Vestiu a camisa do Corinthians e foi à formatura da filha

Amanda, filha de Estela e de Hustene, tornou-se enfermeira diplomada – um marco na história da família Costa Pereira, da Grande São Paulo. Eles estão entre os cerca de 40 milhões de brasileiros que ingressaram na classe C entre 2003 e 2011. Este é mais um capítulo da saga brasileira que acompanho há uma década

Hustene Pereira, 52 anos, nunca tinha visto lugar tão chique. A casa de espetáculos Skyline fica em Alphaville, um condomínio fechado nos arredores de São Paulo que tenta imitar um daqueles subúrbios americanos com grandes casas e ruas bucólicas que vemos nos filmes de Hollywood. Nos filmes e seriados, é lá que as piores coisas acontecem. Aqui, a história é muito menos óbvia. Na segunda-feira, 16 de janeiro de 2011 – datas históricas exigem completude –, houve certo burburinho quando aquele homem entrou no salão vestido com uma camisa do Corinthians. “Não a do time, mas uma de gala”, Hustene explica. Entre engravatados e mulheres de longos brilhantes, ele era uma aparição inusitada. Ao seu lado, sua mulher, Estela Costa, 45 anos, três quilos e meio mais magra para a ocasião, exibia uma elegância clássica em um vestido doado por uma quase parenta, e teria se harmonizado com a etiqueta do entorno, não fosse o marido em “Corinthians-gala”. Hustene e Estela estavam ali para testemunhar algo inédito na história da família: a primeira Costa Pereira, entre todas as gerações, a receber um diploma universitário. Amanda, 27 anos, sairia dali enfermeira.

É tão grande, mas tão grande, que Hustene, a quem nunca faltam palavras, só encontrou uma para descrever: “indescritível”. É Estela, que só pôde estudar até a quinta série, quem traduz com uma metáfora: “Eu nunca sonhei que um dia pudesse ver uma filha formada, nunca pensei que algo assim pudesse acontecer com pessoas como nós. Quando eu vi minha filha lá, recebendo o diploma, para mim era um outro parto. Um ainda mais gostoso do que o primeiro. Era a minha criação que estava ali”. Estela chora. Chora com soluços fundos. E só quem viu Estela chorar por tanta falta de comida, por tanta falta de saúde, por tanta falta de tudo, consegue não alcançar, mas ao menos chegar perto, da exorbitância daquela cena: Amanda no palco, com o chapéu de formanda na cabeça, e Estela, sempre tão contida, gritando seu nome, de pé. Hustene olha para Estela e também vira água. Não é pouco chorar de felicidade.

Gente como Hustene e Estela faz parte da maioria de brasileiros que há séculos constrói o Brasil, dia após dia, mas não é contada na História. Até pouco tempo atrás, eles só existiam como estatística. Desde que entraram no mundo do mercado ao virar classe C, respondendo por 46% do consumo no Brasil, segundo pesquisa da Fundação Getúlio Vargas, tornaram-se um desafio para marqueteiros, publicitários e ólogos de todo tipo. De que carne são feitos?, é a pergunta do mercado e da academia.

Acompanho a família Costa Pereira há uma década – desde o último ano do governo Fernando Henrique Cardoso, quando Hustene era mais um chefe de família desempregado. Quando nos encontramos pela primeira vez, na virada de 2001 para 2002, eles pertenciam à outra classificação: “excluídos”. Graças à generosidade dessa família, ao me abrir as portas da casa e da vida, testemunhei pelos seus olhos as mudanças ocorridas ao longo de todo o governo Lula. E, agora, também no de Dilma Rousseff.

Quem tiver interesse pode acompanhar os principais capítulos do percurso dos Costa Pereira neste século nos seguintes textos, por ordem cronológica: “O Homem-Estatística”, “Ao amigo presidente”, “Hustene chorou baixinho”, “Uma família no governo Lula”, “A história dentro da história”. Acredito que a saga dessa família vai muito além de uma transição da classe D, às vezes E, para a classe C. Este é apenas um recorte. A história humana transcende as classificações e, encarnada na vida, tem natureza imprevista.

No capítulo mais recente, Hustene exibe um peito estufado embaixo da camisa do Timão. Topetudo como sempre, motivo pelo qual ganhou na juventude o apelido de “Pankinha” (originado do substantivo “panca”), ele assim descreve sua entrada triunfal no salão para assistir à colação de grau da filha: “Eu era o mais bem trajado”. Horas depois, a família trocaria a latinha de cerveja de “absurdos” 7 reais da casa de Alphaville por uma comemoração na rede de lanches árabes Habib’s. “É muito melhor do que o McDonald’s”, garante Estela.

A formatura, o vestido e o cardápio

A formatura de Amanda, cujo nome foi dado por Hustene em homenagem à música de Taiguara, há algum tempo vem mudando a rotina da família. Ao ingressar na universidade, Amanda progressivamente passou a ocupar um novo lugar na estrutura familiar: o de quem detém um saber que ninguém mais tem. É Amanda quem orienta os pais, os irmãos e a sobrinha nas questões de saúde e alimentação. É também ela que é chamada para socorrer nos embaraços do mundo feminino. Como quando Estela começou a sofrer com o aquecimento global da menopausa e, há pouco, quando a neta Gabriele, de 11 anos, “ficou mocinha”. Envergonhada, Gabi não contou a ninguém. Só quis conversa com Amanda.

Quando Estela enfiou na cabeça que devia emagrecer para fazer bonito no vestido da formatura, tinha comprovado que a ascensão social poderia ser medida não só em renda – mas em quilos. Nos últimos anos, o carrinho de supermercado passou a se encher de produtos industrializados e apenas Hustene alargou em mais de 20 quilos. Segundo sua própria versão, adquiriu um porte de Ronaldo Fenômeno.

A família passou a identificar as fotos do passado recente, em que estavam todos “magrinhos”, como “nós no tempo do Fernando Henrique”. Nos anos de desemprego, Estela já era uma cozinheira criativa, que fazia milagres com ovo e farinha. Com o acesso à internet, ela passou a pesquisar, com afinco de exploradora, novas receitas nos sites de gastronomia, povoando a mesa de delícias e calorias. “Agora, até a Pantera está gorda”, resume Estela. Pantera é a cachorra.

No final de 2011, a obstinação de Estela em ficar elegante no vestido da formatura da filha deflagrou uma mudança na mesa dos Costa Pereira. Estela nem lembra quanto tempo faz que sentiu na boca a textura de um pão francês. O açúcar dos doces e bolos foi substituído por frutas e gelatina. As frituras diminuíram, e a carne passou a ser cozida. Duas vezes por semana, Estela troca a “mistura” (carne vermelha) por peixe, aproveitando as promoções que espia nas caminhadas diárias que faz com uma prima. Granola, linhaça e iogurte natural também entraram no vocabulário e no menu. A tudo, Hustene grita, só para implicar: “Prefiro ovo frito!”.

Ao tentar botar na mesa da família um cardápio mais saudável, Estela descobriu que não seria tão fácil. A garantia de alimentação foi uma conquista enorme, mas os melhores produtos ainda estão fora do alcance da “nova classe média”. Deixar de correr o risco da obesidade, um problema crescente no Brasil, como mostra a experiência cotidiana de chefes de família como Estela, depende da educação e das mudanças de hábito, mas depende também de preço. Estela bem que tentou trocar o óleo de soja por óleo de girassol. Mas, enquanto encontra óleo de soja por R$ 2,59 – e até R$ 1,58 nas promoções –, o de girassol custa mais do que o dobro. “E o de canola é mais caro ainda.” Estela também substituiu o arroz branco pelo integral, mas os preços a obrigaram a recuar. “Eu gasto R$ 4,30 por 1 quilo de arroz integral – e compro 5 quilos do branco por R$ 5,80”, exemplifica. “Numa família que consome 1 quilo de arroz por dia, entre o almoço e a janta, não dá.” Estela faz o que dá e até mais, patrulhando Osasco, na Grande São Paulo, semana após semana em busca de promoções.

O caminho privado da nova classe média

Uma terceira novidade colaborou para a mudança no cardápio. Hoje, apenas Hustene, Estela e a neta Gabriele, criada na casa dos avós, dependem do SUS. Os filhos trabalham com carteira assinada e têm plano privado de saúde como benefício das empresas. Foi pela facilidade de acesso médico que Diego, 24 anos, descobriu uma infecção no fígado causada pelo excesso de consumo de gordura, e Rodrigo, 29 anos, passou a ser acompanhado por uma nutricionista. Depois de perder 10 quilos e achá-los um por um, Rodrigo acabou concluindo que é mais fácil emagrecer fazendo uma cirurgia de redução do estômago.

Nesse aspecto, os Costa Pereira começam a se parecer cada vez mais com a classe média tradicional. Na família, apenas Hustene torce o nariz para a saúde privada. Ele, cujo corpo é uma denúncia ambulante da deficiência da saúde pública, acredita que o SUS precisa persistir e melhorar para que os brasileiros tenham acesso à assistência de qualidade. A convicção revela a força do caráter de Hustene: ele teve o primeiro dos dois derrames por falta de atendimento no posto de saúde, encontra-se há oito meses sem conseguir consulta no cardiologista e vive sob a ameaça de ficar cego por uma doença degenerativa nos olhos para a qual nunca encontrou tratamento. Mesmo assim, acha que é seu dever de brasileiro insistir – e obrigação do Estado melhorar. É o único.

O confronto de Hustene com a saúde pública levou Amanda a querer se tornar enfermeira. Um querer tão forte que, contra todas as probabilidades, ela conseguiu. “Eu sei o que é descobrir que o médico mandou seu pai embora do posto de saúde quando seu pai estava tendo um AVC. Mandou seu pai de volta para casa dizendo que ele só precisava de repouso, e ele estava tendo um AVC. Eu conheço o sentimento de impotência de quem precisa de ajuda e não tem, de quem é leigo e não sabe o que está acontecendo. Eu quis me tornar enfermeira naquele momento”, afirma. “Aquela roupa de formatura era muito quente, mas foi a melhor roupa que eu vesti na minha vida.”

Amanda estudou em uma faculdade privada. Pagou o curso com a ajuda do marido, que para isso manteve dois empregos nos últimos anos. Formou-se com uma dívida pendente de mais de um ano de mensalidades atrasadas. Como a maioria das mães de classe média, ela quer garantir escola particular à filha Rafaela, de 6 anos. “Não quero que minha filha passe pelas dificuldades que eu passei por ter recebido um ensino de má qualidade. Quero que ela estude em colégios privados e possa competir para entrar em uma universidade como a USP”, diz. “Eu estudei em escola pública a minha vida inteira e, apesar de sempre tirar boas notas, não tinha condições de competir com quem estudou nas escolas privadas. Também tive muita dificuldade no primeiro ano de faculdade. Eu não tinha o hábito de leitura e tive de aprender a interpretar os textos. Foi um esforço enorme, mas consegui. Agora eu leio bastante, porque sei que vou precisar me manter atualizada e também sei que hoje só a faculdade não basta. Assim que pagar as dívidas, eu vou fazer pós-graduação na área da saúde mental.”

É possível apalpar no relato de Amanda a diferença que a ampliação do acesso à universidade poderá fazer na vida cotidiana do país, ao levar para o mercado de trabalho especializado homens e mulheres que conhecem as dores dos mais pobres e que tiveram de arrancar o conhecimento com as unhas. A voz de Amanda sobe um tom ao afirmar: “Pode faltar tudo em um hospital ou em um posto de saúde, mas não pode faltar humanidade. Pode faltar material, mas ainda assim você pode parar e conversar. Às vezes, tudo o que alguém precisa é que pergunte como está se sentindo. Eu não quero ser mais uma enfermeira, eu quero fazer a diferença. Eu vou lidar com vidas humanas, tenho obrigação de ser a melhor profissional possível. É uma questão de dignidade”.

A távola redonda fica na cozinha

Na manhã do último sábado, os Costa Pereira se reuniram em torno da mesa da cozinha. Desde que a mudança de classe permitiu uma sequência de melhorias e a aquisição de eletrodomésticos e eletrônicos, a casa na periferia de Osasco foi batizada de “Complexo do Pankinha”. E, desde a formatura de Amanda, virou “Complexo Superior”. “Uma filha formada é outro naipe”, explica Hustene.

É na “távola redonda”, como chamam a mesa da cozinha, que tomam as decisões importantes. Naquela manhã, discutiam quanto cada um daria para comprar uma churrasqueira para o terraço. Mas este não era o tema principal da pauta. O principal era decidir o que cortariam para que Diego e Jade, 19 anos, pudessem usar seu salário apenas para pagar a faculdade que iniciam neste ano, sem precisar contribuir com as despesas domésticas. Diego, na área da administração, e Jade na de marketing.

Não são escolhas de utopia. Se fossem, Diego faria um curso que o levasse à carreira de arqueólogo, seu sonho desde sempre. E Jade pensava em fazer fisioterapia. Para ambos, as opções são determinadas pelo pragmatismo, e os cursos contemplam as necessidades das empresas em que já trabalham. Depois, é deles a tarefa de ajudar Gabriele a fazer universidade quando chegar a hora. “Meus filhos preferiram fazer vestibular e pagar do que fazer o ENEM, que está uma vergonha, todo ano com alguma enrascada”, diz Hustene. Ele costuma criticar os programas de bolsas do governo, seja o Bolsa Família ou o Prouni. “Um trabalhador tem de ganhar o suficiente para se sustentar. O resto é esmola.”

Hoje, a renda da família gira em torno de R$ 5 mil. “Em torno de” porque Diego adquiriu um hábito típico de classe média e anda preferindo ocultar o valor do salário. Nem para a mãe ele conta. “Tô cismada que o cabra está ganhando mais do que R$ 1.200, porque sempre tem dinheiro”, diz Estela. “Paga a água e a luz e colabora com os tickets no total de R$ 330 com que eu compro a mistura. E todo mês guarda um pouco do salário para comprar uma moto ou um carrinho.”

Tudo indica que a família cortará a TV por assinatura para que mais dois Costa Pereira possam cursar universidade. Mas ainda haverá nova rodada de negociações. Hustene, por exemplo, além do futebol, pouco vê a TV aberta. Aposentado em 2011 por causa da saúde, ele acorda pela manhã e vai para o “escritório”. Primeiro checa os emails e as redes sociais no computador. Ele participa do Orkut, do Facebook e do Twitter. Em seguida, passa algumas horas em busca de notícias, na seguinte sequência de sites: “Globo, Band, Terra e R7”. Caso se indigne com alguma delas, dispara alguns comentários virtuais. Só compra jornais e revistas de papel para montar seus álbuns do Corinthians. “Depois de me informar na internet, eu já sei que os telejornais só terão notícia velha. Então, já deixei de assisti-los, porque não acrescentam nada ao que eu já sei. Prefiro passar o restante do tempo vendo documentários”, conta. “Gosto muito do Animal Planet.”

Mesmo assim, Hustene está disposto a abrir mão da TV paga. Na verdade, está disposto a abrir mão de qualquer coisa que for preciso para ser convidado de novo para “uma festa daquelas”. “Essa família pegou gosto por canudos”, fala sério brincando. “Eu sentia claramente que, para as pessoas ao nosso redor, era normal ver a formatura de um filho. Estavam contentes, mas a formatura não tinha o mesmo significado que tinha pra gente. Para nós, ver a Amanda com aquela roupa preta, aquele negócio verde, aquele chapéu de formanda era tudo na vida. É um marco. Antes, só quem tinha poder aquisitivo tinha diploma. A gente se equiparou, sabe? Agora, eu posso até morrer.”

A próxima camisa do Corinthians

Na noite da formatura, Hustene demorou a dormir. Ele, que tanto sonhou com a universidade, foi interrompido pelo primeiro derrame quando faltava uma prova para concluir o supletivo do ensino médio. “Vi o filme da minha vida na cabeça. Meus sonhos todos. Lembrei dos professores que me ensinaram tudo o que eu sei. Faço questão de dizer o nome deles, porque acho que ser professor é a coisa mais bonita do mundo: a Maria Gomes Batalhone, do Colégio Espiridião Rosa, no Jaguaré, me ensinou a ler e a escrever; a dona Etelvina foi a melhor professora de português que eu tive, ela elogiava a minha letra e o capricho dos meus cadernos; tinha o Manuel, de História, o professor Luís, de Ciências… Fiquei imaginando se fosse eu que recebesse aquele diploma lindo, escrito em letras douradas. Eu agradeceria a todos os meus mestres. Ainda preciso perguntar pra Amanda se ela se lembrou dos dela.”

Hustene faz uma pausa molhada. Depois continua: “Sabe, nem o Lula, nem a Dilma agora, nem o Fernando Henrique, que era professor, entenderam a importância da educação. Nenhum deles conseguiu entender de verdade. Por isso a educação nunca foi prioridade, os professores ganham tão pouco e a escola pública ficou tão fraca, prejudicando meus filhos e netos. A educação nunca foi prioridade porque nenhum deles consegue entender, entender mesmo, como a gente entende, o que a educação faz com a vida de uma pessoa.”

Na noite da formatura, o segurança da casa chique de Alphaville entendeu um pouco. “Vai, Corinthians”, brincou com Hustene. “É ‘nóis’ na fita”, respondeu Hustene. Quem não entendeu nada foi o garçom. Amanda nem mesmo tinha sido chamada ao palco quando ele insistiu para que os Costa Pereira pagassem a conta. “É por causa da camisa do Corinthians?”, intimou Hustene. “Não, imagina, é que eu preciso começar a cobrar por aqui”, defendeu-se o garçom. Nervoso, mas plantado ao lado da mesa. Hustene não se abalou. Para as próximas formaturas, ele pretende comprar uma “camisa polo do Corinthians”. Segundo ele, mais “de gala” ainda.

Desde aquela noite, Hustene saracoteia pela vizinhança anunciando para “os quatro cantos da terra de Osasco”: “Sabe, fui na formatura da minha filha”. Assim, como quem não quer nada, entre o preço do pão e a última façanha do Neymar. Mais estufado que um chéster, Hustene explica: “Eu achava que só os imortais tinham filha com diploma. Fiquei pensando…. Agora sou imortal também”. Como ainda é um pouquinho mortal, na manhã seguinte à formatura jogou o número da mesa da cerimônia – “627” – no bicho.

(Publicado na Revista Época em 23/01/2012)

O que aprendi com o pior jornalista do mundo

Somos livres para escolher o mal? Somos livres para escolher o bem? Uma pequena reflexão sobre o livre arbítrio a partir do encontro com um personagem real que parece saído da literatura

Na primavera de 2000, entrou na minha vida um personagem da literatura. Um repórter de um jornal europeu me procurou, por intermédio de uma colega, porque viria ao Brasil e queria fazer uma reportagem sobre prostituição infantil. Expliquei a ele que, para fazer algo que valesse a pena nessa área, ele precisaria de tempo e bastante trabalho. Por considerar a pauta relevante e uma repercussão no exterior importante, abri todas as minhas fontes e fiz contatos com outros jornalistas que trabalhavam com o tema em capitais nordestinas. Fiz, praticamente, uma pré-produção para que ele pudesse fazer a reportagem quando chegasse ao país. Mas ele não a fez. Passou uma semana entre São Paulo e Rio de Janeiro e, para meu espanto, publicou em seu jornal uma reportagem sobre meninas leiloadas em jogos no centro-oeste do Brasil, onde jamais havia colocado os pés. Não precisei investigar. O próprio jornalista me contou que havia copiado um texto publicado anos antes em um jornal do interior daquela região como se fosse seu. Segundo ele, com a anuência do autor. Publicou como se fosse o retrato do momento e como se tivesse estado lá.

Eu sabia que coisas assim aconteciam mesmo na melhor – e às vezes entojada – imprensa europeia. Mas jamais testemunhara. Até então eu e o jornalista nunca tínhamos nos visto. Fiquei tão indignada que marquei um encontro para dizer o que pensava olhando na sua cara. Quando cheguei ao bar, ele já estava lá, no longo balcão. Tinha em torno de 50 anos, talvez menos, um físico de mercenário e os olhos mais azuis que eu já tinha visto. Pedi uma taça de vinho e fiz de imediato o que tinha ido fazer. Disse que gente como ele fazia mal não só ao jornalismo, mas ao mundo. E que conhecê-lo tinha sido um desprazer.

O jornalista me ouviu como se eu estivesse contando o enredo de uma comédia romântica. Me provocou, com um sorriso de Humphrey Bogart: “Então, você sempre faz o que é certo?”. Em seguida, me contou que na guerra do Golfo foi tirado do banho do hotel, em Paris, para dar um boletim ao vivo na rádio – e deu, descrevendo a violência que não transcorria diante dos seus olhos. Enquanto o vinho encolhia na garrafa, ele foi desfiando uma longa lista de pecados jornalísticos. Acho que no início queria apenas me chocar, por me considerar uma espécie de virgem da imprensa dos trópicos. Aos poucos, porém, foi trocando a ironia pela amargura. E começou a parecer um homem perigoso de outras maneiras.

Nesta altura, algum leitor pode estar se perguntando por que eu permaneci lá, sentada ao seu lado. É uma boa pergunta. Acho que fiquei porque aquele personagem me fascinava. Ele parecia saído da literatura – e era da vida. E manipulava a vida real que deveria contar. Em certo momento, voltei a habitar o meu corpo e disse que sentia um profundo desprezo por pessoas como ele e que o mundo seria melhor se ele mudasse de profissão. E que, sim, estava na hora de eu ir embora.

Ele então me olhou com aqueles olhos quase transparentes e disse:

– Vou te fazer uma proposta. Só por um dia, eu vou fazer o bem desde o momento em que acordar até a hora de dormir. Em troca, você vai fazer o mal em todas as oportunidades. Amanhã, um dia apenas, viveremos este pacto.

(Pare de ler por um momento, agora, e pense por pelo menos um minuto nessa proposta, como se ela fosse feita a você. Pense com a mente aberta e com a honestidade que só temos com nós mesmos, na sala privada, trancada à chave, de nossas reflexões secretas.)

Disfarçando meu desconcerto, respondi que ele soava como um péssimo Mefistófeles e que seria um ator ainda pior do que era jornalista. Pagamos a conta, e o vi desaparecer na escuridão da rua. Naquele momento, ao vê-lo meio curvado e atormentado sobre o próprio corpo, ele parecia mais o Mister Hyde, de Stevenson, do que o personagem imortalizado por Goethe. Peguei um táxi e fui para casa. Naquela época eu morava sozinha e passei a noite de olhos estalados sobre a cama feita. Ele tinha me perturbado.

Enquanto atravessava a madrugada em uma espécie de transe, eu imaginava como seria levantar no dia seguinte e escolher fazer o mal. Nada muito complexo e com muitas nuances, apenas o mal mais trivial. O que talvez pudéssemos chamar de pequeno mal, amplamente praticado e pouco confessado. Chutar em vez de acariciar o gato, apontar o bigode que a colega de trabalho descoloria no esforço de que ninguém o descobrisse ou a calvície que um amigo se esforçava por disfarçar, humilhar os que estavam abaixo na hierarquia, disseminar comentários cruéis sempre que tivesse oportunidade. Por escolha.

Era como se embriagar de liberdade. É claro que, como todo mundo, eu já havia praticado pequenos atos de maldade. Mas raramente como opção consciente. Em geral meu histórico de maldades, maior na infância e na juventude, contém deslizes e omissões – seguidas por um sentimento de culpa que me impingia bolas de ferro no espírito ao perceber o que havia feito. Pensar que eu podia escolher fazer o mal era algo perturbadoramente sedutor.

No dia seguinte, entorpecida de sono, eu já sabia que seguiria tentando ser a melhor versão de mim mesma. Mas jamais me esqueci desta história – e da inquietação com que ela me assinalou. “Olhos Azuis” – é assim que eu chamo esse enigmático personagem que assaltou meu sossego numa noite da primavera de 2000 – me fez enxergar algo sobre mim. Não algo como tema de um debate filosófico, onde as palavras nem sempre se sujam com as tripas, mas algo como uma possibilidade encarnada na vida. Suas palavras deformadas me deram um vislumbre da liberdade. E eu corri dela o mais rápido que pude.

Eu soube ali que não poderia escolher praticar o mal. Eu só poderia escolher praticar o bem – o que implica descobrir a cada passo o que isso significa. Se eu não sou livre para escolher praticar o mal, então eu seria livre para escolher praticar o bem? Não. Ou há escolha – ou não há escolha. Não pode haver escolha só para um lado. Desde então, marco esta noite como aquela em que eu perdi a ilusão da liberdade graças a um dos piores jornalistas de todos os tempos.

Penso que nossa liberdade é limitada e que, como dizia Nietzsche, o livre arbítrio não existe. Explico, do meu jeito. Temos arbítrio, mas ele está longe de ser totalmente livre. Cada escolha nossa é não só baseada em prós e contras, mas também em influências externas e internas. No lado de fora, a cultura e os valores da época em quem vivemos, o meio onde nascemos e onde nos fizemos adultos, os desafios materiais que a sobrevivência nos impõe. No interior, nosso vasto inconsciente nebuloso, nossas pulsões, o dentro que está além do nosso controle.

Nosso estar no mundo – e em nós mesmos – elimina a possibilidade do livre arbítrio. Mas a imperfeição desta liberdade não nos absolve do arbítrio. Se, ao contrário, caíssemos no outro extremo, o de que nossas escolhas são totalmente determinadas pela cultura ou pela genética ou pelas nossas necessidades de fins que permitem todos os meios, nos colocaríamos além de qualquer responsabilização. Seríamos como marionetes de uma guerra de desrazão por almas que não temos.

Como aquelas pessoas que bochecham a boca com o discurso da liberdade de prateleira e, sempre que possível, responsabilizam o chefe pelo mal que fazem, com a justificativa de que estão cumprindo ordens. Delegam a responsabilidade pelos seus atos, quando mesmo o mais cativo entre nós ainda tem uma estreita margem de escolha. Nossa vizinhança está cheia de gente como Adolf Eichmann, o oficial nazista responsável pela logística do extermínio dos judeus. Em seu julgamento, o nazista surpreendeu o mundo porque, em vez de um monstro sanguinário, se revelou um humano medíocre e mais semelhante do que diferente daqueles que o assistiam. O episódio foi analisado com brilhantismo por Hannah Arendt em “Eichmann em Jerusalém – um relato sobre a banalidade do mal” (Companhia das Letras).

Penso que a resposta não está nos extremos. Se a liberdade é tão fugidia que nos escapa a cada momento, maior deve ser a nossa ânsia de buscá-la. Desde que Olhos Azuis tentou me provar que eu tinha tão pouca escolha de fazer o bem quanto ele de praticar o mal, ainda que nossos imperativos fossem opostos, passei a perseguir com muito mais empenho um jeito de viver que tornasse minhas escolhas mais minhas, mesmo sabendo que jamais serão totalmente minhas.

Quando tratamos a liberdade como um bem adquirido ou um direito consolidado, penso que corremos o risco de perdê-la lá onde ela efetivamente está: nas bordas. Se a aceitamos como mercadoria – como uma velha calça azul e desbotada, ainda que novíssima, com rasgões de fábrica e com uma etiqueta que lhe multiplica o preço – nos perdemos dela porque deixamos de procurá-la. Quanto mais fácil e dada a liberdade está, mais nos afastamos dela.

A liberdade é uma coisa séria – e muito mais séria é porque jamais a teremos por completo. Ao contrário do que Olhos Azuis insinuou, a liberdade não se torna algo menor porque inalcançável – mas maior e mais vital porque nos escapa. A liberdade exige – e cobra – nossos melhores esforços.

Penso que a melhor forma de tornar nossas escolhas mais nossas é também a mais difícil: duvidar o tempo todo de nossas certezas. Duvidar de nossos porquês mais óbvios. De nossa rotina estabelecida, de nossos velhos hábitos, de afirmações como “eu sou assim” ou “fulano nunca vai mudar”. Duvidar de que a vida tenha de ser de uma determinada maneira ou de outra. Duvidar de nossas crenças mais profundas, duvidar de nossas necessidades de consumo. Duvidar de que não exista um outro jeito de viver nem um outro mundo melhor que este a ser construído. Duvidar de gente que diz que está fazendo algo para o nosso bem. E mais ainda se essas pessoas estão em lugar de poder. Duvidar quando a gente diz que está fazendo algo para o bem do outro. Assim como a liberdade, o bem não tem respostas óbvias.

Duvidar não é um exercício fácil. É um ato de resistência internamente tão exaustivo – e tão perigoso – quanto atravessar o Atlântico num barco a remo. Escolher duvidar como caminho para alargar nosso estreito espaço de liberdade é uma boa meta para 2012. Só os escravos de espírito têm certezas de concreto armado. Quem anseia pela liberdade, ainda que imperfeita, escolhe tornar-se um colecionador de dúvidas.

Com o passar dos anos, Olhos Azuis foi perdendo sua aura de personagem clássico da literatura em minha memória. Bem aos poucos, ele tornou-se uma figura triste, quase patética. Que, como muitas figuras tristes, quase patéticas, tinha um bom emprego e o pequeno poder de mentir em larga escala. Nunca mais ouvi falar no seu nome. Mas sou grata a ele por ter me arrancado algumas certezas. Ao escolher duvidar dele e de mim, simultaneamente, acessei uma experiência mais profunda. Escolher o que fazer com nossas lembranças é um flerte com a liberdade. É arbítrio, quase livre.

(Publicado na Revista Época em 02/01/2012)

Rebeliões, intimidades e desfechos imperfeitos

Aquilo que permanece em nós é o que tece nossos dias– e nem sempre é grandioso aos olhos do mundo. Lembranças íntimas, revoltas necessárias

Escrevo do meu não Natal. Neste ano, consegui fazer um acordo com a minha família de que o sentido era o do encontro e o do afeto – e para isso não precisava acontecer na data estabelecida nem pela religião, nem pelo mercado. Marcamos nosso Natal para 6 de janeiro, quando as estradas já se esvaziaram, algumas liquidações de verão começaram em lojas vazias, as passagens aéreas estão mais baratas e o espírito natalino, em geral tenso e agressivo pelo cansaço e pelas obrigações, já foi tarde.

Me escondi num lugar em que pude passar os dias observando a natureza e sua mistura de beleza e violência. Passei a maior parte do tempo seguindo a uma distância regulamentar um casal de bem-te-vis alimentando os filhotes em um ninho sempre ameaçado por um gato amarelo, um quero-quero aflito escoltando seu filho aleijado de uma perna enquanto patrulhava a área com passadas marciais, um formigão que repete sempre o mesmo trajeto diante de mim, manhã após amanhã, aparentemente sem sentido, mas com muita convicção, a quem apelidamos de “Sem Noção”. E há um pardal, o “Folga”, que come qualquer coisa, inclusive os enfeites da sala.

Tenho certeza de que, até o fim desta semana, Folga vai tentar comer algumas letras do meu computador. Então, não se surpreendam se na próxima coluna eu apresentar aqui uma língua saqueada de vogais e consoantes, digeridas no estômago desse pardal petulante entre pedaços de pão e sementes de melancia. O Folga nada entende de antropofagia nem conhece Oswald de Andrade e, neste exato momento, me olha com um interesse guloso. Acho que pensa se vale a pena dar uma bicadinha nos meus olhos ou é melhor provar outra freguesia. (“Seja esperto, Folga, e mantenha essas penas no corpo!”, digo a ele, que se faz de canarinho.)

Não foi um ano fácil, o que passou. Acho que para o mundo – e também para o nosso mundo bem aqui. Acabo de terminar um pequeno livro, escrito pela historiadora e psicanalista francesa Elizabeth Roudinesco – “Lacan, a despeito de tudo e de todos” (Zahar). E duas frases se aplicam muito ao balanço inevitável que, mais do que o de um ano que passou, é de uma época que não passa. A primeira delas é: “Nossa época é dividida entre um desejo de fundamentalismo e uma busca ilimitada do gozo”. Voltarei a essa ideia numa próxima coluna. Ela vale não só para a vivência individual, mas também para a política.

A outra se encaixa em cada uma das muitas violências que testemunhamos no Brasil neste 2011 pródigo em barbáries: contra índios, extrativistas e quilombolas; contra homossexuais; contra moradores de rua; contra a Amazônia (onde hoje é travado o debate central sobre o país que seremos e, portanto, sobre o que e quem somos nós). Foi um ano assinalado pela violência contra todos os “outros” que nos ameaçam com sua diferença e por isso devem ser destruídos ou subjugados aos interesses mais imediatos e mesquinhos, antes que corramos o risco de conhecê-los e sermos transformados pela experiência sempre transtornadora do reconhecimento. A frase, que se refere “às relações características do individualismo do mundo democrático moderno”, é esta: “Destruir o outro no lugar de aceitar o conflito”.

Na política de Estado, é também isso que temos testemunhado. Os conflitos de ideias e de visões de mundo que nos levariam a um país mais rico, diverso e desejante, com mais de todos nós dentro de si, está sendo calado com o que há de mais abjeto no exercício do poder, com os instrumentos da Lei a serviço da injustiça, de uma suposta governabilidade e de velhos, velhíssimos interesses fisiológicos.

Temos sido atacados também, em todas as instâncias, com o cada vez mais nefasto discurso do bem, em que o Estado entra na nossa casa disposto a executar “o que é bom para nós” e, se não aceitamos, é porque ainda somos imaturos como filhos que não cresceram. Neste ano que vem, vou continuar fugindo dessa gente que diz, com o olhar fugidio dos fanáticos encastelados em cargos de confiança ou em lugares de poder: “É para o teu próprio bem…”.

Penso que cabe a nós manter o conflito vivo – o das ideias, sempre vale a pena deixar claro – e pegar à unha o desafio que assusta e fascina, que é o de construir um novo jeito de ser na política. E para isso contamos com os novos instrumentos de um mundo novidadeiro e mutante, como em raros momentos históricos, onde aquilo que ainda nos esmaga já começa a cheirar a podre – de novo. Ainda tateamos na invenção desse novo mundo, que só tem chance de ser melhor que este se conseguir acolher os conflitos e dialogar com eles – e não afogá-los em autoritarismo.

Em homenagem à nossa teimosia de seguir buscando a possibilidade em terra ensanguentada, reedito uma outra grande frase do ano que termina. Desta vez do escritor uruguaio Eduardo Galeano, diante das manifestações dos jovens na Espanha: “Este mundo de merda está grávido de outro!”. (Estes 11 minutos de lucidez e de esperança, que pode ser visto clicando aqui, é meu presente de Natal para vocês.)

Mas agora, depois de renovar a revolta necessária à manutenção da esperança, me volto para dentro de mim. E nos próximos parágrafos compartilho com vocês o que me faz sorrir, para além de todos os ganhos e perdas, porque me recuso a ser limitada por essa conta sem imaginação. Por mais que tentemos escapar dessas datas ritualísticas, elas nos fazem pensar no que vivemos, até porque boa parte de nós só tem tempo para si nesses feriados. Proponho aqui uma conta que não é a das metas grandiosas, mas a das descobertas pequenas, que, ao final, são o que nos mantém respirando no tecido asfixiante e por vezes sintético da vida cotidiana.

Por um simples impulso de compartilhar e de estimular uma reflexão que cada um possa fazer por seus próprios desejos e caminhos, me arrisco aqui ao prosaico e ao piegas, porque também sou feita dos dois, ainda bem. Como disse Galeano, nesse depoimento antológico: “Eu não quero ser uma cabeça que rola por aí. Sou uma pessoa. Sou cabeça, sexo, barriga, tudo. (…) Cuidado! Temos que raciocinar e sentir. E, quando a razão se divorcia do coração, comece a tremer, porque este personagem pode levar ao fim da existência humana no planeta. Não, eu não creio nisso. Creio nessa fusão contraditória, difícil mas necessária, entre o que se sente e o que se pensa. (…) A mim me interessa (a sabedoria) que combina o cérebro com as tripas. Essa que combina tudo o que somos”.

A seguir, minha lista de pequenas epifanias de 2011:

1) Ao longo do ano, passo semanas sem datas e motivos com os meus pais na cidade em que eu nasci, no interior gaúcho. Meu pai tem 81 anos, minha mãe, 76. Nesta segunda, fazem 58 anos de casamento. Gosto de acompanhar a rotina sistemática deles, como um balé cada vez mais lento, ainda que a mãe corra pela casa com seus pés e joelhos problemáticos, contrariando, como é do seu feitio, todos os vaticínios médicos. Jantamos às 19h e então vem a melhor parte. Vamos para o quarto deles assistir ao JN e à novela das nove, ritual sagradíssimo na hierarquia dos dias dos meus pais. Eles sentam cada um em sua poltrona. Eu deito na cama deles. Tenho ali a consciência grandiosa de como sou privilegiada por, aos 45 anos, fingir que ainda sou menina, com meus pais velando o meu sono. E durmo muito antes de a novela começar. Depois, volto para a minha cama cambaleando, e a mulher retorna em mim. Mas alargada pela menina que espia como quem acabou de fazer arte, inventando uma infância quando já está perto de ser avó.

2) Em 2011, os bebês desembarcaram na minha vida pelas barrigas de amigas com hormônios em fúria. E também pelo desejo de um irmão cientista que até então tinha jurado que jamais botaria no mundo um “bípede desplumado”. Olhei com desconfiança redobrada para aquelas caras de velhinhos, só para descobrir que a natureza faz destas criaturas uns bichos insidiosos. Minha afilhada, Catarina, é tão fofurenta que temo a força da gravidade e quero botar um sutiã nas bochechas da guria. Não sei mesmo onde vão parar aquelas bochechas de buldogue. Como ela vai conseguir caminhar com aquelas bolotas puxando perigosamente para baixo, finjo preocupar-me? Mas, quando estou triste, é neste sutiã de bochechas que penso e de imediato ganho um sorriso de Mona Lisa.

Meu sobrinho, Rodrigo, fez o favor inestimável de contrariar todas as expectativas do seu pai, que leu com rigor os livros científicos existentes sobre o funcionamento do cérebro dos bebês e do desenvolvimento motor e blábláblá. Meu irmão do meio, que sempre mediou a vida pelo conhecimento apreendido nos livros, foi tomado de assalto por um humano que não seguia nenhum manual, mesmo que o compêndio tivesse vindo de Harvard. Para começar, em vez de desplumado, Rodrigo tem a cabeça coberta por uma plumagem ruiva com mechas brancas que ninguém sabe de onde veio, embora a avó materna jure que era igualzinha. E ainda não se tornou um bípede. Mas tem se esforçado. Muito. Quando estou triste, materializo diante de mim sua figura imponente (é um bebê enorme!), em pé, agarrado às grades do berço, com sua empáfia de guerreiro viking, segundos antes de cair de bunda no colchão. Neste efêmero instante em que se equilibra sobre as duas pernas, ele me diz, com seu olhar de máximo orgulho: “Olha como eu sou lindo e fico em pé. E ainda por cima tenho DOIS dentes!”. A vida sempre vale a pena depois dessa memória.

3) Meu irmão mais velho me levava para Passo Fundo com a minha mãe para eu pegar o avião para São Paulo quando, de repente, tivemos a conversa mais verdadeira possivelmente de nossa vida inteira. Ele viveu tempos duros, o meu irmão. Tempos que eu só acompanhei de longe. Fiquei ali, escutando no banco de trás do carro as palavras que vinham de um desejo de encontro – e não, como é na maioria das vezes, em nossa relação com o outro, um preenchimento superficial de espaço que ninguém quer preencher, mas sente que precisa, ou uma disputa de poder e de lugar. Foi um momento grandioso. Porque é sempre raro e grande encontrar alguém. Neste instante, a máquina do mundo se abre diante de nós. E não importa mais ser poeira em um universo que não compreendemos. Estamos ali, em nós mesmos, ainda que por um átimo de tempo. Enlaçados em uma história de redemunhos, mas conscientes de que a vida humana é assim, um possível impossível.

4) Desde que os bebês apareceram, descobri que os homens também ovulam. Meu marido nunca quis filhos. Mas apaixonou-se de tal maneira pelos filhos dos outros não como um pai, mas como um tio e um dindo disposto a solapar qualquer esforço de botar limites que os pais possam vir a ter, que passou a gastar a maior parte de seu tempo livre criando armadilhas para filhotes humanos. Num destes dias de ovulação ensandecida, embrenhou-se na 25 de Março, a rua mais muvuquenta e barata do comércio do centro de São Paulo, praticamente uma instituição, e voltou de lá com uma piscininha de plástico. Instalou- a bem no meio da sala. Em vez de água, colocou edredons e almofadas para que os bebês pudessem dormir e brincar. Mas, como somos apenas eu e ele que moramos lá, quem acaba na piscininha seca somos nós. E volta e meia é de dentro dela, preciso confessar antes que o ano acabe, que escrevo esta coluna. Toda feliz porque tenho ao meu lado um homem tão corajoso que pode se dar ao luxo de virar menino.

5) Estava no aeroporto de Congonhas esperando pela minha filha que chegaria para me visitar. Minha filha tem 29 anos e somos ligadas por um amor tão profundo que nunca sei o que fazer primeiro quando ela aparece: se a encho de feijão, se a boto no colo fingindo que ela tem 5 anos ou se tomamos um vinho conversando sobre nossas últimas descobertas existenciais. Toda faceira porque sei que ao longo dos dias faremos tudo isso e mais um pouco. Estava lá quando avistei de repente uma mulher linda. Ela caminhava como se fosse dona do seu mundo, imersa nele não com prepotência, mas com leveza. Quem cruzasse o caminho daquela mulher podia esperar dela uma força que vem da delicadeza. Seus cabelos loiros e longos esvoaçavam como se batidos por uma brisa inexistente, e a saia ondulava ao redor de suas pernas a cada passo. Como é linda, eu pensei. Então a mulher focou uns olhos que eu descobri azuis bem nos meio do castanho dos meus, sorriu pra mim e caminhou na minha direção. Era a minha filha.

Termino em momento épico. Alertada por um quero-quero esganiçado, acabo de salvar um ovo de bem-te-vi da bocarra de um calango. Segundos depois de me sentir heroica, percebi que tinha sido injusta com o lagarto, roubado de sua ceia natalina pela minha interferência em curso indevido. A vida é assim, um campo minado de contradições e desfechos imperfeitos.

(Publicado na Revista Época em 26/12/2011)

Presente de Dilma azeda o Natal no Semiárido

Às vésperas das festas de fim de ano, o governo federal rompe a parceria com a organização que abalou os alicerces da indústria da seca ao implantar mais de 370 mil cisternas de alvenaria no sertão nordestino. E começa a distribuir cisternas de plástico

Parte do Brasil conhece o sertão nordestino pela literatura, com clássicos como “Vidas Secas”, de Graciliano Ramos, e “Morte e Vida Severina”, de João Cabral de Melo Neto. Também conheceu o semiárido pela imprensa, nas constantes denúncias de corrupção e desvio de verbas públicas em obras que deveriam combater a seca, mas estagnavam nas mãos privadas de coronéis. Nos últimos anos, porém, a paisagem do sertão estava mudando, graças a um movimento iniciado em 2003. No primeiro ano do governo Lula, a ASA (Articulação no Semiárido Brasileiro), uma rede que reúne centenas de organizações não governamentais, procurou o presidente para propor uma parceria para a construção de cisternas de alvenaria no sertão nordestino. Seus interlocutores eram Frei Betto e Oded Grajew, então no governo. Assinalado pela sua origem de retirante, de menino pobre do semiárido que migrou com a mãe e os irmãos de Caetés, em Pernambuco, para São Paulo, Lula acolheu a ideia. Ele conhecia bem a aridez geográfica e a imutabilidade dos desmandos políticos que faziam da sua terra um lugar brutal. O resultado deste esforço entre governo federal e sociedade civil organizada foram 371 mil cisternas de cimento, envolvendo 12 mil pedreiros e pedreiras das comunidades e beneficiando mais de 2 milhões de brasileiros em 1.076 municípios. Algo grande, muito grande, para quem acompanha a história do Nordeste brasileiro. Basta andar pelo semiárido para ver que, quando há vontade política, é possível fazer milagres de gente. A presença da água, com a implantação coletiva de uma simples cisterna, tem mudado não apenas a economia, mas a autoestima do povo que vê florescer a vida e também a possibilidade de reescrever sua história – desta vez como autor, e não mais como personagem.

Tudo ia muito bem até este mês de dezembro, quando a coordenação da ASA foi informada pelo Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS) que suspenderia o pagamento dos recursos para o “Programa Um Milhão de Cisternas”. O governo anunciou que pretendia mudar os arranjos para o Plano Brasil Sem Miséria e ampliaria os convênios com os estados – sinalizando o afastamento das organizações não governamentais do processo. A ASA foi aconselhada a negociar com os estados e municípios.

O que isso significa? Muito.

A ASA fará uma manifestação em Petrolina (PE) na manhã desta terça-feira, 20/12, para protestar contra a ameaça ao Programa Um Milhão de Cisternas e para denunciar que a sociedade civil organizada está sendo excluída do governo de Dilma Rousseff.

Milhares de sertanejos partirão de diferentes estados nordestinos para se reunir em Petrolina e alertar o país para uma possível volta às velhas práticas do passado, quando a indústria da seca era a única coisa que vicejava no semiárido brasileiro e qualquer arremedo de solução era usado como moeda eleitoral.

O rompimento da parceria com a ASA é anunciado no momento em que a opinião pública está predisposta a considerar qualquer ONG fraudulenta. Como foram denunciados muitos “malfeitos” nos convênios entre algumas organizações não governamentais e ministros demitidos, como Orlando Silva e Carlos Lupi, não há melhor hora para romper com a sociedade civil organizada. E fazer parecer que as ações são um esforço de moralização dos recursos públicos. Esquece-se – talvez por conveniência – que o surgimento das ONGs é resultado direto da redemocratização do país. E também que uma parcela significativa delas não apenas é honesta, como tem operado uma grande transformação nas relações e nos resultados em várias áreas cruciais.

A sociedade civil organizada tem – e para parte dos políticos é aí que mora o incômodo – impedido que as verbas públicas sejam interceptadas e manipuladas por grupos instalados em setores estratégicos. E assim, impedido governos, em todos os níveis, de agradar aliados com a possibilidade de administrar uma parcela polpuda das verbas públicas. É claro que há ONGs corruptas, que se aliaram a políticos corruptos, para lucrar com o dinheiro do povo. Mas demonizar todas elas é uma esperteza de quem está doido para voltar ao modelo antigo – e é também má fé e desrespeito com o avanço conquistado pela sociedade brasileira nas últimas décadas.

Em novembro, o ministro Gilberto Carvalho, da Secretaria-Geral da Presidência da República, afirmou que o governo separaria “o joio do trigo”. Disse mais: “As organizações sérias não têm nada a temer”. Pesquisei, então, em que lugar se situa a ASA na paisagem da sociedade civil organizada. Descobri que, na opinião do governo federal, a ASA é “trigo” da melhor qualidade.

Pela seriedade e competência da sua atuação, a rede já recebeu uma dezena de prêmios. Entre eles, o Prêmio de Direitos Humanos do governo federal, na categoria “Enfrentamento da Pobreza”, entregue pelo próprio Lula no final de 2010. E também um prêmio da ONU, que a considerou “uma referência de gestão e inclusão social no campo do acesso à água e do direito à segurança alimentar e nutricional das famílias carentes do semiárido”. Em entrevista à TV Brasil, em novembro, Luiz Navarro, secretário-executivo da Controladoria Geral da União (CGU), disse que algumas organizações não governamentais apresentavam mais condições de realizar determinadas ações do que o Estado. Entre os exemplos, afirmou que haviam acabado de avaliar o Programa Um milhão de cisternas, da ASA: “Nossa avaliação é extremamente positiva. Não sei se o Estado teria o mesmo dinamismo para fazer o que essas ONGs têm feito”.

Sendo esta a opinião do próprio governo federal e de seus órgãos de fiscalização, por que o governo decidiu suspender a parceria com a ASA?

“O governo rompeu a parceria com a ASA. Mas os ladrões não estão no nosso meio”, afirma Naidison Baptista, coordenador da rede. “Nós não somos construtores de cisternas apenas, nós somos uma rede de organizações da sociedade civil que influencia na política para o semiárido como parte do processo democrático. Temos orgulho de ter pautado o governo federal para a construção de cisternas e de políticas de convivência. Se você voar hoje sobre o semiárido, vai ver os pontinhos brancos. São as cisternas. As pessoas não entram mais na fila da água em troca de voto. Cortamos a raiz do coronelismo do Nordeste. Então perguntamos: por quê?”.

A ASA atua usando o conhecimento da comunidade e estimulando que as pessoas se apropriem coletivamente do processo de construção de cada cisterna. É a comunidade que decide em conjunto quem vai receber a cisterna primeiro, a partir de critérios como pobreza, número de crianças e de idosos, se a mulher é a chefe de família etc. Cada família participa da construção da cisterna, que dura cerca de cinco ou seis dias, e fornece a água para a vizinha enquanto não chegar a vez dela. Para a construção é usada a mão de obra da cidade ou povoado e o material das lojas dos pequenos comerciantes, movimentando a economia local. É também a agricultura produzida em cada região que fornece a alimentação. Para a ASA, a implantação de uma cisterna é mais do que uma obra: é a construção de um espaço social de onde tem emergido novas lideranças e uma juventude ativa. Mudança socioeconômica e política importante em uma região historicamente dominada por oligarquias em que sempre coube aos sertanejos ou se submeter a algum “painho” – ainda que com pinta de moderno – ou migrar para o centro-sul. “A água estava concentrada na mão de poucos”, resume Baptista. “Com as cisternas, a água foi repartida.”

Na tecnologia social da ASA, a implantação das cisternas não é vista como favor do governo, mas como direito. Não é assistencialismo, mas política pública. As pessoas são estimuladas a exercer a cidadania e a tomar suas próprias decisões, coletivamente – tornando o voto de cabresto cada vez mais difícil. Bem diferente, portanto, de um modelo assistencialista/populista que forma gerações de eleitores agradecidos a um pai ou mãe magnânimos. Seria isso que estaria incomodando o governo federal e seu amplo e heterogêneo espectro de aliados às vésperas das eleições municipais de 2012? Espero – sinceramente – que não.

No mesmo período em que a ASA foi informada de que não receberia os recursos para os próximos meses, o Ministério da Integração Nacional anunciou e comemorou a instalação da primeira de 300 mil cisternas de polietileno, em meio a campanhas de protesto das comunidades do semiárido que rejeitam o equipamento de plástico. O governo alega que as cisternas de polietileno podem ser produzidas em grande escala e assim atingir um número maior de famílias com mais rapidez. Segundo o governo, não se trata de substituição de uma tecnologia por outra, mas de complementação.

A ASA apresenta argumentos convincentes para condenar as cisternas de plástico. “Elas custam mais do que o dobro do valor das cisternas de alvenaria. Enquanto a nossa custa R$ 2.080, a de plástico custa R$ 5.000. Ou seja: se fosse só o dobro, com o mesmo valor as empresas fazem 300 de plástico – e nós construiríamos 600”, diz Baptista. Pelos cálculos da ASA, para cada 10 mil cisternas de alvenaria instaladas, há uma injeção de R$ 20 milhões na economia local. Com as de plástico, a maior parte dos recursos públicos ficará nas mãos dos empresários. Na mesma lógica, a população se tornará para sempre dependente das empresas para a manutenção e a reposição, já que não dominará a técnica. Quando existe qualquer problema com as cisternas de alvenaria, o pedreiro da comunidade resolve de forma simples.

“Em vez de construir, as pessoas vão receber as cisternas de presente. Das mãos de quem? É o que vamos ver. E a gente sabe que, como simples beneficiárias, do meio para o fim do processo as famílias não cuidam mais. Temos vários exemplos de cisternas que foram entregues prontas e que hoje não funcionam mais porque as comunidades não se envolveram em sua construção, não tem o sentido do pertencimento”, diz o coordenador da rede. “É a volta da indústria da seca, com grandes obras nas quais a população fica à margem, e o dinheiro na mão de grupos.”

É possível ter uma ideia de quem vai ganhar com a mudança. Mas, por quê?

Por que um trabalho que funcionava tão bem, a ponto de ser elogiado e premiado pelo governo federal, está sendo descartado pelo governo federal? Se funciona bem, por que mudar? Seria porque funciona bem demais? Espero, sinceramente, que não.
A seguir, reproduzo parte da nota divulgada pela ASA:

“Após oito anos de parceria com o Governo Lula, a decisão do governo federal, expressa pelo Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS), de não mais renovar os Termos de Parceria com a Articulação no Semiárido Brasileiro (ASA), pode levar ao fim uma das ações mais consistentes de garantia de água para as famílias do meio rural semiárido: o Programa Um Milhão de Cisternas (P1MC) e o Programa Uma Terra e Duas Águas (P1+2). Sem dúvida, o maior programa com apoio governamental de distribuição de água e de cidadania, em uma região onde antes só existia fome, miséria e a indústria da seca. (…) A argumentação é de que a partir de agora o governo federal vai priorizar a execução do Programa, que integra o Plano Brasil Sem Miséria, apenas via municípios e estados, excluindo a sociedade civil organizada. A sugestão dada pelo MDS é que a ASA negocie sua ação em cada um dos estados contemplados. Para além da parceria com estados e municípios, o governo também anuncia a compra de milhares de cisternas de plástico/PVC de empresas que começam a se instalar na região. Ou seja, o governo não apenas rompe com a ASA, mas amplia a estratégia de repasse de recursos públicos para as empresas privadas. Consideramos isso um retrocesso, o que pode gerar um retorno claro e nítido a velhas práticas da indústria da seca, onde as famílias são colocadas novamente como reféns de políticos e empresas, tirando-lhes o direito de construírem sua história”.

Reproduzo também a nota divulgada pela Assessoria de Comunicação do MDS diante das primeiras manifestações de surpresa e protesto contra a decisão governamental. O título da nota é: “O Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS) reafirma que não existe ruptura na parceria estabelecida com a Articulação do Semiárido Brasileiro (ASA) para a construção de cisternas”. Mas o texto não diz isso. Reproduzo-o na íntegra para que algum leitor possa encontrar o que eu não encontrei. O texto refere-se apenas – e de forma pouco clara – à “reavaliação e ampliação do arranjo institucional” e à “importância de todos os parceiros”. Com relação à ASA, limita-se a reconhecer e elogiar o trabalho já realizado:

“Uma das prioridades do Governo Federal é garantir que os brasileiros das áreas rurais tenham acesso à água para consumo e para a produção de alimentos. No Plano Brasil Sem Miséria, o programa Água Para Todos definiu a ambiciosa meta de atender 750 mil famílias rurais com água para beber no semiárido, até 2013, e de assegurar água para a produção agrícola de outros milhares de famílias. Atingir este objetivo exige a reavaliação e a ampliação do arranjo institucional vigente até então, incluindo a formação de novas parcerias estratégicas entre diversos ministérios, órgãos públicos, estados, municípios e organizações da sociedade civil. O MDS reafirma a importância de todos os parceiros no sucesso desta agenda, visando ao atendimento integral das famílias que hoje não têm acesso à água de qualidade para manutenção de sua condição de vida. O MDS está empenhado na preparação das condições de atuação para o próximo exercício, no menor prazo possível, dentro das novas regras que orientam a atuação de todas as unidades do Governo Federal no próximo exercício. Em relação à AP1MC/ASA, o MDS reconhece e valoriza os resultados alcançados na construção de mais de 300 mil cisternas, numa parceria exitosa ao longo dos últimos nove anos”.

Para terminar, reproduzo também o texto escrito por um integrante da Comissão Pastoral da Terra sobre o presente natalino de Dilma Rousseff aos nordestinos. A ironia do texto, como se verá, não é opcional. Quem fala agora é Roberto Malvezzi, o Gogó:

“O presente da presidente Dilma ao povo do semiárido neste Natal já está decidido: uma cisterna de plástico. A presidente é uma excelente gerente, pessoa íntegra e acima de qualquer suspeita. Quando criou o ‘Água para Todos’ nos encheu de alegria. Afinal, agora iríamos acelerar a construção das cisternas para beber e produzir. Mas a presidente preferiu doar centenas de milhares de cisternas de plástico para os nordestinos. Descartou o trabalho histórico da Articulação no Semiárido Brasileiro (ASA) e vai trabalhar exclusivamente com os estados e municípios. Claro que essa decisão está acima de qualquer interesse eleitoreiro, ou dos coronéis do sertão, ou dos 10% das empresas fabricantes do reservatório. Dilma é uma mulher honrada. Claro que os empresários enviarão junto com as cisternas pedagogos, exímios conhecedores do semiárido, que farão a educação contextualizada realizada a duras penas por milhares de educadores da ASA. Esses pedagogos evidentemente conhecem o semiárido, o regime das chuvas, a pluviosidade de cada região, como se deve cuidar dos telhados, das calhas. Irão pelo sertão, pelas serras, pelos brejos, gastarão dias de suas vidas em meio às populações para realizar com um cuidado sacerdotal as tarefas que a questão exige. Claro que os políticos farão, antes de entregar as cisternas, uma crítica ao coronelismo nordestino, ao uso da água como moeda eleitoral, afinal, já superamos os períodos mais aberrantes da política nordestina. Quando a cisterna quebrar, os pedreiros capacitados saberão reparar os estragos, sem depender da empresa, e as cisternas de plástico não virarão um amontoado de lixo no sertão. As empresas também enviarão agrônomos para dialogar com as comunidades como se faz uma horta com a água de cisterna para produção, uma mandala, uma barragem subterrânea, uma irrigação simples por gotejamento. Claro, o interesse das empresas e dos políticos é continuar o trabalho pedagógico da ASA tão premiado no Brasil e em outros lugares do mundo. Não temos, portanto, nada a protestar. A presidente e a ministra (Tereza) Campello são exímias conhecedoras do Nordeste, mesmo tendo nascido no Sul e Sudeste. Conhecem cada palmo da região, dessa cultura, cada um de seus costumes. Claro que não nos enviarão mais sapatos furados, roupas rasgadas em tempos de seca, como acontecia antigamente. Até porque o trabalho da ASA eliminou as grandes migrações, a sede, a fome, as frentes de emergência e os saques. Mesmo não sendo nordestinas, nem jamais tendo vivido aqui, conhecem a região melhor que o povo que aqui nasceu ou aqui habita. Portanto, gratos por tanta generosidade. Vamos conversar com os milhões de beneficiados envolvidos na convivência com o semiárido. Eles vão entender as razões da presidente e da ministra e vão retribuir com a generosidade que lhes é peculiar. O povo do semiárido jamais esquecerá que, no Natal de 2011, ganhou como presente da presidente Dilma Roussef uma cisterna de plástico”.

De minha parte, chego ao fim deste ano perplexa. Cresci ouvindo que o Brasil era o país do futuro, mas não podia acreditar porque passei a infância e a adolescência numa ditadura que torturava gente como a então jovem Dilma Rousseff. Participei dos comícios das “Diretas Já” e cobri como jornalista as primeiras eleições da redemocratização. Muito mais tarde, testemunhei e escrevi sobre a eleição de Lula e o comício da vitória, em 2002. Nos últimos anos, já madura, ouço que o futuro chegou. E estava começando a acreditar, pelo menos em alguns aspectos. E não é que agora, às vésperas de 2012, anunciam com eufemismos que podemos estar voltando ao passado também no sertão nordestino? Não há de ser por saudades da literatura de Graciliano Ramos e de João Cabral de Melo Neto, porque esta é a única que com certeza não voltará.

(Publicado na Revista Época em 19/12/2011)

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