A forma como você conta a sua vida muda a própria vida
Eu sempre me senti como Cheherazade, a moça esperta das mil e uma noites. Não porque sou esperta, mas porque de algum modo sempre soube que contar histórias me salvava de perder não a cabeça, como era o caso de Cheherazade, mas de perder a mim mesma. Quando era muito pequena e ainda não sabia ler, imaginava histórias para escapar do medo do escuro. Contava para mim mesma na minha cama de bebê crescido. Quando entrei na escola, imaginava enredos que me carregavam para além das crueldades infantis que me aterrorizavam tanto ou mais que os monstros noturnos. Quando cresci virei jornalista e passei a contar histórias reais para poder viver. Sempre soube que contar histórias me salvava da versão adulta do medo do escuro. Agora, que sou gente grande, contar histórias ordena o caos da vida, me dá sentido e identidade.
Ao tornar-me uma narradora de vidas fui aprendendo algo determinante para o curso da minha existência. Toda vida é uma invenção própria. Não que ela não seja feita de fatos, de dados concretos, de eventos incontroláveis. O que é absolutamente uma criação própria é a forma como cada um olha para a sua vida.
De fato, há uma só existência. Mas são várias as possibilidades de narrativas desta mesma existência. Um mesmo episódio, por exemplo, vivido por você e por sua mãe, será contado de maneira às vezes totalmente diversa por você e por ela. E ninguém estará mentindo. Da mesma forma, o mesmo fato vivido por você poderá ser narrado de formas opostas por você mesmo, em momentos diferentes da sua vida. E você estará sendo verdadeiro em ambas as ocasiões.
Isso não significa distorcer o que acontece ou aconteceu. Apenas que há muitas possibilidades de olhar para o que acontece ou aconteceu. Há muitas verdades possíveis. E é a escolha de como olhar para os eventos (ou a falta deles) de sua vida que vai determinar a própria vida. Ou seja: ao escolher como olhar para sua vida você escolhe quem você é.
Quando olho para trás, para os 43 anos transcorridos da minha vida, posso vê-la como um filme de terror. Durante muito tempo era assim que eu via a sequência de episódios que me constituía. E vivia envenenada por isso. Aos poucos, eu mesma fui enjoando dessa narrativa. Cansei do papel de mulher atormentada que havia sido destroçada pelos moinhos de Cartola. Resumindo: eu me via como uma heroína de romance clássico. Comecei a perceber que era heroína de folhetim de banca de revista. E não gostei muito da queda de hierarquia na literatura mundial.
Hoje, olho para a mesmíssima sequência encadeada de episódios como uma vida com alguns pesadelos e tropeços, mas com muita diversão e intensidade também. Uma vida, enfim, misturada, com um pouco de tudo como são as vidas, e que me trouxe até aqui e ainda me levará a muitos lugares. E até olho para aquela personagem grandiloquente que eu era com ternura.
O que aconteceu? Descobri que o poder de contar minha história está em mim. É meu. Sou eu que decido quais são os pontos culminantes, os ápices da minha existência, ao olhar para o passado e escolher o que vai dar sentido ao presente e somar no futuro. Da mesma forma que um roteirista de cinema sabe que é preciso mesclar silêncios, drama, diálogos inteligentes, conversas banais, respiro cômico e também esquecimentos. E são os cortes no momento da edição que vão garantir o ritmo do filme.
Hoje não tenho a menor paciência com gente de 40 anos – ou mesmo de 20 ou 30 – que continua culpando a mãe, o pai ou as agruras da infância por tudo o que pensa que deveria ter conquistado e não conquistou. Ou gente que culpa o chefe ou a suposta falta de oportunidades por tudo o que deveria ser profissionalmente e não é. Sua história é medíocre por culpa do mundo, parece que a pessoa não tem nada a ver com isso. Só estava passando quando virou personagem de um conto do vigário.
Gente assim gasta a vida repetindo a mesma ladainha, contando a mesma história para si mesmo – e para os outros. É um disco quebrado. Como a vida vai mudar se o dono da história só enxerga um enredo possível? Ao observar esse tipo de personagem percebi que, na verdade, ele não quer mudar. Só diz que quer – e afirma não conseguir por fatos externos à sua vontade.
A história é chata, dá sono no meio, mas é segura. Gente assim morre de medo do desconhecido. Prefere uma existência de vítima do mundo a se arriscar a enxergar-se de outro modo. Há um momento em que é preciso se responsabilizar pela vida, por contar sua história. Ou ficar para sempre refém de versões alheias sobre a nossa existência.
Quem me ensinou que a vida pode ser reinventada a qualquer momento foram as pessoas que, nos últimos 21 anos, me contaram suas histórias. Quando escrevia uma coluna semanal chamada A Vida Que Ninguém Vê, que depois virou livro, conheci um homem que ilustra como ninguém essa ideia. Vanderlei era o seu nome. Ele era aquele tipo de gente que costumamos reduzir à personagem folclórico.
Muito pobre e um tanto estropiado, todo ano ele aparecia na Expointer, a maior feira agropecuária do Rio Grande do Sul, com um cabo de vassoura. Dizia que o cabo de vassoura era seu cavalo de raça. Passava pela inspeção veterinária, cumpria os trâmites burocráticos. E lá ficava cavalgando pelos campos da exposição. Os “normais” da feira achavam muita graça, tanta que até alimentavam-no e deixavam que dormisse por ali. Vanderlei era o louquinho da Expointer.
Um dia, na busca de gente para contar histórias, emparelhei meu cavalo com o dele. Perguntei: “Vanderlei, você é louco?”. E começamos a conversar. A certa altura ele disse: “Você acha que eu não sei que meu cavalo é um cabo de vassoura? Mas pensa, raciocina (e batia a mão fechada na cabeça). Eu nunca vou ter um cavalo de verdade. Você não acha melhor eu acreditar que o cabo de vassoura é um cavalo?”. Só me restou o silêncio. Se ele era louco, eu era o quê?
Vanderlei desejava tanto um cavalo que deu patas, crinas, carne, ossos e sangue a um cabo de vassoura. Reinventou sua vida da maneira que lhe foi possível. Com a infinita liberdade conquistada, para Vanderlei tanto fazia se era um cavalo ou um cabo de vassoura. Tornara-se capaz de entregar-se ao galope desenfreado de um pampa imaginário. Afinal, quem diz o que é um cavalo ou o que é um cabo de vassoura?
Ele é um exemplo radical de reinvenção da vida. Nem todos, porém, são capazes de enxergar com a larga liberdade de Vanderlei. Nem todos viveram todas as suas faltas. O que podemos é escolher se vamos olhar com generosidade para a nossa vida – e para a vida do outro – ou vamos gastá-la inteira nos lamuriando de nossa pouca sorte.
Na semana passada, nesta coluna, contei a história de algumas pessoas cegas que conheci – e que me ajudaram a enxergar. Uma delas era Leniro Alves, que poderia chorar com cada tropeço literal de sua existência cheia de obstáculos concretos. Leniro prefere rir de seus escorregões e gafes. Escolheu como quer olhar para sua deficiência visual. Em vez de escolher ser cego dos olhos e de alma, preferiu aprender a ver de outro jeito com as possibilidades que tinha.
Como olhar para a própria vida é uma escolha que não depende nem de escolaridade nem de classe social. Até mesmo o mendigo da esquina pode optar se prefere aceitar o olhar alheio, que o coloca no mesmo nível do cocô de cachorro achatado no meio-fio, ou se prefere virar escritor das ruas, como fez Tião Nicomedes, uma outra história que já contei aqui.
Qualquer um pode escolher como olhar para si mesmo. Todo homem e toda mulher contêm em si pelo menos dois espelhos: um deles o reflete como silhueta sem rosto definido, manchado na multidão, destituído de importância; o outro o revela único, singular, um evento histórico irrepetível. É o mesmo homem ou mulher que pode olhar apenas para o chão e se identificar com a meleca que cola nos seus sapatos ou olhar para cima e se reconhecer na matéria das estrelas.
Ambas as identificações são fatos comprovados pela ciência. Basta escolher em que espelho prefere se reconhecer. Parece-me no mínimo curioso que uma parte considerável das pessoas escolhe se identificar com a meleca. E viver de acordo.
De certo modo, temos todos a escolha de ser Cheherazade, a moça esperta das mil e uma noites, que decidiu contar histórias para manter a narrativa da sua própria. Ou podemos ser todas as moças não muito espertas que perderam a cabeça antes dela porque deixaram que o sultão decidisse o fim da sua história.
(Publicado na Revista Época em 26/10/2009)