Russomanno e a vulgaridade do desejo

O “patrulheiro do consumidor” lidera em São Paulo porque, se a política é de mercado, ele pode convencer como mercadoria

Como se define um povo? De várias maneiras. A principal, me parece, é pela qualidade do seu desejo. É por este viés que também podemos compreender o fenômeno Celso Russomanno (PRB). Como um homem que se tornou conhecido por bolinar mulheres na cobertura de bailes de carnaval e como “patrulheiro do consumidor” em programa da TV Record, apoiado pela Igreja Universal do Reino de Deus, torna-se líder de intenções de votos na maior cidade do Brasil?

Acredito que parte da resposta possa estar no desejo. Na vulgaridade do nosso desejo. No que consiste o desejo das diferentes camadas da população, seja o topo da pirâmide, a classe média tradicional, o que tem sido chamado de “nova classe média” ou classe C. Para além das diferenças, que são muitas, há algo que tem igualado a socialite que faz compras no Shopping Cidade Jardim, um dos mais luxuosos de São Paulo, ao jovem das periferias paulistanas carentes de serviços públicos de qualidade. E o que é? A identificação como consumidor, acima de todas as maneiras de olhar para si mesmo – e para o outro. É para consumir que boa parte da população não só de São Paulo quanto do Brasil urbano tem conduzido o movimento da vida – e se consumido neste movimento.

Dois textos recentes são especialmente reveladores para nos ajudar a compreender o Brasil atual.

Em sua coluna de 4/9, na Folha de S. Paulo, o filósofo Vladimir Safatle faz uma análise interessantíssima do caso Russomanno. Ele parte do fato de que a ascensão econômica de larga parcela da população no lulismo se dá principalmente pela ampliação das possibilidades de consumo – e não pela ampliação do acesso a serviços sociais de qualidade. Logo, para essa camada da população, os direitos da cidadania são decodificados como direitos do consumidor. Nada mais lógico para representá-la e defender seus interesses do que um prefeito que seja um pretenso “patrulheiro do consumidor”, bancado por uma das igrejas líderes da “teologia da prosperidade”. Russomanno seria, na definição de Safatle, “o filho bastardo do lulismo com o populismo conservador”.

Na ótima reportagem intitulada “O Funk da Ostentação em São Paulo”, o repórter de Época Rafael de Pino conta como se dá a apropriação do funk carioca nas periferias de São Paulo. Preste atenção na abertura da matéria, que reproduzo aqui:

“‘Vida é ter um Hyundai e uma Hornet/10 mil pra gastar, Rolex e Juliet’, canta o paulista MC Danado no funk ‘Top do momento’. Para quem não entendeu, ele fala, na ordem, de um carro, uma moto, dinheiro, um relógio e um par de óculos – um refrão avaliado em R$ 400 mil. Na plateia do show na Zona Leste, região que concentra bairros populares de São Paulo, os versos são repetidos aos berros pelas quase 1.000 pessoas presentes, que pagaram ingressos a R$ 30. O público da sexta-feira é jovem, etnicamente diverso e poderia ser descrito em três palavras: ‘classe C emergente’.”

MC Danado, como nos conta Rafael de Pino, antes de se tornar um astro, trabalhou como office-boy e auxiliar de escritório. Ele diz o seguinte: “Gosto da ostentação, gosto de ostentar. Parte do que canto, eu tenho. Outra parte, desejo e vou conquistar com meu trabalho”. Vale a pena conferir os refrões de outros funkeiros da ostentação, como MC Guimê: “Ta-pa-ta-pa tá patrão, ta-pa-ta-pa tá patrão/Tênis Nike Shox, Bermuda da Oakley, Olha a situação”. Ou MCs BackDi e Bio-G3: “É classe A, é classe A/quando o bonde passa nas pistas geral, tá ligado que é ruim de aturar/É classe A, é classe A/Nós tem carro, tem moto e dinheiro”.

MC Menor, outra estrela ascendente, explica: “Enxergo o mundo como meu público enxerga. Nasci na comunidade, sei que lá ninguém quer cantar pobreza e miséria”. Não por acaso, é em São Paulo que o funk se torna uma expressão do desejo de consumo da juventude emergente das periferias.

Ao ascender economicamente, a “nova classe média” parece se apropriar da visão de mundo da classe média tradicional – talvez com mais pragmatismo e certamente com muito mais pressa. Em vez de lutar coletivamente por escola pública de qualidade, saúde pública de qualidade, transporte público de qualidade, o caminho é individual, via consumo: escola privada e plano de saúde privado, mesmo que sem qualidade, e carro para se livrar do ônibus, mesmo que fique parado no trânsito. O núcleo a partir do qual são eleitas as prioridades não é a comunidade, mas a família.

Se no passado recente o rap arrastou multidões nas periferias de São Paulo com um discurso fortemente ideológico contra o mercado, hoje o espaço é parcialmente ocupado pelo “funk da ostentação” e seu discurso de que uma vida só ganha sentido no consumo. As marcas de uma vida não se dão pela experiência, mas se adquirem pela compra: as marcas da vida são grifes de luxo, segundo nos informam as letras do funk paulista. Alguns dos grandes nomes do rap engajado do passado também podem ser vistos hoje anunciando produtos na TV com desembaraço – o que também quer dizer alguma coisa.

É importante observar, porém, que aquilo que eu tenho chamado aqui de vulgaridade do desejo não é uma novidade trazida pela “nova classe média”. Ao contrário, a influência tem sinal trocado. O que os emergentes da classe C tem feito é se apropriar da vulgaridade do desejo das elites. O funk da ostentação de MC Danado, ao recitar grifes e fazer uma ode ao consumo, pode estar na boca de qualquer socialite que possamos entrevistar agora no corredor de um dos shoppings de luxo.

Neste contexto, a vulgaridade do desejo tem em Russomanno sua expressão mais bem acabada na política. Assim como na religião encontra expressão em parte das igrejas evangélicas neopentecostais e sua teologia do compre agora para ganhar agora. Nesta eleição de São Paulo, testemunhamos uma aliança e uma síntese da nova configuração do Brasil – possivelmente menos transitória do que alguns acreditam ser.

Russomanno não inventou a vulgaridade do desejo – apenas a explicitou e tratou de encarná-la. Seus oponentes têm uma biografia muito mais relevante, assim como partidos mais sólidos. Mas parecem ter perdido essa vantagem junto a setores da população no momento em que se renderem à lógica do consumo e viraram também eles um produto eleitoral. Pela adesão à política de mercado, perderam a chance de representar uma alternativa, inclusive moral.

José Serra (PSDB) tem feito quase qualquer coisa para conquistar o apoio das igrejas na tentativa de vencer as disputas eleitorais. Basta lembrar como um dos exemplos mais contundentes o falso debate do aborto estimulado por ele na última eleição presidencial, na ânsia de ganhar o voto religioso. E Fernando Haddad (PT), que se pretende “novo”, antes do início oficial da campanha já tinha abraçado o velho Maluf. Para quê? Para ter mais tempo de TV – o lugar por excelência no qual os produtos são “vendidos” aos consumidores.

Quem transformou eleitores em consumidores de produtos eleitorais não foi Celso Russomanno. Ele apenas aproveitou-se da conjuntura propícia – e não perdeu a oportunidade ao perceber que os outros reduziram-se a ponto de jogar no seu campo. Afinal, de mercadoria Russomanno entende.

É bastante interessante que entre os mais perplexos diante deste novo Brasil, representado pelo fenômeno Russomanno, estejam o PT e a Igreja Católica. Ambos, porém, estão no cerne da mudança que agora se desenha com maior clareza.

A “era” Lula marcou e segue marcando sua atuação também pelo esvaziamento dos movimentos sociais – e da saída coletiva, construída e conquistada que foi decisiva para a formação do PT. Também estimulou sem qualquer prurido o personalismo populista na figura do líder/pai. Assim como na campanha que elegeu Dilma Rousseff, a sucessora de Lula no governo foi apresentada como filha do pai/mãe do povo. Em nenhum momento, nem o PT nem Lula pareceram se importar de verdade com o fato de que os numerosos militantes que no passado ocupavam os espaços públicos com suas bandeiras e seu idealismo foram gradualmente sendo substituídos por cabos eleitorais pagos, em mais uma adesão à lógica de mercado.

A cúpula da Igreja Católica no Brasil, por sua vez, atendendo às diretrizes do Vaticano, esforçou-se nas últimas décadas para esvaziar movimentos como a Teologia da Libertação, que representavam uma inserção do evangelho na política pelo caminho coletivo e pela formação de base. Esforçou-se com tanto afinco que perseguiu alguns de seus representantes mais importantes – e marginalizou outros. Mas parece que nem o PT de Lula nem a CNBB têm compreendido que o fenômeno Russomanno também foi gerado no ventre de suas guinadas conservadoras – e, no caso do PT, de suas alianças pragmáticas e da sua atuação para transformar a política num balcão de negócios. Sem esquecer, claro, que o PRB de Russomanno é da base de apoio do governo Dilma.

Quando a presidente do país dá o Ministério da Cultura para Marta Suplicy, para que ela suba no palanque do candidato do PT à prefeitura de São Paulo, por mais que os protagonistas aleguem apenas coincidência, é só política de mercado que enxergamos. E tudo piora quando Marta invoca uma trindade político-religiosa no palanque de Haddad: “O trio é capaz de alavancar (a candidatura de Haddad): a presidente Dilma, o Lula e eu. Eu, porque tenho o apelo de quem fez; eu sou a pessoa que faz. O Lula porque é um ‘deus’ e a presidente Dilma porque é bem avaliada. Então, com a entrada desse trio, vai dar certo”.

Diante do que está aí, feito e dito, por que o eleitor vai achar que Russomanno é pior? Ou que as alternativas a ele são de fato diferentes?

O mais importante não é atacar Celso Russomanno, mas compreender o que ele revela do Brasil atual. O fenômeno Russomanno pode ter algo a nos ensinar. Quem sabe sua liderança nas pesquisas eleitorais possa mostrar aos futuros candidatos que ética e coerência na política valem a pena se quiserem se tornar alternativas reais para uma parcela do eleitorado. Ou que se nivelar por baixo em nome dos fins pode ser um tiro no pé – tanto quanto se aliar com qualquer um. E talvez o fenômeno Russomanno possa ensinar aos futuros governantes que um povo se define pela qualidade do seu desejo. E desejo só se qualifica com educação.

Sempre se pode lamentar que o eleitor deseje o que deseja, mas o eleitor – em geral subestimado – sabe o que quer. Se a maioria acredita que tudo o que dá sentido a uma vida humana pode ser comprado num shopping, então São Paulo – e o Brasil – merecem Celso Russomanno.

(Publicado na Revista Época em 17/09/2012)

 

Doutor Advogado e Doutor Médico: até quando?

Por que o uso da palavra “doutor” antes do nome de advogados e médicos ainda persiste entre nós? E o que ela revela do Brasil?

Sei muito bem que a língua, como coisa viva que é, só muda quando mudam as pessoas, as relações entre elas e a forma como lidam com o mundo. Poucas expressões humanas são tão avessas a imposições por decreto como a língua. Tão indomável que até mesmo nós, mais vezes do que gostaríamos, acabamos deixando escapar palavras que faríamos de tudo para recolher no segundo seguinte. E talvez mais vezes ainda pretendêssemos usar determinado sujeito, verbo, substantivo ou adjetivo e usamos outro bem diferente, que revela muito mais de nossas intenções e sentimentos do que desejaríamos. Afinal, a psicanálise foi construída com os tijolos de nossos atos falhos. Exerço, porém, um pequeno ato quixotesco no meu uso pessoal da língua: esforço-me para jamais usar a palavra “doutor” antes do nome de um médico ou de um advogado.

Travo minha pequena batalha com a consciência de que a língua nada tem de inocente. Se usamos as palavras para embates profundos no campo das ideias, é também na própria escolha delas, no corpo das palavras em si, que se expressam relações de poder, de abuso e de submissão. Cada vocábulo de um idioma carrega uma teia de sentidos que vai se alterando ao longo da História, alterando-se no próprio fazer-se do homem na História. E, no meu modo de ver o mundo, “doutor” é uma praga persistente que fala muito sobre o Brasil. Como toda palavra, algumas mais do que outras, “doutor” desvela muito do que somos – e é preciso estranhá-lo para conseguirmos escutar o que diz.

Assim, minha recusa ao “doutor” é um ato político. Um ato de resistência cotidiana, exercido de forma solitária na esperança de que um dia os bons dicionários digam algo assim, ao final das várias acepções do verbete “doutor”: “arcaísmo: no passado, era usado pelos mais pobres para tratar os mais ricos e também para marcar a superioridade de médicos e advogados, mas, com a queda da desigualdade socioeconômica e a ampliação dos direitos do cidadão, essa acepção caiu em desuso”.

Em minhas aspirações, o sentido da palavra perderia sua força não por proibição, o que seria nada além de um ato tão inútil como arbitrário, na qual às vezes resvalam alguns legisladores, mas porque o Brasil mudou. A língua, obviamente, só muda quando muda a complexa realidade que ela expressa. Só muda quando mudamos nós.
Historicamente, o “doutor” se entranhou na sociedade brasileira como uma forma de tratar os superiores na hierarquia socioeconômica – e também como expressão de racismo. Ou como a forma de os mais pobres tratarem os mais ricos, de os que não puderam estudar tratarem os que puderam, dos que nunca tiveram privilégios tratarem aqueles que sempre os tiveram. O “doutor” não se estabeleceu na língua portuguesa como uma palavra inocente, mas como um fosso, ao expressar no idioma uma diferença vivida na concretude do cotidiano que deveria ter nos envergonhado desde sempre.

Lembro-me de, em 1999, entrevistar Adail José da Silva, um carregador de malas do Aeroporto Salgado Filho, em Porto Alegre, para a coluna semanal de reportagem que eu mantinha aos sábados no jornal Zero Hora, intitulada “A Vida Que Ninguém Vê”. Um trecho de nosso diálogo foi este:

– E como os fregueses o chamam?

– Os doutor me chamam assim, ó: “Ô, negão!” Eu acho até que é carinhoso.

– O senhor chama eles de doutor?

– Pra mim todo mundo é doutor. Pisou no aeroporto é doutor. É ó, doutor, como vai, doutor, é pra já, doutor….

– É esse o segredo do serviço?

– Tem que ter humildade. Não adianta ser arrogante. Porque, se eu fosse um cara importante, não ia tá carregando a mala dos outros, né? Sou pé de chinelo. Então, tenho que me botar no meu lugar.

A forma como Adail via o mundo e o seu lugar no mundo – a partir da forma como os outros viam tanto ele quanto seu lugar no mundo – contam-nos séculos de História do Brasil. Penso, porém, que temos avançado nas últimas décadas – e especialmente nessa última. O “doutor” usado pelo porteiro para tratar o condômino, pela empregada doméstica para tratar o patrão, pelo engraxate para tratar o cliente, pelo negro para tratar o branco não desapareceu – mas pelo menos está arrefecendo.

Se alguém, especialmente nas grandes cidades, chamar hoje o outro de “doutor”, é legítimo desconfiar de que o interlocutor está brincando ou ironizando, porque parte das pessoas já tem noção da camada de ridículo que a forma de tratamento adquiriu ao longo dos anos. Essa mudança, é importante assinalar, reflete também a mudança de um país no qual o presidente mais popular da história recente é chamado pelo nome/apelido. Essa contribuição – mais sutil, mais subjetiva, mais simbólica – que se dá explicitamente pelo nome, contida na eleição de Lula, ainda merece um olhar mais atento, independentemente das críticas que se possa fazer ao ex-presidente e seu legado.

Se o “doutor” genérico, usado para tratar os mais ricos, está perdendo seu prazo de validade, o “doutor” que anuncia médicos e advogados parece se manter tão vigoroso e atual quanto sempre. Por quê? Com tantas mudanças na sociedade brasileira, refletidas também no cinema e na literatura, não era de se esperar um declínio também deste doutor?

Ao pesquisar o uso do “doutor” para escrever esta coluna, deparei-me com artigos de advogados defendendo que, pelo menos com relação à sua própria categoria, o uso do “doutor” seguia legítimo e referendado na lei e na tradição. O principal argumento apresentado para defender essa tese estaria num alvará régio no qual D. Maria, de Portugal, mais conhecida como “a louca”, teria outorgado o título de “doutor” aos advogados. Mais tarde, em 1827, o título de “doutor” teria sido assegurado aos bacharéis de Direito por um decreto de Dom Pedro I, ao criar os primeiros cursos de Ciências Jurídicas e Sociais no Brasil. Como o decreto imperial jamais teria sido revogado, ser “doutor” seria parte do “direito” dos advogados. E o título teria sido “naturalmente” estendido para os médicos em décadas posteriores.

Há, porém, controvérsias. Em consulta à própria fonte, o artigo 9 do decreto de D. Pedro I diz o seguinte: “Os que frequentarem os cinco anos de qualquer dos Cursos, com aprovação, conseguirão o grau de Bacharéis formados. Haverá também o grau de Doutor, que será conferido àqueles que se habilitarem com os requisitos que se especificarem nos Estatutos, que devem formar-se, e só os que o obtiverem, poderão ser escolhidos para Lentes”. Tomei a liberdade de atualizar a ortografia, mas o texto original pode ser conferido aqui. “Lente” seria o equivalente hoje à livre-docente.

Mesmo que Dom Pedro I tivesse concedido a bacharéis de Direito o título de “doutor”, o que me causa espanto é o mesmo que, para alguns membros do Direito, garantiria a legitimidade do título: como é que um decreto do Império sobreviveria não só à própria queda do próprio, mas também a tudo o que veio depois?

O fato é que o título de “doutor”, com ou sem decreto imperial, permanece em vigor na vida do país. Existe não por decreto, mas enraizado na vida vivida, o que torna tudo mais sério. A resposta para a atualidade do “doutor” pode estar na evidência de que, se a sociedade brasileira mudou bastante, também mudou pouco. A resposta pode ser encontrada na enorme desigualdade que persiste até hoje. E na forma como essas relações desiguais moldam a vida cotidiana.

É no dia a dia das delegacias de polícia, dos corredores do Fórum, dos pequenos julgamentos que o “doutor” se impõe com todo o seu poder sobre o cidadão “comum”. Como repórter, assisti à humilhação e ao desamparo tanto das vítimas quanto dos suspeitos mais pobres à mercê desses doutores, no qual o título era uma expressão importante da desigualdade no acesso à lei. No início, ficava estarrecida com o tratamento usado por delegados, advogados, promotores e juízes, falando de si e entre si como “doutor fulano” e “doutor beltrano”. Será que não percebem o quanto se tornam patéticos ao fazer isso?, pensava. Aos poucos, percebi a minha ingenuidade. O “doutor”, nesses espaços, tinha uma função fundamental: a de garantir o reconhecimento entre os pares e assegurar a submissão daqueles que precisavam da Justiça e rapidamente compreendiam que a Justiça ali era encarnada e, mais do que isso, era pessoal, no amplo sentido do termo.

No caso dos médicos, a atualidade e a persistência do título de “doutor” precisam ser compreendidas no contexto de uma sociedade patologizada, na qual as pessoas se definem em grande parte por seu diagnóstico ou por suas patologias. Hoje, são os médicos que dizem o que cada um de nós é: depressivo, hiperativo, bipolar, obeso, anoréxico, bulímico, cardíaco, impotente, etc. Do mesmo modo, numa época histórica em que juventude e potência se tornaram valores – e é o corpo que expressa ambas – faz todo sentido que o poder médico seja enorme. É o médico, como manipulador das drogas legais e das intervenções cirúrgicas, que supostamente pode ampliar tanto potência quanto juventude. E, de novo supostamente, deter o controle sobre a longevidade e a morte. A ponto de alguns profissionais terem começado a defender que a velhice é uma “doença” que poderá ser eliminada com o avanço tecnológico.

O “doutor” médico e o “doutor” advogado, juiz, promotor, delegado têm cada um suas causas e particularidades na história das mentalidades e dos costumes. Em comum, o doutor médico e o doutor advogado, juiz, promotor, delegado têm algo significativo: a autoridade sobre os corpos. Um pela lei, o outro pela medicina, eles normatizam a vida de todos os outros. Não apenas como representantes de um poder que pertence à instituição e não a eles, mas que a transcende para encarnar na própria pessoa que usa o título.

Se olharmos a partir das relações de mercado e de consumo, a medicina e o direito são os únicos espaços em que o cliente, ao entrar pela porta do escritório ou do consultório, em geral já está automaticamente numa posição de submissão. Em ambos os casos, o cliente não tem razão, nem sabe o que é melhor para ele. Seja como vítima de uma violação da lei ou como autor de uma violação da lei, o cliente é sujeito passivo diante do advogado, promotor, juiz, delegado. E, como “paciente” diante do médico, como abordei na coluna anterior, deixa de ser pessoa para tornar-se objeto de intervenção.

Num país no qual o acesso à Justiça e o acesso à Saúde são deficientes, como o Brasil, é previsível que tanto o título de “doutor” permaneça atual e vigoroso quanto o que ele representa também como viés de classe. Apesar dos avanços e da própria Constituição, tanto o acesso à Justiça quanto o acesso à Saúde permanecem, na prática, como privilégios dos mais ricos. As fragilidades do SUS, de um lado, e o número insuficiente de defensores públicos de outro são expressões dessa desigualdade. Quando o direito de acesso tanto a um quanto a outro não é assegurado, a situação de desamparo se estabelece, assim como a subordinação do cidadão àquele que pode garantir – ou retirar – tanto um quanto outro no cotidiano. Sem contar que a cidadania ainda é um conceito mais teórico do que concreto na vida brasileira.

Infelizmente, a maioria dos “doutores” médicos e dos “doutores” advogados, juízes, promotores, delegados etc estimulam e até exigem o título no dia a dia. E talvez o exemplo público mais contundente seja o do juiz de Niterói (RJ) que, em 2004, entrou na Justiça para exigir que os empregados do condomínio onde vivia o chamassem de “doutor”. Como consta nos autos, diante da sua exigência, o zelador retrucava: “Fala sério….” Não conheço em profundidade os fatos que motivaram as desavenças no condomínio – mas é muito significativo que, como solução, o juiz tenha buscado a Justiça para exigir um tratamento que começava a lhe faltar no território da vida cotidiana.

É importante reconhecer que há uma pequena parcela de médicos e advogados, juízes, promotores, delegados etc que tem se esforçado para eliminar essa distorção. Estes tratam de avisar logo que devem ser chamados pelo nome. Ou por senhor ou senhora, caso o interlocutor prefira a formalidade – ou o contexto a exija. Sabem que essa mudança tem grande força simbólica na luta por um país mais igualitário e pela ampliação da cidadania e dos direitos. A estes, meu respeito.

Resta ainda o “doutor” como título acadêmico, conquistado por aqueles que fizeram doutorado nas mais diversas áreas. No Brasil, em geral isso significa, entre o mestrado e o doutorado, cerca de seis anos de estudo além da graduação. Para se doutorar, é preciso escrever uma tese e defendê-la diante de uma banca. Neste caso, o título é – ou deveria ser – resultado de muito estudo e da produção de conhecimento em sua área de atuação. É também requisito para uma carreira acadêmica bem sucedida – e, em muitas universidades, uma exigência para se candidatar ao cargo de professor.

Em geral, o título só é citado nas comunicações por escrito no âmbito acadêmico e nos órgãos de financiamento de pesquisas, no currículo e na publicação de artigos em revistas científicas e/ou especializadas. Em geral, nenhum destes doutores é assim chamado na vida cotidiana, seja na sala de aula ou na padaria. E, pelo menos os que eu conheço, caso o fossem, oscilariam entre o completo constrangimento e um riso descontrolado. Não são estes, com certeza, os doutores que alimentam também na expressão simbólica a abissal desigualdade da sociedade brasileira.

Estou bem longe de esgotar o assunto aqui nesta coluna. Faço apenas uma provocação para que, pelo menos, comecemos a estranhar o que parece soar tão natural, eterno e imutável – mas é resultado do processo histórico e de nossa atuação nele. Estranhar é o verbo que precede o gesto de mudança. Infelizmente, suspeito de que “doutor fulano” e “doutor beltrano” terão ainda uma longa vida entre nós. Quando partirem desta para o nunca mais, será demasiado tarde. Porque já é demasiado tarde – sempre foi.

(Publicado na Revista Época em 10/09/2012)

 

Você quer ser pessoa ou paciente?

A resolução do Conselho Federal de Medicina nos devolve uma decisão que nunca poderia ter deixado de ser nossa: a escolha de como viver o fim da nossa vida. Como nos alienamos tanto a ponto de permitirmos que chegasse a esse ponto?

É um avanço profundo a resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM), divulgada na semana que passou, que devolve ao paciente a decisão de escolher como quer viver o fim da sua vida. Para relembrar: quem estiver com uma doença crônica ou degenerativa pode escolher se quer ter sua vida prolongada, à custa do que tem sido chamado de “tratamentos fúteis”, ou quer que respeitem seu tempo de morrer, beneficiado pelos “cuidados paliativos”. Tratamentos fúteis são todos aqueles que apenas adiarão a morte, mas sem dar qualidade para a vida – aumentando e estendendo o sofrimento. Procedimentos como submeter alguém a uma cirurgia quando já não há como curar a doença, ressuscitar quem está em estado terminal e teve parada cardíaca, ligar alguém a aparelhos quando tudo o que se conseguirá é uma existência vegetativa. Cuidados paliativos são tanto físicos quanto psíquicos e envolvem não só médicos, mas uma equipe multidisciplinar. Os profissionais estão lá para amenizar a dor, mas sem espichar nem abreviar a vida. A ideia é respeitar o tempo de morrer e usar o conhecimento científico e também de outras áreas para que se possa viver da melhor maneira possível até o fim. A qualquer momento, qualquer um de nós pode escrever e até registrar em cartório um documento, que pode ser chamado de “testamento vital” ou de “diretiva antecipada de vontade”, no qual determinamos o que permitimos – e o que não permitimos – no caso de sermos levados a um hospital ou precisarmos de cuidados médicos.

Passei a preparar meu testamento vital desde que acompanhei as duas grandes possibilidades do fim de uma vida, anos atrás, quando ela se dá no palco de um hospital. E percebi que, para mim, uma amante do cinema e da literatura de terror nas obras de ficção, não haveria terror maior na vida real do que morrer numa UTI, amarrada a fios, entubada e sozinha. Não mais uma mulher, uma vida em curso, mas um objeto de intervenção médica. Quero morrer sem dor física, ou pelo menos com o mínimo de dor possível, de preferência na minha casa, rodeada por aqueles que eu amo. E espero conseguir viver da melhor forma possível até o fim – o que inclui viver a minha morte com dignidade.

Se a resolução do Conselho Federal de Medicina (leia aqui) é uma boa notícia, vale a pena pensar também sobre o que ela nos diz para além do texto. Uma resolução do CFM não é uma lei, mas uma regulamentação da prática médica feita pelo órgão de classe, responsável por fiscalizar e normatizar o exercício da medicina no país. É importante, sem dúvida que é, mas há muito ainda a lutar para que recuperemos nosso direito de escolha. E podemos começar com a seguinte questão: em que momento delegamos aos médicos a decisão sobre o nosso morrer? Que é, em última instância, uma decisão sobre o nosso viver?

Dando alguns passos para trás, para enxergarmos o quadro maior, poderíamos pensar no quanto é curioso ser preciso uma resolução do CFM para dizer que é aquele que vive e aquele que morre quem tem o direito de escolher sobre a sua vida e a sua morte. Como alguém, nós ou os médicos, fomos capazes de pensar que essa decisão pudesse pertencer a outra pessoa? A que ponto chegamos para que seja preciso que os médicos nos devolvam algo que sempre foi nosso? Como foi que nos alienamos do processo da vida, tanto que aceitamos ser transformados em sujeitos passivos de intervenção e de decisão médica num momento tão crucial de nossa existência?

O fato é que, desde o século XX, a morte tornou-se marginal na nossa sociedade, algo a ser escondido dentro dos hospitais, em ambiente asséptico. E o morrer tornou-se um ato quase obsceno, que nos lembra de nossos limites num momento histórico obcecado pela juventude e pela potência. Nossa crescente impossibilidade de lidar com a certeza da morte produziu pelo menos duas distorções: médicos que abusam do poder e extrapolam limites e pessoas infantilizadas no momento de tomar uma das decisões mais importantes da vida.

Reparem que escolho a palavra “pessoas” – e não “pacientes”, nosso nome a partir do momento em que entramos num hospital, clínica ou consultório médico. Como pessoas, temos uma história, um percurso, uma teia de sentidos. Como pacientes, como a etimologia da palavra nos prova, tanto quanto a prática cotidiana, somos esvaziados de nossos sentidos e de nossa história para nos tornarmos um sujeito passivo. A palavra “paciente” vem do latim patientia, que significa “virtude que consiste em suportar os sofrimentos sem queixa”.

Somos “pacientes” com relação a um outro, que tem poder sobre nós. E não é obra do acaso que, tanto na posição de doentes quanto na de velhos, médicos, enfermeiros, auxiliares de enfermagem, assistentes sociais, fisioterapeutas etc seguidamente nos tratam por diminutivos, como se fôssemos crianças pequenas. É difícil quem não tenha vivido ou testemunhado esse tratamento num hospital, clínica ou consultório. Parece apenas trivial, alguns consideram até carinhoso, outros vagamente irritante, mas a escolha das palavras desvela nosso lugar – e também um processo histórico e um embate no campo da ética.

Na prática, a relação com a doença e com a morte é vivida por boa parte dos médicos, acredito que a maioria, como uma guerra. Perder um “paciente” é decodificado como derrota. Logo, o médico passa a acreditar que tudo é permitido para prolongar a vida e seguir no combate. Nessa lógica, pessoas além da possibilidade de cura têm sido submetidas a tratamentos invasivos e dolorosos que apenas encolhem a qualidade dos seus dias. Muitas delas são impedidas de viver o fim da sua vida da melhor forma que lhes é possível, perto das pessoas que fazem parte da sua história e dos objetos que a contam. E gente demais tem morrido sozinha e aterrorizada numa UTI.

Se o médico vê a si mesmo como um comandante em armadura branca, é ele quem tomará as decisões. De um “paciente”, como de um soldado, espera-se apenas que colabore, cumpra ordens. O bom “paciente” é aquele que aceita de bom grado as determinações médicas, mantendo-se no seu lugar de passividade diante daquele que detém o poder e sabe o que é melhor para ele – e qual é a melhor estratégia para vencer cada combate. Recuar parece ser mais difícil para alguns médicos do que foi para muitos dos grandes generais da História.

Mas o médico é apenas um dos protagonistas desse enredo – não o único. Tornou-se o que é não apenas porque o poder é tremendamente sedutor, mas porque permitimos que exerça esse poder. Como todos nós, os profissionais da saúde fazem parte dessa sociedade e desse momento histórico, no qual o corpo de uma pessoa doente é visto como um campo de batalha. Parte de nós espera de um médico que, diante da nossa fragilidade, diga: “Não se preocupe, vamos lutar com todas as armas da medicina”. Em troca, ele só espera nossa completa obediência. Muitos não têm sequer paciência para explicar a estratégia e os danos colaterais do tratamento – e há aqueles que se ofendem quando questionados. Do mesmo modo que não há enterro de pessoas que viveram uma doença prolongada, como câncer, em que familiares e amigos não comentem diante do caixão: “Foi um guerreiro. Lutou até o fim”! A escolha das palavras é, mais uma vez, reveladora. Todos nós colaboramos e cumprimos nosso papel nesse jogo de ilusões. Assim, todos somos responsáveis pelos abusos que aí estão.

Desde os anos 60 do século passado vozes dissonantes começaram a ser ouvidas, questionando a mentalidade reinante. Afinal, muitas vezes a maior coragem é reconhecer os limites e parar de lutar. Ou, dito de outra maneira, aceitar o fim da vida e tentar viver da melhor maneira possível os dias que restam – o que certamente não inclui tratamentos dolorosos e invasivos, ampliados pelo avanço tecnológico. Se você tem pouco tempo de vida, vai querer gastá-lo em hospitais, amarrado a fios ou fazendo exames e cirurgias, com estranhos que o tocam com luvas? É possível que não.

Já escrevi esta frase aqui, mas vou repeti-la mais uma vez: “A morte não é o contrário da vida, a morte é o contrário do nascimento. A vida não tem contrários”. Ou seja: morrer é parte da vida, não seu oposto. Precisamos aprender a viver também a nossa morte, por mais difícil que seja – e, com certeza, é muito. De certo modo, o morrer será a última grande novidade na vida de todos. Querendo ou não.

Como a morte por doença e por velhice, a morte da maioria, tem sido calada entre nós, temos perdido uma grande chance de pensar sobre a vida. E como tudo que é silenciado e reprimido, também a morte tornou-se apenas horror. Assim, nada mais prático do que delegar a tarefa de decidir sobre esse momento crucial ao médico. O medo é tanto que preferimos abdicar da nossa autonomia e nos colocar na mão de alguém que espera ser chamado de “doutor” – outra palavra que no Brasil diz muito sobre as relações de classe e de poder, tanto nas leis quanto na medicina. Diz tanto sobre o lugar do médico quanto sobre o nosso lugar diante dele. Se os médicos acreditam ter controle absoluto sobre as decisões da nossa vida e da nossa morte, a ponto de fazerem cirurgias em nosso corpo até mesmo contra a nossa vontade, é só porque podem contar com a nossa cumplicidade. E a tem porque nos é conveniente.

O que o Conselho Federal de Medicina está dizendo aos seus é o seguinte: “Vocês não têm mais o aval da instituição para abusar do seu poder”. Decisões tomadas à revelia do “paciente” não poderão mais ser ocultas atrás da obrigação de empreender todos os esforços para supostamente salvar uma vida. Nesses casos, sabe-se que não há como salvar uma vida, só há como espichá-la a um preço altíssimo – o sequestro da qualidade dos dias que restam. O CFM está lembrando também algo que parece ter sido esquecido: nem sempre um médico pode curar, mas sempre pode cuidar.

Quem decide sobre como viver e como morrer é quem vive e quem morre. E é triste que seja preciso o CFM nos dizer isso, quando cada um deveria ter dito a cada médico que tenha tentado tomar uma decisão em seu lugar. Ao médico cabe esclarecer todas as alternativas, da forma mais clara e didática possível. À família cabe compartilhar, trocar ideias e dar apoio à decisão tomada. Mas a escolha sobre como viver o fim da vida é pessoal e intransferível. Não é do médico e também não é da família, que muitas vezes toma para si o poder de decidir sobre a vida de quem morre, com a justificativa sempre bem vista socialmente do amor extremado.

Se o CFM deu uma boa resposta ao debate travado na sociedade sobre o viver da morte, na prática essa realidade só vai mudar se mudarmos nós. Quem levou essa discussão adiante, desde a segunda metade do século passado, foram os movimentos de vanguarda, liderados por profissionais da bioética e dos cuidados paliativos. Mas a vida muda de fato na prática cotidiana. Muda quando mudar nosso comportamento dentro de consultórios, clínicas e hospitais. Muda quando a morte voltar a ter seu lugar central na vida – abandonando a posição marginal na qual a relegamos.

Não se iluda. Fugindo ou não dela, é a morte que dá sentido à vida. É diante da possibilidade do fim que criamos uma existência que valha a pena. Sem ela, deixaríamos tudo para um amanhã que nunca chegaria, presos a um presente tão repetitivo quanto infinito. Calar a morte é uma burrice, já que inútil, mas é principalmente a perda de uma grande oportunidade para viver uma vida mais viva.

———————————

Encerro esta coluna com a sugestão de uma aventura pelo universo da morte, através do cinema, da literatura e da reportagem. Cada um vive o seu percurso a partir de suas próprias experiências, mas duvido que alguém saia dele menor do que entrou. As obras indicadas a seguir fazem parte de minha trajetória para compreender essa questão – e também deixo aqui alguns dos meus trabalhos sobre o tema. Há muito mais do que isso, escolho apenas o que me pareceu mais interessante. Seria ótimo se cada leitor pudesse acrescentar, nos comentários desta coluna, suas próprias descobertas, compartilhando aquilo que o ajudou na sua busca.

Livros:

– O homem perante a morte, de Philippe Ariès (obra em dois volumes, na qual o historiador francês mostra como a morte foi vista ao longo da História – é um livro fascinante e até hoje o que existe de mais completo sobre o tema);

– A morte de Ivan Ilitch, de Leon Tolstói (uma pequena obra-prima da literatura russa);

– O ano do pensamento mágico e Noites Azuis, dois livros de Joan Didion (a escritora americana perdeu o marido e depois a filha, o que a levou a uma longa reflexão sobre a fragilidade, a velhice e a morte – escrevi sobre o último aqui).

Filmes:

– Hanami, cerejeiras em flor, de Doris Dorrie (este é o meu filme preferido sobre a vida e sobre a morte e um dos melhores filmes que vi na vida – totalmente delicado e imperdível);

– Poesia, de Lee Chang-Dong (escrevi sobre esse filme aqui);

– A Partida, de Yojiro Takita (o olhar da sociedade sobre as pessoas que lidam com a morte);

– Ensina-me a viver, de Hal Ashby (um diálogo criativo e revelador entre o jovem Harold e a velha Maude).

– Mar adentro, de Alejandro Amenabar (sobre um homem lutando pela eutanásia, um direito que ainda não temos).

Algumas reportagens que fiz sobre o tema (basta clicar no nome para lê-las):

A enfermaria entre a vida e a morte, A mulher que alimentava, Minha vida com Ailce (nesta reportagem, dividida em três textos, discuto nosso olhar sobre a morte e conto o cotidiano de uma enfermaria de cuidados paliativos, acompanho os últimos 115 dias da vida de uma mulher com um câncer além da possibilidade de cura e, por fim, reflito sobre como foi viver essa experiência);

O filho possível (aqui, acompanho uma unidade neonatal de cuidados paliativos);

Testamento Vital (nesta coluna, abordo o início da discussão dessa resolução do CFM e entrevisto José Eduardo de Siqueira, um médico humanista que tem muito a nos dizer);

Profissão Repórter (neste programa de TV, Thaís Itaqui, Caco Barcellos e eu contamos a rotina de uma enfermaria de cuidados paliativos).

Boa jornada!

(Publicado na Revista Época em 03/09/2012)

 

De passagem

Um pé preso na escada rolante, uma mulher que chora, um aeroporto em que os aviões não conseguem voar

Durou menos de um minuto. Um homem velho prende o pé na escada rolante do aeroporto. Sua filha, um degrau acima, impede que caia, abraçando o corpo do pai. Mas a escada continua seu movimento de máquina, e ela sente que não conseguirá aguentar o peso do pai por muito mais tempo naquela posição. “Alguém me ajude”, ela pede. Neste instante, é como se a cena congelasse numa tela. O velho quase na horizontal, o rosto contorcido pelo pânico, mas além da possibilidade de gritar. A filha prestes a soltá-lo por absoluta falta de forças para continuar a sustentá-lo. Então, a cena descongela. Um homem mais jovem corre até eles, galgando degraus, e segura o velho. O pé é destravado, e os três sobem. Logo atrás, a mulher do velho homem, que até então estivera fora da cena, sente as pernas falharem. Ela começa a cair, mas alguém atrás dela a segura. Agarrada a um estranho, ela sobe a escada rolante e desaparece no andar de cima.

Embaixo, uma mulher ainda jovem começa a chorar. Ela está na fila para fazer o check-in nas máquinas. É sexta-feira, 24 de agosto, e o aeroporto está fechado pela neblina. Como de hábito, a Infraero e as companhias aéreas comportam-se como se esta fosse uma novidade para a qual elas não precisassem estar preparadas. Os passageiros tropeçam em raiva e irritação a cada passo. Foram interrompidos – e estão acuados.

A mulher chora na fila. Deslocada. Está sozinha e puxa uma mala de rodinhas da Disney. A cena da escada rolante terminou, mas ela não a esquece. O que ela viu que não pode esquecer? A compreensão do velho de que as pernas já não o sustentam. O pavor ao perceber que desta vez fora salvo, mas que a queda continua esperando-o logo ali. A mulher que viu seu homem falhar, a fragilidade exposta justo agora que ela tanto precisa dele. A certeza de que ele já não pode mais protegê-la. A percepção de que ela o segue em mais de um sentido – e não apenas na escada rolante. A filha que não tem forças para impedir a queda do pai e não sabe como viver com essa descoberta.

A mulher na fila agora soluça. Ela vasculha a bolsa com mãos nervosas. Depois de algum tempo tira de lá os óculos escuros. Enfia os óculos no rosto, mas é tarde demais. Ao seu redor, já a descobriram. E por um momento os passageiros esquecem-se de que perderam o controle sobre os voos e sobre as horas, que gostariam de bater no primeiro funcionário da companhia aérea que passasse porque compromissos teriam de ser adiados, telefonemas precisariam ser completados, a cuidadosa programação do dia arruinara-se.

Esquecem-se de tudo isso por um instante. A mulher que chora por causa da cena da escada rolante, por causa de seus velhos, talvez por causa dela mesma, dá a eles algo ao qual se agarram com as unhas: devolve a eles a ilusão de que ainda estão no controle. Eles movem-se ao redor dela como um bando de hienas em um documentário da National Geographic. “Você quer um copo d’água?”, pergunta uma mulher de nariz comprido. A boca é preocupada, mas os olhos a desmentem. É curiosidade o que há neles, ela quer saber mais. A mulher que chora apenas nega com a cabeça. “Essa aí está despreparada para a vida”, comenta um casal de velhos um pouco alto demais. Velhos que ainda não caíram na escada rolante. “Deve estar na TPM”, ironiza um homem de uns 30 anos, camiseta apertada para mostrar os bíceps e tríceps. Seu amigo, marombado também, ri. “Mulher intensa demais não dá pra aguentar nem na cama.” Há uma beleza subjetiva em um corpo malhado, na tentativa pungente de criar uma armadura de músculos para se proteger daquilo para o qual não existe proteção. Os velhos da escada rolante sabem que não há armadura capaz de salvá-los, os jovens musculosos não. Não ainda.

A mulher continua chorando, mas agora menos. Logo será preciso recomeçar a falar sobre o “caos aéreo”. E as frases-boia voltarão: “Imagina como será na Copa do Mundo”… Por enquanto, há alguns segundos a mais nos quais se sentirão seguros. A mulher que chora lhes deu a satisfação da superioridade. Diante dela, sentem-se fortes por serem mais capazes que ela de esconder seu medo. É para isso que servem as pessoas que choram diante de cenas como as de um velho com o pé preso na escada rolante, as pessoas que andam por aí em carne viva. Para acalmar todas as outras.

Então acaba. A mulher consegue fazer o seu check-in e parte arrastando sua mala da Disney, com os óculos escuros que não a protegeram. O momento se desfaz. Cinco minutos depois vozes alteradas são ouvidas em outro ponto do saguão. Mais um espasmo. Um passageiro berra com o funcionário de uma companhia aérea que tenta convencê-lo a aceitar o atraso do voo. Ele quase encosta seu rosto para onde o sangue afluiu no rosto do homem protegido por um crachá. Ele não é intenso demais. Pelo menos ninguém comenta algo assim. Ele está certo, dizem, está reivindicando seus direitos. O direito do passageiro de passar. De não ser interrompido, de não ser parado. De não se lembrar, talvez, de que não controla nem mesmo sua agenda.

Em algum momento, mais tarde do que cedo, todos eles embarcam. Seguem andando. Voando. Alguns agarrados a amuletos porque temem cair lá de cima. Os velhos da escada rolante carregando em passos trôpegos o peso da sua fragilidade, da vida que jamais voltará a ser a mesma depois da quase queda. A mulher arrastando a mala de rodinhas da Disney com seus óculos escuros descobrindo o rosto, quando tentava encobri-lo. Os jovens malhados com sua armadura quase terna, mais desprotegidos do que todos os outros. O homem que ameaçou machucar o funcionário com crachá com uma história de potência para contar em casa. Embarcam. Seguem. Passam.

Alcançaram seu destino ainda na sexta-feira. Preencherão muitas vezes o formulário do bilhete aéreo, esquecendo-se do quanto é enganadora a pergunta sobre a escolha do destino. No dia seguinte, sábado, a maioria deve ter lido na internet ou visto na TV que Neil Armstrong morreu. Ele havia voado também. A distâncias mais largas do que a maioria sonhou. Um dos primeiros a ver-se de fora, a contemplar a insignificância do planeta de sua espécie em meio à vastidão do universo. “É um pequeno passo para o homem, um grande salto para a humanidade”, anunciou. Neil Armstrong alcançou a Lua e descobriu, no sábado, que o mais sobre-humano entre todos os homens era impotente para escapar da condição humana. Que não havia mais como saltar, não havia nem mesmo passos pequenos. Um dia antes, o velho homem da escada rolante – quem será ele? – libertara o pé e superara o homem da Lua.

(Publicado na Revista Época em 27/08/2012)

A mulher que restou

Como viver depois de perder o marido e a filha única em 20 meses? Joan Didion responde à tragédia num texto delicado e brutal

Eliane Brum 

A VIDA NO VAZIO Joan Didion em seu apartamento em Nova York. A velhice chegou logo depois das perdas (Foto: Aristide Economopoulos/Star Ledger/Corbis)

A VIDA NO VAZIO
Joan Didion em seu apartamento em Nova York.
A velhice chegou logo depois das perdas
(Foto: Aristide Economopoulos/Star Ledger/Corbis)

Quando Quintana se casou, ela usava flores de jasmim entrelaçadas na grossa trança que lhe pendia nas costas. Seus pais, os escritores Joan Didion e John Gregory Dunne, brindaram a ela, sua única filha, e a Gerry, agora seu genro. Duas vezes. Uma na catedral, a outra mais tarde, num restaurante chinês de Nova York. Desejaram a eles felicidade, saúde, amor, sorte e filhos bonitos. Naquele dia, 26 de julho de 2003, eles ainda chamavam a isso de “bênçãos triviais”, aquilo que se deseja com sinceridade para quem amamos, mas quase sem pensar. Cinco meses depois, John estava morto. Um ano e oito meses depois dele, Quintana estava morta. Restou Joan, perplexa, pensando que houve um dia, houve uma vida, houve alguém com seu nome que acreditara que felicidade, saúde, amor, sorte e filhos bonitos pudessem ser bênçãos triviais.

Noites azuis (Nova Fronteira, 144 páginas, R$ 29,90, tradução de Celina Portocarrero), o último livro da jornalista, roteirista e escritora americana Joan Didion, é a narrativa de uma mulher que se descobre sozinha para testemunhar o próprio fim. Antes dele, Joan escrevera O ano do pensamento mágico, sobre o período que se seguiu à morte do homem com quem vivera por quase 40 anos, com quem escrevera roteiros para Hollywood, com quem sonhara com uma filha que se chamaria Quintana Roo. Um homem que caiu de repente sobre a mesa do jantar porque o coração parou, deixando-a só e perplexa.

Ao escrever sobre a vida sem John, ela alcançou uma síntese perfeita da catástrofe humana: “A vida muda num instante. Você se senta para jantar e a vida que você conhecia acaba de repente”. Era essa a tragédia inescapável, a emergência para a qual não há equipes de salvamento. O ano do pensamento mágico tornou-se um best-seller nos Estados Unidos e vendeu 100 mil exemplares no Brasil. Quintana morreria pouco antes do lançamento, depois de meses com complicações de saúde cujos detalhes Joan escolhe não explicar. Tinha 39 anos.

Noites azuis é a continuação que Joan jamais esperaria escrever. É a história de uma mulher que restou. E talvez se possa dividir a condição humana em três destinos: ou morremos jovens, de doença, tiro, terremoto, acidente de trânsito, como aconteceu com Quintana; ou vivemos até uma idade madura, mas um câncer, um infarto ou um derrame nos leva um pouco antes de todos os outros, como John; ou restamos. No território de seus afetos, Joan foi a que restou. Tinha 70 anos quando se descobriu só.
O que fazer quando você é a que resta? Se você é uma escritora, escreve. Agarra-se às palavras na tentativa de compreender o impossível, agarra-se para não afundar. Agarra-se porque é preciso enfrentar as lembranças, sempre fragmentadas, e com elas construir uma memória que faça algum sentido na paisagem devastada que agora é você. Com 1 metro e 56 centímetros e meio de altura e a silhueta de quem poderá ser levada embora na primeira brisa, Joan Didion é uma escritora feroz. Examina a si mesma sem autopiedade ou pieguice e entrega-se ao leitor com todas as suas marcas. A grandeza de seu texto está na capacidade de entrelaçar a tragédia às pequenas delicadezas do cotidiano. Como ao perceber que, por muito tempo, escrevera vendo as roupas de Quintana secar ao sol.

As lembranças espreitam Joan atrás de cada porta, dentro de cada gaveta. Ela levanta a tampa da caixa de joias forrada de cetim e encontra lá dentes de leite. Abre a porta do guarda-roupa e vê três velhas capas de chuva de John, uma jaqueta de camurça dada a Quintana pela mãe de seu primeiro namorado e um bolero de angorá, há muito comido pelas traças, que sua mãe ganhara de seu pai depois da Segunda Guerra Mundial. Ela abre caixas e acha convites para casamentos de gente que há muito se separou, cartões de agradecimento de funerais de pessoas cujo rosto esqueceu. “Em teoria, essas lembranças servem para trazer de volta o momento”, escreve. “Na prática, servem apenas para demonstrar quão inadequadamente apreciei o momento quando ele aconteceu.”

Em que momento surgiu Quintana Roo? Antes de se tornar criança, ela havia sido uma paisagem. Um nome visto por Joan e John num mapa do México, um nome que falava de uma geografia que ainda era terra de ninguém – ainda era, como Joan definiria, “terra incógnita”. Como todos os filhos, seus contornos foram se desenhando primeiro no território do desejo. Até que o telefone tocou.

“Tenho uma linda menina no St. John”, disse o médico aos pais que esperavam uma chance de adoção. E lá estava não um bebê entre tantos, mas o seu bebê, a sua Quintana Roo, com uma fita rosa no cabelo preto e uma pulseira no braço com as iniciais “N.I.” – nenhuma informação. Quintana sempre pediria para repetirem a história não de seu nascimento concreto, mas de seu nascimento para aqueles pais. “E se vocês não estivessem em casa para atender o telefone? E se tivessem sofrido um acidente na estrada, o que teria acontecido comigo?”, perguntava.

Joan nunca teve respostas para as perguntas da filha. Como a maioria dos pais, ela se iludira que seu bebê era uma página vazia, à espera de uma história. Mas todo recém-nascido é uma página que já começou a ser preenchida pelo desejo, ou pela neurose, ou pelo desespero, ou pelos genes, ou por tudo isso junto. No caso de Quintana Roo, também pelo abandono que assombra os filhos que um dia restaram, antes de ser escolhidos por um triz. Durante a maior parte da vida, Joan não conseguia compreender: “Como ela pôde pensar que eu não cuidaria dela?”.

Leia um trecho do livro (Foto: divulgação)

Leia um trecho do livro
(Foto: divulgação)

Mas isso foi antes, quando Joan ainda não tinha ouvido do médico da UTI: “Ela não consegue obter oxigênio do ventilador há pelo menos uma hora”. O que aconteceu? “Se ontem mesmo eu a segurei em meus braços. Ontem mesmo eu prometi a ela que estaria segura conosco.” Enquanto escreve, Joan sabe que homens e mulheres só descobrem a mortalidade quando têm um filho. Quando você jura proteger sua criança para sempre, mas acorda sem ar no meio da noite porque sabe que está mentindo. Você mente porque algumas mentiras são necessárias para seguir vivendo, mas você sabe – e seu filho também sabe. Com a terrível lucidez de ser aquela que restou, Joan agora é capaz de inverter a pergunta, perigosamente perto da verdade que sempre esteve lá: “Como ela poderia sequer imaginar que eu tomaria conta dela?”.

Joan descobre, enquanto amarra lembranças, que um filho será sempre, em alguma medida, uma terra incógnita. O nome, afinal, não estava deslocado. Possivelmente ela nunca precisaria pensar nisso se a ordem da vida – e da morte – não tivesse sido rompida. Agora, aqui está ela, perplexa, apavorada. É a esta altura que Joan acorda um dia e percebe que se tornou uma velha. Ela sabe o momento exato.

Era manhã de quinta-feira, 2 de agosto de 2007. Joan acordou com manchas avermelhadas no rosto e algo parecido com dor de ouvido. Desde então, seu corpo tem falhado de várias maneiras. A ponto de uma noite ela ter se surpreendido com medo de não conseguir se levantar de uma cadeira dobrável num evento público. Como foi ela que restou, agora gasta horas a fio na sala de espera de hospitais, às voltas com o preenchimento de formulários nos quais lhe pedem algo nebuloso: indicar quem chamaria em caso de emergência.

Joan descobre que não tem mais medo de morrer. Tem agora medo de não morrer – de restar sem consciência ou movimento. Restar sem poder contar nem consigo mesma. Percebe então que as noites azuis não voltarão. Aquelas noites assim chamadas porque anunciam o verão e só vão embora depois que ele acaba, nas quais podemos nadar em azul no crepúsculo antes de a escuridão nos alcançar. “Será que eu pensava que as noites azuis durariam para sempre?”, indaga-se, para sempre perplexa.

Ela escreve, porém. As palavras também começam a lhe escapar, ela sente que seus verbos e substantivos “não dizem o que deviam dizer ou não querem”. Mas Joan vive enquanto escreve – e escreve para saber que ainda vive. Enquanto escreve, mantém todos vivos. Um truque desesperado do ilusionista que é todo escritor, mas também um milagre humano. No livro, Quintana, John e tantos outros que povoaram o mundo de Joan Didion ainda vivem. E as noites azuis continuam lá.

MEMÓRIAS DOLORIDAS Quintana, John Gregory Dunne e Joan Didion em Malibu, em 1976. As lembranças mostram como os momentos felizes foram vividos (Foto: John Bryson/Sygma/Corbis)

MEMÓRIAS DOLORIDAS
Quintana, John Gregory Dunne e Joan Didion em Malibu, em 1976. As lembranças mostram como os momentos felizes foram vividos (Foto: John Bryson/Sygma/Corbis)

(Publicado na Revista Época em 26/08/2012)

Página 12 de 49« Primeira...1011121314...203040...Última »