Duas mulheres indomáveis

Aos 102 anos, Aracy e Margarethe encerraram uma vida de cinema

Margarethe Bertel Levy (à esq.) e Aracy Guimarães Rosa

Margarethe Bertel Levy (à esq.) e Aracy Guimarães Rosa

Quando Margarethe morria no hospital, em casa a respiração de Aracy começou a falhar. Como o da amiga, também o seu pulmão ameaçava afogar-se. Maria Margarethe Bertel Levy morreu no dia 21 de fevereiro – e Aracy Moebius de Carvalho Guimarães Rosa na madrugada de 3 de março. Ambas tinham 102 anos. E uma história espetacular. Aracy, funcionária do consulado brasileiro em Hamburgo, havia salvado Margarethe de morrer num campo de concentração nazista. Uma brasileira e a outra judia alemã, as duas belíssimas, iniciaram sua amizade ao tornarem-se duas mulheres contra Hitler. E fizeram dela um laço inquebrantável ao viverem no Brasil que para Aracy era a terra natal, para Margarethe a rota de fuga. Quando a morte tentou separá-las, fracassou como todos que antes tentaram obstruir o caminho destas duas. Morreram quase juntas, com diferença de dias. Deixaram como legado uma vida de cinema.

Conheci essas duas mulheres três anos atrás. Quando tinham apenas 99 anos. Aracy Guimarães Rosa, como o sobrenome revela, foi o grande amor do escritor João Guimarães Rosa. Grande Sertão Veredas, talvez a maior obra-prima da literatura brasileira, foi dedicado a ela. “A Aracy, minha mulher, Ara, pertence este livro”. Em cartas para Aracy, Rosa revela um furor sensual que ninguém diria ao olhar apenas para seu aprumo de diplomata. Como ao escrever: “Antes e depois, beijar, longamente, a tua boquinha. Essa tua boca sensual e perversamente bonita, expressiva, quente, sabida, sabidíssima, suavíssima, ousada, ávida, requintada, ‘rafinierte’, gulosa, pecadora, especialista, perfumada, gostosa, tão gostosa como você toda inteira, meu anjo de Aracy bonita, muito minha, dona do meu coração”. Para Aracy, o escritor que criou um mundo e reinventou a língua portuguesa era o seu “João Babão”.

Mas Aracy não era apenas – e não que isso fosse pouco – a mulher por quem Rosa se apaixonou e com quem viveu até a sua morte. Aracy foi autora e protagonista de seu próprio romance na vida real. Tornou-se o “Anjo de Hamburgo” – a funcionária do consulado brasileiro que salvou dezenas de judeus do nazismo ao contrariar a política de Getúlio Vargas, enganar o cônsul e dar vistos para o Brasil antes que fossem presos em campos de concentração de onde jamais sairiam vivos. Seu nome está em Jerusalém, no Museu do Holocausto, como “justa entre as nações”, a mesma honraria com que foi reconhecido Oskar Schindler, cuja história foi contada em “A Lista de Schindler”, blockbuster de Steven Spielberg.

Eu a conheci para escrever uma reportagem que se chamou A lista de Aracy. Na matéria conto o que aconteceu com homens e mulheres que puderam tecer uma vida – e gerar uma descendência que, sem Aracy, não existiria. Um deles, Günter Heilborn, deu o nome de Aracy à primeira filha mulher e o nome de sua mãe, Selma, queimada num forno nazista, a uma orquídea de pétalas brancas e amarelas que criou como botânico amador. Há um mundo inteiro que só existiu porque Aracy existiu. E teve a coragem de fazer o certo – contra quase todos.

Ao buscar Aracy, alcancei Margarethe. Estas duas mulheres se encontraram no consulado brasileiro de Hamburgo em 1938. Aracy para salvá-la, Margarethe para ser salva. Em comum tinham a beleza e o fato de não seguirem a cartilha feminina da época. Eram ambas indomáveis. Ninguém podia com elas. Aracy, por exemplo. Era desquitada, no Brasil dos anos 30 (!!!). Fluente em várias línguas, tivera o desplante de, aos 26 anos, pegar o filho de cinco anos pela mão e rumar para a Alemanha para construir uma nova vida.

Sozinha com um menino pequeno, estrangeira num país à beira da insanidade e da guerra, ela teve a ousadia de desafiar a política do seu próprio país e enganar o próprio chefe. Armou uma pequena rede clandestina com arianos contrários à perseguição aos judeus que envolvia até o dono da autoescola onde tinha aprendido a dirigir seu Opel Olympia. Chegou a passar a fronteira com um judeu no porta-malas do carro com placa diplomática. E no meio dessa confusão teve tempo para viver um tórrido romance com Guimarães Rosa, o cônsul-adjunto que havia deixado no Brasil a primeira mulher, duas filhas e uma ainda incipiente estreia literária.

Margarethe tampouco era uma judia comum. Filha de pais ricos e liberais, passou boa parte da infância e da juventude viajando. Falava sete línguas. Seduzira Hugo, seu marido, (ou foi seduzida) na cadeira de dentista. Apaixonaram-se enquanto ele, 16 anos mais velho, cuidava da bela paciente. Com a ajuda de Aracy e de vários clientes arianos, Margarethe e Hugo conseguiram embarcar no navio Cap Ancona e chegar ao Brasil com a fortuna intacta. Não faltaram nem mesmo as jóias de Margarethe. Viveram em São Paulo sem maiores relações com a comunidade judaica. Hugo teve uma sólida clientela formada entre famílias alemãs. E Margarethe seguiu com sua vida cosmopolita.

Depois que Guimarães Rosa morreu, Aracy continuou vivendo no apartamento do casal no Rio. Em 1968, ela escondeu nele o compositor Geraldo Vandré, perseguido pela ditadura militar por causa da canção “Caminhando (Pra não dizer que não falei de flores)”. No prédio, próximo ao Forte de Copacabana, moravam vários oficiais. Enquanto a repressão caçava Vandré, ele compunha no sofá de Aracy. Depois, seu neto, Eduardo Tess Filho, levou Vandré para São Paulo numa Kombi. E de lá para o exílio.

Aos 80 anos, Aracy acabara de retirar dinheiro no banco quando tentaram lhe arrancar a bolsa. Deu tantas bolsadas no ladrão que o deixou estirado na calçada de Nossa Senhora de Copacabana. Daquele dia em diante, porém, a cidade foi assolada por uma guerra que ela não tinha mais idade para combater. E ela acabou resignando-se a morar em São Paulo com o único filho, o advogado Eduardo Tess. Aos poucos, bem devagar, foi perdendo os fios de sua memória.

Depois da morte de Hugo, há cerca de 20 anos, Margarethe ficou só. Enquanto pôde, manteve a independência e dirigiu seu Corcel até os anos 90 pelas ruas de São Paulo. Sem filhos seus para apoiá-la na velhice, foi o de Aracy que a adotou, em mais uma delicadeza dessa história cinematográfica. Margarethe seguiu vivendo em seu próprio apartamento, mas amparada pelo carinho da família Tess, que a chama de “Margarida”.

Quando conheci estas duas mulheres, Aracy parecia não estar mais aqui. Margarethe pouco caminhava, tinha dificuldade para enxergar e quase não ouvia, mas mantinha a mente límpida. E afiada. Foi ela quem me disse: “Entre mim e Aracy foi um golpe de amor. Só que entre duas mulheres”. Perguntei a ela como era na juventude. “Eu era sexy”, disse. E Aracy? “Muito sexy, linda, provocante, um corpo maravilhoso, os moços saltavam.”

Do tanto que tinham em comum, elas só não compartilhavam a fé. Aracy era uma católica fervorosa. Margarethe uma judia sem religião. “Eu não tenho esse apoio (da fé). Nasci judia e vou morrer judia, mas não sei nada de religião”, afirmou. Quase virando um século de vida e ela era o que era, sem concessões.

Aos 99 anos, Margarethe me olhou com olhos que supostamente não me viam e disse: “Pegaram minha mãe em Varsóvia. Puseram minha mãe no forno. Ela queimou”. E acrescentou: “Com o tempo, a gente não esquece”. É uma grande frase, à altura desta mulher única.

Margarethe já não podia mais alcançar Aracy nas visitas que fazia a ela nos derradeiros anos de vida. A amiga parecia não reconhecê-la. Mas o laço invisível que as unia de algum modo seguia lá, intacto. Há tantos anos alheia de tudo e também de si mesma, de algum modo Aracy pressentiu que Margarethe estava partindo.

Pode ser apenas coincidência, afinal elas tinham 102 anos e Aracy completaria 103 no próximo 20 de abril. Mas prefiro acreditar que não. Na madrugada de domingo para segunda (21/2), Margarethe morria e Aracy, que até então estava muito bem, sentiu a respiração falhar. “Tiveram a mesma morte”, me disse Beatriz Tess, a nora de Aracy, que cuidou das duas como se fossem suas próprias mães. “A gente pensava que não, mas de algum modo Aracy sabia”.

Ao contemplar Aracy imóvel em sua morte, um século de história inscrito no corpo envelhecido, me emocionei ao pensar que poucas mulheres podem afirmar terem vivido com tanta intensidade. Com tanta aventura, tanta paixão, tanto risco. Tanta verdade. Por causa de Aracy, Margarethe teve pelo menos mais 70 anos de uma vida que ela soube honrar vivendo com voracidade. Seu testemunho foi decisivo para que Aracy ocupasse seu lugar no Museu do Holocausto. E quando a amiga desligou-se do passado e também do presente, era na memória de Margarethe que ambas viviam.

Conhecendo um pouco a biografia destas duas mulheres extraordinárias, que não se renderam nem aos costumes nem aos preconceitos e nem mesmo a Adolf Hitler, gosto de pensar que elas não se deixaram vencer nem pela morte que as separaria. Posso imaginar Aracy pensando: “O quê? Se Margarethe se vai, eu vou com ela”. E tratou de morrer. Do mesmo jeito. Na hora que quis. Juntas, menos pelos dias que separaram a partida de uma e de outra, mais pela inteireza de uma amizade que redime o mundo.

(Publicado na Revista Época em 07/03/2011)

A guria dos 7

Sobre o desamparo de ser criança e viver na rua

23.973 crianças vivendo nas ruas de 75 cidades brasileiras com mais de 300 mil habitantes. Os números foram divulgados na semana passada pelo jornalista Bruno Paes Manso, do jornal Estadão, e são resultado de um censo nacional encomendado pela Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República (SDH) e pelo Instituto de Desenvolvimento Sustentável (Idesp). Pelo menos 63% destes meninos e meninas chegaram às ruas por causa de brigas em casa. A pesquisa mostra que 72,8% se identificam como pardos ou morenos e negros, e 71,8% são do sexo masculino. Apenas 6,7% concluíram o ensino fundamental. O censo deverá ser usado para a construção de uma política nacional.

Eu lembro, porque trabalhava como repórter nessa área, de que no final dos anos 90 havia 192 meninos de rua na capital gaúcha. Cento e noventa e dois. E ninguém soube o que fazer com eles. E se multiplicaram. Lembro, antes disso, de quando fui cobrir uma coletiva na prefeitura de Porto Alegre numa manhã de 1993 e encontrei no caminho garotos saindo dos bueiros do centro da cidade. Eram 12 e dormiam nos esgotos. A reportagem publicada no jornal Zero Hora repercutiu dentro e fora do país, e a foto ganhou o Prêmio Esso naquele ano. A prefeitura mandou fechar os bueiros e pouco mais. Lembro de quando já vivia em São Paulo e o repórter Carlos Etchichury, de ZH, investigou o paradeiro destes meninos dez anos depois. Ao localizar nove deles, descobriu que quatro estavam mortos.

Como repórteres nós mostramos, apontamos, denunciamos. É a nossa parte. E às vezes – muitas vezes – nada acontece. Fico contente que tenha sido feito um censo nacional de meninos e meninas de rua para que se possa enfrentar o problema com o necessário conhecimento da realidade. Mas me pergunto: por que só depois de 20 anos da criação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), o tempo de uma geração de rua morrer antes de se tornar adulta? E por que só agora, após oito anos de Lula e outros oito anos de FHC, talvez seja debatida e construída uma política pública integrada para dar conta dessa realidade?

Mesmo sem censo, há muito basta andar pelas grandes cidades – e também pelas pequenas e médias – para desconfiar que estivesse na ordem dos milhares o número de crianças de rua. Por que nunca se tornou uma questão urgente de fato para qualquer governo, em todas as instâncias? E por que boa parte de nós acha suficiente fechar o vidro do carro e colocar insulfilm para não ser alcançado pelo olhar destas crianças?

Até hoje não vi essa tragédia ser tratada com a seriedade e a urgência necessárias em nenhum nível de governo, por nenhum partido. Existiram alguns programas e políticas nas últimas décadas, a partir do trabalho e da pressão da sociedade organizada, mas estiveram longe de se tornarem centrais e suficientes. Espero que, desta vez, as ações – muito mais do que as boas intenções – provem que o enfrentamento do problema é prioridade.

Porque, quando se é uma criança na rua, o tempo é escasso. A violência espreita do minuto seguinte. O número encontrado pelo censo só não é maior porque nas ruas meninos e meninas morrem com facilidade assombrosa. Os enredos de suas vidas interrompidas são contados no jornal Boca de Rua e Boquinha, de Porto Alegre, da ONG ALICE, feito por jovens e crianças sem teto da capital gaúcha. Há dez anos o jornal é um testemunho deste drama: muitos dos que registraram sua vida ali hoje estão mortos. E aquele que hoje denuncia o assassinato de um colega teme virar notícia amanhã.

Quero aqui contar uma história pessoal, que me ajudou a compreender o desamparo que é ser criança e viver na rua, exposta ao mundo. Acredito que é preciso fazer o exercício de vestir a pele do outro para alcançar o significado da tragédia que só é nossa na medida em que é do outro – e que é nossa exatamente porque é do outro. Depois de adulta, eu faço esse exercício por decisão racional, como já escrevi aqui em textos anteriores. E o faço com o cuidado de não perder pedaços vitais no caminho. Mas na história que vou contar eu não tive essa escolha. Fui enfiada na pele do outro à força.

Ijuí, a cidade gaúcha onde eu nasci e vivi até os 17 anos, não está na lista do censo nacional das crianças de rua. Tem hoje menos de 80 mil habitantes, mais do que na minha infância. Naquele domingo de 1975 fazia sol, eu lembro bem. Pedi à minha mãe para ir ao cinema na matinê. Naquele tempo, havia dois cinemas em Ijuí. Um passava pornochanchadas e bangue-bangue (a relação até hoje me parece das mais interessantes), e o outro exibia os filmes, digamos, de família. Para crianças, a única possibilidade eram as matinês de sábado e domingo. Eu adorava cinema, mas meus pais e irmãos já tinham outros planos. Não era comum uma menina ir sozinha ao cinema, mas também não era impossível. Eu tinha nove anos.

A sessão acabou às 16h, e eu voltei para casa. Algo como quatro quarteirões. Toquei a campainha muitas e muitas vezes. Nada. Meus pais imaginaram que eu compreenderia que tinham precisado sair e iria à casa da minha tia, a duas quadras de distância. Na minha cabeça a coisa se passava diferente: era óbvio que em algum momento alguém abriria a porta e me resgataria da rua. Então esperei.

Ainda hoje sou capaz de me ver com exatidão, aos nove anos, enfiada no meu melhor vestido, azul com flores coloridas bordadas no peito e saia de preguinhas. A rua da minha casa era comercial, e a nossa era praticamente a única casa. Ao lado havia uma construção e em frente um terreno baldio. Aos domingos, as ruas da cidade eram desertas. Eu os vi chegando e pensei em correr, mas já não dava tempo. Acho que nem conseguiria porque me sentia algemada ao chão. Eram três crianças de rua. Dois meninos e uma menina de pele morena numa cidade de colonização europeia. E me cercaram.

Estou lá agora. Há um menino menor, de uns 7 ou 8 anos, e um maior, de uns 11 ou 12. A menina parece ter a minha idade. Os três me apontam seringas com agulhas certamente recolhidas do lixo das farmácias. Dizem muitas coisas. Que vão me furar, que vão me machucar. Que se me derem uma injeção eu vou morrer. Que devo dar a eles tudo o que tenho. E o que tenho são 7 cruzeiros amassados na minha carteira, o troco do cinema.

Eu dou. Mas eles não vão embora. Eles querem mais. Continuam me aterrorizando e dizendo que querem tudo o que tenho. Eu olho para a menina do meu tamanho que me aponta sua arma. Ela não tem um vestido. Ela só tem a parte de baixo de um vestido, algo que naquela época se chamava de anágua. Branca e velha e meio transparente. Eu posso sentir a sexualidade precoce dela. E sinto que o que eles querem de mim é algo que vai me matar de outro jeito. E por sorte alguém passa na esquina, do outro lado da avenida, e eles fogem.

Fiquei ali, paralisada por um momento. E depois, sim, corri até a casa da minha tia. E cheguei lá coberta de manchas vermelhas por todo o corpo. Uma reação emocional que teria pelo resto da minha vida, até hoje. Daquele domingo em diante, eu me tornei “a guria dos 7”. Eles me esperavam na porta do colégio e me perseguiam pelas ruas gritando meu novo título.

Contei à minha família sobre o assalto com seringas, até porque cheguei à casa da minha tia em estado de choque, mas não contei que era perseguida depois. Na minha infância não se falava em trauma. Nós éramos mais ou menos consolados, e a vida seguia sem muito espaço para dramas. Fazia parte do processo educativo aprender a resolver os próprios problemas desde cedo. Me virei como pude. Depois de algumas semanas de terror, minhas colegas de escola me ajudaram a enfrentá-los, e os três pararam de me esperar na porta do colégio.

Mas Ijuí era uma cidade pequena. E só muito mais tarde compreendi que havia criado uma relação de espelho com a menina de rua. Nós acompanhávamos a vida uma da outra sem jamais termos nos falado novamente. Apenas nos cruzando pelas esquinas do centro. E nos olhando de longe. Foi ao testemunhar seu destino ano após ano – e compará-lo ao meu – que compreendi o que é desigualdade. A mais abjeta delas, a de origem. Compreendi que ela tinha me tirado 7 reais e a inocência, mas que a nossa queda de braço ela já tinha perdido ao nascer.

Em nossa relação silenciosa e secreta, no início eu sentia por ela um ódio intestino. A menina encarnava a minha humilhação, os meus piores temores e a causa dos desmaios que passei a ter a cada vez que via uma agulha e dos quais só consegui me livrar depois de adulta. Mas sempre que nos cruzávamos ela estava pior. E seu olhar agora não era mais desafiador nem jocoso, mas envergonhado e acuado. Eu crescia protegida – e ela era mastigada pela rua.

A última vez que a vi nós tínhamos uns 15 anos. Eu usava uma trança e levava alguma coisa para a minha avó, que morava perto da praça. Era início da noite de um dia de semana. Ela estava lá numa esquina, menos vestida do que no dia em que nos conhecemos, e um homem ria e passava a mão no seu peito. Eu olhei para ela, e ela baixou os olhos.

Nunca mais nos vimos. Eu não sei o seu nome, e é grande a probabilidade de que ela esteja morta. Mulheres de classe média como eu tentam aprender a envelhecer. Mulheres como ela tentam não morrer antes dos 20. Pode ser que hoje ela só viva em mim – e a memória é a única vida que eu posso lhe dar.

Conto esta história aqui porque compreendi algo que posso compartilhar. Naquele momento, aos nove anos, aqueles meninos de rua me colocaram, à força, na pele deles. Naqueles minutos eternos em que me ameaçaram de morte com seringas e agulhas, eu vivi exatamente o desamparo não de um, mas de todos os seus dias. Na rua, diante de uma casa onde eu não podia entrar, sem uma família que me protegesse. Para mim, era apenas um instante. Para eles era a vida inteira.

Naquele domingo de 1975, a menina desnudada em uma anágua, ainda que com uma seringa na mão, era eu. Ela me enfiou na marra no seu lugar. E, de certo modo, parte de mim nunca mais deixou a sua pele. E eu vi, nós duas vimos, o que aconteceu comigo. E o que aconteceu com ela. A diferença de nossos destinos se desenrolando num enredo mudo nas ruas da cidade pequena.

Se você chegou até aqui, talvez tenha uma ideia mais próxima do que sente cada uma destas quase 24 mil crianças que neste exato momento estão nas ruas, expostas à violência do mundo apenas com suas peles e as armas que eventualmente conseguem. E que, no final, de nada servem. Porque já foram derrotadas muito antes. Estas crianças não têm o tempo das reuniões, da política e das boas intenções para esperar. Os dentes do mundo estão sobre seus corpos. E acredite. Não há nada pior – nada – do que ser criança e viver (e morrer) no desamparo.

(Publicado na Revista Época em 28/02/2011)

A vítima indigesta

Em livro, a austríaca Natascha Kampusch critica o maniqueísmo da sociedade e da imprensa – e de todos nós

Quase todos se lembram da austríaca que, em 23 de agosto de 2006, fugiu de seu sequestrador nos arredores de Viena. Natascha Kampusch terminava ali 3096 dias de um sequestro iniciado oito anos antes, em 2 de março de 1998. Naquele dia, sem se despedir da mãe depois de uma briga, ela caminhava até a escola quando foi agarrada e empurrada para dentro de uma caminhonete branca por Wolfgang Priklopil, engenheiro de telecomunicações, ex-funcionário da Siemens, jovem, educado, tímido e com enormes problemas com o mundo de fora. E, claro, com o de dentro.

Natascha viveu dos 10 aos 18 anos confinada no porão da casa de Priklopil. Depois dos primeiros tempos, ela alterou o porão com trabalhos duros na parte superior da casa que ajudava a reformar e a limpar. Sempre seminua e na maior parte do tempo com os cabelos raspados para não deixar vestígios. Nos últimos anos apanhava violentamente quase todos os dias e mal conseguia sustentar um corpo coberto por hematomas, cortes e lesões. A submissão era garantida ainda com a baixa ingestão de calorias e às vezes a suspensão total de comida por até dias. Aos 16 anos, Natascha media 1m75 e pesava 38 quilos.

Em 23 de agosto de 2006, Priklopil estava no bem protegido jardim da casa com Natascha, que aspirava os bancos da caminhonete, quando o celular dele tocou. Quando Priklopil precisou se afastar para atender à ligação por causa do barulho do aspirador, ela fez um enorme esforço para vencer a prisão psicológica que depois de tantos anos a paralisava mais do que os muros e escapou pelo portão. Desta vez, Natascha correu. Mais tarde, Priklopil se jogaria diante de um trem.

Este é o resumo da história. E era tudo o que eu sabia até agora porque quando começo a acompanhar esse tipo de caso no noticiário é sempre tão previsível que perco o interesse no segundo dia de cobertura. Há um monstro, louco e muito diferente de todas as pessoas boas e normais que habitam qualquer mundo, seja a Áustria ou aqui. E há uma vítima, frágil e confusa, que merece e precisa de toda a nossa pena. E há o resto de nós, que enquanto emite ahs e ohs diante da tela da TV, se regozija secretamente de que ainda bem que isso só acontece com os outros, que não há monstros morando dentro de nós nem vítimas habitando nossas almas. As tragédias cumprem seu papel de nos assegurar de nossa normalidade – assim como de nossa superioridade. E também por isso fazem um sucesso midiático tremendo.

Qual é a diferença aqui? A diferença é Natascha Kampusch. Para surpresa de seus conterrâneos e do mundo inteiro que disputava sua história (às vezes inventando detalhes sórdidos por achar que os verdadeiros ainda eram poucos), Natascha recusou-se a ocupar o lugar reservado a ela no espetáculo – o de vítima eterna.

Sim, ela dizia, eu fui uma vítima, mas isso não é tudo o que eu sou. Sim, Wolfgang Priklopil é um sequestrador e um criminoso, mas não é um monstro. “A simpatia oferecida à vítima é enganadora”, escreveria ela mais tarde. “As pessoas amam a vítima apenas quando se sentem superiores a ela”.

Natascha lutou para que não fizessem dela um produto de consumo em um show freak. Obviamente, perdeu logo a simpatia do público, que em muitos casos se transformou em ódio e ameaças pela internet. Chegou a ser acusada de cumplicidade e de ganhar dinheiro com a tragédia. Como assim, aquela menina loira e de olhos azuis, que deveria agradecer comovida a todas as manifestações de bondade vindas de todos os cantos de seu país e do mundo, ousava destruir a fábula moderna da cobertura midiática?

Pois ela ousou. E é por isso que seu livro 3096 dias – A impressionante história da garota que ficou em cativeiro durante oito anos, em um dos sequestros mais longos de que se tem notícia (Verus Editora) merece ser lido. Nas 225 páginas, Natascha Kampusch apropria-se de sua história e acerta suas contas – especialmente consigo mesma. Ao escrever a versão do que só ela viveu para contar, já que o outro protagonista está morto, eliminou qualquer possibilidade de transformarem sua vida num conto de fadas que, derrotada a fera, já teria o final feliz assegurado. Natascha Kampusch escolheu a vida, com todas as suas contradições, e não um pastiche dela – isto, quem desejava era o sequestrador.

Natascha, que leu muito no cativeiro, se expressa bem. Não é apenas a ajuda que teve para escrever o livro que garante a densidade da narrativa, mas sua capacidade de refletir e analisar o vivido torna-se bem clara também nas entrevistas que dá à imprensa. Escolhi alguns trechos do livro para que nos ajudem a entender o que Natascha nos diz. E é importante o que ela nos diz para entendermos a nós mesmos – e o nosso papel nas tragédias que se sucedem no noticiário e na vida.

Natascha Kampusch começa sua narrativa escapando do mito da infância feliz. Ela não era uma alegre e saltitante Chapeuzinho Vermelho engolida por um lobo malvado quando estava a caminho da casa da avó para mais um dia perfeito. Era uma menina que tinha dúvidas sobre o amor dos pais (como a maioria de nós, aliás), que fazia xixi na cama apesar de já ter 10 anos e sentia-se desconfortável com o próprio corpo gorducho. No dia do sequestro ela tinha conquistado a liberdade de ir sozinha à escola pela primeira vez, um trajeto de cinco minutos. Estava apavorada com a nova aventura, o que pode ter sido pressentido por Priklopil, um homem que conhecia muito bem o sentimento do medo em sua própria pele e se sentia totalmente deslocado no mundo exterior.

“Hoje acredito que, ao cometer um crime terrível, Wolfgang Priklopil queria apenas criar seu próprio mundinho perfeito, com uma pessoa que estivesse ali só para ele. Provavelmente ele nunca teria podido fazer isso do jeito normal e decidira, assim, forçar e modelar alguém para isso. Em essência, ele não queria nada mais do que as outras pessoas: amor, aprovação, calor. Queria alguém para quem ele fosse a pessoa mais importante do mundo. Ele parecia não ter visto outro modo de conseguir isso senão sequestrando uma menina tímida de 10 anos e a afastando do mundo exterior, até que ela estivesse tão psicologicamente alheia que ele pudesse ‘recriá-la’. (…)

Ele precisava daquele crime insano para concretizar sua visão de um mundo perfeito e intacto. Mas, no fim, realmente queria apenas duas coisas de mim: aprovação e afeto. Como se o objetivo por trás de toda aquela crueldade fosse forçar uma pessoa a amá-lo incondicionalmente.”

As torturas se intensificaram justamente quando Priklopil percebeu que, apesar de tirar-lhe o espelho para que não tivesse nenhuma imagem de si, batizá-la com um novo nome e proibi-la de pronunciar o antigo, ele não conseguia dobrar Natascha. E a vida idílica que esperava ter com sua mulherzinha/escrava dentro de casa, longe dos olhos do mundo, era impossível. Era impossível especialmente para ele, que se tornava cada vez mais temeroso do mundo lá fora. E mais desesperado com o de dentro, onde a menina crescia e se tornava mulher, algo com que ele nunca tinha lidado muito bem.

“Se eu tivesse apenas o odiado, esse ódio teria me consumido e me tirado a força de que eu precisava para sobreviver. Como naquele momento pude captar um lampejo do ser humano pequeno, desorientado e fraco por trás da máscara do sequestrador, pude me aproximar dele. Então, olhei em seus olhos e disse:

– Eu perdoo você, porque todo mundo erra às vezes.

Foi um passo que pode parecer estranho e doentio para muitas pessoas. Afinal de contas, o ‘erro’ dele custara minha liberdade. Mas era a única coisa a fazer. Eu tinha de conseguir conviver com aquele homem, caso contrário não sobreviveria.”

Em vários momentos do livro, Natascha mostra como o perdão tornou-se um instrumento poderoso nessa relação delicadíssima, em que o sequestrador tinha literalmente a vida dela nas mãos. Perdoar a tornava potente – e não apenas passiva. Alterava o equilíbrio de forças entre os dois. Ela passou oito anos e meio recusando-se a chamá-lo de “mestre” e a ajoelhar-se diante dele, mesmo que fosse espancada por isso.

O confronto de Natascha com o mundo de fora é revelador menos da vítima e do sequestrador – mais da sociedade, de nós. Imagine a cena. Ela corre para longe do seu sequestrador, depois de mais de oito anos de cativeiro. Diz às primeiras três pessoas que encontra, uma criança e dois homens adultos: “Vocês têm de me ajudar! Preciso de um celular para chamar a polícia! Por favor!”. A resposta foi: “Não podemos. Não trouxe meu celular”. Pense bem no que você faria diante da situação, antes de acusar a monstruosidade dessa resposta.

Em seguida ela atravessa vários jardins, salta cercas e vê uma mulher na janela da casa. Ela bate na janela e diz: “Por favor, me ajude! Chame a polícia! Fui sequestrada. Chame a polícia!” A mulher reage dizendo: “O que você está fazendo no meu jardim? O que você quer?”. Ela dá seu nome completo, explica que foi seqüestrada e que ela precisa chamar a polícia. A mulher retruca: “Por que você veio justo até a minha casa?” Então hesita: “Espere na cerca viva. E não pise no gramado!”. Antes de julgar a mulher da janela – e acho que devemos julgar, sim – vale a pena nos perguntarmos o que faríamos nessa situação.

Mais tarde, os próprios policiais tratariam Natascha com desprezo por ela não ter permitido que seguissem se comportando como seus salvadores. Pelo contrário. Ficaria provado, num escândalo posterior, que seu caso foi uma combinação de desleixo com incompetência. Que havia uma pista sólida sobre o sequestrador e a localização do cativeiro e que esta pista nunca foi investigada. Os documentos que atestavam o descaso desapareceram e só mais tarde a fraude foi desmascarada.

Enquanto isso, Natascha foi atormentada por interrogatórios infindáveis com o objetivo de obrigá-la a afirmar que estava sendo chantageada por cúmplices, que fora sequestrada por uma quadrilha – enfim, que a força policial não havia sido vencida por seus próprios erros e por um homenzinho tímido e frágil que esteve o tempo todo ali, a apenas alguns quilômetros da casa da vítima.

“As autoridades começaram a me tratar diferente com o passar do tempo. Fiquei com a impressão de que, de certo modo, eles se ressentiam do fato de que eu me libertara sozinha. Nesse caso, eles não eram os salvadores, mas aqueles que haviam falhado durante anos”.

Quando Natascha se recusou a representar o papel de vítima passiva do “monstro sexual”, foi odiada e ridicularizada. Os mais bonzinhos, com seus diplomas na parede e sua condescendência profissional, trataram de carimbar o diagnóstico definitivo na sua testa. A patologia de sempre: “Síndrome de Estocolmo”. Mas deixemos que Natascha fale, porque ela se defende com muita propriedade também dos bem intencionados.

“As coisas não são totalmente pretas ou brancas. E ninguém é totalmente bom ou mau. Isso também vale para o sequestrador. Essas são palavras que as pessoas não gostam de ouvir de uma vítima de sequestro. Porque os conceitos de bem e mau já estão claramente definidos, conceitos que as pessoas querem aceitar para não perder o rumo em um mundo cheio de tons de cinza.

Quando falo sobre isso, posso ver a confusão e o repúdio no rosto de muitas pessoas que não estavam lá. A empatia que sentem pela minha história se congela e se transforma em negação. Pessoas que não têm ideia da complexidade do cativeiro me negam a capacidade de julgar minhas próprias experiências ao pronunciar três palavras: ‘Síndrome de Estocolmo’.

Síndrome de Estocolmo é um termo usado para descrever um fenômeno psicológico em que os reféns manifestam sentimentos positivos em relação aos sequestradores. Esses sentimentos fazem com que as vítimas simpatizem ou mesmo colaborem com os criminosos – isto é o que dizem os compêndios. Um diagnóstico classificatório que rejeito enfaticamente.Por mais simpático que pareça ser o uso do termo, seu efeito é terrível, pois transforma as vítimas em vítimas novamente, ao tirar delas a capacidade de interpretar a própria história e ao transformar as experiências mais significativas em produto de uma síndrome. (o grifo é meu)

O termo aproxima de algo censurável o próprio comportamento que contribui significativamente para a sobrevivência da vítima. Aproximar-se do sequestrador não é uma doença. Criar um casulo de normalidade no âmbito de um crime não é uma síndrome. É justamente o oposto. É uma estratégia de sobrevivência em uma situação sem saída – e é muito mais verdadeiro que a ampla categorização dos criminosos como bestas sanguinolentas e das vítimas como cordeiros indefesos, na qual a sociedade quer se basear”.

Dá para entender por que, passado o clamor inicial, Natascha Kampusch tornou-se uma vítima indigesta.

Chegaram a sugerir a Natascha que trocasse de nome para não ser assinalada pelo que viveu. Como se isso fosse possível. E, caso fosse possível, como se anular seu passado não anulasse com ele uma parte essencial de si mesma. “Que tipo de vida seria essa, especialmente para alguém como eu, que durante os anos de cativeiro lutara para não perder a identidade?”, questiona.

Com surpreendente maturidade, Natascha entendeu que só tem uma vida aqueles que aceitam as suas marcas como parte do vivido, mas não como tudo o que são. E assim, ela não se fixou nas marcas nem se deixou paralisar pelo lugar de vítima eterna. Natascha Kampusch seguiu com seu corpo e sua vida marcada em direção ao futuro, pronta para ser tatuada por novas experiências. Como é, afinal, a vida de todos nós.

Natascha Kampusch não era Chapeuzinho Vermelho e, se Wolfgang Priklopil era um lobo, era um bem patético. Ela não teve a chance de ouvir os contos de fadas muitas e muitas vezes na hora de dormir para ter certeza de que o horror não aconteceria com ela, como se passa nas noites das crianças sortudas. Natascha foi arrancada da infância para ser a escrava de um adulto perturbado e talvez tão assustado quanto ela. E o horror continuava lá quando acordava presa em um porão escuro.

Aos 22 anos, Natascha precisou transformar o vivido em história contada. Para ser capaz de libertar-se e seguir adiante, porém, era fundamental ser fiel à complexidade da vida e às nuances dos personagens. Queriam dela mais um remake estereotipado do que costuma ser contado e recontado em tragédias espetaculosas. Ela respondeu com uma narrativa que nos implica a todos. É por ter se negado a dar respostas fáceis ao mundo que a assistia que não a perdoam. Mas esta é a história que a Natascha adulta pode contar a si mesma tantas vezes quanto forem necessárias e acordar no dia seguinte sabendo quem é.

Seu livro é uma boa leitura para todos, possivelmente essencial para policiais, advogados, promotores e juízes, para assistentes sociais, psicólogos, psiquiatras e psicanalistas – e, sim, para jornalistas. Se eu fosse professora de alguma faculdade de jornalismo consideraria bibliografia obrigatória. O testemunho de Natascha pode nos ajudar a cometer menos atrocidades nas coberturas das tragédias que se sucedem no noticiário.

Sobre sua relação com a imprensa, Natascha escreve o seguinte:

“Eu nunca abriria mão da minha identidade. E me apresentei diante das câmeras com meu nome completo e sem disfarces, e ofereci um vislumbre do tempo do cativeiro. Mas, apesar da minha franqueza, os meios de comunicação não me deixavam em paz. Eram dezenas de manchetes, e especulações cada vez mais absurdas dominavam o noticiário. Parecia que a verdade terrível não era terrível o bastante, então eles acrescentavam coisas muito além do suportável, negando, com isso, minha autoridade como intérprete do que eu vivera. (…)

Fui percebendo que caíra em outra prisão. Centímetro a centímetro, as paredes que substituíram o cativeiro se tornaram visíveis. Eram mais sutis, construídas com o interesse público excessivo, que julgava cada movimento meu. Assim, coisas simples como pegar o metrô ou ir ao shopping em paz se tornaram impossíveis para mim. Acreditei que, ao satisfazer a curiosidade da mídia, seria capaz de retomar minha própria história. Só depois descobri que uma tentativa como essa nunca teria êxito. Nesse mundo que buscava por mim, a questão não era eu. Eu me tornara conhecida por causa de um crime terrível. O sequestrador estava morto – não havia um caso Priklopil. Eu era o caso: o caso Natascha Kampusch.”

Ela vai mais além. Vai até o fim.

“Depois da fuga, fiquei surpresa – não pelo fato de que eu, como vítima, fosse capaz de fazer essa diferenciação, mas de que a sociedade na qual entrara após meu cativeiro não permitisse a menor nuance. Como se eu não pudesse refletir de maneira alguma sobre a pessoa que fora a única em minha vida durante oito anos e meio. Não posso nem aludir ao fato de que preciso desse recurso para tentar superar o que aconteceu sem despertar incompreensão.

Ao mesmo tempo, percebi que, em certa medida, também idealizei a sociedade. Vivemos em um mundo em que as mulheres apanham e são incapazes de abandonar o homem que bate nelas, embora, em tese, a porta esteja aberta. Uma em cada quatro mulheres é vítima de violência extrema. Uma em cada duas mulheres sofre assédio sexual durante a vida. Esses crimes estão em toda parte e podem ocorrer atrás de qualquer porta do país, em qualquer dia, e talvez só provoquem um dar de ombros ou uma indignação superficial.

Nossa sociedade precisa de criminosos como Wolfgang Priklopil para dar um rosto ao mal e afastá-lo dela mesma. É preciso ver imagens desses porões para que não se vejam os muitos lares em que a violência ergue sua face burguesa e conformista. A sociedade usa as vítimas desses casos sensacionalistas, como o meu, para se despir da responsabilidade pelas muitas vítimas sem nome dos crimes praticados diariamente, vítimas que não recebem ajuda – mesmo quando pedem.

Crimes assim, como o que foi cometido contra mim, formam a estrutura austera, em branco e preto, das categorias de Bom e Mau nas quais a sociedade se baseia. O criminoso deve ser um monstro, para que possamos nos ver no lado dos bons. O crime deve ser acrescido de fantasias sadomasoquistas e orgias selvagens, até que seja tão extremo que não tenha mais nada a ver com nossa própria vida.

E a vítima deve ficar destruída e permanecer assim, para que a externalização do mal seja possível. A vítima que se recusa a assumir esse papel contradiz a visão simplista da sociedade. Ninguém quer ver isso, porque, caso contrário, as pessoas teriam de olhar para dentro de si mesmas”.

A história que Natascha Kampusch escolheu contar foge de todas as simplificações. E por isso ela pagou – e vem pagando – um preço alto. Me pergunto de onde essa garota presa e torturada por um homem solitário e instável durante mais de oito anos conseguiu forças e lucidez para continuar brigando pela integridade do que é. Não mais agora contra Wolfgang Priklopil, mas contra todos nós que queremos reduzi-la às necessidades de nosso voraz apetite por vítimas. Ao nosso desespero por uma normalidade que só existe em nossas fantasias, à categorização simplista do bem e do mal – onde todos estamos, claro, sempre no lado do bem.

Suponho que, logo após a fuga, Natascha Kampusch tenha percebido que não podia se deixar sequestrar novamente – agora não mais pelo criminoso de um só rosto, mas pela sociedade que tentava aprisioná-la em rótulos fáceis, convenientes para todos menos para ela. Assumiu o preço sempre custoso da liberdade e vem tentando ditar suas próprias regras. Algo como: “Ah, vocês esperavam ser salvos? Desculpa, mas não à custa da minha vida”.

Este livro é um manifesto de afirmação de sua identidade. Com toda a inteireza de sua experiência. À Natascha Kampusch, meu máximo respeito. Espero que ela continue nos mandando passear e siga com a sua vida.

(Publicado na Revista Época em 21/02/2011)

A melhor pior praia do mundo

Uma reflexão sobre os pés, a família e o tempo

A cada ano meu pai vai silenciando. E minha mãe se tornando mais falante, como se as palavras tivessem o poder de pregá-la à vida. Ele vai se tornando mais lento, um passo estudado de cada vez. E ela desafia as leis da medicina com seus joelhos gastos e seus pés de dedos tortos que saltitam pela casa e, sempre que possível, escapam para a rua. Cada dedo do pé da minha mãe parece querer avançar mais rápido que o outro, então se amontoam, como numa cena dos Três Patetas.

Sempre achei que os pés das pessoas contam tanto delas quanto o rosto. Os pés do meu pai se esparramam sólidos e largos, querendo estar sempre certos de onde pisam. E os da minha mãe se adiantam, curiosando, querem andar não importa para onde. E não raro se enfiam em buracos de onde ela os arranca recitando palavrões de lavra própria.

Passei a última semana com meus pais naquela que para mim será sempre a melhor pior praia do mundo. De repente, meu olhar foi capturado pelo andar de cada um. É perto de um milagre que eles andem juntos há quase 60 anos com esses pés descombinados. Percebi o quanto nós todos, seus filhos e netos, precisamos que eles reeditem esse desconcerto dos pés.

O que viemos averiguar, nós que moramos longe, é se continuam andando no seu modo improvável. Meu pai cada vez mais lento, minha mãe cada vez mais rápida, encontrando-se em algum lugar dessa distância entre dois pontos. Acabo divagando se meu irmão do meio não se tornou físico para compreender a trajetória destituída de lógica que é o caminhar desordenadamente sincronizado de nossos pais.

Visitá-los nesta praia que eles amam, onde para nossa decepção o mar não sofreu nenhuma influência do aquecimento global e mantém a temperatura constante de iceberg, onde os ventos varrem largas porções de areia e às vezes até os bichos mais frágeis e todas as suas sarnas, tornou-se um destino sólido de nossos verões. A cada início de ano nós sabemos que o vizinho se tornará um flagelo com seu cortador de grama às 7 horas da manhã de cada dia. E quando não for o cortador de grama será alguma outra máquina infernal que ele prefere pilotar sempre de manhã bem cedo ou logo depois do almoço. Também temos certeza de que as dúzias de cachorros não nos darão trégua latindo ao mesmo tempo e o tempo todo.

Que ninguém vai dormir nas noites de sábado para domingo porque uma romaria de adolescentes celerados vai passar diante da nossa casa estourando as caixas de som como um triste rito de passagem num mundo em que todos os rituais soam como um reality show de má qualidade. Que algum problema sempre vai acontecer com a água, que desta vez faltou por três dias. Que o único mercado cobrará preços tão abusivos que cogitaremos deixar uma fatia do rim na hora de acertar a caderneta. E a marca de cerveja será sempre a pior possível. Mas resistimos porque a melhor pior praia do mundo tem suas garras de areia cravadas no nosso coração.

Todo ano, mal boto meus pés descalços no chão e já vou jurando que é a última vez que piso naquela praia insana. E no dia seguinte a compreensão me atinge. Sei por que vim. E sei que continuarei vindo. Volto ano após ano para ter certeza que tudo continua exatamente igual. Ainda que às vezes insuportavelmente igual.

Neste verão, duas cenas cavoucaram minha alma com uma daquelas pazinhas de criança esquecidas na areia e se instalaram para ficar. Lá está meu pai. Depois de um acurado estudo sobre o rumo dos ventos, em que ele anda para lá e para cá, apalpa as nuvens com os olhos e aspira a maresia, meu pai posiciona uma cadeira e uma dessas mesas ordinárias de plástico exatamente onde a brisa circula sem obstáculos. Lá ele se senta com alguma de suas preciosidades. Neste ano o primeiro livro sobre a história do Brasil escrito por um brasileiro, Frei Vicente do Salvador, datado do início do século XVII. Só interrompe essa leitura para esmiuçar o jornal, de onde recorta as melhores partes. Não há tecnologia que o convença que recortar o jornal com tesoura não siga sendo a melhor maneira de organizar um arquivo. Eu o espio da minha rede e, a certo momento, não consigo evitar. Grito: “Pai, a vida é boa, né?”. E ele responde de volta, meio sobressaltado com a interrupção: “É muito boa, sim!”. E desandamos a rir. E eu choro.

A outra é de minha mãe. Desde que ela ganhou um laptop dos filhos desdenha todos os outros tipos de comunicação. Lá vem ela caminhando pelas bordas dos pés, meio de lado, como é o seu estilo, meio sabendo que interrompe a minha leitura, mas sem conseguir resistir a compartilhar a brincadeira que acaba de lhe chegar por email. Tu conheces a mágica do 111? Não, eu não conhecia. Então pega os últimos dois algarismos do teu ano de nascimento – 66 – e soma com a idade que vais fazer neste ano – 45. Eu não sou muito boa em matemática, mas consigo. E ela quase dá pulinhos de alegria. Testamos juntas vários nascimentos e aniversários e, incrível, sempre dá 111. Ela passa então o resto do dia em um animado balé com seus pés problemáticos, satisfeitíssima com a mágica do 111. Feliz como no tempo em que trepava nos pés de laranja da chácara do pai para roubar fruta verde. Eu a observo, com respeito máximo pela conquista do povo egípcio e por tudo o que significa para o mundo inteiro. E ao mesmo tempo meio envergonhada porque naquele meu canto acanhado de planeta, na melhor pior praia do mundo, o acontecimento mais importante daquele dia foi testemunhar minha mãe saltitando de ladinho por causa do 111.

Aperto a minha filha com força antes que ela parta rumo ao Rio de Janeiro e, como sempre, me surpreendo de como é possível amar tanto assim um outro ser humano. Afofo seus pequenos pés que ela afirma serem em forma de raquete. E aceito que pela lógica é natural que seja ela a primeira a partir para longe. Nós que ficamos não compreendemos bem como ela pode preferir Ipanema e Leblon à melhor pior praia do mundo. Mas, por amor, fingimos entender.

Deste lugar geográfico-sentimental fazemos de conta que o tempo não avança, enquanto com o canto dos olhos cada um de nós anota mentalmente as marcas que assinalam nosso corpo e também os daqueles que amamos. Registramos, mas não contamos para ninguém. Para o ano que vem esperamos um novo par de pezinhos gorduchos e ainda sem nome, um bebê novo que acolheremos. Ele mal saberá onde está enquanto engatinha sua vida nova pelo assoalho, sem adivinhar que a melhor pior praia do mundo já crava nele suas unhas de areia.

A vida é mais intensamente isso do que todo o resto. Essa nossa capacidade de fingir desconhecer que um dia essa casa será alugada para outros porque nossos pés já não andarão por esse mundo. Mas enquanto isso, resistimos. Cheia de medo, tento algemar com palavras o que já não alcanço prender de outro jeito.

Se me perguntarem agora o que eu desejo para o próximo verão, com toda a fome do meu querer, é isso: perseguir com os olhos os cada vez mais lentos passos do meu pai por esse mundo. E observar os dedos dos pés de minha mãe se atropelarem na pressa de chegar a algum lugar que ela nunca soube bem onde fica.

(Publicado na Revista Época em 14/02/2011)

O bigode de meio metro

Por que João colocou 100 parafusinhos no rosto sem depilar seu orgulho

“Doutor, precisava que tu me quebrasses um galho.” João Alberto dos Santos Marques, 55 anos, exibia 25 fraturas na face e oito no nariz. Tinha levado um coice quando tentava convencer uma vaca a adotar um terneiro desgarrado na fazenda gaúcha de nome Cinacina. Havia passado uma noite inteira deitando sangue. E dizendo: “É só uma dorzinha qualquer, o tipo de um esfolão”. Desconfiava que a coisa “não era tão boa” porque a prótese dentária lhe escapava da boca, mas esta não era nem de longe sua maior preocupação. João também não gastava um segundo do seu tempo pensando no olho que tinha “saltado para fora” nem nas feições que se deformaram. O que estava em jogo naquele momento em que o mundo parou era muito mais vital que a integridade do seu rosto. A identidade, para João Marques, era dada por algo que continuava bem ali, tremulando sobre a sua boca, portentoso e lindo como sempre. “Doutor, o senhor podia me poupar o bigode?”

Cinco horas de operação depois, o cirurgião tinha instalado 100 microparafusos de titânio no rosto de João Marques sem tocar num fio do seu bigode. “Fiquei muito contente com o doutor!”, me disse ele dias atrás, quando o alcancei por telefone, lá para os lados da fronteira do Brasil com a Argentina, onde vive entre São Borja e Santo Antônio das Missões. Eu escutara a história da boca da sua irmã, que o acompanhou na cirurgia no Hospital de Caridade de Ijuí, minha terra de nascimento, e tinha ficado muito intrigada. O que é o bigode para este homem?

Fui saber. E João me contou em gauchês. Para esclarecer, o gauchês – assim como o gaúcho – não tem nada de homogêneo. Cada canto tem nuances e concepções de mundo medidas em lonjuras. O de João é o do gaúcho fronteiriço que anda mais sobre as quatro patas do cavalo que as suas próprias duas pernas. Que tem sangue mestiço de português com índio guarani. Que só tirou a bombacha e botou calça comprida no dia do casamento e até hoje se arrepende (da calça, não do casório, que fique bem entendido!). Que enrola o lenço vermelho dos maragatos no pescoço por “uma ideologia que é um sistema que vem desde os tempos do avô”. Que não gosta de praia, só de mato. Que diversão de fim de semana é laçar boi com os amigos. E que quando é obrigado a ir pra cidade – “Deus me livre!” –, assim que pode se atocaia com o chimarrão debaixo de um pé de árvore e por lá fica até a hora de ir embora.

Por que eu quis saber do bigode do João? Porque esse tipo de personagem ganha importâncias na literatura – e esquecimentos na vida real. Porque o gauchês do João é dele, mas também é nosso, ainda que eu seja uma gaúcha sem intimidade com o Pampa e você seja um paulistano da Vila Madalena ou um nordestino do Agreste, um ribeirinho amazônico ou um funcionário público de Brasília. Porque faz bem pra vida lembrar que enquanto tocamos a nossa lida urbana, o João está lá, alisando seu bigode com os dedos, o olhar fazendo um cafuné no horizonte. Porque me dá gosto contar o momento único em que um homem com a cara toda partida luta para salvar seu bigode – e o faz por intuir que na integridade dele está contida a inteireza do seu mundo. Porque acredito nas epopeias invisíveis – e a de João, se soubermos prestar atenção nos detalhes de sua fala, é salvar os pequenos saberes que fazem dele o que é.

Foi com muita gentileza que João Marques interrompeu a lida para me atender. Permitiu que eu abrisse uma janela e desse uma espiada em seu universo alicerçado sobre um bigode de meio metro.

Esta foi a nossa prosa. E, se ela é bem divertida, há mais nela do que parece à primeira vista.

– Me conta como é esse teu bigode, João!

– De uma ponta a outra tem meio metro. Do nariz para a direita, 25 centímetros. Do nariz para a esquerda, outros 25 centímetros. Por aqui não tem um bigode do tamanho do meu. Tu sabes? Eu coloco atrás da orelha!

– Sério?

– É, uma ponta em cada orelha.

– E por que tu deixaste um bigode desse tamanho?

– Sempre achei lindo bigode grande. Sou bisneto de português e tu sabes que português é apaixonado por bigode. Português sem bigode é quase como gaúcho sem bombacha.

– Não sabia disso…

– É… Na lógica é assim que funciona. Decerto tá no sangue esse negócio de bigode. Eu sempre fui cuidando desse lado da história. Tu sabes que já nasci velho. Se encontro três livros, um mais velho que o outro, eu pego logo o mais velho de todos. É isso. Nasci velho.

– E se tu perdesses o bigode na cirurgia?

– Deus te livre se o médico tivesse de tirar. Acho que eu não ia me conhecer mais. É da identidade minha, de índio primitivo. Não há o que me faça desistir desse bigode. Tu sabes que meu bigode tá em Roma?

– Roma?

– Tu sabes como é no interior. O bispo quando vem, crisma um monte de crianças de uma vez só. E eu tinha ganhado um afilhado nesse dia. Quando terminou a crisma, o bispo me disse: “Quero um particular contigo. Na primeira oportunidade que der, me tira um retrato porque tu me lembras muito meu avô, que tinha um bigode igual ao teu. Depois me manda pelo padre”. O padre é muito meu amigo, sabes, vem pescar e caçar aqui em casa. Tirei o retrato e no que deu na volteada estou em Santo Ângelo, onde o bispo mora. Pensei, com o retrato já no bolso: Vou acertar as contas com o bispo. Cheguei lá na casa do bispo, que agora tá aposentado: “Eu tenho um acerto, uma conta com o senhor. Casualmente vim acertar hoje”. O bispo gostou muito. Disse que ia pra Roma e levaria o retrato pro Papa orar por mim quando fizesse as orações. Nem sei se já foi, mas digo por aí que meu bigode tá em Roma.

– É verdade que tu estás num concurso de bigode?

– É um jogo.

– Como foi isso?

– O Altair, um amigo meu que tem um alambique e vende sua cachaça pelos municípios aqui da região encontrou esse homem em Itacurubi que também tem bigode grande, conhecido por Tio Nato. Este Tio Nato é um contador de causos, gosta de ligar pra rádio e contar anedota. É bem historiador ele. Pois fizeram um jogo de um capão assado (cordeiro desmamado e castrado) e uma carreira de cerveja. Quando fui operar, eu disse pro doutor que tinha este jogo e tinha um seguro. Se ele me cortasse o bigode eu achava que me pagavam o seguro, mas ia perder o jogo. O doutor então abriu uma exceção pra mim. E foi um sucesso a cirurgia, caso muito sério. Vinte e cinco dias depois eu já andava a cavalo no campo. Aí, quando meu amigo contou pro Tio Nato que o meu bigode de ponta a ponta tinha 50 centímetros, ele disse que já tinha perdido. Agora é só marcar de medir os bigodes e comer o capãozinho.

– Não tem nenhum bigode maior que o teu na região?

– Por aqui não tem um bigode como este meu. Mas parece que tem um rapaz lá no Itaqui que tem um bigode de 50 centímetros pra mais. Ele também gosta de coisas antigas, parece até que tem um museu. Tenho muita vontade de conhecer.

– E como tu cuidas do teu bigode?

– Nunca facilitei no cuidado com meu bigode. Digo pro rapaz que me faz a barba, de nome Joaquim, mas vulgo Quim, que me faça a barba caprichosamente, mas não mexa no bigode. Qualquer centímetro que crescer é lucro pra mim.

– Mas e o cuidado com ele em casa, pra lavar e tal…

– Tu sabes que não sou de ficar com muitos cuidados. Faço a higiene e às vezes uso um xampu pra ele ficar mais solto. Penteio com a mesma escova do cabelo. Eu não sou de torcer o bigode nem nada. Gosto de deixar à vontade. Ao natural, bem estendido. Acho lindo ao natural.

– E a tua mulher, a Ozana, gosta desse teu bigode?

– Ela aceitou normal, as gurias é que acham muito engraçado. É um troço quase que meio exótico, no bom sentido. Alguns amigos até usam essa expressão. Ah, mas deixou um bigode meio exótico. E eu sou muito bom de prosa e apesar de não ter grande estudo sou bom de argumento. Eu digo: Mas que esperança, meu amigo, se fosse verde ou encarnado podia ser exótico. Este bigode é do índio primitivo. Bigode igual a este meu tu só vês no túnel do tempo da Zero Hora (seção de memória do jornal gaúcho). E uns vêm até me elogiar porque sabem que estou dizendo não de brabo, mas porque é meu direito. Uns me batem nas costas e outros só encabulam.

– Me fala um pouco mais da tua vida aí na fazenda. Desde quando tu andas a cavalo?

– Desde os quatro, cinco anos. E até o dia de hoje nunca paguei um pra domar meus cavalos. Meus cavalos se deitam e obedecem ao comando da minha fala. Tenho retrato pra mostrar. Faço parto de vaca, faço até cesariana. Aprendi na lida bruta da vida. A melhor escola é a do mundo. E não é querer me gabar, mas tem veterinário que vem se aconselhar comigo qual é o mais prático, qual é o mais certo. Eles sabem na teoria, mas na prática quem sabe sou eu. Na lida campeira é touro criado, é cavalo, não é pra me gabar, mas aqui na vizinhança marcam dia pra ver quando vou poder capar lá pra eles. E até o dia de hoje nunca tive problema nenhum.

– E como é que tu fazes a castração do gado?

– Gaúcho mesmo não usa máquina, não usa burdizzo. O gado é capado à faca. Faca de ferro que é a melhor. Eu, quando vejo um índio desses de burdizzo debaixo dos pelegos, derrubando touro pra capar, eu tô fora, nem é comigo. Eu entendo mesmo e sei fazer essa lida bagual, do tempo antigo.

– E tu ainda comes os bagos do boi como no passado? Quando era criança eu assistia à castração e comia também, mas agora faz um tempão que não vejo isso.

– Faz parte da lida. Se o cara chega a não estar lá no costado da mangueira com um punhado de sal nem começamos a lida. É o primeiro que vai pra beira da mangueira. E tu sabes que é o viagra campeiro. É um revigorante de primeira linha. Assim como carne mal passada é outro que não é brinquedo, um estimulante fora de série.

– Então a mulherada fica feliz nesse dia?

– É…

– Mas por que tu não usas a máquina para castrar, por que achas tão importante fazer do jeito tradicional?

– Eu sei usar a máquina, mas não uso. Considero que é capa de colonial. E eu não sou colonial, eu sou índio do campo mesmo, gaúcho e bagual. Comigo tem de ser no sistema antigo.

– E o que é “colonial”?

– Colonial, como a gente costuma dizer e me desculpe pela expressão, é o índio já meio pendendo pro americanizado. Tá no campo porque pertence à classe povoera. Termo pejorativo nosso aqui, que não é nem a expressão certa, mas a gente diz. Meio americanizado, povoero e meio cowboy. Este nós consideramos colonial.

– Tu já pensaste em morar na cidade?

– Nunca morei na cidade e não quero que Deus me castigue de um dia precisar morar lá. A cidade me dá um tipo de angústia. Sempre brinco com os meus amigos que quero ir mais pra costa do Icamaquã (rio) e não pra beira da estrada. Aqui é que eu acho lindo. No dia em que tenho mais tempo chego a entrar no meio do mato só pra sentir o cheiro. Me sinto tão bem que vou te dizer, sou apaixonado pelo campo e pelo mato.

– O que é um gaúcho no teu modo de ver?

– O gaúcho é aquele que entende de toda a lida que for preciso. Eu, se precisar derrubar uma vaca, carnear e charquear, eu sei fazer. Se tiver de carnear uma ovelha, charquear e assar, eu sei fazer. Na minha concepção, entendo assim. Se o cara disser que amanhã vamos sair bem cedo, eu tô com o cavalo encilhado e o ponche na garupa. O gaúcho tropeiro é praticamente superior ao tempo. Se amanhecer o dia com sol que racha eu tô indo. Se amanhecer o dia chovendo tô indo igual.

– Tu te orgulhas de ser gaúcho?

– Mas deus te livre!

– Como é um dia normal teu?

– Quando começa a pender pra amarelar a barra do dia já começo a agitar o serviço do campo. Às 5 e meia, 6h, já estou agitando. Tu sabes, né, que cada dia que tu saíres para a lida na fazenda tem uma surpresa, sempre tem uma surpresa. É uma vaca que o terneirinho se desprendeu e tem de procurar, ou uma vaca que não pode dar cria e tem de ajudar a nascer ou fazer cesárea, uma ovelha que apareceu mordida de cachorro… Desde que clareia o dia é assim. Eu aqui cuido de umas 200 cabeças de gado, umas 150 ovelhas e umas 40 éguas.

– Sozinho?

– É barbada depois que acostuma. E tenho os cachorros que me ajudam igual a um homem. Tendo cachorro bom, a gente lida com qualquer quantia de gado. Tenho cinco cachorros. A Famosa, o Bugio, o Raposinha, o Chatão e o Max. E quando tem algo maior, eu e meu vizinho trocamos serviço.

– Quando tu acordas, a primeira coisa é o chimarrão?

– Primeiro o mate. Depois tomo o meu desjejum.

– E o que tu comes?

– Carreteiro de charque. De manhã cedo é comida de sal.

– João Marques, tu és feliz?

– Mas bah!

– A vida é boa para ti e o teu bigode?

– Mas barbaridade, vou te dizer… uma pena ter de morrer.

(Publicado na Revista Época em 07/02/2011)

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