Qual é a sua história?

A forma como você conta a sua vida muda a própria vida

Eu sempre me senti como Cheherazade, a moça esperta das mil e uma noites. Não porque sou esperta, mas porque de algum modo sempre soube que contar histórias me salvava de perder não a cabeça, como era o caso de Cheherazade, mas de perder a mim mesma. Quando era muito pequena e ainda não sabia ler, imaginava histórias para escapar do medo do escuro. Contava para mim mesma na minha cama de bebê crescido. Quando entrei na escola, imaginava enredos que me carregavam para além das crueldades infantis que me aterrorizavam tanto ou mais que os monstros noturnos. Quando cresci virei jornalista e passei a contar histórias reais para poder viver. Sempre soube que contar histórias me salvava da versão adulta do medo do escuro. Agora, que sou gente grande, contar histórias ordena o caos da vida, me dá sentido e identidade.

Ao tornar-me uma narradora de vidas fui aprendendo algo determinante para o curso da minha existência. Toda vida é uma invenção própria. Não que ela não seja feita de fatos, de dados concretos, de eventos incontroláveis. O que é absolutamente uma criação própria é a forma como cada um olha para a sua vida.

De fato, há uma só existência. Mas são várias as possibilidades de narrativas desta mesma existência. Um mesmo episódio, por exemplo, vivido por você e por sua mãe, será contado de maneira às vezes totalmente diversa por você e por ela. E ninguém estará mentindo. Da mesma forma, o mesmo fato vivido por você poderá ser narrado de formas opostas por você mesmo, em momentos diferentes da sua vida. E você estará sendo verdadeiro em ambas as ocasiões.

Isso não significa distorcer o que acontece ou aconteceu. Apenas que há muitas possibilidades de olhar para o que acontece ou aconteceu. Há muitas verdades possíveis. E é a escolha de como olhar para os eventos (ou a falta deles) de sua vida que vai determinar a própria vida. Ou seja: ao escolher como olhar para sua vida você escolhe quem você é.

Quando olho para trás, para os 43 anos transcorridos da minha vida, posso vê-la como um filme de terror. Durante muito tempo era assim que eu via a sequência de episódios que me constituía. E vivia envenenada por isso. Aos poucos, eu mesma fui enjoando dessa narrativa. Cansei do papel de mulher atormentada que havia sido destroçada pelos moinhos de Cartola. Resumindo: eu me via como uma heroína de romance clássico. Comecei a perceber que era heroína de folhetim de banca de revista. E não gostei muito da queda de hierarquia na literatura mundial.

Hoje, olho para a mesmíssima sequência encadeada de episódios como uma vida com alguns pesadelos e tropeços, mas com muita diversão e intensidade também. Uma vida, enfim, misturada, com um pouco de tudo como são as vidas, e que me trouxe até aqui e ainda me levará a muitos lugares. E até olho para aquela personagem grandiloquente que eu era com ternura.

O que aconteceu? Descobri que o poder de contar minha história está em mim. É meu. Sou eu que decido quais são os pontos culminantes, os ápices da minha existência, ao olhar para o passado e escolher o que vai dar sentido ao presente e somar no futuro. Da mesma forma que um roteirista de cinema sabe que é preciso mesclar silêncios, drama, diálogos inteligentes, conversas banais, respiro cômico e também esquecimentos. E são os cortes no momento da edição que vão garantir o ritmo do filme.

Hoje não tenho a menor paciência com gente de 40 anos – ou mesmo de 20 ou 30 – que continua culpando a mãe, o pai ou as agruras da infância por tudo o que pensa que deveria ter conquistado e não conquistou. Ou gente que culpa o chefe ou a suposta falta de oportunidades por tudo o que deveria ser profissionalmente e não é. Sua história é medíocre por culpa do mundo, parece que a pessoa não tem nada a ver com isso. Só estava passando quando virou personagem de um conto do vigário.

Gente assim gasta a vida repetindo a mesma ladainha, contando a mesma história para si mesmo – e para os outros. É um disco quebrado. Como a vida vai mudar se o dono da história só enxerga um enredo possível? Ao observar esse tipo de personagem percebi que, na verdade, ele não quer mudar. Só diz que quer – e afirma não conseguir por fatos externos à sua vontade.

A história é chata, dá sono no meio, mas é segura. Gente assim morre de medo do desconhecido. Prefere uma existência de vítima do mundo a se arriscar a enxergar-se de outro modo. Há um momento em que é preciso se responsabilizar pela vida, por contar sua história. Ou ficar para sempre refém de versões alheias sobre a nossa existência.

Quem me ensinou que a vida pode ser reinventada a qualquer momento foram as pessoas que, nos últimos 21 anos, me contaram suas histórias. Quando escrevia uma coluna semanal chamada A Vida Que Ninguém Vê, que depois virou livro, conheci um homem que ilustra como ninguém essa ideia. Vanderlei era o seu nome. Ele era aquele tipo de gente que costumamos reduzir à personagem folclórico.

Muito pobre e um tanto estropiado, todo ano ele aparecia na Expointer, a maior feira agropecuária do Rio Grande do Sul, com um cabo de vassoura. Dizia que o cabo de vassoura era seu cavalo de raça. Passava pela inspeção veterinária, cumpria os trâmites burocráticos. E lá ficava cavalgando pelos campos da exposição. Os “normais” da feira achavam muita graça, tanta que até alimentavam-no e deixavam que dormisse por ali. Vanderlei era o louquinho da Expointer.

Um dia, na busca de gente para contar histórias, emparelhei meu cavalo com o dele. Perguntei: “Vanderlei, você é louco?”. E começamos a conversar. A certa altura ele disse: “Você acha que eu não sei que meu cavalo é um cabo de vassoura? Mas pensa, raciocina (e batia a mão fechada na cabeça). Eu nunca vou ter um cavalo de verdade. Você não acha melhor eu acreditar que o cabo de vassoura é um cavalo?”. Só me restou o silêncio. Se ele era louco, eu era o quê?

Vanderlei desejava tanto um cavalo que deu patas, crinas, carne, ossos e sangue a um cabo de vassoura. Reinventou sua vida da maneira que lhe foi possível. Com a infinita liberdade conquistada, para Vanderlei tanto fazia se era um cavalo ou um cabo de vassoura. Tornara-se capaz de entregar-se ao galope desenfreado de um pampa imaginário. Afinal, quem diz o que é um cavalo ou o que é um cabo de vassoura?

Ele é um exemplo radical de reinvenção da vida. Nem todos, porém, são capazes de enxergar com a larga liberdade de Vanderlei. Nem todos viveram todas as suas faltas. O que podemos é escolher se vamos olhar com generosidade para a nossa vida – e para a vida do outro – ou vamos gastá-la inteira nos lamuriando de nossa pouca sorte.

Na semana passada, nesta coluna, contei a história de algumas pessoas cegas que conheci – e que me ajudaram a enxergar. Uma delas era Leniro Alves, que poderia chorar com cada tropeço literal de sua existência cheia de obstáculos concretos. Leniro prefere rir de seus escorregões e gafes. Escolheu como quer olhar para sua deficiência visual. Em vez de escolher ser cego dos olhos e de alma, preferiu aprender a ver de outro jeito com as possibilidades que tinha.

Como olhar para a própria vida é uma escolha que não depende nem de escolaridade nem de classe social. Até mesmo o mendigo da esquina pode optar se prefere aceitar o olhar alheio, que o coloca no mesmo nível do cocô de cachorro achatado no meio-fio, ou se prefere virar escritor das ruas, como fez Tião Nicomedes, uma outra história que já contei aqui.

Qualquer um pode escolher como olhar para si mesmo. Todo homem e toda mulher contêm em si pelo menos dois espelhos: um deles o reflete como silhueta sem rosto definido, manchado na multidão, destituído de importância; o outro o revela único, singular, um evento histórico irrepetível. É o mesmo homem ou mulher que pode olhar apenas para o chão e se identificar com a meleca que cola nos seus sapatos ou olhar para cima e se reconhecer na matéria das estrelas.

Ambas as identificações são fatos comprovados pela ciência. Basta escolher em que espelho prefere se reconhecer. Parece-me no mínimo curioso que uma parte considerável das pessoas escolhe se identificar com a meleca. E viver de acordo.

De certo modo, temos todos a escolha de ser Cheherazade, a moça esperta das mil e uma noites, que decidiu contar histórias para manter a narrativa da sua própria. Ou podemos ser todas as moças não muito espertas que perderam a cabeça antes dela porque deixaram que o sultão decidisse o fim da sua história.

(Publicado na Revista Época em 26/10/2009)

A cega era eu

Descobri que para ler o mundo não é preciso ver

Às 15h21 de quarta-feira recebi um e-mail que não era um e-mail, mas uma passagem para uma dimensão desconhecida. Pelo menos para mim. Leniro Alves contava que tinha me ouvido em uma entrevista na CBN e, desde então, começara a ler minhas reportagens. Gostava porque lhe parecia que eu passava “muita sinceridade naquilo que escrevia”. Fiquei toda contente, como sempre fico quando alguém diz que minha escrita ecoa em sua vida. Agradeci. Leniro contou então que leu um jornal pela primeira vez aos 40 anos. Que hoje, aos 50 e poucos, só lamenta não ter podido se deliciar com as entrevistas do Pasquim quando tinha 20 e tantos. Agora, ainda que os jornais e revistas não facilitem muito, ele lê de tudo – e também essa coluna.

Leniro é cego. Ele lê graças a um programa de computador, com sintetizador de voz, criado no Núcleo de Computação Eletrônica da Universidade Federal do Rio de Janeiro por um Professor, assim com maiúscula, chamado Antonio Borges. Ao encontrar um aluno cego, Marcelo Pimentel, na sua sala da disciplina de computação gráfica, Antonio descobriu que precisava inventar algo que tornasse possível aos deficientes visuais ter acesso ao computador e à internet. Isso era início dos anos 90 e, naquele momento, as opções existentes eram bastante precárias. Antonio criou um programa chamado Dosvox, que permite aos cegos acessar a internet, ler e escrever, mandar e receber e-mails, participar de chats e trocar ideias como qualquer um que pode ver. Essa história está bem contada no seguinte endereço: http://intervox.nce.ufrj.br/dosvox/historico.htm. Vale muito a pena dar uma passada por lá.

Até então, cegos como Leniro viviam num universo restrito. Muito pouco era convertido ao braille. E, se um cego escrevesse em braille, seria lido apenas entre cegos. Também havia as fitas cassetes, com a gravação de livros lidos em voz alta. Mas era sempre a leitura de um outro. E continuavam sendo poucos os livros disponíveis em fitas. Jornais e revistas, em geral só podiam ser alcançados se alguém se oferecesse para ler em voz alta. A internet era inacessível. E o mundo, muito pequeno. E pouco permeável.

Eu nunca tinha parado para enxergar o mundo de Leniro. Ali, a cega era eu. Essa coluna é o começo de minha aventura pelo mundo dos que veem diferente.

Começamos a conversar por e-mail. Fiz uma pergunta atrás da outra. Fazia tempo que não me sentia tão criança ao olhar para uma realidade nova. De novo, eu estava na fase dos porquês. Só faltou perguntar de onde vinham os bebês… Acho até que importunei o Leniro com minhas perguntas seriadas.

Como é o teclado? O que você sente? É uma voz que fala com você quando eu escrevo? Leniro teve muita paciência comigo: “Eliane, minha relação com a palavra escrita é a da busca da própria intimidade. Como é bom a gente se encontrar num Machado de Assis… Não deixe de vivenciar um pouco desse mundo, que é muito mais rico do que pode parecer inicialmente. Ele é bem mais engraçado do que dramático, entende? Bem mais positivo do que a gente em princípio pensa que é. O importante não é nem a reportagem, mas o que se pode apreender do ponto de vista humano”.

Muitos anos atrás, eu ainda trabalhava no jornal Zero Hora, de Porto Alegre, quando me despacharam para cobrir um eclipse do sol. Eu era uma das muitas repórteres que se espalharam pela cidade para trazer histórias do eclipse. Quando você trabalha em um jornal diário, às vezes precisa se desdobrar muito para trazer uma boa história. O que vou contar?, pensava eu, empunhando uma radiografia para proteger os olhos enquanto caminhava pelas ruas do centro da capital gaúcha. Oquei, a lua vai engolir o sol por um minuto, as pessoas vão fazer ahhhhhhhhh, e, como elas, eu vou achar lindo. Mas qual é a história?

Então eu vi uma cega. Toquei na mão dela e pedi: “Deixa eu ficar com você na hora do eclipse?”. Ela deixou. Foi tudo muito rápido. Ela nunca tinha visto o sol, nunca tinha visto a lua, nunca tinha visto as estrelas ou o céu azul. Ela nunca tinha visto a si mesma.

De mãos dadas com ela, descobri que ela enxergava tudo isso, só que de outro modo. Quando a lua cobriu totalmente o sol, ela disse: “Estou sentindo um frio diferente”. Era isso. Ela via o eclipse. E via de um jeito que eu jamais poderia.

O tempo passou e eu esqueci dessa história. Ao conhecer Leniro, essa memória voltou. Assim como a de outra reportagem em que passei 24 horas na Rua da Praia, a mais mítica de Porto Alegre. No fim da tarde, vi dois cegos conversando na esquina com suas bengalas. Parei ao lado, me identifiquei e fiquei por ali. Depois de algum tempo, acho que me esqueceram. Continuei ouvindo o que falavam. A conversa não seria surpreendente se não fossem cegos. Mas eram cegos. (O que será que eu imaginava? Que estivessem discutindo a crítica da razão pura de Kant, apenas por que eram cegos e não tinham nada de melhor para conversar?)

Pois então. Eles só falavam de mulher! A certa altura, não me contive e perguntei: “Mas como vocês enxergam essa mulherada toda?”. Eles me explicaram. E a explicação era muito boa, mas esqueci. Faz bem mais de uma década.

Agora, finalmente, graças à aparição de Leniro na minha vida, percebi que olhar para a deficiência apenas como a falta de algo, de um sentido, não é toda a verdade. Não só não é toda a verdade, como é um modo pobre de enxergar. Dentro de mim, surgiu algo novo: o reconhecimento de um mundo diverso, com possibilidades diversas. Como a de ver um eclipse como “um frio diferente”.

Não é curioso que tenha sido um cego a ampliar o meu olhar?

Foi isso que Leniro tentou me dizer ao afirmar que é um mundo rico. Ele passou o final de semana no encontro anual do Dosvox, em Fortaleza. Nele, os usuários discutem o programa e ele sai de lá aprimorado. Graças ao Dosvox, todo dia uma amiga que vê pode enviar um clipping de notícias, reportagens, artigos e colunas garimpados na internet para um grupo de cerca de 50 cegos, ex-alunos do Instituto Benjamin Constant, no Rio de Janeiro. É assim que essa coluna chega a eles. “O que era só papel mudo agora é palavra viva”, explicou essa mulher especial.

Para um cego, desbravar a internet se assemelha a uma daquelas viagens dos grandes navegadores do passado. Os sites pouco se preocupam em ser acessíveis para quem não pode ver e há monstros marinhos escondidos logo ali. Para os cegos, uma mudaça de layout é uma tempestade daquelas capazes de virar o barco. Pesquisando na internet sobre o tema, encontrei a página pessoal da educadora cega Elisabet Dias de Sá. Em um dos textos, assim ela explica a epopéia: “Guardadas as devidas proporções, navegar na web é como aventurar-se pelas ruas e avenidas da cidade guiada por uma bengala, exposta ao perigo e a toda sorte de riscos decorrentes dos obstáculos, suspensos ou ao rés do chão, espalhados pelas vias públicas”. Quem quiser ler mais, o endereço é: http://www.bancodeescola.com.

Em minha própria incursão por esse novo mundo, conheci nos últimos dias uma cega que compra livros, escaneia, corrige e envia para o grupo de amigos, para que todos possam alcançar a literatura pelo computador. Nem consegui esperar os e-mails. Tive de ligar para ela. “Quantos anos você tem?”, perguntou-me ela. “Quarenta e três”, disse eu. “Pela voz, achei que você era mais nova”, disse ela. “É essa maldita voz de criança que eu tenho”, disse eu. “Não, é suave. Agora, quando eu ler seus textos, vou lembrar da sua voz”, disse ela, generosa.

Conhecemo-nos pelas nossas vozes, numa ponte telefônica São Paulo-Rio de Janeiro. Ela explicou que, com esse programa, o Dosvox, cada um pode ler no seu ritmo. Mais lento, mais devagar. Pode parar, voltar, avançar. As letras são transformadas em voz. Há até um pequeno número de vozes, masculinas e femininas, para escolher. O computador é normal, os cegos conseguem usar o teclado porque fazem curso de datilografia. E o programa permite que leiam aquilo que escrevem. Podem até ler letra a letra, se quiserem. Tipo: escrevem “a” e o computador diz “a”. Como ela coloca em volume baixo, essa voz repetindo as letras não incomoda. Assim, ela pode corrigir eventuais erros. Os cegos leem e escrevem pela voz, acessada pelo teclado.

Ela compra livros, passa um scanner que transforma cada página de papel em página digital e aí, com o programa, corrige eventuais erros e envia para o grupo de amigos. Cada livro exige pelo menos uma semana para se tornar “um trabalho bem feito”, explica. Só tem disponíveis as horas depois do expediente no Tribunal de Justiça do Rio, onde é funcionária concursada. Ela queria muito que os editores concordassem em vender os livros digitalizados, já que todas as editoras têm as obras guardadas em um arquivo do computador. Antes de virar papel, os livros são digitais. Assim, ninguém precisaria depender da sorte de ter uma amiga bacana como ela para ler não só os últimos lançamentos, mas também toda a bibliografia que por séculos ficou exilada do mundo dos cegos.

Cega de nascença, ela nunca viu. “Não enxergo escuro ou claro. É um vazio”, explica. Essa é a experiência dela. Não existem dois cegos com a mesma vivência do mundo. Cada um encontra o seu modo de lidar com uma vida sem imagens. E como são seus sonhos?, insisti. “São sons, são sentimentos”, ela diz. Senti-me cega no mundo dela. Como é um sonho sem imagens? Ou, pelo menos, sem as imagens como eu as compreendo?

Conversamos sobre O Pequeno Príncipe, de Saint-Exupery. Foi ele quem disse: “Só se vê bem com o coração, o essencial é invisível aos olhos”. Ela adora O Pequeno Príncipe, eu também. E nenhuma de nós foi miss. Percebi, porém, que o meu Pequeno Príncipe é como o da maioria. Quando alguém pronuncia “Pequeno Príncipe”, aciona uma tecla do meu cérebro que me devolve aquela imagem clássica do menino loirinho, diáfano, com seu manto verde. Mas esta é a imagem do ilustrador, não é a minha, nem a sua. Mesmo que eu quisesse, não conseguiria me livrar dessa ideia. O Pequeno Príncipe de minha nova amiga é só dela.

Como você imagina o Pequeno Príncipe?, perguntei. “Me vem aquela passagem de que somos responsáveis por quem cativamos”. Para ela vem um sentimento, algo que ecoa nela. O pôr-do-sol vermelho descrito nos romances é também algo só dela, assim como o eclipse foi “um frio diferente” para a cega com quem fiquei de mãos dadas por um minuto compartilhado das nossas vidas, em que conectamos a diferença de nossos mundos.

Acho que há vários modos de ser cego. Aqueles com quem converso nessa coluna têm uma deficiência visual – orgânica, concreta. Mas criaram outras maneiras de se conectar ao mundo, outras formas de enxergar. O mais triste é quando nosso sistema visual funciona perfeitamente, mas só enxergamos o óbvio, o que nos foi dado para ver, o que estamos condicionados a ver. Quando acordamos, a cada manhã, e as cenas da nossa vida se repetem como se assistíssemos sempre ao mesmo filme. Às vezes, choramos diante da tela não por emoção, mas pela falta dela. O filme é chato, mas sabemos o que vai acontecer em cada cena. É chato, mas é seguro. Em nome da segurança, abrimos mão de experimentar novos enredos. Tememos nos arriscar à possibilidade do diferente. Temos tanto medo que fechamos os olhos ao espanto do mundo.

Acho que ser cego é não ver o mundo do outro. Estar fechado ao que é diferente de nós. Isso vale para qualquer outro, para qualquer mundo. Nem sei dizer o quanto meu universo se ampliou ao ser vista por Leniro. A vida é sempre surpreendente quando não temos medo dela: foi preciso que os cegos me vissem para que eu os enxergasse. E, depois deles, tornei-me menos cega.

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Para quem quiser iniciar seu próprio ensaio sobre a cegueira, sugiro começar por um texto de Leniro. Sim, por que Leniro não apenas lê no computador – ele também escreve crônicas e poesias. E escreve com muito humor. Leniro não só lê e escreve, como consegue rir da sua impossibilidade mecânica de ver com os olhos. E ser capaz de rir de si mesmo é sempre uma grande virtude. Nesse texto ele conta de sua iniciação na internet – e de seu primeiro encontro literalmente às cegas. Imperdível. Fiquei me coçando de vontade de contar essa história aqui na coluna, mas eu jamais conseguiria escrever com tanta graça. Confira:
http://www.bancodeescola.com/leniro.htm.

(Publicado na Revista Época em 19/10/2009)

“Eu sou média”

O que acontece quando você percebe que não será uma celebridade no mundo?

Uma noite dessas fui jantar com uma grande amiga. Temos aquele tipo de amizade que resiste aos desencontros da vida, à falta de tempo, às diferenças todas. Lá pela metade da garrafa de vinho, ela me disse: “Sabe, eu aceitei que sou média. E isso para mim foi uma enorme libertação”. Não lembro do que falávamos. Era isso o que ela queria me dizer, era isso o que importava. Eu abri a boca para dizer que ela não era média coisa nenhuma. Mas fechei antes de cometer essa bobagem. Tentar convencê-la de que não era “média”, ali, naquele momento, seria violar o presente que ela estava me dando. Chegar a essa conclusão havia lhe custado um naco da existência. Admiti-la para mais alguém além de si mesma era de uma enorme coragem. E era grande a confiança com que ela me honrava ao me escolher para essa confissão.

Mais tarde, mais um tanto da garrafa de vinho, seu rosto se iluminou todo, os olhos brilharam, e ela disse: “Quem olha para mim, só vê o comum em mim. Mas, Eliane, dentro de mim há um mundo rico”.

Essa conversa foi um dos momentos belos da minha vida. Já o guardei na minha caixinha invisível de memórias impalpáveis. Desde então, essa noite não me sai da cabeça. Tenho uma outra amiga que se bate cotidianamente com a ideia de que é “média”. E entende isso como um fracasso. Ela, que quis tanto quase tudo, beira os 40 sem ter conseguido. Nada que eu diga a ela a convence de que há outros modos de medir a existência. Então ela sofre. E nada do que faz está à altura de suas grandes esperanças sobre si mesma. Nunca estará. Deixou que sua vida fosse medida pelo que está sempre além, sempre fora.

Não acho que ela é a única. E acho uma pena que tanta gente sangre com isso. Pensei então em entrevistar minha amiga, a que está em paz com sua “medianidade”. Ela que, só ao se aceitar como “média”, foi capaz de descobrir a grandeza que mora dentro dela e não vai para a capa das revistas de celebridades.

Minha amiga topou. Pediu para não ser identificada porque costuma se chocar com o despudor com que as pessoas – eu incluída – se expõem na internet. Compartilha sua experiência, mas sem sair do seu cantinho. Aí está a nossa conversa para a coluna.

Eu: Você me disse que a virada da sua vida aconteceu no momento em que você aceitou que é média. Como foi isso?

Ela: Aos 35 anos, minha vida andava atrapalhada. Achei que precisava dar uma ordem naquilo tudo. Comecei a fazer terapia e a vasculhar tudo o que me chateava, avaliar o que tinha e o que ainda precisava ou queria atingir. Acho que todos, num momento da vida, fazem um balanço, e foi isso que fiz. Depois deste, já passei por outros processos semelhantes de avaliação, buscando priorizar o que vale mesmo a pena. Nesse processo, eu tentava me conhecer melhor, revirando meus sentimentos e questionando muitos dos meus conceitos e das verdades que me cercavam. Lutava muito contra mim mesma por querer corresponder a uma demanda de destaque. Não sei bem de onde vinha aquilo tudo, pois nunca fui cobrada claramente. Acho que eu me exigia esse desempenho e não aceitava o lugar-comum. Naquele período de minha vida, envolvida por essa busca de destaque, negava toda qualidade, competência ou conquista. No dia em que consegui me conciliar com minha condição de pessoa mediana, acho que me tornei uma pessoa melhor. Tirei um peso de minha vida. Não precisava mais ser celebridade, nem provar talento algum.

Eu: Mas o que é “ser média”? Média segundo o parâmetro de quem, média em quê? Você não acha que “ser média” é um embuste de uma sociedade construída sobre os valores do consumo?

Ela: Sou mediana porque levo uma vida comum, sem notabilidade, obras reconhecidas ou talentos premiados. Sou reconhecida apenas pela família e pelos amigos.

Eu: Você acha que há uma pressão para que as pessoas pensem que precisam ser excepcionais para que suas vidas valham a pena, segundo um critério determinado histórica e culturalmente como o que é excepcional?
Ela: Acho que sim. Queria que me explicassem porque as pessoas, quando não conseguem se destacar – porque nem todos serão célebres –, são tomadas pelos sentimentos de frustração e de desvalia. Quem disse que devemos nos conformar e nos adequar aos padrões estabelecidos de atuação, de beleza e de comportamento?

Eu: Por que aceitar “ser média” foi uma espécie de libertação? Você me pareceu tão bem consigo mesma, tão em paz, quando me contou isso…

Ela: Eu vivi em conflito durante muito tempo, até ter uma noção exata da minha dimensão. Para aceitar essa condição mediana, foi preciso que percebesse minhas qualidades e habilidades, assim como minhas limitações. Foi preciso me conhecer melhor para poder tirar proveito dessas habilidades e limitações. Acho que funcionou assim: não sou uma celebridade, mas também não sou uma porcaria.

Eu: Aceitar “ser média” libertou você também para descobrir outras partes não mensuráveis de si mesma? Eu achei muito lindo quando você falou que há um mundo largo dentro de você…

Ela: É difícil definir, mas penso que todas as pessoas, mesmo as comuns, têm um mundo interior muito rico e muito pouco reconhecido. Aceitando essa condição de ser médio, nos libertamos de um esforço e gasto de energia que passam a ser canalizados para outras descobertas. E estas são descobertas que podem gerar muito prazer, mesmo não sendo fruto de atos grandiosos.

Ela não disse isso. Mas eu, que a conheço há tanto tempo, testemunhei essa transformação, sem saber que era construída por essa descoberta. E por essa aceitação. Minha amiga percebeu que é uma mãe maravilhosa e se tornou uma chefe que é amada pelos subordinados, ao conseguir revelar o que cada um deles tem de melhor e único. Devagar, foram se extinguindo nela os traços de amargura e talvez por isso ela tenha uma pele quase sem rugas depois dos 50 anos, sem nunca ter usado cremes nem feito qualquer cirurgia plástica. E num domingo ensolarado descobriu que gostava de cozinhar e se transformou na senhora das especiarias. Como os acontecimentos causam mudanças em cadeia, a profunda descoberta da minha amiga colocou em mim alguns quilos aparentes.

Todos nós temos grandes expectativas sobre nossa passagem pelo mundo. E não me parece que devemos deixar de tê-las. A sabedoria consiste em compreender que é preciso medir a grandeza com nossa própria fita métrica. Se nos tornamos reféns de algo que hoje é determinante na nossa época, por exemplo, que é o reconhecimento da importância de alguém pela quantidade de aparições na mídia, estamos perdidos. Render-se a uma determinação ditada pelo mercado é tão destrutivo como passar a vida tentando agradar a um pai opressor e para sempre insatisfeito, como vejo tanta gente. Em ambos os casos, estaremos sempre aquém, sempre em falta. E, mesmo quem vive sob os holofotes, vive em pânico porque não sabe por quanto tempo conseguirá manter as luzes sobre si.

Mas de que luzes precisamos para viver? E a quem queremos agradar? Quem e o que importam de verdade? Essa reconciliação é o que nos leva de fato à vida adulta, no que ela tem de melhor. Acredito que crescemos quando conseguimos nos apropriar da medida com que avaliamos nossa existência, nosso estar no mundo. Ninguém tem de ser isso ou aquilo, ninguém “tem de” nada. Quem disse que tem? É preciso duvidar sempre das determinações externas a nós – tanto quanto das internas. Por que mesmo eu quero isso? é sempre uma boa pergunta.

Minha amiga só se transformou em uma chefe capaz de ajudar a transformar para melhor a vida de quem trabalhava com ela quando se reconciliou com suas próprias expectativas, quando descobriu em si uma grandeza que era de outra ordem. Só se tornou uma mãe capaz de libertar os filhos para viver seus próprios tropeços e acertos (e não os dela) quando se apaziguou consigo mesma. E, surpresa das surpresas, descobriu que era talentosa numa área, a cozinha, onde até então não via nenhum valor. Ao descobrir-se cozinheira, não pensou em empreender uma nova maratona, desta vez na tentativa de virar uma chef e fazer um programa de TV. Já estava sábia o suficiente para exultar de alegria ao acabar (humpft) com a boa forma de suas amigas mais queridas.

Como minha amiga e como todo mundo, eu também acalentei grandes esperanças sobre minha própria existência. Depois do fracasso da minha carreira de astronauta, desejei ser escritora. Acho que ser escritora é o que quis desde que peguei o primeiro livro na mão e consegui decifrá-lo. É claro que eu não queria apenas escrever um livro de entretenimento, um pulp fiction ou coisa parecida. Naquele tempo, pré-Tarantino, pulp fiction não era grande coisa. Eu escreveria, obviamente, a maior obra-prima da humanidade. Meu primeiro livro já nasceria um clássico. Eu reinventaria a linguagem e ditaria novos parâmetros para a literatura. Depois de mim, Proust e Joyce estariam reduzidos ao rodapé do cânone.

Não é divertido? Acreditem, eu rio muito. E até me enterneço. No meu quarto amarelo, lá em Ijuí, eu fiz o seguinte plano. Emily Brontë escreveu O Morro dos Ventos Uivantes aos 19 anos. Logo, eu deveria escrever minha masterpiece aos 17, no máximo 18. Pois não é que os 18 anos passaram e eu estava mais ocupada com fraldas e com beijos na boca? Bem, eu já não seria tão precoce assim, mas me conformei. Afinal, minha obra seria tão acachapante, tão revolucionária, que mesmo aos 20 e poucos eu seria considerada um prodígio. E os 20 passaram, assim como os 30, e lá vou eu aumentando cada vez mais os “e tantos” dos 40.

Juro para vocês: até não muito tempo atrás eu sempre tinha na manga algum escritor que tinha começado um pouco depois da idade que eu tinha no momento – e arrasado. Eu gastava meu tempo procurando essas referências. Então li em algum lugar que o argentino Ernesto Sabato escrevera seu primeiro romance, O Túnel, aos 76 anos. Essa informação me garantiu a paz por muitos anos. Pensava: se eu estiver viva até lá, já vou ter rido muito disso tudo.

Pois não é que a informação estava totalmente errada? Sabato publicou seu primeiro romance aos 37 anos. Por sorte, quando eu finalmente fui checar a informação, eu já ria muito disso tudo. E nem pensei em correr atrás de alguém que tivesse publicado seu primeiro romance aos 100 anos. Ufa. (E não é que – acabo de descobrir – Emily Brontë publicou O Morro dos Ventos Uivantes aos 29 anos – e não aos 19, como eu passei a vida inteira acreditando e suspirando? Não que faça alguma diferença… Whatever.).

Não desisti de um dia escrever um romance, não. Acho mesmo que ele está mais perto, agora que eu me absolvi de escrever a grande obra da literatura mundial. Mas foi só depois de me apropriar da medida da minha vida que me descobri estonteantemente feliz como repórter, como contadora de histórias reais. Quando finalmente escrever um romance de ficção, ele só será possível porque vivi mais de duas décadas embriagada de histórias absurdamente reais e gente de carne, osso e nervos. E só será possível porque deverá estar à altura apenas de mim mesma. Só precisarei ser fiel à minha própria voz.

Porque é esta, afinal, a grande aventura da vida. Desvelar a nossa singularidade, o extraordinário de cada um de nós – descobrir a voz que é só nossa. Mesmo que essa descoberta não se torne jamais uma capa de revista. O importante é que seja um segredo nosso, um bem precioso e sem valor monetário, que guardamos entre uma dobra e outra da alma para viver com furiosa verdade esse milagre que é a vida humana.

Redescubro agora, escrevendo para vocês, de pijama e descabelada, esparramada no sofá azul da minha sala, na manhã de domingo, entre uma cuia de chimarrão e outro: adoro escrever essa coluna! Adoro! E o mais bacana nessa relação que a gente estabelece aqui é que essa conversa continua. Esse texto continuará sendo escrito não mais por mim, mas por vocês, nos comentários que virão. Essa é a mágica da internet. O texto começa e nunca termina, numa multiplicidade de vozes que o vão transformando em novas possibilidades, segundo quem acrescenta seu verbo e seu ponto. E assim uma conversa que começou noites antes, entre duas mulheres em torno de uma garrafa de vinho e uma amizade profunda, se amplia e ganha outros significados, segundo a experiência compartilhada de cada um. E não poucas vezes sou eu que me encanto, aprendo e agradeço.

Isso é grande, médio ou pequeno? Como disse minha amiga “média”, dentro de mim mora uma vida larga.

(Publicado na Revista Época em 12/10/2009)

Gentileza gera gentileza

A mais subestimada das virtudes humanas faz muita falta no mundo

Vivo num prédio em que boa parte das pessoas não dá bom dia. Nem mesmo um grunhido. Nada. Fora o resto. Na semana passada, abrimos o porta-malas do carro para retirar as compras do supermercado, bem ao lado do elevador. Duas mulheres puxaram a porta antes que conseguíssemos alcançá-la, para não ter de dividir o elevador. Puxaram a porta, porque se ela tivesse fechado naturalmente teria dado tempo de entrarmos. Dá para acreditar? Claro que dá. Volta e meia cruzo no pátio, indo ou vindo, com gente que vai ou vem – e abaixa rapidamente a cabeça para não cruzar os olhos e, então, ser obrigada a me cumprimentar. Essas pessoas não me conhecem, nem sabem se sou bacana ou chata, logo, não é pessoal. Até o zelador, cujas atribuições incluem dar bom dia, só cumprimenta quando está de bom-humor.

Então, aconteceu.

Aquele vizinho, em especial, me irritava muito, porque ignorava solenemente meus sonoros bom-dia e boa-noite. Ele simplesmente passava por mim – e por todo mundo – numa marcha militar, olhos fixos em alguma movimentação de tropas no campo adversário. Eu voltava da minha aula de pilates, na manhã de quarta-feira, toda alongada e saltitante, quando o vi avançando em passadas largas na minha direção. “Bom dia!”, eu disse. Nada. Grilos. Cri, cri, cri.

Aquilo me irritou muito. Mas muito mesmo. Não pensei. Simplesmente me virei, marchei mais rápido do que ele, postei-me na sua frente e gritei: “Bom dia! É importante dar bom dia para as pessoas!”. Ele ficou totalmente desconcertado. E o resto eu não vi, porque marchei direto para o elevador, num passo tão marcial como o dele.

Foi uma cena totalmente absurda. Eu fui absurda. Até é possível reivindicar boa educação – embora seja cada vez mais difícil. Mas é impossível exigir gentileza. E não é nada gentil obrigar alguém a ser gentil. Eu fui o oposto de gentil gritando diante do homem que ele deveria ser gentil.

Mas o episódio serviu para que eu pensasse nessa virtude tão subestimada em nosso mundo. Gentileza parece algo menor, descartável. Em alguns casos, até meio otário. Ou fora de moda. Até para escrever essa coluna me pareceu prosaico demais. Pensei: vão achar que estou sem assunto. Então, decidi correr o risco de soar piegas.

“Gentileza gera gentileza”, o título da coluna, foi tomado emprestado dele, o próprio Gentileza. Se você não o conhece, vá atrás de sua história. Garanto, vai ganhar o dia. Eu mesma, na minha ignorância, só sabia que Gentileza havia sido um poeta das ruas que escrevia pelas pilastras do Rio de Janeiro, um pouco maluco, meio folclórico, um tanto extraordinário. E que um dia foi tema de uma música de Marisa Monte. Era bem mais do que isso, descobri. Gentileza foi um grande homem, com um grande legado e uma grande vida.

Passou a maior parte dela pregando a gentileza como um modo de existir. Depois que morreu, em 1996, velhinho, aos 79 anos, a Companhia de Limpeza Urbana do Rio cobriu seus escritos nas pilastras do viaduto do Caju com tinta cinza. Não podia ser mais simbólico. O apagamento de Gentileza gerou um movimento de reação chamado “Rio com gentileza”, que resgatou o livro urbano de Gentileza e propõe a gentileza como uma forma de estar no mundo. Comecei a pesquisar sobre o Gentileza na internet e de cara entrei no site do movimento. Depois de uma delícia de passeio por lá, saí com vontade de propor o movimento Brasil com gentileza para o meu vizinho.

É sério. Parece pouco. É muito. Faz uma enorme diferença. Quando somos maltratados em algum lugar, por alguém, isso já envenena o nosso dia. E desencadeia reações desencontradas em cadeia. Por outro lado, às vezes nem percebemos, mas a beleza de outro dia, nosso suspeito bom-humor num dia comum, começou lá atrás, quando alguém teve um gesto gentil, nos acolheu com simpatia, nos tratou bem. Seja o nosso chefe, o motorista do ônibus, o balconista da padaria. Faz bem para a vida ser tratado com gentileza. E um gesto gentil também desencadeia reações similares em cadeia. Gentileza, o profeta, tinha toda a razão quando respondia aos que o chamavam de maluco: “Maluco pra te amar, louco pra te salvar”.

Gosto muito de observar as pessoas, os enredos. Percebo que grandes desencontros são desencadeados por um detalhe muito pequeno. É como aquelas cenas de animação, em que o personagem tira uma pedrinha do lugar e causa uma avalanche. Você já deve ter visto em alguma reunião de empresa ou mesmo dentro de casa ou numa repartição pública. Alguém fala algo sem nenhuma gentileza, que poderia ser dito de um jeito muito mais cuidadoso. O destinatário daquela mensagem recebe como agressão e retruca um tom acima. Daí em diante, já era. Não acaba em nada de bom.

Se cada um de nós fizer uma reconstituição mental do nosso dia, hoje mesmo, vai perceber que o pior dele foi causado porque não foram gentis conosco nem fomos gentis com os outros. Desde o bom dia que faltou, o por favor que não foi dito, a buzina desnecessária no trânsito, a cara fechada, o sorriso que economizamos, a ajuda que poderíamos ter dado e não demos, ou ainda a que não recebemos, o elogio que não veio, a crítica que deveria ter sido feita para somar, mas foi programada para massacrar, o veneno que escorreu da nossa boca e da dos outros. Uma soma de pequenos e desnecessários gastos de energia que só serviram para nos intoxicar.

Gentileza é o exercício cotidiano de vestir a pele do outro. É cuidar não de alguém, mas de qualquer um. Mesmo que ele não seja nosso parente, mesmo que seja um estranho. Cuidar por nada. Sem precisar de motivo. Cuidar por cuidar.

Por que algo tão essencial se tornou supérfluo? Porque gentileza não se consome, talvez. Não tem valor monetário. Não se ganha nada de material com ela. Também não custa nada.

Esta, em parte, é a insubordinação contida na arte de Gentileza, o poeta das ruas. Ele, que nunca aceitou um centavo pela sua gentileza. Dizia: “Cobrou é traidor – o padre tá esmolando, o pastor tá pastando e o papa tá papando, papão do capeta capital”.

O resgate desta gratuidade, de algo que é dado sem esperar nada em troca, é o que faz nosso mundo estremecer. Como o que Gentileza deu à cidade do Rio de Janeiro: não apenas seus escritos, mas seu existir. Sua estética era sua ética, ele as continha ambas no seu viver.

Era grande o que ele gerava nas vizinhanças do Caju, ao dar algo que ninguém pediu – sem querer ganhar nada com isso. Nos últimos tempos só acenando sorridente ao lado de sua obra física. Suavemente ele punha abaixo a lógica do mundo. Só sendo. E ser era tão subversivo que, na época da ditadura, chegaram a achar que Gentileza era comunista. Teve de dar explicações às autoridades sobre as iniciais PC do estandarte que então carregava pelas ruas: não, não, PC não era Partido Comunista, mas Pai Criador.

Hoje, tratar mal as pessoas, marchar pelos corredores, fechar a cara, não dar bom dia e dizer coisas duras sem nenhum cuidado parece ser um atributo dos poderosos. Quase uma virtude. Ao conhecer alguns CEOs por aí, fico imaginando se no currículo deles está escrito: “Há 20 anos grita com quem está abaixo dele na hierarquia”. Ou: “Tem PhD por Harvard em humilhação dos subordinados”. Ou ainda: “Massacra os funcionários em inglês fluente, mas se for necessário pode xingar também em francês e mandarim”.

O conjunto de características que costuma cercar o poder é imediatamente incorporado pelos subordinados. Nessa lógica, há sempre alguém mais ferrado que podemos maltratar, a quem não precisamos beneficiar não com a nossa gentileza, porque gentileza não tem nada a ver com isso, mas a quem não precisamos beneficiar com a nossa bajulação. Canso de ver motoboys ser maltratados por recepcionistas de empresas chiques, enquanto me tratam bem porque numa rápida avaliação da minha roupa acreditam que talvez, quem sabe, posso ser alguém importante. Canso também de ser gentil e, por isso, ser tratada com rispidez, porque confundem minha gentileza com fraqueza. Recuso-me a embarcar nessa lógica que me obrigaria a falar alto e exalar arrogância para ser tratada com deferência. Prefiro falar com delicadeza e exalar apenas o meu perfume.

Acho que ser gentil não é nada prosaico, é um ato de resistência diante de uma vida determinada por valores calculáveis: só faço tal coisa se ganhar algo em troca, seja dinheiro ou um dos muitos pequenos poderes ou um ponto a mais com quem manda. A gentileza vira essa lógica do avesso: sou gentil sem esperar nada em troca. Sou gentil porque sou. Não porque tenho ou porque quero. Apenas sou. E, como sabemos, o ter – o consumir desenfreado – é aquele que vai tentar preencher o buraco aberto pela impossibilidade do ser.

Numa de suas internações porque alguém decidiu que ele era louco, Gentileza passava os dias com os outros internos ao redor, pregando sua gentileza. Até que um psiquiatra teria dito: “Gentileza, você veio aqui para nós te curarmos ou para você nos curar?”. Alguém que, como ele, havia se desfeito de todo o patrimônio para pregar a gentileza só poderia mesmo ser considerado louco nesse mundo. Mas, ainda bem, havia um médico que também era um pouco doido para devolver Gentileza às ruas.

Dia desses flagrei-me sendo indelicada com a moça do telemarketing. Me senti muito mal. É chato, todo mundo sabe. Ela também acha chato, tenho certeza, ter de falar como um robô horas a fio, dia após dia. É bem pior para ela do que para mim. Desde então, tenho me esforçado. Pouco antes de começar a escrever esse texto peguei a mim mesma respondendo secamente a uma assessora de imprensa que ligou, errando o meu nome (Elaine Blum) e perguntando se eu trabalhava com um tema que não tem nada a ver com o que faço. É verdade que não é legal errar o nome e a área das pessoas para quem queremos dar uma informação, mas também é óbvio que ela preferia acertar. Às vezes até nos convencemos que temos razão de sermos incivilizados, mas não temos. Se tínhamos alguma, a perdemos no momento em que agimos mal. E sempre há um jeito de dizer, mesmo coisas muito duras, sem arrasar quem nos escuta.

Tenho uma grande amiga que se apaixonou por um homem numa festa. Foi um dos poucos casos de amor ao primeiro gesto que testemunhei. Ela derrubou comida na roupa e ele imediatamente pegou um guardanapo para ajudá-la a se limpar. Logo depois, a encontrei no banheiro e ela me pegou pelo braço: “Vou casar com aquele cara”. E eu, chocada diante de alguém que era famosa por ser avessa a casamento: “Como assim?” E ela: “Ele é gentil”. Ele era – e é – um homem incrivelmente gentil. Estão juntos há sete anos, e o deles é um dos casamentos mais felizes que conheço. Minha amiga, que tinha alguns cantos bem abruptos, ganhou contornos mais arredondados: descobriu que também havia uma mulher gentil morando dentro dela.

Gentileza não é mesmo algo que temos, é mais algo que somos. E que nos tornamos. Talvez o verdadeiro poder esteja naquele que pode dar sem esperar nada em troca. Como Gentileza.

Assim como inventaram um dia sem carro, acho que podíamos criar um dia com gentileza. Não precisa ser uma campanha de massa, basta uma decisão interna, silenciosa, de cada um. Só para experimentar. Um dia só tentando ser gentil. Engolindo a palavra ríspida, calando a fofoca ainda no esôfago, olhando de verdade para as pessoas, escutando o que o outro tem a dizer, mesmo que não nos pareça tão interessante, sorrindo um pouco mais.

Pequenos gestos. Segurar o elevador, dar oi e dar tchau, não se atravessar na frente de ninguém nem sair correndo para ser o primeiro, ter paciência em vez de se irritar, elogiar um pouco mais, deixar passar o que não foi tão legal, mas também não foi tão grave e, quando a crítica for imprescindível, abusar da delicadeza. Um dia só, mesmo que seja apenas para experimentar algo diferente.

Quem sabe o que pode acontecer?

(Publicado na Revista Época em 05/10/2009)

Entre os muros da outra escola

Está na hora de enfrentar a violência também no ensino privado

Eu a conheci anos atrás. Conquistou-me de imediato. É cada vez mais raro encontrar uma criança bem educada, que diz por favor, obrigada e com licença. Que pede desculpas se esbarra em você sem querer. Que dá oi e dá tchau. Que pergunta se você está bem. Ela é assim. É agora, aos 11, quase 12 anos. Era aos 5, quando nos encontramos. Gostava de barbie e de desenhos animados, mas vez ou outra assistia a algum filme do expressionismo alemão com interesse. Ouvia Palavra Cantada e Chico Buarque com igual deleite. Éramos ambas – e somos até hoje – fãs quase fanáticas dos livros do Harry Potter. Filha de mãe escritora, pai economista, ela tinha, ao mesmo tempo, estímulo para voos intelectuais mais largos e respeito por seus gostos infantis, o que sempre me pareceu um jeito sábio de educar. Para mim, ela sempre foi impossível de não se gostar.

É triste não poder aqui colocar o nome desta menina tão especial. Mas seu nome não será revelado para protegê-la de seus colegas, precaução por si só chocante. Na semana passada eu soube por sua mãe que ela deixaria a escola que cursa há anos. Foi sendo expulsa pelos colegas, sem que os professores nada fizessem. Estuda numa das escolas de elite de São Paulo. Bom projeto pedagógico, turmas pequenas, inclusão de crianças com necessidades especiais. Tudo de bom e de moderno, aparentemente. O que, então, aconteceu, para que uma boa aluna, uma garota afetuosa e bem educada, tenha de partir porque a escola se tornou um filme de horror?

Muito se escreve e se fala sobre a violência nas escolas públicas. E o tema é sério e relevante. Mas está na hora de prestarmos mais atenção no que ocorre na outra ponta da desigualdade social refletida no sistema de ensino brasileiro: as escolas privadas de elite. Diante da piora progressiva da qualidade da escola pública, a classe média vem esfolando o orçamento para matricular seus filhos em escolas privadas, com a convicção de que assim têm mais chance em um mundo competitivo.

Por que a classe média não brigou – e não briga – pela qualidade do ensino público em vez de se bandear para a educação privada? Eu mesma cursei o ensino médio em escola pública (uma péssima escola pública, diga-se), mas tomei o mesmo caminho de boa parte dos pais de classe média ao matricular minha filha: esfalfei-me durante 11 anos para pagar um dos colégios privados mais caros de Porto Alegre. Por que não fui brigar por qualidade de ensino dentro da escola pública? Por amor pela minha filha, sem dúvida, mas também por empatia de menos pelo destino dos filhos dos mais pobres, provavelmente. Na hora de escolher, optei por resolver o problema “dos meus”.

Muitas vezes, eu deixava de pagar todas as contas para pagar a escola. Nunca atrasei o colégio para que ela não sofresse constrangimento, nem a luz para não ficarmos no escuro. O restante das despesas atrasei todas durante boa parte desse período, o que me rendia noites recorrentes de insônia e humilhações sem fim diante de gerentes de banco. Mesmo assim, nunca me passou pela cabeça matriculá-la numa escola pública, tão certa eu estava de que fazia o melhor – para a minha filha.

O péssimo desempenho do Estado na educação e a falta de cidadania de gente como eu permitiu que essa situação se perpetuasse até níveis inacreditáveis. O resultado estamos amargando faz tempo, mas não tenho dúvida de que será muito pior em sentidos que ainda não alcançamos por inteiro. As escolas talvez sejam as maiores reprodutoras de desigualdade. Não apenas na questão da qualidade, que determina destinos. Mas no convívio cotidiano, no (não) exercício da solidariedade e do respeito às diferenças. Seja nas públicas ou nas privadas, o que encontramos é uma convivência entre iguais. Nossos filhos não conhecem a diferença, não são beneficiados pela riqueza da diversidade. Não conjugam a tolerância. Quando confrontados com a diferença – e não apenas a socioeconômica –, expulsam-na.

Foi o que aconteceu com a menina desta história. Tempos atrás, ela ligou para a mãe no recreio, implorando para que fosse buscá-la. “Eu não suporto mais ficar aqui”, disse. Suava muito, desesperava-se. Sua mãe respondeu que ela precisava permanecer. E ela está resistindo como pode até o final do ano, para então trocar de escola.

Liguei para minha pequena amiga para saber o que estava acontecendo e propus uma entrevista. Em off, para que ela não fosse mais trucidada na escola do que já é. Ela topou. E aqui está a transcrição literal da nossa conversa, para que seu testemunho possa nos ajudar a pensarmos juntos num problema que é de todos.

Eu: O que aconteceu?
Ela: Eu não sou aceita. Meus colegas me acham meio estranha. Acho que me acham idiota.

Eu: Mas por quê?
Ela: Eu não gosto das conversas deles, me sinto mal. Acho que tenho um jeito diferente de pensar que eles acham bobo.

Eu: Mas que jeito é este?
Ela: Eles gostam de ficar ridicularizando os outros. Eu não quero fazer isso.

Eu: Mas quem eles ridicularizam?
Ela: Nossos colegas que têm dificuldade (portadores de necessidades especiais). Eles às vezes precisam fazer provas mais fáceis. Aí chamam eles de burros, de idiotas. Eu acho isso muito injusto. Queria poder fazer alguma coisa, mas eu não sei o que fazer. E os professores não fazem nada.

Eu: Quem mais eles ridicularizam?
Ela: Gente que não usa roupa de marca, que não gosta do que eles gostam.

Eu: E do que eles gostam?
Ela: De funk, por exemplo. Adoram funk. Eu não gosto de funk, daquelas letras. É muito sem conteúdo. Mas gosto da Hannah Montana e da Rihanna. Eles também gostam daqueles programas de TV que ridicularizam as pessoas. Acham que isso é engraçado. E ficam falando das marcas das roupas que usam. Ah, essa calça é da marca tal. Esses dias uma menina disse para a outra: “Ah, o seu pai é milionário”. Aí essa menina respondeu: “Mi não. Bi-lionário”. Pensei: “E você é bi-polar”. Pensei, mas não disse.

Eu: E o que começaram a fazer contigo?
Ela: Eles não falam comigo. Eu pergunto, não respondem. Sabe, teve uma festa, uma balada, mesmo, que convidaram todo mundo. Eu fui uma das poucas que não fui convidada. Aí só ficavam falando nesta festa. E eu não sei por que eu não fui convidada. Eu nunca fiz nada de ruim para nenhum deles. Não entendo por que não gostam de mim. Minha melhor amiga também começou a me ignorar. Eu chego, ela sai de perto. Ela começou a ficar popular na escola.

Eu: E o que é ser popular na escola?
Ela: É usar roupa de marca e sair pisando em todo mundo.

Eu: O que mais te faz sofrer?
Ela: Ficar sozinha no recreio. Eu queria brincar, conversar, mas não tenho com quem. Só eu e o menino com problema mental ficamos sozinhos no recreio. É muito ruim ficar sozinha no recreio. Eu fico muito triste.

Eu: E por que você não fica com o menino com problema mental?
Ela: Porque ele é menino. Eu não tenho muito o que conversar com menino. Mas eu queria poder fazer alguma coisa. Porque ele fica lá sozinho, desenhando. E eu sei como é ruim ficar sozinha no recreio.

Eu: Por que você acha que seus colegas são assim?
Ela: Eles são que nem os pais deles. Nessa coisa das marcas, do dinheiro. Mas quem cria meus colegas, mesmo, não são os pais. Eles nunca ficam com eles. Eles estão trabalhando ou em jantares. Meus colegas são criados pelas babás. Elas são as mães de verdade deles.

Eu: E como eles tratam os professores?
Ela: Essa minha ex-amiga chama a coordenadora de “idiota” e de “imbecil” na frente dela. Não é pelas costas, é na frente. Ela acha que o pai vai pagar para ela passar de ano. Numa excursão, teve um colega que disse para o monitor: “Essa sua profissão é uma m…”. Eles são assim. Acham que vão herdar o dinheiro dos pais. Mas eu tenho impressão que vão gastar todo o dinheiro bem rápido. E aí não sei como vão fazer para trabalhar.

Eu: Você chora muito?
Ela: Antes eu chorava. Teve um dia que pedi para minha mãe me tirar de lá. Liguei para minha mãe no recreio. Não sei por que eu fiquei assim tão mal. Eu suava. Sabe, fiquei desesperada. Mas agora aprendi a lidar com isso. Estou administrando melhor a situação. Levo um livro para o recreio. Agora estou lendo “Coraline e o mundo secreto”. Você viu o filme? Foi baseado no livro.

Eu: E quando você decidiu mudar de escola?
Ela: Quando fui sentar ao lado de um menino e ele disse: “Desinfeta daí”. Eu fiquei sentada onde eu estava. Mas sei que ele não diria isso para outra menina. Acho que falou para mim porque eu não fui convidada para aquela festa. Eu estava aguentando, mas aí foi a gota d’água.

Eu: Você acha que no novo colégio vai ser diferente?
Ela: É uma escola maior. Tem mais gente. Então, deve ter alguém mais parecido comigo, né?

Espero que sim. Desliguei o telefone com medo dos pequenos monstros que conseguem expulsar de seu mundinho alguém tão doce quanto a minha amiga. O que eles vão fazer com o mundo maior quando crescerem? Que tipo de elite nossas escolas estão formando, para além de se dar bem no vestibular e no mercado de trabalho? O cotidiano nas escolas privadas do país pode ajudar a explicar o que acontece hoje nas esferas de poder da vida brasileira.

A crueldade infantil não é novidade. O massacre daqueles que usam óculos, são gordos ou diferentes de alguma maneira é um clássico. Bullying é a palavra inglesa para o abuso físico e psicológico cometido contra indivíduos e grupos mais fracos. Nos últimos anos, tem crescido o número de reportagens na imprensa sobre o bullying na escola. Parece-me que há algo novo neste cenário. E bem mais perverso do que as formas habituais de maldade infantil.

Minha amiga foi sendo expulsa porque está sozinha. Sua esperança na nova escola é conseguir formar um grupo com valores mais semelhantes aos dela para resistir. Para, de alguma maneira, sentir-se parte, para então ter alguma possibilidade de interlocução com outros modos de existir. O modelo brasileiro de ensino – resultado de uma das maiores desigualdades do planeta e do declínio da escola pública – caracteriza-se por um mundo escolar cada vez mais igual dentro dos muros. Nos respectivos guetos, o espaço para toda a diferença parece ter sido suprimido.

Estou generalizando? Pode ser. Mas apenas converse com um professor de escola privada de elite para que ele conte suas peripécias cotidianas com estes mais iguais que os outros. Já tenho sido vítima destas crianças sem limites, sem cultura e sem educação que me atropelam nos corredores dos shoppings e restaurantes, que gritam suas exigências e fazem cenas públicas, sem que seus pais tomem qualquer atitude além de prometer algo em troca de sua colaboração.

Acho que está passando da hora de entender que há um tipo de violência sendo exercido e perpetuado nas escolas privadas de elite. E que essa violência é refletida também lá, nas escolas de periferia, onde a agressão é armada. As violências destes mundos escolares só aparentemente antagônicos se retroalimentam. Uma existe também por causa da outra. Há uma infância supostamente protegida e com todos os acessos abertos ao conhecimento e ao melhor que o dinheiro pode comprar – e outra desprotegida de tudo, que só recebe o pior. Separadas por grades, muros e cercas eletrificadas, uma desconhece a outra. Muitas vezes vão se cruzar mais tarde, pela violência, em alguma esquina da cidade. E são os pais e as mães destes meninos desprotegidos que alguns dos protegidos desrespeitam nos corredores de suas escolas iluminadas, ao encontrarem-nos limpando o chão ou exercendo serviços que consideram, como disse o menino na excursão, “uma m.”.

A escola deveria promover a intersecção dos mundos. É nos bancos escolares que as diferentes realidades – não só a socioeconômica, mas também ela – deveriam se cruzar e dialogar. É na desigualdade de ideias, de culturas e de visões de mundo que se aprende e se avança. Esta desigualdade do bem, porém, foi banida do modelo de ensino. Em vez disso, a escola transformou-se em reprodutora da desigualdade perversa: a socioeconômica, com todos os seus (des)valores correlatos. A escola é resultado da desigualdade socioeconômica e de uma sucessão de políticas desastrosas de ensino. Mas, se é criatura deste mundo, é também criadora, ao reproduzi-lo. Ao transformar-se numa linha de produção da desigualdade que beneficia os mais iguais de sempre, deixa de educar. Este, me parece, é o dilema atual. Ou, pelo menos, um dos grandes.

A ilusão dos pais de filhos em escolas privadas é de que, ao colocá-los lá, garantem a sua proteção. Seus filhos não perdem nada. Quem perde são os filhos dos outros, que não conseguem pagar a mensalidade. Engano. Perdemos todos. A eliminação da diversidade trará consequências mais perversas do que me parece que pais e autoridades têm percebido. Sem diferença não há diálogo. É possível educar sem diversidade? Há aprendizado de fato sem dissonância? Duvido.

Nas escolas de elite, os estudantes ameaçam professores e funcionários não com pistolas, mas com outro tipo de arma: “Sou eu que pago seu salário!” ou “Meu pai vai mandar te demitir!”. Quantos professores já não ouviram frases como essa ao tentar impor limites na sala de aula para esses projetos de déspotas? Já testemunhei professores esvaindo-se em lágrimas e jurando mudar de profissão. E não davam aulas em escolas com esgoto a céu aberto.

“Estas crianças são criadas pelas babás”, disse a mãe da minha amiga. “Ou seja: elas já mandam desde pequenas naquelas que deveriam ser uma autoridade. Se elas podem demitir a pessoa que está no lugar de autoridade, o que se pode esperar?” Ela tem razão. E é bom começarmos a refletir com mais seriedade sobre esse fenômeno contemporâneo.

Minha filha sofreu muito na escola privada. Ela não tinha tênis nem roupas de grife, entre outros defeitos inaceitáveis. Eu disse a ela que o mundo era duro e que ela precisava enfrentar esse tipo de gente desde sempre. Ela enfrentou. Na vigésima vez que o filhinho de papai ridicularizou a sua roupa, ela bateu no menino. Foi uma boa saída? Claro que não. Mas foi o que ela conseguiu fazer diante da minha surdez.

O mais curioso, mas nem tanto, é que em vez de minha filha ser punida por ter agredido o colega, foi parabenizada pelos professores. Um a um eles vinham cumprimentá-la e dar parabéns. De algum modo, ela vingava a humilhação cotidiana de todos eles. Mas seria esta uma boa pedagogia? Estaria esta resposta à altura de alguém que estava ali para ensinar? O episódio não teria sido uma boa oportunidade para discutir, refletir e aprender? Parece-me que também os professores, por diversas razões – e também pela humilhação cotidiana –, não conseguiam estar no lugar que deveriam, não era possível ali a dialética entre mestre e discípulo.

“Talvez tudo o que esses garotos sabem dos pais é que são ricos. Criados por babás, tentam manter esse traço, esse significante do rico/pobre para manter em si os pais que de certo modo não existem”, comentou minha filha, hoje adulta, depois de ler este texto. “Não estou justificando”, disse. “Só pensando.” Seu comentário me fez perceber que estas crianças e adolescentes que fazem sofrer também devem sofrer muito. Afinal, eles não são monstrinhos, como tendemos a pensar. Se fossem, seria mais fácil. São gente. E gente sofre.

Desejo sorte à minha pequena amiga na nova escola. A melhor resistência é continuar sendo ela mesma. Mas temo pela sorte de todos nós no futuro próximo se não enfrentarmos a violência não apenas nas escolas da periferia, mas nos prédios imponentes e caros do lado privilegiado do mundo. Uma violência que começa não fora, mas dentro de casa, tendo os pais como cúmplices – quando não como exemplos.

(Publicado na Revista Época em 28/09/2009)

 

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