velha, já havia chegado à puberdade — foi um marco tão importante quanto ultrapassar a expectativa inicial de apenas dez anos de vida. Deixar de ser criança mudou meus relacionamentos — e também meu jeito de encarar a vida.

Cláudia e eu éramos românticas e sonhadoras. Começamos a nos sentir mocinhas, espécie de cúmplices das auxiliares e enfermeiras em assuntos femininos. Esse foi o lado bom. O ruim foi que começamos a ter a certeza de que não seríamos crianças para sempre e que, crescendo, o tratamento recebido das pessoas e do próprio hospital seria outro.

Quando novinhos, despertávamos compaixão imediata. Os que não apresentavam grande resistência ao nosso estado físico logo ficavam penalizados. Queriam nos consolar, ninar, dar presentes. Depois de crescidos, desajeitados e cheios de vontades — e sem perder totalmente alguns traços da infância, até por falta de contato com o mundo exterior —, a coisa complicou.”

Tentativas

“Algumas vezes pensei em acabar com toda essa dor. Tornei-me obcecada, tinha pensamentos mórbidos. Passei a estudar formas de tirar minha própria vida.

Avaliava as possibilidades: arrancar a cânula da traqueia com a boca, cortar ou furar o pescoço com algum objeto. Já tinha tudo planejado: esperaria um momento de descuido das auxiliares, faria uma prece e me despediria do mundo em silêncio. Quando notassem, seria tarde demais. Meus pais seriam chamados e, desesperados, chorariam – pela perda e pela culpa. Queria muito que eles sentissem minha falta.

Pouco antes dos 13 anos, ganhei um broche de presente, que guardava numa caixa de madeira, junto com outras lembranças. Pedia, todas as tardes, que as auxiliares a deixassem ao meu alcance.

Não imaginavam que, mais do que remexer em meus pertences com a espátula, meu maior objetivo era buscar uma maneira eficiente de usar o alfinete do broche para provocar um ferimento mortal em meu pescoço ou pulso.

Eu pegava o broche com a boca e tentava me furar. Pedia que colocassem meu braço perto do rosto. Alegava que era para poder sentir o toque da caixinha, mas queria mesmo era tê-lo ao alcance da boca para poder me ferir. O máximo que consegui foi espetar o braço. Algumas vezes nem saía sangue. Em muitas ocasiões, os profissionais da enfermagem nem percebiam – ou achavam que eu havia me machucado sem querer.

Também já tentei tirar o tubo de oxigênio. Muitos dos meus amigos aproveitavam uma oportunidade qualquer e se jogavam no chão. Sem êxito. Descobrimos que até para morrer antes da hora precisamos da ajuda de alguém.

Não posso negar que volta e meia essas ideias ainda me visitam. Mas tento me apegar aos estudos e à pintura sem lutar contra o tempo.”

A banalidade do mal

“Viver isolados do mundo nos deixa despreparados para muitas situações e nos torna ingênuos. Alvos em potencial de pessoas mal-intencionadas.

Por carência afetiva, desde pequenos nos apegamos com muita rapidez a quem quer que nos dispense um pouco de atenção. Não importa se médico, enfermeira, funcionário ou visitante. Bastava uma palavra de carinho para enxergarmos aquela pessoa como o nosso pai, mãe, protetor, alguém da família que nunca tivemos.

Nem sempre as pessoas de nosso convívio foram desprendidas e abnegadas, como Tia Lu, Tio Fernando, dr. Giovani. Algumas visitas e alguns funcionários eram extremamente instáveis ou impacientes. Outros simplesmente nos roubavam. Nada tínhamos de muito valor, mas de vez em quando conseguíamos juntar alguns trocados para um lanche. Várias vezes esse dinheiro e os presentinhos que ganhávamos sumiram.

(…)

Quando a desonestidade se misturava ao caráter completamente insensível de algumas pessoas, as decepções eram colossais. Paulo conta:

– Quando tinha uns 20 anos, meu sonho era ter um videogame. Eu e Pedrinho falávamos disso o dia todo. Como não tínhamos dinheiro nem sabíamos fazer algo que nos rendesse uns trocados, resolvemos organizar uma vaquinha entre amigos, médicos e funcionários. Não tínhamos conta em banco, claro, e o Tio Fernando sugeriu que trocássemos o dinheiro obtido por dólar. Pacientemente, ele se encarregou de fazer o câmbio. Juntávamos um pouquinho e dávamos para ele trocar. As notas ficavam numa carteira, a qual eu não largava. Dormia com ela sob o travesseiro. Meses depois — muitos meses depois, é verdade — de começarmos nossa arrecadação, já tínhamos 300 dólares. Dinheiro suficiente para comprar um modelo de última geração. Não nos aguentávamos de felicidade. Eu me agarrava àquela carteira até conseguir uma boa alma que pudesse nos comprar o aparelho, de preferência durante uma viagem ao exterior. Certo dia, me descuidei apenas por alguns minutos. Esqueci de levá-la comigo quando me tiraram da cama para trocar os lençóis. Assim que me colocaram de volta e consegui enfiar minha mão em baixo do travesseiro, soltei um grito de desespero: a carteira tinha desaparecido. Começamos a berrar. Uma das atendentes fez cara de surpresa e achou a carteira no chão. Sem os dólares. Choramos por semanas seguidas. O dinheiro não reapareceu.”

“Éramos sete”

“A perda de Pedro foi sentida durante meses. Abateu-se sobre nós um indescritível desânimo. Tínhamos tão poucos à nossa volta e acabávamos de perder um grande e querido amigo. Menos de um ano depois, o luto ainda estava muito presente quando Anderson exalou seu último sopro de vida.

A primeira perda abalou nossas convicções. Sabíamos que Pedro tinha saúde frágil, mas isso, afinal, não era exclusividade dele. Para nós, era como se fôssemos sobreviventes, achávamos que, passada a fase crítica na infância, estaríamos a salvo. A morte de Pedro nos mostrou que não era assim. A de Anderson nos trouxe a confirmação disso. Agora, a questão era saber quem seria o próximo.

Assistimos à morte repentina de Anderson. Foi traumático. Estava conosco, tranquilo, quando seus pulmões simplesmente entraram em colapso numa tarde de 1993. Sem conseguir respirar, gritava de desespero. Os médicos tentaram de tudo para salvá-lo.

(…)

A última imagem que guardo de meu amigo sorridente e sempre disposto a uma brincadeira é dele agarrado ao colarinho do dr. Takeda pedindo, com o que lhe restava de forças, que o salvasse.

Tânia nos deixaria no ano seguinte. Foi um processo silencioso, precedido de forte depressão. Até hoje acho que ela entregou os pontos. A moça vivaz, extrovertida, cansou de lutar. Simplesmente desistiu de viver. Morreu dormindo em 1994.

A partida de Luciana ocorreu pouco depois, também naquele ano. Estava com a saúde bem comprometida havia meses em virtude de uma séria parada respiratória. Já não nos reconhecia nem expressava reação alguma. Entrou em coma. Em seus últimos dias, só dormia e chorava de modo angustiante.

Diziam que não escutava mais. Tenho minhas dúvidas. Certa noite, todos dormiam. De repente, ela começou a chorar muito alto. Acordei e fiquei ouvindo aquele choro aflito. Sem saber o que fazer, criei coragem e disse em voz alta:

— Pare de chorar, Lu!

Ela parou.

Cláudia se foi em 1996. Depois disso, minha vida nunca mais seria a mesma. Restamos Paulo e eu.”

Independência

“Travei contato com a terapia ocupacional por volta dos oito anos. Mais ou menos quando descobri que era diferente da maioria das outras pessoas, incluindo meus colegas de enfermaria. A paralisia lhes poupara pelo menos parte do movimento das mãos. Eu e Cláudia não recebemos esse benefício.

As terapeutas promoviam brincadeiras, mostravam letras e números, nos faziam cantar musiquinhas. Comigo, testaram alternativas para que eu utilizasse a boca para alcançar objetos próximos. Tentaram com um lápis, mas não funcionava muito bem. O lápis é muito liso, roliço, não serve para ‘pescar’ as coisas.

Testaram uma caneta, também sem sucesso.

Depois de meses de experiências fracassadas, quase sem querer, os profissionais do hospital notaram que a espátula de examinar garganta seria a melhor opção. Achatada, ela facilita o uso, além de existir em abundância em qualquer hospital.

Com o tempo, fui ficando craque na espátula. Aprendi a puxar coisas, cobrir o rosto, empurrar cobertas. Descobri ainda que, fazendo um corte numa das pontas com os dentes, conseguia utilizá la como uma garra. Passei a encaixar as coisas nessa ranhura e manejá las. É minha ‘mãozinha’, como diz Paulo.

(…)

‘O que ela acha que pode me ensinar?’, pensei, várias vezes, durante o aprendizado com a pintura, quando as terapeutas usavam as mãos e tentavam me fazer pintar e desenhar com a boca. ‘Ela já fez alguma coisa com a boca?’ Assim como ocorreu quando aprendi a escrever, durante a adaptação ao uso da espátula nas atividades artísticas, tive momentos de revolta. Era duro aceitar que eu nunca usaria as mãos. Nessas horas, jogava tudo no chão ou rasgava o caderno de tanto riscá-lo com força.

A revolta parou quando percebi que não adiantava nada. Teria de me tornar minimamente independente. Precisava fazer um esforço. É bem isso que sou hoje: minimamente independente. Sei escrever, teclar, pintar, atender telefone, virar as páginas de um livro, mas dependo demais dos outros. Além de cuidarem da minha higiene e alimentação, tenho de esperar que coloquem os objetos ao meu alcance. Então, realizar essas tarefas com a boca é o que me ajuda a me sentir viva e me dá um pouco de dignidade. De outro modo, seria um vegetal.”

O mundo, pela primeira vez

“Depois de minha ida ao circo, com pouco mais de dois anos — e da qual, infelizmente, quase não guardo lembrança alguma — fiquei 12 anos sem sair daqui. Assim, nada mais compreensível que o ataque de ansiedade que tive diante da primeira oportunidade de dar uma voltinha.

Estava com 15 anos. Graças à terapia, já conseguia ficar de duas a três horas sem o respirador artificial. Também estava com a saúde razoavelmente em dia. O convite para um breve passeio partiu de Eleni. Ela me chamou para conhecer sua casa. Disse que faria tudo para obter a autorização do hospital e se responsabilizaria formalmente por mim.

(…)

No dia do passeio estava tão tensa que fiquei com medo de passar mal e abortarem a saída. Fiz de tudo para disfarçar. Lembro-me da emoção que senti quando me colocaram na maca e a desceram ao pátio rumo à ambulância.

Foi a primeira vez na vida em que pude ver as árvores em toda a sua grandeza. Da sacada, só conseguia ver as copas e parte do tronco. Vi também o céu, maior e mais bonito do que na TV. E me espantei com o movimento intenso de carros, ônibus e pessoas pela cidade.

A chegada à casa foi outra emoção arrebatadora. Era assim que era uma casa?”

Mar

“Em 1998, Cleide nos convidou para irmos até sua casa em Praia Grande. Ficamos em dúvida se iríamos ou não até o último momento. O tempo não estava ajudando. A previsão indicava tempo bom, mas o céu estava fechado no dia do passeio.

Os voluntários resolveram arriscar. Acho que Deus, com pena, decidiu abrir o tempo por alguns minutos para que pudéssemos desfrutar da praia.

Ao abrirem a porta da ambulância, tivemos uma das maiores emoções de nossas vidas. Um deslumbramento. Fazia frio, eu e Paulo continuávamos lá dentro, totalmente enrolados em cobertores. Esticávamos o pescoço para não perder um centímetro da paisagem. Um cenário grandioso, aquele encontro do céu com a água no horizonte. Começamos a tremer como loucos. E nem era de frio.

O dr. Maneta, que acompanhava o passeio, temia alguma complicação de saúde. Ele estava em dúvida se deixaria ou não a gente sair da ambulância. Ao final, cedeu:

— Eles vieram aqui para ver o mar, não é? Então vamos descer. Eles vão ver o mar de perto.”

Paulo Henrique Machado, Eliana Zagui - e o mar (Foto: Arquivo pessoal)

Paulo Henrique Machado, Eliana Zagui – e o mar (Foto: Arquivo pessoal)

(Publicado na Revista Época em 02/04/2012)

Senhor Procurador, leia o verbete “dicionário”

O caso Houaiss e a tentativa de apagamento da História

Na obra-prima de Ray Bradbury, “Fahrenheit 451”, o futuro se transformou em um mundo sem livros. Tudo o que querem que as pessoas saibam é transmitido por imensas telas de TV, onde parte da população passa os dias vivendo a vida dos personagens de ficção. Nessa sociedade totalitária, Guy Montag é um bombeiro. Não um que apaga fogo, mas um que faz fogueiras. A missão de Guy é queimar livros. “451” refere-se à temperatura, em Fahrenheit, na qual um livro incendeia. Bradbury não poderia imaginar a internet ao escrever o livro em 1953, no contexto da Guerra Fria. Assim, seu pesadelo literário era incapaz de alcançar o que aconteceu na semana passada, quando os verbetes das palavras “cigano” e “negro” foram suprimidos da versão eletrônica do mais completo dicionário brasileiro, o Houaiss. Hoje, nesse futuro que chegou, não é mais necessário fogo, mas apenas um clique, para apagar a História. Muito mais “limpo”, rápido e silencioso.

Tudo começou quando o procurador da República Cleber Eustáquio Neves, do Ministério Público Federal de Uberlândia, em Minas Gerais, requereu que o dicionário Houaiss fosse tirado de circulação e que a tiragem, venda e distribuição das novas edições fossem suspensas enquanto não tivessem sido eliminadas as “expressões pejorativas e preconceituosas” do verbete “cigano”. O procurador atendia ao pedido de um cidadão, feito em 2009. No Houaiss – e eu estou tratando o meu exemplar em papel com cuidados maternos diante da iminência de seu assassinato -, este é o verbete da palavra “cigano”, neste momento uma relíquia cultural que compartilho com vocês:

Cigano adj 1 Relativo ao ou próprio do povo cigano; zíngaro <música c.> <vida c.> <esperteza c.> Adj. s.m. 2 relativo a ou indivíduo dos ciganos, povo itinerante que emigrou do Norte da Índia para o oeste (antiga Pérsia, Egito), de onde se espalhou pelos países do Ocidente; calom, zíngaro 3 p.ext. que ou aquele que tem vida incerta e errante; boêmio <meus parentes c. não pensam no dia de amanhã> <viver como c.> 4 p.ana. vendedor ambulante de quinquilharias; mascate 5 (1899) pej. que ou aquele que trapaceia; velhaco, burlador 6 pej. que ou aquele que faz barganha, que é apegado ao dinheiro; agiota, sovina 7 que ou o que serve de guia ao rebanho (diz-se de carneiro) 8 LING m.q. ROMANI ETIM fr. cigain (sXV, atual tsigane ou tzigane, estas por infl. Do al. Zigeuner), do gr. biz. athígganos ‘intocável’, nome dado a certo grupo de heréticos da Ásia Menor, que evitava o contato com estranhos, a que os ciganos foram comparados quando de sua irrupção na Europa central; c.p. tur. cigian, romn, zigan, húng.cigány, it, zingano (a1470, atual zíngaro); f.hist. 1521 cigano, 1540 cigano, 1708 sigano COL bando, cabilda, ciganada, ciganagem, ciganaria, gitanaria, maloca, pandilha HOM cigano(fl.ciganar)”

Reproduzo o verbete completo para que todos tenham acesso ao que foi suprimido da versão eletrônica e, se a vontade do procurador vencer, de todas as versões, inclusive a impressa. Mas reproduzo também para que aqueles que não cultivam o hábito de pesquisar em dicionários possam compreender qual é a missão dessas maravilhas. O procurador Cleber Eustáquio Neves postulou o extermínio da acepção de número 5: “(1899) pej. que ou aquele que trapaceia; velhaco, burlador”. E também da 6: “pej. que ou aquele que faz barganha, que é apegado ao dinheiro; agiota, sovina”. O “pej.” colocado por Houaiss, em ambas as acepções, é um aviso de que são significados “pejorativos”. Assim como Houaiss informa ao leitor quando esta ou aquela definição é arcaica ou vem desta ou daquela língua ou refere-se a este ou àquele episódio histórico.

Como quem leu o verbete completo facilmente percebe, um dicionário tem como vocação dar todos os sentidos de uma palavra na língua. Tanto no presente, como no passado. Um dicionário é aquele que narra a trajetória, a evolução e as mudanças de significado de cada palavra ao longo de seu percurso no tempo e no espaço. Um dicionário conta a vida das palavras, com tudo o que a vida tem. Eliminar qualquer sentido de uma palavra é eliminar um pedaço de sua história – fazer de conta que essa história não aconteceu. Os próprios ciganos não deveriam querer que isso acontecesse, porque, ao apagar um sentido estarão eliminando uma das provas de que, em determinado período histórico, foram vistos como “trapaceadores, velhacos e burladores”. Ou “apegados ao dinheiro, agiotas, sovinas”.

Do mesmo modo que os negros não devem querer que seja apagada a escravidão da sua história, assim como os preconceitos e injustiças sociais que dela decorreram e que estão explicitados em algumas acepções do verbete “negro”. É por causa das consequências desses acontecimentos históricos, expressadas também em sentidos pejorativos para a palavra “negro”, que foi construído todo um movimento de resistência que pressionou – e pressiona – por políticas públicas. Mas, principalmente, porque não se apaga a história apagando-se sentidos de palavras. Se fosse assim, seria fácil mudar a vida.

Cabe a pessoas e grupos conferir novos significados às palavras no embate da História – e cabe ao dicionário registrar esses novos significados, sem, porém, eliminar a memória dos outros. A História é carregada por cada um que a viveu ou a herdou, seja um indivíduo ou uma sociedade. A tentativa de esquecimento nunca serve às vítimas – sempre aos algozes. Convenientemente se “esquece” as partes que não interessa lembrar – ou pior, apaga-se. Se teses como a do MPF de Uberlândia vingarem, os dicionários serão reduzidos à metade, assim como as enciclopédias, e não sobrará um livro de história inteiro.

Nas obras de ficção escritas no passado sobre um futuro possível e sempre assustador, porque cerceador de liberdades e dotado de uma humanidade robótica, tudo se passava em regimes totalitários. Como no próprio “Fahrenheit 451”, já citado, e no sempre lembrado “1984”, de George Orwell. Nenhum desses autores imaginou que coisas assim se passariam em uma democracia. Nem nós imaginaríamos que o Ministério Público, uma instituição democrática com reconhecidos serviços prestados em tantas áreas estratégicas para o país, faria algo assim. Esqueceu-se de que, se o totalitarismo é terrível, a ignorância também o é. E a ignorância não escolhe regime político.

O ataque ao Houaiss e à memória das palavras é um caso de ignorância. Dizem – e os números provam – que é dificílimo ser aprovado nos concursos para o Ministério Público Federal. Bem, sugiro que as próximas provas incluam uma pergunta sobre o que é um dicionário. Alguém que vai ocupar um posto tão importante precisa saber o que é um dicionário. E não estou sendo irônica. Gostaria de ter a escolha de ser, mas já ultrapassamos essa possibilidade quando o crime de ignorância foi cometido. E os verbetes “cigano” e “negro” – este último nem sequer é objeto da ação – desapareceram da versão eletrônica do Houaiss.

É preciso prestar bastante atenção em outro aspecto desse caso. O Houaiss foi atingido porque não cumpriu a determinação. Segundo o MPF de Uberlândia, em entrevista à Folha de S. Paulo, foram enviados “diversos ofícios e recomendações” às editoras para que mudassem o verbete “cigano” nos dicionários que editam. De acordo com o órgão, as editoras Globo e Melhoramentos atenderam às recomendações. A Objetiva, que publica o Houaiss, não. A editora teria alegado que não poderia fazer a mudança porque a publicação é editada pelo Instituto Antônio Houaiss e que ela é apenas a detentora dos direitos relativos à publicação.

O que isso significa? Que os sentidos históricos, mas considerados “preconceituosos e racistas” pelo MPF, já foram eliminados de outros dicionários. E só ficamos sabendo dessa afronta à memória da nossa língua porque o Houaiss não foi modificado. Se tivesse sido, nem saberíamos. Teríamos ficado mais pobres – porque todos ficamos mais pobres quando nosso idioma é saqueado de sua história – sem saber. Por não ter cumprido a determinação do MPF, a editora Objetiva e o Instituto Antônio Houaiss poderão ter de pagar uma indenização de R$ 200 mil por danos morais coletivos. A Justiça Federal ainda não se pronunciou. E a esperança é de que esta conheça o significado do verbete “dicionário”.

Na última sexta-feira (2/3), o alerta de que os verbetes “cigano” e “negro” haviam desaparecido da versão eletrônica do Dicionário Houaiss se espalhou pela rede social Twitter. No sábado, a notícia foi registrada pela imprensa. O diretor do Instituto Antonio Houaiss, Mauro Villar, afirmou à Folha de S. Paulo que não partiu dele a ordem para a retirada dos verbetes. Villar garantiu que nunca teria suprimido as definições porque elas são “espelhos que refletem ocorrências” na língua. De quem partiu a ordem, então? E por quê?

O fato é que, até a manhã desta segunda-feira em que publico essa coluna, quem digitasse as palavras “cigano” e “negro” se depararia com o seguinte aviso: “A palavra não foi encontrada”. É curioso que os ciganos, que tantas vezes na História foram perseguidos e exterminados, agora vivam, pela própria vontade, uma espécie de genocídio pela palavra. O verbete – ou tudo o que são e viveram e que está contido na palavra “cigano” – foi apagado da versão eletrônica do Houaiss. Faz pensar, não?

Posso estar sendo muito otimista, mas não acredito que esse absurdo vá perdurar. Imagino que logo os verbetes voltem à versão eletrônica – e cabe a nós denunciar se o conteúdo retornar alterado e empobrecido. Acredito também que as editoras que já retiraram os termos pejorativos dos dicionários que editam voltarão a incluí-los por dignidade e respeito à língua e seus falantes. Assim como espero que o Houaiss siga resistindo na integridade de sua versão impressa e de sua vocação. Tampouco acredito que a Justiça Federal acolha tal sandice. O caso já foi longe demais, para constrangimento de todos.

O perigo maior mora no fato de que agressões desse porte, devagar e silenciosamente, vão impondo a pior de todas as censuras: a autocensura. Quem fizer a revisão periódica do Dicionário Houaiss pode preferir não comprar a briga numa próxima vez. Assim como quem retirou o verbete “cigano” da versão eletrônica já deu um passo além e, por precaução, suprimiu também o verbete “negro”. A autocensura vem se imiscuindo na sociedade brasileira com mais frequência e empenho do que a maioria de nós consegue perceber. E esse tipo de censura, por ser insidiosa, é muito mais difícil de combater.

Em 2010, testemunhamos a tentativa de retirar um livro infantil de Monteiro Lobato das escolas por trazer conteúdo “racista”. Da mesma maneira, um conto de Ignácio de Loyola Brandão e um livro de Monique Revillion foram censurados em escolas de ensino médio porque tinham “sexo” e “violência”, respectivamente, em seus conteúdos. Na ocasião, escrevi sobre esses casos aqui.

Os protestos, especialmente com relação à obra de Monteiro Lobato, foram veementes na época. Mas, conversando com gente do mercado editorial, soube que o pior já começa a acontecer. Em um país que consome tão poucos livros quanto o Brasil, o melhor negócio para as editoras é conseguir incluir uma obra em algum dos programas governamentais de leitura. O governo – federal ou estadual – costuma encomendar uma tiragem alta. Para terem suas obras aprovadas na acirrada disputa desses programas, algumas editoras já começam a “enquadrar” os seus livros no politicamente correto para terem mais chance – ou apenas inscrever peças que se enquadrem, mesmo que exista outra com qualidade maior, mas, por exemplo, com uma cena de sexo.

Faz sentido supor que a equipe que escolhe as obras que serão aprovadas – mesmo que isso não seja pronunciado e, às vezes, seja até individual e inconsciente – vá eleger aquelas cujo conteúdo não possa dar nenhum tipo de incomodação ou polêmica. Para que se arriscar, afinal? Da mesma forma que bibliotecários de escolas, sejam públicas ou privadas, passaram a se policiar ao escolher os livros encomendados para não se indispor com os pais ou mesmo serem afastados pela direção – como já aconteceu no interior de São Paulo.

Por mais que sejamos otimistas com relação aos seres humanos, sabemos que a maioria não vai se lembrar de que seu compromisso maior é com a qualidade da educação e da literatura que promovem. Ao contrário, vai preferir garantir sua tranquilidade, seu emprego e, no caso de algumas editoras, seus lucros. É assim que a censura vai se imiscuindo na vida democrática. E, claro, como possivelmente diria o procurador da República Cleber Eustáquio Neves, “é para o nosso bem”

Os tempos são perigosos. Se nós – todos nós – não ficarmos vigilantes, continuaremos a ter nossa memória e cultura roubadas. Se o chefe do bombeiro Guy Montag, do “Fahrenheit 451”, sonhasse que um dia bastaria um clique na tecla “deletar” para acabar com um mundo inteiro de sentidos, talvez se tornasse o homem mais feliz do mundo. É curioso que atos ocorridos dentro de uma democracia sejam o sonho mais perfeito dos mais truculentos ditadores. Um clique. E nada mais.

(Publicado na Revista Época em 05/03/2012 )

Por que amamos tanto Lisbeth Salander

Ela é a primeira heroína do século 21 – não por ter nascido nele, mas por ser uma síntese das mudanças e inquietações do nosso tempo

É possível que, como acontece com boa parte dos escritores, o sueco Stieg Larsson não apalpasse o tamanho da personagem que criou ao escrever o primeiro volume da série Millennium. Do mesmo modo que morreu sem roçar nem a fama nem os milhões que dela vieram, enfartou sem saber que tinha parido – ele, um homem – a primeira heroína do século 21. Não a primeira porque a obra foi escrita no terceiro milênio – aí seria fácil. Mas a primeira filha desse mundo fluido, sem fronteiras definidas tanto na geografia do planeta como na do corpo dos indivíduos que o habitam. Esse mundo onde ditaduras caem com a ajuda do Twitter e do Facebook. Esse mundo em que as formas são forjadas pela ausência de formas da internet.

Se alguém me pedisse hoje uma indicação de como começar a compreender esse mundo novo, que nos escapa a cada esquina – inclusive porque não tem esquinas –, eu indicaria sem hesitar: conheça Lisbeth Salander. Mais do que qualquer obra acadêmica, ela nos introduz nesse tempo sem tempo. Ou melhor, esfrega-o na nossa cara sem virar o rosto para nos olhar. Como os grandes personagens da literatura, Lisbeth é síntese e antítese de uma época. E um dia, talvez, Lisbeth Salander poderá ser tão universal quanto Hamlet. Mas o “ser ou não ser” de Lisbeth se dá em outros termos – jamais como um dilema, mas como um estar no mundo em si. Para Lisbeth, renascida na internet, “ser e não ser”, ao mesmo tempo, é o único modo possível de existir. E essa é a sua força.

Volto a falar de Lisbeth Salander com a desculpa do filme em cartaz nos cinemas. Desta vez, a versão de Hollywood do primeiro volume da série – “Os homens que não amavam as mulheres”. Queria implicar com essa versão, que botou Daniel Craig, o último 007, a encarnar o personagem do jornalista Mikael Blomkvist, mas não consegui. O roteiro é melhor do que o do filme sueco e David Fincher, o mesmo que fez o excelente “Clube da Luta” e também “Rede Social”, é um diretor capaz de lidar com a violência sem escorregar nos clichês. Mas o filme em cartaz é só uma desculpa para falar do lugar que Lisbeth Salander ocupa não apenas no nosso coração, mas também no nosso fígado.

Se você não teve a chance de ler a trilogia Millennium, não se preocupe. Você é um sortudo, invejado por ainda ter esse prazer à sua espera. Nesse verão, Lisbeth Salander capturou até mesmo meu pai, passado dos 80 anos, que até então era rígido em seus hábitos de só ler livros acadêmicos, ensaios e clássicos em geral. De repente, meu pai se viu abduzido por aquela estranha criatura, uma alienígena no seu mundo, mas dotada de uma humanidade avassaladora. E o segundo volume, que não tinha sido levado para a casa de praia, teve de ser providenciado às pressas. À heroína, então.

Lisbeth Salander é uma hacker. Não uma qualquer, mas uma das melhores. Seu passado – e a pior parte do seu presente – é tudo aquilo que os jovens do movimento mundial Occupy, que protestam contra o sistema financeiro internacional e as instituições que o representam, denunciam que está podre e que não faz mais sentido. Mas as semelhanças, como veremos, acabam aí. Se a internet não houvesse surgido, talvez Lisbeth estivesse condenada a morrer numa clínica psiquiátrica, como tantos, tantas vezes, por obra da velha ordem. Mas a internet surgiu, e com ela uma brecha para Lisbeth escapar e inventar sua frágil resistência.

Lisbeth carrega em si todas as marcas do velho mundo – representado pelo Estado que a condenou e ainda controla a sua vida. Estado este que é encarnado por homens “instituídos” que abusaram – e ainda abusam – de Lisbeth, com a justificativa pública, esta também tão abusada ontem como hoje, do “é para o seu próprio bem”. Por trás deles e do Estado a quem dão face, ocultam-se tanto as perversões individuais quanto os crimes do poder estabelecido que devem permanecer escondidos custe o que custar. E custa muito.

Para dar forma a essas marcas invisíveis, Lisbeth Salander tatua um dragão nas costas. Como descobrimos no desenrolar da história, as expressões físicas das violências que continuam infligindo em Lisbeth acabam sumindo, nos dias. O dragão permanece lá. O dragão resiste, assim como os inúmeros piercings que a perfuram para lembrar que, em cada um deles, foi ela que escolheu se flagelar. O dragão é a marca que Lisbeth escolheu para representar a si mesma – não a que foi imposta a ela. O dragão é a reinvenção possível.

Nossa heroína não acredita em (quase) nada. Nem em (quase) ninguém. Ela não tem ilusões: Lisbeth sabe que está sozinha. Lisbeth foi vítima tanto das utopias que moveram o mundo no século 20 quanto do fim delas. Ela é, de fato, filha da Guerra Fria e dos arranjos que vieram depois, como o leitor vai descobrir nos volumes seguintes. Mas é também filha de si mesma, como tentam ser todos os que vivem nessa época.

Com uma profunda e justificada desconfiança dos homens – a começar pelo próprio pai – e com uma profunda pena das mulheres – a começar pela própria mãe –, Lisbeth Salander cria um homem e uma mulher, um nem homem nem mulher para si. Radical em sua androginia, Lisbeth poderia ser definida como uma bissexual, não fosse esta uma definição superada e que já não dá mais conta da complexidade da sexualidade humana. Lisbeth, também sexualmente, só pode ser definida pela indefinição. Como o mundo que prefere habitar, o da internet, nossa heroína é fluida e sem fronteiras.

No primeiro volume da série, os caminhos de Lisbeth Salander se cruzam com os de Mikael Blomkvist. Quem é Mikael? Um jornalista que investiga e denuncia os poderosos. Um jornalista que acredita em seus ideais, que sacrifica a vida pessoal pela missão de documentar a História – e as histórias – do seu país. Um homem bom. Para isso, Mikael criou, com dois sócios, a revista “Millennium” – uma publicação pequena, independente e combativa. A princípio, parece que é o nome da revista que dá título à trilogia da série criada por Stieg Larsson. Mas acredito que o “Millennium” de Larsson é algo mais profundo – é um ser e estar neste milênio.

No momento em que Lisbeth e Mikael se encontram, ele acabara de perder uma ação na justiça contra um dos homens poderosos – e corruptos – que denunciou. Com a condenação, Mikael perdeu todo o seu patrimônio: não apenas o dinheiro que tinha conseguido guardar em uma vida apertada, como o maior bem de um jornalista decente, de um homem íntegro: sua credibilidade.

Mikael se assemelha muito ao perfil de Stieg Larsson. Como Mikael, o autor da obra foi um dos jornalistas mais importantes da Suécia. Passou a vida denunciando os poderosos – e mais do que todos, aqueles que eram extremistas de direita. Larsson denunciou várias organizações fascistas e racistas enquanto viveu. Por sua luta pelos direitos humanos, recebeu ameaças de morte. Como Mikael, ele mantinha uma pequena, independente e combativa revista, a “Expo”. E foi ao subir os sete lances da escada do prédio da revista, porque o elevador estava quebrado, que ele teve um enfarte e morreu, em novembro de 2004, aos 50 anos. Antes de lançar a trilogia que o tornaria famoso e milionário. E antes de terminar o quarto livro da série – escrevera 200 das 600 páginas previstas – e escrever os outros seis – ele havia sonhado com dez volumes.

Stieg Larsson era como Mikael Blomkvist. Mas, talvez, como todas as pessoas que já viram as tripas do poder legalmente instituído de perto demais e já foram vítimas dos burocratas que dele se alimentam como os vermes que são, aspirasse a ser uma Lisbeth Salander. Acho que Lisbeth Salander foi a vingança de Stieg Larsson. Depois de passar a vida denunciando a podridão – e, veja bem, estamos falando da Suécia –, e se ferrando por isso na vida real, era preciso criar uma vingadora na ficção. Talvez fosse isso ou deixar de acreditar. E, para alguém como Stieg Larsson, deixar de acreditar era morrer. Na ficção, Lisbeth Salander salva Mikael Blomkvist. Me arrisco a pensar que, na vida real, ela também salva Stieg Larsson. E o salvaria por completo, não fosse ele morrer cedo demais. Este, aliás, é sempre o problema com a realidade.

Lisbeth Salander olha para Mikael Blomkvist com algo próximo da ternura. Não são muitos os homens bons na sua vida. Ela o ajuda não por acreditar no que ele acredita, ela o ajuda por acreditar nele. De certo modo, Lisbeth, apesar de sua juventude, é mais vivida e experiente do que Mikael. Como os jovens do Occupy, ela acredita que as instituições estão falidas, que a velha ordem ruiu e que não há como lutar dentro do sistema. Mas, diferentemente deles, Lisbeth não acredita em quase ninguém e, portanto, desconfia das massas. Para Lisbeth, a única saída possível é individual. Ela é um rato resistente, sobrevivendo nos porões e roendo os alicerces da cidade, na mais absoluta solidão existencial. Ela é uma hacker – e o único movimento coletivo possível é aquele onde os indivíduos não sentem o cheiro da pele um do outro, cada um seguro na sua toca.

E essa é uma face importante de Lisbeth: a não face. Ela revela nossa época também por uma não autoria: não é essa, afinal, uma das grandes questões colocadas pela internet e um dos grandes embates travados hoje em torno dos direitos autorais? Enquanto há um movimento em que indivíduos fazem qualquer coisa, até comer baratas ou se submeter a 50 cirurgias plásticas para se diferenciar, ter seus minutos de fama e conquistar uma autoria no mundo, ainda que efêmera, Lisbeth mergulha no anonimato. Renascida na internet, ela é reconhecida apenas por seus pares, outros hackers, mas não com um nome – e sim com um codinome. Lisbeth, ao contrário dos homens e mulheres da geração de Mikael Blomkvist, não se interessa por construir um nome. Sua salvação e sua liberdade estão no anonimato. Lisbeth realiza feitos fantásticos, mas não reivindica nem autoria, nem créditos.

A outra face essencial de Lisbeth é o não pertencimento. Estrangeira em um mundo sem fronteiras, o conceito de nação não faz parte do planeta dela. Lisbeth é mais familiarizada – e a escolha do termo é proposital – com o hacker sem nome de lugar nenhum do que com o vizinho de porta. Lisbeth não tem chaves – tem senhas. Estar em Estocolmo ou em Pequim, para ela tanto faz. Ela não é estrangeira por pertencer a um outro país, ela é estrangeira como um ser em si. Ela é estrangeira diante do outro – ou de quase todos os outros – porque o olhar do outro para ela não faz a menor diferença. Ela não reconhece esse olhar, estrangeira que é frente à sua própria espécie. Ser estrangeira, para Lisbeth, é parte da nova condição humana.

Lisbeth Salander é andrógina, miúda e parece anoréxica – “é metabólico, não engordo”, diz no filme americano. Come junk food, fuma um cigarro atrás do outro, circula pela noite underground. Parece frágil, mas é forte. E se vinga. É marcada – e faz marcas. Sem confiar na lei e no Estado, faz justiça na ilegalidade e nas margens. Para ela, esses limites não existem, o mundo não se coloca mais nesses termos. Todas essas convenções, no olhar e na experiência de Lisbeth Salander, já apodreceram. Em sua moto pelas estradas – ou escondida sob o seu capuz – ela talvez seja a nova mulher, aquela que se recusa a ser vítima, mas que jamais queimará sutiãs em praça pública. Lisbeth Salander é a nova mulher na medida em que também é o novo homem.

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P.S. – Nesta segunda-feira, faz três meses e 22 dias que Junior José Guerra foge pelo país por ter denunciado a máfia do ipê no oeste do Pará. Até hoje não recebeu proteção do Estado. A história de Junior foi tema de reportagem na coluna “A Amazônia segundo um morto e um fugitivo”. Nesta semana, o caso ganhou repercussão internacional, em matéria de Tom Phillips, no jornal britânico The Guardian, com o título: “Defensores da floresta enfrentam a morte ou o exílio”. A reportagem pode ser lida em inglês ou em português.

(Publicado na Revista Época em 13/02/2012)

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